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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte enero/jun. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

O analista em posição de ironia humoresque

 

The analyst in an ironic position humoresque

 

 

Edson Santos de Oliveira

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é tentar esclarecer o conceito de ironia, tendo em vista a sua aplicabilidade na análise, com relação à posição do analista. Alguns pesquisadores, como Rabinovich e Sauret, em seus artigos, enfocam a ironia de forma ampla, não especificando a que tipo dessa figura eles se referem. O conceito de ironia é escorregadio, nebuloso, às vezes se confundindo com o chiste, o cômico e o humor. Há várias espécies dessa figura como ironia trágica, retórica, romântica, humoresque além de outras. A partir de abordagens da ironia em Duarte (2006) e Hutcheon (2000), tentaremos mostrar que tanto Rabinovich quanto Sauret, além de Lacan, parecem se referir à ironia humoresque, que não se baseia na oposição do sentido, nem tem uma visão destrutiva. Essa espécie, que Sauret chama de “lógica da ironia”, rompe com a lógica binária, aproximando-se do humor e da noção de letra, no sentido lacaniano de litoral, podendo ser aplicada à clínica do real.

Palavras-chave: Ironia humoresque, Posição do analista, Letra, Real.


ABSTRACT

The objective of this article is to try to clarify the concept of irony, considering its applicability in the analysis, with respect to the position of the analyst. Some scholars like Rabinovich and Sauret, in their articles, focus on irony in a broad way, not specifying what kind of figure they refer to. The concept of irony is slippery, foggy, sometimes confusing with joke, comedy and humor. There are several species of this figure as tragic irony, rhetoric, romantic, humoresque among others. From the irony approaches in Duarte (Duarte, 2006) and Hutcheon (HUTCHEON, 2000), we will try to show that both Rabinovich and Sauret, in addition to Lacan, seem to refer to the humoresque irony, which is not based on the opposition of sense, nor has a destructive view. This species, which Sauret calls the "logic of irony", breaks with binary logic, approaching humor and the notion of letter, in the Lacanian sense of the coast, and can be applied to the clinic of the real.

Keywords: Humoresque irony, Point of view of the analyst, Letter, Real.


 

O humor e a ironia sempre estiveram presentes na vida de Freud. Na obra Piadas sérias, Peter Gay (1992) apresenta várias situações engraçadas envolvendo a figura do psicanalista austríaco. É por demais conhecida a ironia que Freud fez da Gestapo, relatada pelo biógrafo. A caminho de Londres, obrigado a assinar uma declaração de que não havia recebido maus-tratos da polícia alemã, Freud disse: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”. Essa ironia se baseia apenas na oposição do sentido; no entanto, há muitas nuances dessa figura e estreitas ligações dela com o humor, o chiste e o cômico.

Entre o humor, a ironia, o chiste e o cômico há semelhanças e diferenças. Enquanto o primeiro normalmente foi enfocado de modo positivo, estando associado à reflexão, a segunda precisou de um tempo na história para ser reconhecida, recebendo na atualidade uma abordagem mais leve. Ironizar não consiste apenas em dizer o oposto, mas insinuar, semidizer ou até mesmo deixar a mensagem em suspenso.

Em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e no artigo O humor (1927), Freud tenta estabelecer algumas diferenças entre o cômico, o chiste e o humor. Segundo ele, o cômico supõe uma relação dual e “[...] pode contentar-se com duas pessoas: a primeira que constata o cômico e a segunda, em quem se constata [...]”.

No chiste, “[...] a terceira pessoa é indispensável para a completação do processo de produção de prazer” (FREUD, [1905] 2006, p. 171). O cômico tende a ser mais contingente, diferentemente do chiste, que é produzido, isto é, plasmado na linguagem (FREUD, [1905] 2006, p. 205), sendo tecido pela condensação e pelo deslocamento do sentido. Em seu texto de 1905, como afirmamos anteriormente, Freud já havia salientado que a noção de cômico supõe uma relação dual.

Lacan ([1957-1958] 1999, p. 137) assegura que a marca da comicidade é a imagem:

Se alguém nos faz rir por simplesmente levar um tombo, é em função de sua imagem mais ou menos pomposa, à qual, antes disso, nem sequer prestávamos muita atenção.

Miller (1999, p. 30), lendo Lacan, salienta que o chiste pressupõe a linguagem, o Nome-do-Pai, o acolhimento pelo Outro. Freud já esclarecia que, enquanto no cômico há a possibilidade de rir sozinho, no chiste existe a necessidade de uma plateia. Na construção do chiste, segundo ele, nota-se um abrandamento do supereu, e a repressão é surpreendida, possibilitando a formação de condensações de significantes, trazendo, assim, o riso.

Na leitura operada por Lacan, ratificando Freud, a “tirada espirituosa”, no caso, o chiste, necessita de um terceiro:

[...] O cômico é a relação dual, e é preciso haver o Outro terceiro para que exista a tirada espirituosa. A sanção do Outro terceiro, seja ele suportado ou não por um indivíduo, é essencial aqui. O Outro rebate a bola, alinha a mensagem no código como tirada espirituosa (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 28).

E acrescenta:

É o Outro que dá à criação significante um valor de significante em si, valor de significante em relação ao fenômeno da criação significante (LACAN, [1957-1958] (1999), p. 49).

Já o humor, segundo Freud, possui algo de “grandeza e elevação” que não existe no cômico e no chiste. Para o psicanalista austríaco, o humor é uma forma de obter prazer apesar dos afetos dolorosos (FREUD, [1905] 2006, p. 212). Na primeira tópica, ele estaria ligado ao prazer, enquanto economia do afeto. Na segunda, tem uma conexão entre as ações do eu e do supereu atenuando o poder deste sobre aquele, no que se refere ao deslocamento da libido. Admitindo a castração, o eu encontra no supereu uma maior generosidade.

Ainda na trilha de Freud, podemos afirmar que, enquanto o chiste é construído a partir de uma ideia recalcada no inconsciente, o humor é tecido no pré-consciente via supereu, esquivando-se de um sentimento de desprazer prestes a acontecer.

Articulando Freud com Lacan, Lemos mostra que o prazer no chiste, no cômico e no humor tem conexão com a economia na despesa psíquica e dialoga com os três registros lacanianos:

[...] Freud enuncia, ainda, que o prazer nos chistes procede de uma economia na despesa psíquica, com a inibição; o prazer no cômico provém de uma economia na despesa com a representação; e o prazer no humor, de uma economia na despesa com o sentimento (os afetos). E, podemos hoje acrescentar, após as contribuições de Lacan: o chiste é da ordem do simbólico, o cômico, da ordem do imaginário e o humor, da ordem do real (LEMOS, 2008, p. 5).

Cremos que uma interpretação carregada de humor por parte do analista pode funcionar como um corte, trazendo novos significantes às sessões. O que importa é “[...] rir com o paciente e não rir do paciente” (SALLES, 2011, p. 25). Por parte do analisando, permite a ele rir de seus males interiores, aceitando a castração com mais leveza.

O humor, o chiste e o cômico têm ressonâncias com a ironia, que possui também suas tonalidades. Tendo em vista o processo de comunicação, em linhas bem gerais, há duas espécies de ironia. A primeira consiste em dizer pelo avesso uma mensagem. O emissor desse primeiro tipo quer que seu conteúdo seja reconhecido pelo recebedor. Há uma segunda modalidade de ironia que se baseia na hesitação da mensagem. Nesse caso, o emissor do texto não pretende que a mensagem chegue de forma clara ao receptor, preferindo deixá-la em suspenso (DUARTE, 2006, p. 18).

No que se refere ao processo de comunicação, acompanhando Warning (1982), na ironia o sentido pode escapar ao controle do emissor, uma vez que a matéria-prima dessa figura é a linguagem, e ela nunca recobre plenamente o real. Assim, um emissor pode construir uma frase irônica que não chegue a ser decodificada pelo recebedor. Portanto, o contexto e o arquivo cognitivo de quem recebe a mensagem contribuem para o fracasso dela. Por outro lado, um leitor atento pode construir um sentido irônico de uma frase que escapou ao controle do próprio emissor. Podemos concluir que o discurso irônico não é construído apenas no avesso do sentido, mas em seu deslocamento, permitindo mais de uma leitura.

Mais do que inversão do sentido, a ironia é relação de pessoas e significados (HUTCHEON, 2000, p. 102, grifo nosso). Nessa visão, o próprio analista pode ser alvo da ironia já que a linguagem escapa ao controle de quem analisa e de quem é analisado. Percebemos, então, que esse caráter escorregadio da ironia rompe com uma lógica binária, como veremos à frente.

Hutcheon caminha nessa direção:

A ironia acontece no espaço entre o dito e o não dito (e que os inclui). O que eu quero chamar de sentido “irônico” é inclusivo e relacional: o dito e o não dito coexistem para o interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente “interagem” (BURKE, 1969a, p. 512) para criar o verdadeiro sentido “irônico”. O sentido “irônico” não é, assim, simplesmente o sentido não dito e o não dito nem sempre é uma simples inversão ou oposto do dito (AMANTE, 1981, p. 81; ECO, 1990, p. 210): ele é sempre diferente – o outro do dito e mais que ele. É por isso que não se pode confiar na ironia (KENNER, 1986, p. 1152): ela mina o sentido declarado, removendo a segurança semântica de “um significante: um significado” e revelando a natureza inclusiva complexa, relacional e diferencial da criação de sentido irônico (HUTCHEON, 2000, p. 30, grifos da autora).

Seguindo Hutcheon, que vê o sentido “irônico” como “inclusivo e relacional”, Vega (1967, p. 65) faz referência a uma ironia que estaria próxima do humor: “[...] non cabe duda que el humorismo es la forma más egrégia de ironia”.

Duarte (2006) seleciona três modalidades de ironia literária: a retórica, a romântica e a ironia humoresque. O que marca a ironia retórica é o avesso do dito, a tomada de partido e a disputa de poder:

A ironia retórica corresponde ao primeiro grau de evidência da ironia, o da ironia coberta, no dizer de Wayne Booth. Trata-se daquele nível em que ela pretende ser compreendida como tal, isto é: a mensagem deve ser percebida em sentido contrário, antifrástico, caso em que a tática de ação pode ser tanto a simulação quanto a dissimulação. Embora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou a defender (DUARTE, 2006, p. 31).

O segundo tipo de ironia é a romântica, que tem como marca o espelhamento, a fragmentação. Não se trata de uma ironia do Romantismo. Ela está associada ao fazer do texto e independe de estilo de época. Nessa segunda espécie, há uma forte presença do autor na obra por ele criada, explicitando os andaimes da narrativa:

Explicitam-se assim os artifícios da narração, mas o leitor nunca tem certeza do que diz o texto, pois o narrador o faz prever acontecimentos dos quais muda posteriormente o rumo (DUARTE, 2006, p. 41).

A terceira categoria é a ironia humoresque. Aquele que a produz deixa o recebedor numa constante dúvida sobre o sentido da afirmação, sem perceber o caráter lúdico e instável da linguagem que a constitui:

Se a ironia retórica coloca uma dupla possibilidade, mas tem um ponto de chegada, a intenção da ironia humoresque ou de segundo grau não é dizer o oposto ou simplesmente dizer algo sem realmente dizê-lo. É, ao contrário, manter a ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo, pois o texto construído com essa ironia se configura como código evanescente e lugar de passagem (DUARTE, 2006, p. 31-32).

Essa espécie de ironia, em nosso entender, é apropriada à clínica do real, já que não tem um ponto de chegada:

A ironia humoresque é, portanto, lugar simultaneamente do não já e do ainda não, da afirmação e da negação; lugar em que se constrói, com o fio penelopeano do simbólico, uma permanente oscilação entre o real e o imaginário (DUARTE, 2006, p. 38).

Rabinovich, na esteira de Lacan, Seminário 11, faz referência à ironia e temos a impressão de que está se referindo à ironia humoresque, ao priorizar o esvaziamento do desejo do analista. Segundo ela, Lacan mostra que o desejo em Sócrates nunca está em posição de subjetividade, mas de objeto:

Para que o desejo apareça nesse Outro, o vazio estrutural desse Outro histórico, o analista tem que esvaziar o lugar de seu próprio desejo como sujeito do inconsciente. Esta é, assim, a condição para que se desdobre esse Outro primordial e inesquecível para o paciente, que estruturou como tal seu desejo, na medida em que o objeto de seu desejo é esse desejo do Outro (RABINOVICH, 2000, p. 15).

A ironia de Sócrates, conforme Rabinovich, teria, assim, uma afinidade com o pensamento lacaniano. A autora parece estar se referindo à ironia humoresque, na medida em que o analista ocupa a posição de sujeito suposto saber:

[...] na medida em que o analista se afirma, como sendo aquele que pensa que não sabe nada, no momento em que assume estruturalmente essa formação de estrutura que é o sujeito suposto saber, sua posição é cética (RABINOVICH, 2000, p. 17, grifo nosso).

Segundo a autora, Sócrates, ao ter consciência de que seu saber é limitado, coloca-se numa posição semelhante à do ironista. A escuta do analista deve ser baseada na isostenia, posição cética em que o juízo oscila entre um e outro lado (RABINOVICH, 2000, p. 18).

Nessa posição, que não deve ser entendida como destrutiva, o analista possibilita ao analisando produzir o novo pelo ato analítico. O analista corta a repetição e faz cair o objeto promovendo o advento do saber, que é singular, e não o conhecimento, que é universal:

O conhecimento diz respeito ao campo das representações [...], o saber advém da manipulação da letra, como no campo da álgebra (VAZ, 2000, p. 27).

Promovendo um questionamento do Outro, o ato possibilita o aparecimento desse Outro como barrado (VAZ, 2017, p. 31). Assim, tanto o ato quanto a ironia humoresque estão numa posição de letra:

Ousemos uma proposição: a ironia é o barulho feito na caixa de ressonância constituída pelo buraco vazio da verdade, pela letra que lhe traça o litoral [...] Isso significa que a ironia não se faz ouvir a não ser com a condição de mobilizar a fronteira entre saber e verdade, mas igualmente a heterotopia do significante e do real, do simbólico e do gozo. É essa fronteira entre dois registros heterótopos que, por definição a letra delineia (SAURET, 1999, p. 72).

A ironia humoresque, em sua oscilação, semelhante à letra lacaniana, que desliza entre o simbólico e o real, parece ter sintonia com o ato analítico porque rompe com a lógica binária do verdadeiro e do falso. A lógica binária é excludente, toma partido, está mais próxima da ironia retórica.

Sauret (1999, p. 67) dá um ótimo exemplo de uma “lógica de ironia” que rompe com o binarismo. Numa frase como “é ele quem está chegando” e “não é ele quem está chegando”, estamos na lógica binária. Já no enunciado “Não é ele quem não está chegando”, há ironia (e acreditamos ser a humoresque), pois afirmação e negação coexistem, indo além da verdade e da falsidade:

A ironia estabelece que o sim vale o não em relação a um saber que tem peso de real. Exatamente, ela valida um além da oposição entre o verdadeiro e o falso, um além da oposição entre o sim e o não, um além que ela situa no nível da existência mesma de uma verdade que não é redutível à de uma proposição e, mais precisamente ainda, no nível do real que lastra um saber: para lá da verdade, ou da falsidade do enunciado [...] (SAURET, 1999, p. 72).

 

Considerações finais

Vale insistir que, ao abordar a ironia na análise, não estamos nos referindo a uma mera oposição de sentido ou a uma posição de caráter destrutivo. Exatamente por “[...] minar a segurança semântica de um ‘significante significado’ colocando o dito em coexistência com o não dito para o interpretador” (HUTCHEON, 2000, p. 30), rompendo, assim, com a lógica binária (SAURET, 1999), é que a ironia humoresque se articula a uma posição feminina do analista. Em nosso modo de entender, é essa também a visão de Lacan no Seminário 7, ao se referir à posição cética (LACAN apud RABINOVICH, 2000, p. 17, grifo nosso).

Como podemos constatar, ao enfocar a ironia, Rabinovich (2000) parece se referir à ironia humoresque. Segundo ela, o analista, numa posição “irônica”, faz semblante do objeto a, aceita o pacto do suposto saber, sabendo que será colocado numa posição de dejeto. Há também um final irônico para o analisando. Ele esperava resposta à pergunta “Quem sou eu?” e se depara com o não-todo fálico. Sauret se aproxima ainda mais da ironia humoresque ao trabalhar com a noção de “lógica da ironia”.

Renunciar a se colocar numa posição binária é a tarefa ética do analista. E essa renúncia se dá na posição irônico-humoresque como efeito de letra, no sentido de litoral. Isso porque a letra

[...] é o ponto de interseção entre linguagem e gozo. [...] Ela revela o que não se dá a ler e que exige decifração, mas é também cifração e fonte de possibilidade ficcional (PINTO, 2005, p. 69-75).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: edson-so@uol.com.br

Recebido em: 04/02/2019
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre o autor

Edson Santos de Oliveira
Doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pós-doutor em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Professor do mestrado profissional da Faculdade de Letras e do Centro Pedagógico da UFMG (Coltec).
Candidato em Formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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