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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte jun. 2017

 

Autor Convidado

 

Freud com Lacan: a psicanálise hoje1

 

Freud with Lacan: psychoanalysis today

 

 

Marco Antonio Coutinho Jorge

I Corpo Freudiano - Seção Rio de Janeiro
II Association Insistance
III Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta os principais elementos que permitem situar a teoria e a clínica psicanalíticas hoje como tributárias da radical renovação produzida pela leitura da obra de Sigmund Freud empreendida por Jacques Lacan.

Palavras-chave: Psicanálise, Freud, Lacan, Transmissão, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The article presents the main elements that allow us to situate psychoanalytic theory and clinical practice today as tributaries of the radical renewal produced by the reading of Sigmund Freud 's work undertaken by Jacques Lacan.

Keywords: Psychoanalysis, Freud, Lacan, Transmission, Contemporaneity.


 

A “peste freudiana

Parece inerente à própria estrutura da psicanálise, desde seu nascimento, o fato de ela suscitar a oposição dos indivíduos, assim como a dissidência entre os próprios psicanalistas. O exemplo mais eloquente desta afirmação é fornecido pelo próprio Freud quando, ao retraçar, em 1914, a História do movimento psicanalítico, apresenta, de fato, um longo inventário das resistências à psicanálise. Freud narra aí como grande número de seus discípulos iniciais (Adler, Jung, Rank) deixaram de aderir em algum momento às suas teses e fundaram suas próprias disciplinas. A história da psicanálise narrada por Freud é a história das resistências às teses freudianas.

Na verdade, a própria teoria psicanalítica apresenta os meios para esclarecer os motivos que estão na base de tal repúdio. Não era outra coisa que Freud tinha em mente quando, ao viajar para os EUA em 1909, convidado pela Universidade Clark, que ocupava uma posição de vanguarda no meio acadêmico norte-americano e lhe concedeu naquele momento o título de Doutor Honoris Causa, comentou com Jung, que o acompanhava, que os americanos não sabiam que ele estava levando-lhes a peste.2 A suscitação da recusa das teses freudianas depende precisamente da verdade que está em jogo em seus conteúdos, verdade inaceitável, insuportável para os homens, pois demonstra que há algo que age neles à revelia deles mesmos e, mais do que isso, algo a partir do que eles agem sem saber que o fazem. Tal é o fato último que implica a teoria freudiana do inconsciente: a presentificação de uma divisão constitutiva que revela que os homens não são senhores de si mesmos. Com razão, Freud chegou a comparar essa descoberta aos grandes descentramentos produzidos pelas obras de Copérnico – a Terra do centro do Universo – e Darwin – o homem do centro da criação.

Freud ressaltava ainda que uma aceitação imediata, abrupta de sua teoria era do mesmo modo reveladora da ação da resistência à sua doutrina, porque, acarretando uma aceitação sem consequências subjetivas, tinha em seu horizonte uma eficaz neutralização do que ele trouxera de radicalmente novo. Talvez seja nessa medida mesma que se pode observar, hoje, em todo o mundo, paralelamente ao aumento da difusão da psicanálise junto ao público pelos diversos meios da imprensa, um crescente desconhecimento da especificidade do pensamento freudiano.

Se tal desconhecimento pôde ser detido em sua progressão, isso se deve sem dúvida ao trabalho rigoroso e fecundo de reconsideração dos fundamentos da obra de Freud empreendido pelo psicanalista francês Jacques Lacan. Entretanto, não é em toda parte que a obra de Lacan tem merecido acolhida. Até hoje, com algumas exceções, os centros de estudo de psicanálise voltados para ela parecem restritos, de um modo geral, aos países de língua latina. É assim que se observa, além da França, uma posição particularmente privilegiada da Argentina, do Brasil, da Espanha e da Itália, para citar alguns, quanto à continuidade dada ao ensino de Lacan.

 

O determinismo inconsciente

Partindo de sua experiência inaugural com as pacientes histéricas, Freud não tarda a outorgar à sua teoria uma abrangência absoluta. Desse modo, a fronteira entre o normal e o patológico, nitidamente demarcada pelo discurso da medicina, acha-se problematizada de saída pela tese freudiana do “determinismo psíquico inconsciente”. Radicalizando as formulações freudianas sobre o assunto, Lacan chegou a dizer que o inconsciente é a verdadeira doença mental do homem.

Freud destaca paulatinamente a ação do desejo inconsciente num amplo espectro de fenômenos até então relegados a um plano desimportante (como o sonho, o esquecimento de palavras e nomes, o ato falho, o chiste) ou, ainda, naqueles cuja estrutura se revelara até então ininteligível pelos discursos médico e psiquiátrico (sintomas neuróticos, delírios psicóticos, perversões sexuais).

Na análise de todos esses fenômenos que haviam sido jogados na lata do lixo pelo discurso da ciência, um mesmo denominador comum foi depreendido por Freud: a expressão, por meios distorcidos pela censura psíquica, de uma verdade à qual o sujeito não tinha acesso conscientemente. Em todos eles, e em cada um sob uma forma específica, um sentido ocultado por efeito do recalcamento, era o agente da produção de uma formação do inconsciente, o qual para se fazer presente necessitava de uma expressão indireta e que deformava para o sujeito em questão o desejo inconsciente em jogo.

Se no trabalho sobre a Psicopatologia da vida cotidiana Freud se dedica à demonstração exaustiva de sua tese do determinismo psíquico para evidenciar que nenhuma de nossas ações escapa à sobredeterminação (no sentido de superdeterminação) inconsciente, é em Mais além do princípio de prazer (texto completamente esquecido por muitos psicanalistas pós-freudianos até que Lacan chamasse atenção para sua importância decisiva em seu seminário sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise) que ele dará o relevo maior e mais abrangente à sua teoria do inconsciente.

Se, no primeiro, Freud surpreende ao se valer de exemplos tão contundentes para exemplificar o grau de profundidade da ação da sobredeterminação inconsciente, mencionando que até mesmo a escolha aparentemente casual de um número é determinada por uma constelação simbólica específica, no segundo, ele renova o conceito de repetição, através do qual já abordara a transferência e a fantasia, para lhe outorgar um relevo ainda mais poderoso na ação dos mecanismos inconscientes. Para exemplificar tal repetição na qual sua pesquisa desemboca, Freud se vale dos sonhos traumáticos (sonhos reiterativos centrados em torno de uma vivência particularmente traumática para o sujeito), cujo caráter coercitivo revela a ação de uma força – a pulsão de morte – que ultrapassa aquelas que regulam a busca da homeostase, na qual se baseia o princípio de prazer. A repetição constituirá a grande novidade do seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ao ser alçada por Lacan à categoria de um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, conjuntamente com o inconsciente, a pulsão e a transferência.

Com seus postulados que conseguem formalizar muito rapidamente uma teoria consistente sobre o inconsciente, Freud atinge com violência a hipótese reconfortante do livre arbítrio e, desse modo, golpeia simultaneamente o narcisismo dos homens, revelando algo difícil de ser por eles assimilado – o fato de que se acham, em suma, descentrados em relação a si mesmos. Para Freud, toda escolha, todo ato, toda preferência, por mais banal e casual que possa parecer, são determinados por elementos que transcendem qualquer deliberação da vontade consciente. Vê-se, por aí, o grau de dificuldade que seus postulados colocam: aceitá-los verdadeiramente (e isso implica necessariamente passar pela experiência da análise pessoal) significa, de algum modo, despojar-se da ilusão imaginária de si mesmo. Além disso, uma nova forma de deliberação precisa ser alcançada com a análise, aquela que conjuga as novas possibilidades de lidar com a pulsão repertoriada por Freud – satisfação direta e sublimação – com a aquisição de um mínimo de liberdade subjetiva necessariamente presente no ato do deliberar pós-analítico (JORGE, 2017, p. 107-142).

É precisamente tal ilusão de si mesmo que é nutrida pela instância psíquica do eu (ou ego, segundo a tradução inglesa do Ich freudiano), cujo caráter unitário, íntegro se opõe veementemente ao caráter originalmente cindido, dividido do sujeito do inconsciente. A distinção categórica entre o eu e o sujeito do inconsciente foi estabelecida por Lacan, ao ressaltar que era justo no eu que Freud situava não apenas a instância produtora do recalque como também a sede da maior resistência às descobertas analíticas.

Em seu trabalho sobre O estádio do espelho, com efeito, Lacan aborda o momento, destacado pela psicologia do desenvolvimento, em que, entre os 6 e 18 meses, o infans (aquele que não fala) tem a percepção, confirmada pelo assentimento de um terceiro, de sua própria imagem no espelho, e vivencia tal percepção com uma alegria muito intensa, um verdadeiro júbilo (termo forte empregado por Lacan). Nesse instante, forma-se a matriz identificatória original do eu, imagem unitária que lhe fornece uma ilusão de completude. Se tal imagem surge para o bebê enquanto apaziguadora – pois lhe permite a vivência de uma unidade corporal que substitua o anterior estado do corpo: parcial, espedaçado –, por outro lado, ela apresenta desde já um valor letal, origem das manifestações agressivas. Pois ao perceber seu eu naquela imagem na qual se aliena, é criado para o bebê um abismo incolmatável que lhe revela que seu próprio eu está dissociado dele mesmo de modo inarredável. É assim que a criança terá, a partir daí, marcada para sempre em seu horizonte, a imagem de um ‘eu ideal’ cuja potência cativante possui o valor de uma verdadeira estátua pregnante.

Uma teoria tão em voga ainda hoje nos institutos norte-americanos de psicanálise como a do eu autônomo, introduzida pelo psicanalista Heinz Hartmann, encontra aqui sua crítica mais radical. Se o sujeito se manifesta essencialmente por meio do conflito – a cabeça de Janus é por isso mesmo a melhor imagem que Freud encontrou para ilustrá-lo – a suposição de uma esfera isenta de todo e qualquer conflito, como a de um eu autônomo, constitui na verdade um ideal ilusório, uma miragem imaginária.

 

Uma nova concepção da sexualidade

Embora o nome de Freud tenha muito rapidamente sido associado à ideia de sexo, poucas vezes o sentido que é atribuído por Freud à sexualidade é resgatado corretamente. Isso porque a concepção que Freud introduz sobre a sexualidade é inteiramente nova e não pode ser confundida com as noções que lhe atribui o senso comum, muitas vezes camuflado sob uma máscara de pseudocientificidade. De fato, a noção de sexualidade em Freud só possui um valor particular se referenciada aos seus postulados fundamentais sobre o recalque e o inconsciente.

Se Freud parte da observação de que os sintomas neuróticos apresentam um sentido que se revela, à análise, de caráter sexual, é na medida em que a sexualidade no neurótico se acha perpassada, de modo latente, por aqueles mesmos elementos que na sexualidade perversa (da qual o fetichismo e o masoquismo constituem para ele os exemplos princeps) surgem de modo manifesto. Voltando-se para as formas da sexualidade perversa, Freud cedo se dá conta de que aquilo que era condenado socialmente enquanto desvio, ou até mesmo degeneração sexual, encontra na verdade a expressão mais corriqueira em todos os indivíduos considerados normais. Tal fato se demonstra pela constatação feita pela psicanálise da universalidade das chamadas perversões sexuais e deve-se a uma disposição inata comum a toda a humanidade.3

Freud constata que, contrariamente às outras espécies animais, os homens não apresentam ao nascimento uma indicação demarcada quanto ao parceiro sexual a ser procurado. Se tal afirmação pode, de início, parecer aberrante, ela se demonstra facilmente pela inexistência, nos seres humanos, de uma relação exclusiva da sexualidade com os ciclos biológicos que recortam as épocas da reprodução. Não havendo para os humanos os períodos de cio, sua sexualidade se revela de saída enquanto desvinculada dos fins específicos da reprodução da espécie. A ação dos ciclos periódicos da natureza achando-se assim subvertida, a sexualidade se encontrará nos homens sob a ação preeminente da linguagem e, desse modo, adquirirá uma abrangência tão absoluta quanto poderosa sobre sua vida.

Para o ser falante, pois, a sexualidade não se restringirá ao ato sexual enquanto conjunção dos órgãos genitais, mas se revelará em outras atividades aparentemente desprovidas de um cunho sexual: o ato do olhar, a leitura, os esportes, as funções fisiológicas de excreção, a respiração, para dar alguns exemplos, são todas atividades imbuídas de elementos de satisfação propriamente sexual.

Se Freud isola nas práticas sexuais chamadas de perversas os mesmos elementos que compõem a sexualidade considerada normal, é na medida em que em ambas se acham os resíduos da ação remanescente da sexualidade infantil, na qual ele observou uma disposição perversa polimorfa originária. Um dos polos geradores de maior resistência à teoria freudiana da sexualidade se encontra precisamente na sua concepção de uma sexualidade múltipla, errática, desconcertante e, além disso, calcada nas vivências primevas da infância.

É por meio dessas constatações que Freud dá à força que rege os impulsos sexuais no ser humano o nome não de instinto (cujo funcionamento supõe um objeto sexual previamente definido), mas de pulsão, não sendo esta como aquele regida por ciclos biológicos preestabelecidos, mas sim pela ação contínua da linguagem: a pulsão, diz ele, é uma força constante. Esta será a responsável pelas chamadas fases de desenvolvimento da libido – oral, anal e fálica –, segundo o predomínio de sua ação incidir mais sobre esta ou aquela zona erógena nas diversas etapas da existência inicial da criança. Se as bordas orificiais do corpo se revelam de início enquanto verdadeiros pólos de imantação erógena nos quais são associados não só a obtenção de prazer como a satisfação da necessidade, não obstante qualquer região do corpo se revela também passível de ser erogeneizada.

É a partir do Outro, lugar da palavra, como veio a precisar Lacan, que a criança obterá meios para constituir sua sexualidade particular. Se ela não possui a designação sexual previamente delimitada (o que Freud formula através da constatação da inexistência da inscrição da diferença sexual no inconsciente), é somente por intermédio da ação da linguagem sobre seu ser que poderá vir a obtê-la. É tal ação que produz um ‘sujeito’, enquanto efeito da linguagem e, por isso mesmo, a ela ‘sujeito’, como a ambiguidade do termo, através da “sabedoria maior da língua” (expressão corriqueira no texto freudiano), indica. Nessa medida, Freud será autorizado a falar das “teorias sexuais infantis”, modo pelo qual a criança poderá constituir uma fantasia sexual inconsciente que passará a mediatizar, por toda sua vida, seu encontro com o real. Tal fantasia constitui precisamente o princípio de realidade para cada sujeito, o que acentua que a noção de “realidade” introduzida pela psicanálise é inteiramente nova: refere-se a uma realidade psíquica singular e remete ao momento mesmo de constituição do sujeito.

O corpo de que trata a psicanálise é, pois, diverso daquele que é abordado pelas ciências da biologia, da fisiologia e da anatomia. Recortado pelo simbólico, o corpo pulsional (é bem assim que é preciso denominá-lo) é radicalmente heterogêneo ao imaginário da anatomia corporal e – fato tão decisivo quanto espantoso – não está apenas subdito a nenhuma lei natural. É assim que cabe à psicanálise, hoje, fazer a crítica de inúmeras práticas ditas de terapia corporal, as quais, calcadas precisamente no ideal obscurantista de um retorno à natureza, desconhecem o fato de que o corpo, construído por meio da linguagem, só por esta é abordável, e que, enquanto tal, o corpo é partícipe de um real ao qual é impossível ter acesso.

 

Psicanálise e medicina

Embora desde seu surgimento a prática psicanalítica tenha sido associada à prática médica, ambas, na verdade, não apresentam nada em comum e requerem, outrossim, ser distinguidas em seus fundamentos. Tendo ele próprio uma formação universitária médica e neurológica, Freud sempre manteve uma posição favorável à prática da análise leiga (por não médicos), tendo mesmo dedicado um longo trabalho para tratar desse assunto; mas sua palavra não foi, muitas vezes, escutada e durante muitas décadas pudemos encontrar muitos centros onde a prática da psicanálise se encontrava restrita exclusivamente aos médicos. Tal restrição foi sendo abolida gradativamente, e hoje se ela existe ainda não possui o mesmo valor que possuía antes. Lacan foi um dos grandes defensores da análise leiga, tal como ela foi definida por Freud no ensaio sobre o tema: o psicanalista não precisa ter formação médica, e sim formação psicanalítica!

Paradoxalmente, era, entretanto, justo no seio da medicina que Freud localizava a fonte de uma das maiores resistências iniciais às descobertas psicanalíticas. Com efeito, fortes contingências históricas pareciam vir a se associar a uma resistência que, como já dissemos, é preciso ser concebida enquanto estrutural: quando a psicanálise surge, trata-se precisamente do momento em que a medicina começava a se impor enquanto um campo de aplicação prática de diversas ciências, fato que constitui a atualidade da medicina moderna. A chegada da psicanálise não poderia deixar de ecoar, para o moderno espírito médico nascente, como uma espécie de retrocesso às especulações filosóficas e místicas da chamada “filosofia da natureza” nas quais a medicina estivera mergulhada numa época imediatamente anterior.

Com o ensino de Jacques Lacan, tornou-se possível dar uma consequência efetiva à necessidade de desvinculação dessas duas práticas e diferenciar de modo preciso os discursos que estão em jogo em cada uma delas. De uma maneira geral, trata-se nessa diferenciação sobretudo da forma pela qual o psicanalista e o médico estão inseridos em sua prática, o que acarretará efeitos cruciais no modo pelo qual ambos passam a lidar com o outro.

Se a prática médica depende do exercício do saber constituído da medicina, a partir do qual o médico poderá efetivar as diversas etapas do tratamento (o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico), a prática psicanalítica retira sua eficácia, paradoxalmente, justo na medida em que o psicanalista prescindir da utilização do saber psicanalítico constituído. Tal fato, de saída impactante, constitui talvez a maior dificuldade da transmissão da psicanálise e é um dos motivos que levavam Freud a afirmar que a psicanálise era uma profissão impossível.

Tal fato básico é o que sustentava a postulação freudiana de que cada caso clínico devia ser abordado como se fosse o primeiro, em sua radical singularidade. É a esse título que Freud afirmava ainda que, na prática da análise, a pesquisa e o tratamento caminhavam juntos, sobre o que Lacan viria a insistir posteriormente ao ressaltar que aprendia simplesmente tudo de seus analisandos.

Tal postura do psicanalista, denominada por Lacan de “ignorância douta” para designar a forma refinada de um saber que inclui um não saber, não é, na verdade, um mero princípio a ser seguido tecnicamente, mas sim efeito da experiência pessoal pela qual o psicanalista necessariamente passou em sua análise: o saber que se revela na experiência psicanalítica é da ordem do particular, não se presta à generalização, não pode ser dominado por qualquer espécie de mestria. O saber que nela está em jogo é o “saber inconsciente”, cuja característica primordial é o estabelecimento de uma descontinuidade, de uma ruptura em toda forma de saber consciente. É assim que, à emergência da verdade do inconsciente, são surpreendidos, simultaneamente, o analista e o analisando.

Vê-se, por aí, o quanto tal postulado de base apresenta de abrangência para a prática analítica e, por outro lado, quão nítida demarcação ele traz para com o discurso da medicina. Este supõe um objetivo terapêutico preestabelecido condizente com uma norma calcada nos ideais de saúde e de normalidade, por mais difícil que seja sua conceituação pela medicina. O objetivo do tratamento médico residirá, pois, num retorno a um estado anterior de saúde, será eminentemente restitutivo, enquanto que o fim da cura analítica não pode ser considerado dessa forma, pois visa algo mais além da mera supressão dos sintomas.

Com efeito, muitas distorções trazidas ao âmbito da prática psicanalítica decorrem do desconhecimento dessa diferença de perspectiva e implicam a inclusão, no seio da prática, de alguma espécie de ideal médico-psicológico a partir do qual a singularidade do sujeito em questão é excluída. Para Freud, o tratamento analítico não implicava estritamente objetivos terapêuticos, os quais, na verdade, acarretavam um perigo para ele, e o desaparecimento dos sintomas representava antes um efeito do trabalho da análise do que propriamente seu objetivo, pois trazendo-os para o registro da palavra através da ação do desrecalcamento, a consistência deles pode ser dissolvida.

Atinge-se, assim, um ponto de diferenciação radical entre a psicanálise e a medicina: a primeira centrada em torno da função da escuta, e a segunda, em torno da função do olhar, sobre a qual a expressão corriqueira do olho clínico do médico fornece uma eloquente e aguda ilustração.

É assim que é preciso dizer que a noção bastante difundida de ‘psicoterapias de orientação psicanalítica’ implica algum grau de desconhecimento dos princípios mesmos da psicanálise. Associando dois termos radicalmente heterogêneos e compatibilizando posturas incompatíveis (na verdade o termo “psicoterapia” designava originariamente na Grécia cristã a arte de converter os pagãos), tal expressão camufla o fato de que a medicina, lidando com o outro enquanto um objeto, promove, em última instância, a exclusão do sujeito ao qual a psicanálise visa precisamente dar um lugar.

 

Lacan: poética e ciência na psicanálise

Qualquer um que se dedique, hoje, ao estudo da psicanálise não pode deixar de abordar a obra de Jacques Lacan. Esta se reparte entre seus escritos, em sua maior parte reunidos em um único volume, e seu seminário, proferido durante aproximadamente trinta anos, primeiro para um grupo restrito de psicanalistas franceses e, depois, tornado lugar de frequência da intelligentsia parisiense. Erroneamente considerado, de início, enquanto estruturalista, Lacan nunca o foi de fato, pois, embora parte de seus desenvolvimentos iniciais tenham se valido da linguística estrutural criada por Ferdinand de Saussure, na verdade sua concepção de estrutura difere fundamentalmente daquela do estruturalismo: implicando o inconsciente, a estrutura que está em jogo para Lacan não é fechada, mas aberta.

Formado em medicina, sua tese de psiquiatria Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade constitui, de fato, já a primeira incursão de Lacan no campo propriamente psicanalítico. Nela é precisamente toda a tradição psiquiátrica que é criticada, à luz do debate então emergente entre as correntes psiquiátricas organogenéticas e psicogenéticas, a partir da perspectiva freudiana. É a partir dessa perspectiva que Lacan dará relevo, na análise de um caso de paranoia, o caso Aimée, ao mecanismo de autopunição, cuja inteligibilidade só é destacável a partir do conceito freudiano de inconsciente.

Da psicose paranoica obteve uma notável acolhida por parte dos surrealistas, primeiros a atribuir, na França, importância para a elaboração freudiana. Após sua publicação, Lacan, que desfrutava de um convívio com o grupo surrealista, foi convidado para escrever na revista surrealista Minotaure. Além disso, foi após a leitura de Da psicose paranoica que Salvador Dali criou seu método paranoico-crítico, o qual viria a dar um novo fôlego para o movimento surrealista, pois supunha uma atividade crítico-interpretativa que se opunha à passividade inerente aos métodos da escrita automática introduzida por André Breton.

Através de um movimento por ele próprio intitulado de “retorno a Freud”, Lacan efetivou na verdade um rebatimento da teoria psicanalítica sobre si mesma ou, se quisermos, uma espécie de psicanálise da própria psicanálise. Evidenciando que, após a morte de Freud, a psicanálise passara a trilhar desvios ideológicos incompatíveis com aquilo que o mestre vienense avançara, Lacan promove a incidência sobre a teoria psicanalítica dos elementos mesmos que ela adianta.

Assim, sempre considerando a leitura de Freud como infinitamente mais fecunda que a de um Otto Fenichel, por exemplo, autor de um manual sobre psicanálise utilizado nos institutos de formação psicanalítica em detrimento da leitura do próprio Freud, Lacan veio a destacar conceitos que haviam desaparecido nas traduções de sua obra. Alguns exemplos disso são o conceito de Verwerfung [foraclusão], introduzido por Freud para abordar as psicoses; a categoria de Nachträglich [o só-depois], fundamental para a compreensão da temporalidade lógica particular que preside o funcionamento do inconsciente; o conceito de Trieb [pulsão], introduzido por Freud para destacar a especificidade da sexualidade humana e que fora homogeneizado à noção de instinto pelos pós-freudianos; o conceito de Verneinung [denegaçã], modo pelo qual o sujeito chega a poder enunciar uma verdade desde que negando-a, também tem sua importância ressaltada pela leitura de Freud feita por Lacan.

Desde o início de seu ensino, Lacan reintroduz no seio da experiência psicanalítica a importância fundadora da palavra, fato esquecido pelos pós-freudianos. E, se a supremacia da palavra no contexto da cura é salientada por Lacan, do mesmo modo o é a utilização da palavra por parte do psicanalista. Assim, Lacan dá seu próprio exemplo através de seus Escritos, cuja dificuldade de leitura procede de uma verdadeira estratégia metodológica: opacificando seu sentido, elevando-os a um intenso grau de densidade textual, Lacan promove a requisição de que o sujeito se inclua efetivamente no ato da leitura, assim como traz à demonstração teórica uma verossimilhança ímpar, aproximando-a da forma particular de exegese que o psicanalista deverá operar em sua prática. Por isso, o teor poético de seus escritos é exemplar da utilização rigorosa da palavra enquanto meio precioso e supremo do qual se vale a psicanálise. A crítica feita a Lacan de preciosismo se esquece de que a rigor é impossível não sê-lo quando se trata da palavra.

Dessa ênfase posta na palavra, decorre a constituição da ‘lógica’ lacaniana ‘do significante’, a qual, partindo das noções introduzidas pela linguística estrutural de Saussure, subverte-as ao articulá-las com a categoria do sujeito, excluída da linguística.

As intervenções estabelecidas por Lacan no campo da teoria psicanalítica podem ser repartidas, grosso modo, sob três rubricas gerais: (a) questões pertinentes à direção do tratamento analítico; (b) contribuições à metapsicologia da psicanálise; e (c) desenvolvimentos relativos à problemática da transmissibilidade da psicanálise.

Quanto aos problemas colocados pela direção da análise, o trabalho de Lacan, simultaneamente ao resgate das postulações freudianas essenciais, é uma veemente crítica aos desvios engendrados pelos psicanalistas pós-freudianos em sua prática. Tais desvios implicavam no fundo uma deterioração da dimensão ética particular da psicanálise, a qual não se centra na obtenção de um ‘bem’ para o sujeito (forma camuflada de dominação na qual se esteiam todos os discursos do poder), mas sim na possibilitação para o sujeito de ‘bem dizer’ seu próprio sintoma e, não cedendo sobre seu desejo, chegar a diminuir ao máximo a distância que separa seus enunciados de sua enunciação.

Seguindo a recomendação freudiana que indicava para o analista uma posição de neutralidade, sede de um não agir positivo, Lacan redefine o lugar do analista enquanto o “lugar do morto”. Tal formulação implica precisamente que o analista esteja morto quanto à própria subjetividade, a qual não pode estar presente no ato analítico sob pena de obliterar sua escuta. A partir daí, Lacan passa a criticar a utilização, difundida universalmente, entre nós sobretudo pelos trabalhos de Heinrich Racker, da chamada contratransferência do analista (sentimentos e ideias evocados no analista pelo discurso do analisando), enquanto meio técnico, pois ela se calca na suposição da existência de uma relação intersubjetiva entre o analista e o analisando. Essa suposição é imaginária, depende de uma concepção da análise enquanto uma relação dual, especular, de eu a eu, e tem em seu horizonte o objetivo de identificar o eu do analisando ao eu do analista, perpetuando, assim, uma alienação imaginária que, na verdade, a análise deve visar suprimir.

Tal desvio na prática era uma decorrência da ação cada vez mais centrada no eu pelos pós-freudianos, que passaram a valorizar no manejo técnico a análise das resistências. Lacan veio ainda aí estabelecer uma importante retificação, demonstrando que voltar a atenção para a resistência constitui, com efeito, uma “resistência do analista”. Parecendo à primeira vista incongruente, tal afirmação é na verdade consoante com a tese freudiana, posta em Mais além do princípio de prazer, de que o “inconsciente não resiste”, mas sim “insiste”, e é a essa insistência desejante que cabe ao analista aliar-se na direção do tratamento. Um dos sentidos das sessões de duração variável introduzidas por Lacan, que estiveram na origem de sua expulsão da IPA, é precisamente a aliança que deve ser estabelecida pelo analista, sem dar ouvidos às resistências, com a insistência desejante. As sessões de duração variável adquirem seu valor ainda da necessidade de desritualizar a prática, através da introdução no seio mesmo da experiência daquele elemento de surpresa, de inesperado, através do qual o inconsciente se manifesta.

Acentuando o desejo, e não a resistência, Lacan pôde vir a retrazer à “interpretação”, modo de intervenção do analista por excelência, seu estatuto freudiano original. Diversa da compreensão, à qual de fato se opõe (do mesmo modo que a transferência se opõe à sugestão), a interpretação é a emergência no discurso do analisando da verdade de seu desejo, cabendo ao analista apenas colhê-lha, acolhê-la e relançá-la ao sujeito. Por essa via, o psicanalista M. D. Magno desenvolveu a tese de que o ato psicanalítico e o ato poético são isomórficos, pois o poeta, definido por Saint-John Perse como aquele sujeito que apresenta uma contínua aptidão para o espanto, é também aquele que consegue chegar a dizer algo que ninguém mais poderia dizer em seu lugar.

Se a palavra é fundadora e seu valor na psicanálise é absoluto na medida em que ela constitui o único meio do qual a psicanálise dispõe, Lacan vem a empreender uma veemente crítica ainda aos analistas que se valiam de noções decorrentes da ideia de uma comunicação não verbal e, através desta, só faziam objetificar o analisando. Para a psicanálise, com efeito, todos os atos, os gestos, as mímicas, os afetos mantêm alguma relação com o simbólico e nela trata-se precisamente de ‘dar a palavra’ àquilo que até então só encontrava expressão através do sintoma. Antes de ser não verbal, o sintoma é na verdade hiperverbal; no entanto, apenas trazendo-o ao regime da palavra o sujeito pode se realizar plenamente.

Tal crítica lacaniana implica que na psicanálise de crianças, por exemplo, a técnica de utilização do desenho e do jogo possa ser utilizada, mas desde que acompanhada pela enunciação da criança ou ainda que os afetos preservem sua importância desde que seu mero extravasamento não seja considerado como o objetivo maior do tratamento, mas sim a assunção subjetiva de seu sentido através, ainda e sempre, da enunciação.

Paralelamente ao resgate para a teoria psicanalítica da importância da palavra e da linguagem, Lacan toma para si o encargo de obter para aquela alguma forma de transmissibilidade. Essa questão se revela fundamental na medida em que, se para Freud não se colocava a questão da não cientificidade da psicanálise, sabe-se das críticas sofridas por esta desde sempre pela epistemologia da ciência. Lacan traz essa questão para o seio da própria psicanálise e, através disso, não só levanta um questionamento do estatuto da ciência enquanto promotora da exclusão do sujeito de seu discurso, como também estabelece algumas balizas que visam dar alguma cientificidade à psicanálise.

Não poderíamos nos estender sobre esse ponto complexo no quadro deste ensaio, mas, digamos sucintamente, que tais balizas residem, por um lado, na recorrência à topologia matemática (por exemplo, à banda de Moebius, para ilustrar a topologia do sujeito), à teoria dos nós (com a utilização do nó borromeano para demonstrar a tripartição estrutural entre Real, Simbólico e Imaginário); por outro lado, no estabelecimento gradual ao longo de seu ensino de uma álgebra cujas letras [S1], o significante-mestre [S2], o saber [], o sujeito dividido entre o par significante [a] e o objeto causa do desejo), ao ser associadas, constituem fórmulas que Lacan denominou de “matemas”.

Tais matemas têm a função, para Lacan, de possibilitar a transmissão de um mínimo daquilo que é revelado na experiência da análise. A título de exemplo, citemos o matema da fantasia [], que associa o sujeito [] em sua relação desejante com o objeto causa do desejo [a]; o matema da falta no campo do Outro [], falta que é a matriz da estrutura do inconsciente.

Dois pontos essenciais nos quais desembocam os matemas lacanianos são, por um lado, as “fórmulas quânticas da sexuação”, formulação lógica que recorta os campos do masculino e do feminino dissociando-os do imaginário da anatomia corporal e articula o primeiro à função fálica fundadora do sujeito e o segundo à falta inerente ao Outro. É por meio dessa lógica que Lacan vem a afirmar que A mulher não existe, pois não existe nenhum sujeito que se inscreva totalmente no campo do feminino, numa referência ao furo; todo sujeito, mesmo as mulheres – e elas existem – inscrevendo-se necessariamente por uma referência fálica, masculina. A principal decorrência dessa afirmação contundente, no entanto rigorosa, de Lacan, é outro axioma não menos surpreendente: se A mulher não existe, “a relação sexual é impossível”.

Por outro lado, os matemas lacanianos resultam na constituição de uma teoria dos discursos, através da qual ele isola quatro discursos que remetem às impossibilidades apontadas por Freud – governar, educar e psicanalisar –, os discursos do Mestre, do Universitário, do Psicanalista, às quais ele acrescentou uma quarta: se fazer desejar, discurso da Histérica.

Não podemos deixar de mencionar aqui algo que perpassou toda nossa exposição, ou seja, a tripartição estrutural de Real-Simbólico-Imaginário, a qual embora presente em Freud de modo implícito, ao ser nomeada e explicitada por Lacan, trouxe um aporte para a teoria psicanalítica do qual ela não poderia, hoje, prescindir. Registros heterogêneos, mas entrelaçados, Real, Simbólico e Imaginário constituem a estrutura mesma do sujeito falante. Acreditamos que em nossa exposição possam ser encontrados elementos que justifiquem que nos abstenhamos de enfatizar a dimensão de sua importância.

 

Referências

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 1: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.         [ Links ]

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.         [ Links ]

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 3: a prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: macjorge@macjorge.pro.br

Recebido em: 02/04/2017
Aprovado em: 10/04/2017

 

Sobre o autor

Marco Antonio Coutinho Jorge
Psicanalista.
Diretor do Corpo Freudiano Seção Rio de Janeiro.
Membro da Association Insistance (Paris) e da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise (Paris).
Professor associado do Instituto de Psicologia da Uerj, onde ensina no Curso de Pós Graduação em Psicanálise.
Autor da série Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v.1: as bases conceituais (2008); v. 2: a clínica da fantasia (2010); v. 3: a prática analítica (2017), Rio de Janeiro: Zahar.

 

 

1 Texto originalmente escrito para a Encyclopaedia Britannica e permanecido inédito. Revisto, aumentado e atualizado em 2017.
2 Em sua biografia de Freud recém-publicada, Elisabeth Roudinesco contesta a veracidade dessa afirmação pelo método histórico. Ela permanece mais uma lenda freudiana. (ROUDINESCO, E. x. Rio de Janeiro: Zahar, 2016).
3 Freud constrói a teoria do recalque orgânico que permite estabelecer as bases para se conceber a passagem do funcionamento instintual animal para o pulsional humano. Ver JORGE, M. A. C. “A anatomia é o destino”: o recalque orgânico e a perda originária do objeto. In: ______. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 1: as bases conceituais. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 36-45.

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