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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte sep. 2006

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

A angústia e sua tarefa de ligação1

 

Anxiety and its function in binding

 

 

Ana Maria Portugal Maia SalibaI

Escola Letra Freudiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe pensar as relações entre a angústia e a vida pulsional como apoiadas no princípio de ligação – Bindung –, primordial ao princípio de prazer. Passando pela teoria da Segunda Tópica freudiana e com os efeitos da insistência do Real na clínica, conclui com observações sobre a topologia lacaniana dos nós, propondo a angústia como a vida do Real.

Palavras-chave: Angústia, Pulsão de vida, Pulsão de morte, Princípio de ligação, Topologia lacaniana dos nós.


ABSTRACT

We can think that the relations between anxiety and instinctual life stands upon the "binding principle" – Bindung – that is more primitive than the pleasure principle. Passing through the second topographical theory, and with the effects of the insistence of the Real acting in the clinical work, our conclusion stands upon lacanian knots topology, and proposes anxiety as the life inside the Real.

Keywords: Anxiety, Instinct of life, Instinct of death, Binding principle, Lacanian knots topology.


 

 

o(s)
"Pede-se fechar olho(s)."
um
Freud
2

 

Para introduzir e explicar sua articulação sobre as relações entre angústia e objeto, com a frase: "a angústia não é sem objeto", Lacan, na lição VII do Seminário da Angústia, refere-se ao início da Conferência 32 de Freud, "Angústia e vida pulsional".3

Dois temas são aí agrupados: a angústia e a vida pulsional. Podemos olhar um, ou outro, ou os dois em sua conjunção disjuntiva. Ficam perguntas: os temas são relacionados, ou apenas justapostos por trazerem novidades, devendo ser encarados isoladamente? Se estão propositalmente juntos, como um recai sobre o outro? Ou será que os dois marcam a mesma hiância, uma mesma negação e impossibilidade?

O fato é que Freud não faz a conexão, a não ser no título: Angústia e vida pulsional.

Inicia definindo sua fala a partir de concepções – Auffassungen – para comunicar as novidades sobre a angústia e as pulsões fundamentais – Grundtriebe. Esclarece que partir de concepções significa "introduzir as representações abstratas corretas, cuja aplicação ao material bruto da observação permite fazer brotar neste, ordem e transparência."4

Surge uma hipótese: a angústia seria o material bruto – como queixa principal da maioria dos neuróticos; a castração e as pulsões seriam concepções, representações abstratas. Se essa é uma hipótese válida, em que aspecto a castração e as pulsões trazem "ordem e transparência" à angústia?

Interessante é que também no início do texto de 1914 sobre as pulsões "Pulsões e Destinos das Pulsões", há uma introdução sobre o método de pesquisa das ciências e da psicanálise a partir de conceitos fundamentais – Grundbegriffe – que nas ciências conjecturais não podem ser bem definidos a priori, e que, à medida que são lançados sobre o material empírico, vão se tornando mais precisos. Assim é o conceito de pulsão.

Retomando sua conferência anterior sobre o tema da angústia, a de n° 25, define-a como um estado afetivo – Affektzustand, ou como vestígio de afeto – Affektspur – de experiências, tanto pessoais como da humanidade, transmitidas por herança, ambas reações à iminência de um perigo. Distingue ainda a preparação da angústia – Angstbereitschaft, do desenvolver da angústia – Angstentwickelung, que vem a ser, propriamente, sua irrupção. Esta pode limitar-se a um sinal, ou pode repetir toda a situação do trauma.

Na angústia neurótica, que é mais enigmática, pode surgir um estado geral de ansiedade (nervosismo) – Ängstlichkeit; ou uma ligação a um conteúdo determinado, como nas fobias, nas quais é possível perceber alguma relação com algo externo; e, na histeria e outras formas graves de neurose, o ataque de angústia não exibe qualquer relação com um perigo externo. A associação ao recalque poderia explicar essa falta de relação, pois este processo incide sobre um perigo interno, a libido, perigo que não é reconhecido como consciente. Em tais circunstâncias, a formação de um sintoma pode ser uma boa solução para que o sujeito não seja assolado pela angústia.

Terminando seu comentário com uma afirmação de que faltou algo nestas articulações, Freud reflete sobre as conseqüências da dissecção da personalidade psíquica (Segunda Tópica) sobre a teoria da angústia, pois, o eu sendo a única sede da angústia, sofre este afeto por suas dependências, tanto do mundo externo quanto do Isso e do Supereu.

Esta é uma nova concepção – lembremos a postulação de Freud: "representações abstratas, que aplicadas ao material bruto permitem ordem e transparência" – e, com ela, destacou-se a função da angústia como sinal, pôde ser vislumbrado de que material bruto ela se origina, e a diferença entre angústia real e neurótica ficaram mais esclarecidas. A virada na teoria – de que não é o recalque que provoca a angústia, mas o contrário, a angústia é que o causa – provém dos resultados do complexo de Édipo, na medida em que a situação de perigo interna – perigo pulsional, se torna um perigo externo: a relação apaixonada da criança com a mãe, acarretando, por intervenção de um terceiro, a castração; embora este não seja um perigo real, a ameaça de castração recebe o crédito da criança por estar na fase fálica e diante da diferença sexual.

Além disso, as três instâncias agora postuladas definem funções diferentes. Uma parte separada do Eu se constitui como Isso, sem condição de acesso à linguagem e responsável pelo caráter de força constante da pulsão. Outra instância se destaca por ser herdeira do complexo de Édipo, o Supereu, provindo do Ideal do Eu, com exigências éticas e morais e, por outro lado, em comunicação direta com as aspirações do Isso. A outra instância, o Eu, participa dos processos inconscientes e pré-conscientes, sendo responsável pelo importante acesso à palavra, mas, em contrapartida, é a sede dos afetos, e, fundamentalmente, da angústia.

A associação da Segunda Tópica com os efeitos do complexo de Édipo e de castração tem grande destaque na nova teoria da angústia, que toma um matiz subjetivo, ao indicar, por meio de um sinal, que está se aproximando o limite do que pode ser expresso e apreendido pelo sujeito. A partir dessa experiência, ele pode prosseguir, tentando elaborar e construir substitutos, ou então, pode recuar e incrementar suas inibições.

Por outro lado, a nova teoria da angústia como sinal, sendo causadora do recalque recoloca em cena as primeiras concepções de Freud sobre o trabalho psíquico – a chamada elaboração psíquica – que consistia em traduzir em palavras as experiências traumáticas de afetos. Os resíduos dessa elaboração continuariam insistindo e pulsando, exigindo que uma borda fosse construída em torno deles. E agora esse resíduo permanece como um afeto principal, ponto crucial para o aparelho definir seu destino.

Tendo sua sede no Eu, como instância, a angústia continua sendo um ponto de oscilação: ou é um estado afetivo ou um vestígio de afeto; afeto que pode ser ou preparado ou desenvolvido, marcando o sujeito ou num estado de nervosismo, de medo e expectativa de um perigo, ou de total desequilíbrio e descontrole, sem relação com qualquer perigo externo. São muitos ous, muitas vicissitudes. Quanto a esta nova teoria, Freud bem poderia ter escrito: A angústia e suas vicissitudes.

Mas é que no percurso de uma teoria à outra, as articulações freudianas se detiveram no estudo da repetição, propondo, na virada de 1920, mais além do princípio de prazer o princípio de ligação – Bindung –, sendo, talvez, sua retomada o fator responsável por esta diversidade. Se a angústia é um estado e um desenvolvimento, não houve ligação; se é um vestígio, uma preparação ou um sinal, estamos falando de ligação. Especialmente na neurose, em que o afeto de angústia se impõe como correlato de um perigo pulsional, aí estamos diante de seu lugar na estrutura, como um ponto crucial que exigirá o trabalho de ligação.

Prosseguindo a Conferência 32, ao falar das pulsões, Freud retoma suas reservas, propondo: "A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades míticas, grandiosas em sua imprecisão."5 Se, anteriormente, tomamos as pulsões como concepções, cabe bem compará-las agora à estrutura do mito. Freud refere-se a como se comporta o pensamento popular, que vai inventando pulsões ad hoc, e depois as dispensa, trazendo para nós a suspeita de que, por trás disto, há algo "sério e poderoso".

Quanto a isto, a psicanálise a princípio foi modesta, seguindo o rumo das grandes necessidades: a fome e o amor. Posteriormente, com a teoria do narcisismo mostrou que ambos trabalhavam numa mesma direção, dispondo do mesmo tipo de energia: a libido. Foi o estudo da repetição, contradizendo o princípio de prazer, que levou à suspeita de um novo antagonismo, prosseguindo na proposta de dois tipos diferentes de pulsões: as pulsões sexuais – Eros, cuja finalidade é a formação de unidades cada vez mais abrangentes; e as pulsões agressivas, fundadas numa tendência a restabelecer um estado anterior de coisas, ao que se acrescenta a finalidade da destruição.

Reservando-lhes o nome de pulsão de morte, caracteriza-as pelos fenômenos da repetição e das dificuldades que impõem à tarefa analítica, quando se expressa o sentimento inconsciente de culpa, "que podemos classificar como um desejar masoquista",6 ou seja, "a indesejável reação terapêutica negativa".7 A pulsão de morte é tomada aqui em toda sua grandiosidade, e, "de uma forma inesperada, emergimos do submundo psíquico para o mercado aberto."8

Estas são as novidades sobre a "vida" pulsional, agora marcada pela morte, pelo devorar e ser devorado, cujos efeitos são felizmente atenuados e preservados ou encobertos9 por sua fusão às pulsões de Eros.

Seria a presença desse real incurável que fez Freud justapor os dois temas, angústia e vida pulsional?

A angústia, não sendo mais resultado do recalque, e sim, sua pré-condição, aproxima-se da pulsão de morte, pois é o que do real não engana. Mesmo sendo o Eu a sua sede, o desenvolvimento da angústia se dá pela retirada da ocupação pré-consciente (representação-palavra) ao representante pulsional (Triebrepräsentanz),10 restabelecendo um estado anterior de coisas, estado de energia livre e difusa, expressão da pulsão de morte. Mas, ao mesmo tempo, e, paradoxalmente, a angústia é o afeto que não permite o retorno à quietude e exige do aparelho que se faça a ligação.

Com isso, podemos dizer que a angústia é a "vida" do Real, o que nos leva a entender, em parte, o que Lacan propõe em sua conferência "A terceira"11 e nos seminários que a seguem, ao correr do Seminário XXII, R. S. I. Nestas passagens, com o recurso da topologia dos nós, Lacan coloca a palavra "vida" fazendo furo na consistência do Real e nos dá uma indicação a respeito dos três nomes freudianos: inibição, sintoma e angústia. Estes se inserem como uma cunha, cada um no prolongamento da corda que amarra cada registro: do Simbólico surge o sintoma; do Imaginário, a inibição; e do Real, a angústia. Do outro lado do prolongamento da corda que cerne o Real está a letra ?? para marcar a possibilidade da escrita.12

Estas considerações nos levam ainda a esclarecer o fato de termos postulado a relação entre a angústia e a vida pulsional (com a inclusão da pulsão de morte) na exigência do trabalho de ligação indicada por elas. Não parece ser à toa que o verbo usado por Freud para dizer da ligação – binden – comporta também os significados: atar e amarrar. Da ligação vamos, pois, à amarração dos nós.

Com isso, é hora de voltar ao sonho de Freud – citado em nossa epígrafe – sonhado após os funerais do pai. A angústia está bem neste ponto onde cabe a alternativa "ou": ou fechamos os dois olhos, isto é, morremos, ou podemos manter apenas um olho aberto, tolerando as hiâncias que o Real nos impõe.

No entanto, muito resta ainda por dizer.

 

Bibliografia

FREUD, S. "Hemmung, Symtom und Angst" (1926 [1925]). In Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1976. v.XIV.        [ Links ]

FREUD, S. "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926[1925]). In Obras completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XX.        [ Links ]

FREUD, S. "Angst und Triebleben" (1933). In Gesammelte Werke. 7te.Aufl. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1979. v. XV.        [ Links ]

FREUD, S. "Ansiedade e vida instintual" (1933). In Obras completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XXII.        [ Links ]

LACAN, J. Le Séminaire, Livre X. L'Angoisse (1962-1963). Paris: Seuil, 2004.        [ Links ]

LACAN, J. "La tercera" (1974). In Intervenciones y textos 2. Trad. Julieta Sucre et alii. Buenos Aires: Manantial, 1988.        [ Links ]

LACAN, J. Seminário XXII. R.S.I. (1974-1975). Inédito.        [ Links ]

MASSON, J.M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Levindo Lopes, 333/507 - Savassi
30140-911 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3281-0715
E-mail: anaportugal@brfree.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Psicanalista. Membro da Escola Letra Freudiana
1 Estas notas foram apresentadas na Jornada de Cartéis do Aleph Escola de Psicanálise, 2005, sendo, posteriormente, ampliadas e complementadas.
2 FREUD, Carta a Fliess nº 50, de 2/11/1896. In MASSON, 1986.
3 Por tomarmos como referência o texto em alemão, preferimos traduzir desta maneira o título de Freud: "Angst und Triebleben", diferente da Edição Standard Brasileira, que propõe: "Ansiedade e a vida instintual".
4 FREUD, 1933, GW p.87, ESB, p.103. A paginação constante das notas refere-se à edição alemã, se acompanhadas de GW, e à edição brasileira, se acompanhadas de ESB.
5 FREUD, 1933, GW p.101, ESB, p.119.
6 FREUD, 1933, GW, p.115; ESB, p.135.
7 Ibidem, GW, p.117; ESB, p.136.
8 Ibidem, GW, p.118; ESB, p.137.
9 Freud usa o termo alemão verhüten, que significa: evitar, impedir, acobertar, preservar.
10 FREUD, 1925, GW, p.120, ESB, p.114.
11 LACAN, 1974, p.104.
12 LACAN, 1974-1975. Lição de 21/01/1975.

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