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Junguiana

versión impresa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.2 São Paulo jul./dic. 2019

 

Entrevista com o Dr. Carlos Amadeu Botelho Byington1

 

 

Entrevistadora: Liliana Liviano Wahba

Analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. E-mail: <lilwah@uol.com.br>

 

 

O Dr. Carlos Byington é um pensador que alia seu trabalho clínico à formulação de uma teoria simbólica sobre o desenvolvimento psicológico normal e patológico. Médico psiquiatra e analista, estudou psicanálise e, depois, fez a formação junguiana no Instituto C. G. Jung de Zürich. É um dos membros fundadores da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA), da qual foi seu primeiro presidente e onde continua dando cursos e coordenando seminários. É também especialista em educação.

Sua teorização constitui a Psicologia Simbólica Junguiana e tem sofrido algumas reformulações em decorrência da sua constante indagação e pesquisa sobre a natureza humana nos indivíduos e na cultura.

Com o intuito de acompanhar o pensamento desse autor, analista e mestre, foi idealizada esta entrevista que nos parece de grande relevância para a teoria junguiana da atualidade e sua contribuição social.

Ele é autor dos livros: "Estrutura da personalidade", "O desenvolvimento da personalidade", "Dimensões simbólicas da personalidade", "A inveja criativa", "Pedagogia simbólica", "A construção amorosa do saber", e de inúmeros artigos, como, por exemplo, "Ética e Psicologia" (Junguiana, n. 15), "Psicologia e Política" (Junguiana, n. 21), "Ternura, sexo, dignidade e amor" (Junguiana, n. 19) e o "Arquétipo da Vida e da Morte" (Junguiana, n. 14), entre outros.

P [1]: Como diferencia a sombra? Antes falava em normal e patológica, mais recentemente em circunstancial e cronificada.

R [1]: Ao incorporar o conceito de fixação da Psicanálise na teoria arquetípica, percebi que a Sombra é sempre patológica e passei, então, a diferenciar a Sombra Circunstancial da Sombra Cronificada. A primeira tem defesas formadas recentemente e que, geralmente, podem ser elaboradas quando confrontadas diretamente. A segunda tem complexos com defesas cronificadas, que oferecem resistência quando confrontadas e que, por isso, são de elaboração difícil e trabalhosa.

P [2]: Como entende a defesa - que é vista como defensiva, não criativa - e sua criatividade para preservar a sobrevivência da psique? Estaria relacionado à bipolaridade: quanto de construtividade e quanto de destrutividade na sombra?

R [2]: Criei o conceito de função estruturante da Consciência para englobar todas as funções vitais dentro da dimensão simbólica. Assim, o ódio e a esperança são funções estruturantes tanto quanto a respiração e a marcha, todos tendo componentes objetivos e subjetivos. As funções estruturantes fazem parte da elaboração simbólica atuando sobre os símbolos estruturantes. As funções estruturantes, os símbolos estruturantes e os sistemas estruturantes são os complexos descritos por Jung. As funções estruturantes elaboram os símbolos para formar e transformar a Consciência. Uma pessoa odeia alguém. O ódio é a função estruturante e a pessoa odiada é o símbolo estruturante.

Fazendo uma leitura arquetípica da fixação, descoberta por Freud, percebi que ela é o principal distúrbio da elaboração simbólica e a causa e a raiz da formação da Sombra, que, por isso, é sempre patológica. Nesta perspectiva, a Sombra é formada pelos mesmos símbolos e funções estruturantes que originam a Consciência, o que nos permite seguir Jung e afirmar que a patologia deriva da normalidade. Designei as funções estruturantes da Consciência como criativas e as da Sombra como defensivas. Com isso, quis assinalar que as funções estruturantes da Consciência são plenamente criativas e as da Sombra são apenas parcialmente criativas, pelo fato de serem fixadas. Vejo, porém, que isso traz confusão, pelo fato de as defesas também serem criativas. Por conseguinte, a partir de agora, designo as funções estruturantes da Consciência como funções não fixadas, e as que formam a Sombra como funções estruturantes fixadas ou defensivas. Agradeço a você pela sua pergunta, que me permitiu aperfeiçoar a conceituação das funções estruturantes.

Acho muito importante percebermos que as funções estruturantes não fixadas têm uma criatividade teoricamente inesgotável quando nos dedicamos à elaboração simbólica, e que, por outro lado, as funções estruturantes fixadas têm sua criatividade escravizada pela compulsão de repetição e pela resistência, destinadas a impedir que a elaboração simbólica atinja a Consciência.

A designação de Freud de mecanismos de defesa do Ego é ambígua. Por um lado, ela registra a vantagem imediata da fixação pela diminuição circunstancial da ansiedade do Ego. Por outro, porém, não leva em conta o prejuízo do Self com a formação da fixação e da Sombra. Toda defesa formada é uma faca de dois gumes, que expressará na Sombra a inadequação existencial, cujo sofrimento, a longo prazo, poderá ser imensamente maior para a pessoa ou para a cultura que o alívio circunstancial imediato trazido pela sua formação. O fato de as defesas neuróticas diminuírem circunstancialmente o sofrimento e o de as defesas psicopáticas frequentemente evitarem até mesmo a defesa psicótica são ganhos cujos preços são a estagnação da elaboração dos símbolos em questão e o impedimento do crescimento da Consciência. Possuir defesas corresponde, na demonologia, a ter um pacto com o diabo. A forma de pagamento é variável, mas permanente, sempre em detrimento da plenitude do Self.

A conceituação de Freud de mecanismos de defesas, que muitas vezes pode parecer vantajosa para a personalidade, torna-se compreensível quando lembramos que, para a Psicanálise, o Id não tem o instinto de individuação e, por isso, as diminuições do sofrimento do Ego pela repressão podem não ter as mesmas consequências que para o Self no referencial da Psicologia Analítica.

P [3]: As percepções subliminares ou potencialidades que não sofreram repressão, nem recente nem antiga, que Jung também considera parte da Sombra, ficariam em qual categoria?

R [3]: Considero as percepções subliminares símbolos estruturantes da elaboração simbólica normal fora da Sombra, por isso, como os demais símbolos, sempre com parte consciente e parte inconsciente. Para mim, a dimensão arquetípica potencial é virtual e formadora potencial tanto do consciente quanto do inconsciente. Como poderia algo que ainda é apenas virtual ser ao mesmo tempo algo real? Por esta mesma razão, diferenciei o Arquétipo Central do conceito de Self. A dimensão do Arquétipo Central e demais arquétipos corresponde à realidade virtual da Psique, que se atualizará, pela vivência, no Eixo Simbólico a partir de cada nova elaboração. Aí sim, cada vivência será mais consciente ou inconsciente. Teorizo o inconsciente como uma qualidade e não um lugar na Psique. As polaridades consciente-inconsciente e pessoal-arquetípico estão presentes em todos os símbolos, em proporção variável. Quando a elaboração simbólica é fixada e atua na Sombra, ela se torna predominantemente inconsciente. Quando é cada vez mais bem elaborada, ela se torna progressivamente mais consciente.

Considerar inconsciente e pertencendo à Sombra o potencial arquetípico junto com os símbolos ou complexos fixados e em poder das defesas gera uma confusão enorme entre a normalidade e a patologia, e dilui e ofusca na ambiguidade o conceito genial da Sombra. O potencial arquetípico é virtual dentro do Self e, portanto, igualmente virtual da Consciência e da Sombra, que o atualizarão a cada nova vivência. A Consciência tem a característica de buscar atualizar plenamente o potencial arquetípico, e a Sombra, de expressá-lo de maneira fixada e deformada. O virtual e o real interagem na elaboração simbólica dentro da relação Ego-Arquétipo. Denomino Eixo Simbólico a relação inseparável entre Consciência e Sombra/elaboração simbólica/Arquétipo Central e demais arquétipos, porque a expressão Eixo Ego-Self, de Neumann, dá a impressão errônea de que o Ego pode existir fora do Self.

P [4]: Jung postulava que o conceito de sombra equivale ao inconsciente pessoal; o que acha disso?

R [4]: Acho que ele diferenciou o inconsciente pessoal do arquetípico quando ainda não se sabia que o Ego é formado por arquétipos e não existe sem eles. Pelo fato de o Ego da Consciência e o Ego da Sombra serem produtos do potencial do Arquétipo Central e da elaboração simbólica normal e fixada, não existe nenhuma função egoica ou imagem arquetípica presente na Consciência que não seja, de alguma forma, pessoal e arquetípica. Acredito que a noção de Jung do pessoal e do arquetípico foi por ele criada para dizer que a dimensão arquetípica ia além da dimensão pessoal e, com isso, diferenciar a Psicologia Analítica da Psicanálise. Há que se considerar que, na época em que ele criou a polaridade pessoal-arquetípica, a formação do Ego era reduzida à Psicanálise e ao início da vida, e o Processo de Individuação, na segunda metade da vida. Posteriormente, quando Jolande Jacobi, Fordham e Neumann descreveram a formação arquetípica do Ego, esta divisão deixou de ter sentido. Existe algo de mais pessoal e arquetípico do que as imagens da mãe e do pai? Ou as imagens do incesto e do parricídio, mesmo que os consideremos simbolicamente normais ou patológicos?

 

 

P [5]: Jung considerava que a Anima e o Animus seriam manifestações do inconsciente mais profundo e desconhecido - o outro "contrassexual" - do que a Sombra, decorrente de experiências mais pessoais. Dentro de seu conceito de inconsciente, como entenderíamos essa "qualidade" referente ao Animus e à Anima?

R [5]: Considero que Jung descreveu a Anima e o Animus monossexuais e contrapolos sexuais da Sombra porque ainda não conhecia a formação arquetípica do Ego e a fixação dessa formação como origem da Sombra. Caso o tivesse sabido, certamente teria percebido que as fixações dos símbolos da Anima e do Animus também podem formar a Sombra e, por isso, não são seu contrapolo sexual.

Jung situou o Animus e a Anima como mediadores entre o consciente e o inconsciente. Mantenho a Anima na personalidade do homem e o Animus na da mulher. No entanto, eu os conceituo como arquétipos bipolares em todas as circunstâncias, inclusive no que se refere à identidade sexual. Os símbolos que eles coordenam podem não estar fixados e estruturar a Consciência ou estar fixados e expressar complexos na Sombra. Dentro da Psicologia Simbólica Junguiana, a Anima e o Animus fazem parte do Arquétipo da Alteridade, e podem expressar quaisquer símbolos, inclusive a polaridade Ego-Outro e homem-mulher, pois o que os caracteriza é o fascínio pela criatividade resultante da relação dialética do encontro das polaridades, e não os símbolos em si.

P [6]: Se postularmos um "Ego da Consciência" e um "Ego da Sombra", como foi mencionado, o Ego deixa de ser entendido como somente consciente. Haveria uma porção inconsciente no Ego, como dizia Freud? Esta iguala-se com a Sombra, o inconsciente?

R [6]: Sim. Dentro da teoria da fixação, de Freud, o inconsciente reprimido expressa os componentes que poderiam ter formado o Ego na Consciência. Essa é a concepção de Sombra que postulo na Psicologia Simbólica Junguiana e, por isso, todos os seus componentes têm um Ego, que é o Ego da Sombra. Quando elaboramos a Sombra em função da ética, o conceito de Ego da Sombra é muito importante para assumirmos que o Mal por nós praticado, ainda que inconsciente, pertence sempre também à nossa identidade. Na terapia, é importante que o paciente não lamente apenas suas qualidades sombrias, mas busque também vivenciar-se como o sujeito delas. É que o Ego da Consciência repudia o Mal, mas o Ego da Sombra não só atua o Mal, como também o deseja e cultua. Somente quando vivenciamos e nos responsabilizamos por esse Ego inimigo é que podemos realmente elaborar e integrar os complexos da Sombra. Quem quiser corroborar essa teoria, basta fazer uma imaginação ativa com a Sombra e confrontar estes dois Egos por uma dramatização com role-playing.

P [7]: O conceito de função estruturante criativa e de função estruturante defensiva conduzem ao pressuposto de que a criatividade seria sempre equiparada à construtividade e que não haveria destrutividade no ato criativo? Completando a pergunta, a capacidade criativa do ser humano é complexa, e nota-se que artistas e personalidades inspiradas e reconhecidas por seus talentos criativos podem falhar em empregar criativamente suas funções estruturantes no sentido de estruturar consciência. Outros indivíduos têm boa capacidade de lidar com seus conflitos e suficiente elaboração simbólica sem possuir talento criativo. Deveríamos diferenciar o que entendemos por criatividade?

R [7]: Pelo que respondi à pergunta [2] acima, acho que o conceito de função estruturante fica melhor formulado quando retiramos dele o critério de criatividade e o substituímos pelo critério da fixação. Nesse caso, passamos a conceber as funções estruturantes como não fixadas (formadoras da Consciência) e como fixadas ou defensivas (formadora da Sombra).

A função estruturante não fixada forma a Consciência de maneira livre e progressiva para todo o Self, ao passo que a função estruturante fixada ou defensiva tem sua criatividade aprisionada pela fixação e pela compulsão de repetição, e dirige essa criatividade contra o crescimento da Consciência e do Self. A criatividade das defesas existe, e na histeria e demais distúrbios de dominância matriarcal, por exemplo, ela é extraordinariamente exuberante, mas apenas em função de expressar a Sombra e o sintoma, e ao mesmo tempo, evitar a entrada dos seus símbolos na Consciência e o desenvolvimento de todo o Self. A função estruturante não fixada tende a fazer crescer a Consciência e o Self e, por isso, digo que ela opera a serviço do Bem, enquanto que a função estruturante fixada ou defensiva opera contra a Consciência e mantém-se na Sombra, estagnando o Self e, por isso, digo que opera a serviço do Mal. Esta concepção está baseada no conceito principal da obra e da vida de Jung, segundo o qual o instinto de individuação é responsável pela formação da Consciência e é o instinto central do Self.

A criatividade artística é uma dimensão específica da criatividade em geral, subordinada à função estruturante da estética, que elabora os símbolos dentro de um contexto particular que denominamos Arte. Como as demais funções estruturantes, ela pode ser não fixada ou fixada e defensiva na sua expressão. Um artista pode sofrer o bloqueio da sua função criativa e expressá-la de forma defensiva como ocorre de maneira psicótica no filme "O Iluminado", de Kubrick. O fato de a função estruturante artística estar associada a outras funções estruturantes, como a agressividade ou a sexualidade não fixadas ou fixadas, é secundário, e não deve ser usado como critério para diagnosticar a expressão fixada ou não fixada da função estética. O mesmo acontece com a polaridade construtivo-destrutivo. Uma pessoa pode ser muito criativa esteticamente, mas isso não significa de modo algum que ela também o seja nas demais funções estruturantes. Há artistas muito doentes psicologicamente, com quem o convívio íntimo é uma tortura, mas que nem por isso deixam de ser menos criativos do ponto de vista estético. Faço questão de enfatizar que a função artística tem, ela própria, características não fixadas e fixadas, as quais não devem ser confundidas com as características não fixadas e fixadas de outras funções estruturantes. Em outras palavras, para se falar da psicopatologia de uma personalidade artística, há que se diferenciar claramente aquilo que se refere à Arte daquilo que diz respeito a outras funções estruturantes. O fato de Van Gogh ter sido depressivo afetou as imagens de sua pintura, mas não a grandeza maior ou menor de sua arte. Por outro lado, há pessoas muito criativas nas dimensões política, religiosa, amorosa e científica, por exemplo, que podem ser muito pouco criativas na dimensão estética.

P [8]: Uma questão atual que circula nos meios junguianos refere-se ao conceito de pulsão de morte. Jung achava que, sendo a energia bipolar, o princípio vital contém a aniquilação e a morte, ainda que esta última estivesse em última instância subordinada ao princípio vital. A sua concepção de bipolaridade do Arquétipo da Vida e da Morte, assim como Jung, não relativiza a possibilidade de aniquilação, mas não confere autonomia ou "finalidade" a uma pulsão de morte. Como vê isso?

R [8]: Como descrevi no meu artigo "Arquétipo da Vida e da Morte" (Junguiana, n. 14), concebo as pulsões, instintos ou tendências para a vida e para a morte como funções estruturantes da vida e da morte subordinadas ao Arquétipo Central, junto com todas as demais funções psíquicas. A função da vida constrói e amplia. A função da morte destrói e elimina. Ambas são necessárias e interagem em toda atividade existencial, pois tudo, inclusive as estrelas, um dia cresce e frutifica, e um dia envelhece e morre.

Como todas as demais funções estruturantes, a função estruturante da vida e a função estruturante da morte podem também ser não fixadas ou fixadas. Quando a função estruturante da vida não é fixada, ela cultiva e desenvolve o que é necessário ao Self, mas quando ela passa a ser fixada ou defensiva, ela cultiva e busca desenvolver o que não é mais necessário e, assim, estagna o Self. Um grande exemplo é a função estruturante parental. A criança ativa extraordinariamente a função estruturante da vida, cuja criatividade permite aos pais acolhê-la, protegê-la e alimentá-la. Logo, porém, aspectos iniciais do processo existencial do bebê começam a envelhecer e a ser ultrapassados, e o aspecto não fixado da função estruturante da morte é ativado. O bebê já pode dormir sozinho em seu quarto. Sua simbiose absoluta espacial está se tornando obsoleta e quase morrendo. A dependência envelhecida tem que ser sacrificada e entregue à morte para manter a criatividade plena do Self. Mas a mamãe começa a chorar e o papai não resiste ao seu sofrimento e a acompanha: "Como é que nosso neném vai ficar sozinho naquele quarto escuro e nós aqui indiferentes? Que egoísmo!". E assim, por mais um ano, o quarto do neném dorme vazio. Instala-se o mimo e a superproteção, que limitarão a frustração criativa do Ego do bebê e que, se repetidos nas etapas seguintes da vida, preparam o futuro tirano, voluntarioso, narcisista e conduz, às vezes, a problemas na formação do caráter. A função estruturante da vida, que havia sido tão criativa, agora passa à defensiva. Ao mesmo tempo, a função estruturante da morte, que foi impedida de destruir criativamente e matar a dependência simbiótica primária, passa também à fixada e defensiva. Esta fixação prejudica o crescimento do Self e prepara o desenvolvimento da futura neurose de relacionamento ou, até mesmo, da deformação psicopática do caráter.

P [9]: Ligada à questão anterior, seria concebível o Mal absoluto predominar no Self, e mais ainda no Arquétipo Central? Como compreender a autorregulação, a homeostase e o princípio de individuação com a inclusão da possibilidade do Mal equiparado ao Bem, como princípio norteador do desenvolvimento? Na prática clínica, por exemplo, a relativização das polaridades se anula no extremo, já que diante de um paciente suicida poucos analistas verão isso como um processo natural, a menos que haja uma situação existencial excepcional, e aí já não se trataria do entendimento que fazemos do Mal. Jung dizia que somente o conhecimento e a ausência de ingenuidade com a possibilidade do Mal, nos ajudaria a evitar que ele se tornasse absoluto.

R [9]: Sei teoricamente o que é o Mal dentro da dimensão neurótica, psicopática, borderline e psicótica, mas não sei o que Jung quis dizer com a expressão "Mal absoluto" quando descreveu a Sombra em Aion. Como afirmei em meu artigo "Ética e Psicologia", na Junguiana 15, não concordo com as críticas de Jung à doutrina católica do Summum Bonum e do Privatio Boni, que, segundo ele, negam a realidade do Mal. O próprio Jung e todos nós junguianos trabalhamos considerando o Arquétipo Central a matriz criativa da Consciência e do Processo de Individuação, o que equivale a equipará-lo ao Summum Bonum. A Psicanálise descreve um Id que traz, ao nascer, as pulsões incestuosa e parricida, que devem ser sublimadas para formar o Superego. Essa é, por assim dizer, a doutrina do Summum Malum. Para a Psicologia Analítica, a patologia é consequência de um distúrbio do Processo de Individuação, que passa, então, a expressar o Mal. Essa é a doutrina do Privatio Boni. A confusão de Jung a esse respeito parece-me advir da sua não diferenciação entre o arquétipo, que é virtual, e o seu distúrbio real. Esta confusão parece-me a mesma que ele fez entre os conceitos de Arquétipo Central e de Self e entre as potencialidades arquetípicas e a Sombra. O fato de surgir o Mal como disfunção da capacidade de elaboração simbólica do Arquétipo Central não significa que este seja o Mal, mas sim que a ocorrência da disfunção caracterizou a formação do Mal no lugar da formação do Bem (Privatio Boni). Se uma pessoa tropeça e quebra a perna não significa que a função da marcha seja má, e sim que uma deficiência da marcha levou à fratura.

A concepção da ética como função estruturante, presente na elaboração de qualquer símbolo e função estruturante de acordo com a Psicologia Simbólica Junguiana, transforma o desenvolvimento psicológico na luta permanente entre a Consciência e a Sombra, entre o Bem e o Mal. O Arquétipo Central coordena a elaboração simbólica através dos arquétipos e é, por isso, o grande orquestrador dessa luta. Não é que ele fabrique as fixações, pois elas se formam dos tropeços e quedas que ocorrem durante as longas caminhadas. O Arquétipo Central tolera as fixações e continua a elaboração simbólica incluindo a sua presença nefasta nas defesas e resistências da Sombra. Todo organismo vivo assim o faz. A lagartixa que perdeu a cauda continua a caçar insetos para sobreviver. O pássaro com a asa ferida voa até quando e aonde puder. A individuação inclui permanentemente a luta entre o Bem e o Mal, desde o início da formação do Ego, pois essa luta é a própria disputa entre o Ego da Consciência e o Ego da Sombra, cujos embates pontuam a vida das pessoas e da humanidade. O máximo do esforço criativo do Arquétipo Central para continuar o Processo de Individuação faz-se na vigência do mal terrível das fixações dentro dos dinamismos psicopático e psicótico. Coube ao gênio de Nise da Silveira demonstrar essa dramática verdade ao documentar a continuação inconteste do Processo de Individuação em casos de esquizofrenia crônica até as vésperas da morte (vejam os vídeos sobre Carlos Pertuis, Fernando Diniz e Adelina Gomes, feitos por Leon Hirszman e coordenados pela Dra. Nise para a Funarte, na biblioteca da SBPA).

P [10]: Quando a ética não se constitui uma função estruturante não fixada podemos pensar em psicopatia? Como diferenciamos a defesa impedindo a elaboração ética da psicopatia do mau-caratismo ou desonestidade?

R [10]: Quando a função estruturante da ética sofre uma fixação, torna-se função estruturante defensiva e passa a atuar na Sombra e, como qualquer outra função psicológica, pode fazê-lo dentro das dimensões neurótica, psicopática, borderline ou psicótica. A Psicologia Simbólica Junguiana não diferencia entre a função estruturante defensiva da psicopatia, do mau-caratismo ou da desonestidade. Psicodinâmica e cientificamente, essas condições humanas expressam a atuação defensiva da função estruturante da ética na dimensão psiquiátrica.

P [11]: E uma outra pergunta encadeada: é possível desenvolver uma elaboração simbólica com uma postura antiética profunda?

R [11]: Qualquer elaboração simbólica que confronte as fixações e defesas da Sombra requer uma postura ética criativa. A postura antiética não elabora a Sombra, porque o Ego que a expressa já se tornou, ele próprio, um prisioneiro da Sombra através da função estruturante da ética fixada e, portanto, tornada defensiva.

P [12]: A sua obra tem dado especial atenção à educação de crianças, um tema apreciado por Jung. Seria, a seu ver, uma forma de psicoprofilaxia para a construção da cidadania, com possibilidade de inserir valores éticos e desenvolvê-los?

R [12]: Com certeza! Quando percebemos que toda elaboração simbólica é feita entre o Ego da Consciência e o Ego da Sombra, a educação passa a ser centrada na elaboração simbólica. O tratamento da Sombra é feito no consultório, mas a sua profilaxia tem lugar na família e na escola. Desenvolver cognitiva e emocionalmente a Consciência e evitar a formação das fixações e, por conseguinte, da Sombra, são as duas principais finalidades da função ética dentro da educação. Quando isso é feito em casa e na sala de aula, o Outro passa a ser um companheiro inseparável do Ego, formando-se uma relação Ego-Outro, na própria Consciência, baseada na amizade, na cooperação, no respeito e na dignidade, que são as bases da cidadania.

P [13]: A sociedade brasileira está estarrecida, mas também acomodada com a corrupção crescente. A revolta acomete muitos jovens que se deparam com dificuldades quando seguem uma conduta ética e verificam o sucesso - poder, dinheiro - de outros que deturpam tal conduta. Sentem que ser ético é quase ser feito de bobo, apesar de valorizarem corajosamente suas posturas. O que podemos dizer a eles para ajudá-los em sua individuação?

R [13]: O que precisamos ensinar aos jovens é a formação da sua Consciência e da sua Sombra na luta entre o Bem e o Mal. Assim fazendo, nós os ensinamos a reconhecer e a lutar contra o Mal neles, na sua família, na sua comunidade e em todo o planeta. Os jovens querem criatividade e participação ativa, porque juventude é crescimento e ação. Por isso, ensinar preceitos éticos patriarcais tradicionais não os motiva, pois é um ensinamento de fora para dentro, "decoreba", e não construído dentro do seu cotidiano. Quando os jovens vivenciam a realidade simbólica dessa luta, eles são iniciados na busca da autorrealização, da felicidade, da justiça, do amor e da compaixão como o caminho do Bem e vão se tornando aptos para identificar o caminho do Mal à sua volta e perceber que a riqueza, o poder e os bens de consumo não trazem nem plenitude, nem amor, nem paz aos que os tornam a finalidade da vida.

P [14]: Qual seria a neurose ou psicose atual em nossa sociedade, a seu ver? E como a Psicologia Analítica ajudaria a tratá-la?

R [14]: O principal problema da atualidade parece-me ser a alienação ética e existencial trazida pela desorientação individual e coletiva, como bem descreveu Jung no livro "O Homem moderno em busca da alma". Esta alienação impede reconhecer os valores que realmente são importantes na vida individual e coletiva, e combater os principais sintomas da Sombra moderna: o egoísmo, as dependências, a indiferença, a corrupção e a violência, centralizados na massificação e na pulverização da identidade das pessoas, sobretudo nas grandes cidades.

Quando visitamos uma favela com a mente e o coração abertos e nos deparamos com a miséria, sabendo que, possivelmente, em grande parte, as verbas para educação, alimentação, saúde, moradia e transporte "diluíram-se" no meio do caminho e que seus fraudadores, nas raras vezes em que são identificados e punidos, entram e saem das prisões dependendo dos advogados que contratam, ficamos surpresos de o nosso povo não ser muito mais revoltado e violento.

Quando visitamos então uma delegacia ou um presídio, e vemos as condições desumanas dos presos, saímos com dificuldade de saber se o sistema penitenciário é dirigido à recuperação ou é uma escola do crime, financiada pela sociedade de forma inconsciente e sadomasoquista para castigar a si própria.

A mandala, descrita por Jung como a principal imagem de totalidade do Processo de Individuação, é um símbolo inspirador para guiar o poder público no reenraizamento do indivíduo das comunidades carentes, dentro da relação de alteridade do indivíduo com a comunidade. Quando a centralização funciona apenas no nível macro da sociedade, nas grandes comunidades regionais, ela contribui para a perda da individualidade no nível das pequenas comunidades. A imagem da mandala revela como as principais entidades institucionais das comunidades carentes estão descentralizadas, e aponta um caminho para sua microcentralização, reunindo o indivíduo com o todo comunitário. Um campo desportivo num polo importante da comunidade, que serve também para outras atividades culturais, rodeado pelo posto de saúde, escola, posto policial e agência de colocação profissional e cadastradora das habilidades dos membros da comunidade para convocá-los em mutirões, é um caminho para construir a identidade das pessoas que ali vivem. A forma em mandala é aqui a expressão do Self comunitário propiciador da formação da identidade dentro do padrão de alteridade. Esta ideia é baseada no conceito de que no Processo de Individuação a identidade individual forma e é formada pela identidade grupal.

 

 

Recebida em 03/08/2019
Revisada em 13/10/2019

 

 

1 Entrevista realizada em maio 2004. Publicada originalmente na Junguiana n. 22, Espiritualidade, 2005.

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