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Junguiana

versión On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo ene./jun. 2022

 

A cartografia da psique: Jung e seu anagrama misterioso

 

La cartografía de la psique: Jung y su misterioso anagrama

 

 

Monica Giraldo HortegasI; Maria Conceição SchetinoII; Walter MeloIII

IDoutora e mestra em ciência da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Psicóloga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-doutoranda em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Participa do grupo Caminhos Junguianos. e-mail: mhortegas@hotmail.com
IIDoutoranda em ciência da religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduanda em letras (português/italiano), com ênfase em literatura pela UFJF. Mestre em ciência da religião (2018) e bacharel em geografia (2013) pela UFJF. e-mail: mariacschetino@gmail.com
IIIProfessor do departamento de psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Docente dos programas de pós-graduação em psicologia da UFSJ e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenador do grupo Caminhos Junguianos. Graduado em psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutor em psicologia social pela UERJ. Fez o pós-doutorado pela Sorbonne. e-mail: wmelojr@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

Em 1916, Jung escreveu Sete Sermões aos Mortos e criou a mandala Systema Munditotius que, em conjunto, caracterizam-se como um mito gnóstico da criação. Os Sermões terminam com um anagrama que permaneceu sem resposta por mais de cem anos. Este artigo apresenta uma hipótese para decifrar esse enigma, buscando pistas na própria obra junguiana, enfatizando a importância da fantasia para a pesquisa teórica. Lendo com atenção, os Sermões e outras obras do mesmo período, os escritos posteriores e obtendo informações de seus comentadores, foi possível trazer respostas inusitadas ao desafio. O mistério de Jung reafirma sua busca ao longo da vida: a comunicação entre consciência e inconsciente. A partir de uma investigação sobre a influência da gnose, dos números e das coordenadas geográficas em sua obra, foi possível apreender respostas simbólicas, onde se representa a união dos opostos do psiquismo.

Palavras-chave: anagrama, Carl Gustav Jung, cartografia, coordenadas, fantasia.


RESUMEN

En 1916, Jung escribió Siete Sermones a los Muertos, y creó la mandala Systema Munditotius, que en su conjunto se caracterizan como un mito gnóstico de la creación. Los Sermones terminan con un anagrama que permaneció sin respuesta durante más de cien años. Este artículo presenta una hipótesis para descifrar este enigma, buscando pistas en la propia obra junguiana, enfatizando la importancia de la fantasía para la investigación teórica. Mediante la lectura cuidadosa de los Sermones y otras obras del mismo período, sus escritos posteriores y la obtención de información de sus comentaristas, fue posible aportar respuestas inusuales al desafío. El misterio de Jung reafirma su búsqueda de toda la vida: la comunicación entre la conciencia y el inconsciente. A partir de una investigación sobre la influencia de la gnosis, los números y las coordenadas geográficas en su obra, fue posible aprehender respuestas simbólicas, donde se representa la unión de los opuestos de la psique.

Palabras clave: anagrama, Carl Gustav Jung, cartografía, coordenadas, fantasia.


 

 

Introdução

[...] o sol da consciência 'masculina' que surge do mar noturno do inconsciente, como criança [...] (JUNG, 2012a, p. 97).

[...] enquanto a Mãe é escondida no deserto [...] (JUNG, 2012a, p. 98).

A frutuosa colaboração entre Carl Gustav Jung (1875-1961) e Sigmund Freud (1856-1939) teve início em 1907, garantindo a ampliação do escopo teórico, do campo de atuação e de institucionalização da psicanálise. Esse vívido debate pessoal e intelectual pode ser acompanhado por meio de centenas de cartas publicadas por McGuire (1976). Em 1913, no entanto, aconteceu a ruptura entre os dois pensadores. Esse foi um período de extrema incerteza para Jung, que chegou a denominar o estado em que se encontrava como de desorientação. Nessa época, Jung teve uma visão aterradora durante uma viagem de trem: grande parte da Europa se encontrava coberta pelas águas e, subitamente, o mar se transformava em sangue. A visão se repetiu duas semanas depois (JUNG, 2012b).

Nessa tensão emocional, os conteúdos inconscientes apresentavam forte atividade. Em seu relato, Jung afirma que no outono de 1913 sentiu uma pressão psíquica que "pareceu deslocar-se para o exterior, como se algo pairasse no ar" (JUNG, 2012b, p. 218). Em vez de lutar contra os conteúdos que surgiam, preferiu colocar as fantasias em primeiro plano. Inicialmente, anotou-as nos Livros Negros (JUNG, 2021) e, posteriormente, transcreveu-as com comentários, para O Livro Vermelho (JUNG, 2013). Nesse longo processo, as fantasias foram ricamente adornadas por imagens.

Em agosto de 1914, eclodiu a Primeira Grande Guerra e o isolamento de Jung se ampliou. O autoexperimento com os conteúdos psíquicos passou a ter cada vez mais importância. As imagens que emergiam do campo inconsciente estavam diretamente relacionadas à turbulenta situação emocional vivida por Jung naquele período. O confronto com o inconsciente se iniciou, de acordo com Sonu Shamdasani, pela prática da imagem, ou seja, pela busca do "desdobramento das sequências dramáticas" (HILLMAN; SHAMDASANI, 2015, p. 52). A linguagem observada n'O Livro Vermelho tem continuidade em uma espécie de elaboração lírica. Nesse nível de compreensão, Jung (2012b) procura o sentido para essas expressões em enfáticos textos poéticos e em iluminuras de estilo medieval.

O ápice dessa experiência ocorreu em 1916, com Jung sentindo uma grande inquietação (SHAMDASANI, 2013, p. 37). A princípio, não sabia o que significava. Sentia a atmosfera pesada, "como se o ar estivesse cheio de entidades fantasmagóricas" (JUNG, 2012b, p. 235). Enfim, a casa parecia assombrada e, além dele, as outras pessoas também percebiam: durante a noite, a filha mais velha viu uma forma branca atravessando o quarto, outra filha relatou que a coberta da cama foi arrancada duas vezes e o filho teve um pesadelo. Em outra ocasião, a campainha tocou de maneira insistente e, quando Jung e as duas empregadas foram ver o que era, não havia ninguém. O clima da casa era extremamente opressivo, como se (VAIHINGER, 2011) estivesse repleta de espíritos e, no limite dessa tensão, Jung pôs-se a escrever um texto em forma de diálogo com os mortos. Estava aberto o caminho para a criação da psicologia analítica. Nas palavras de Jung: "as conversações com os mortos, os Septem Sermones constituem uma espécie de prelúdio àquilo que eu deveria comunicar acerca do inconsciente" (JUNG, 2012b, p. 237).

Durante três dias1, Jung produziu um texto poético, inspirado na tradição gnóstica (HOELLER, 1990; JUNG, 2011a), intitulado Sete Sermões aos Mortos, assinado com o nome de Basílides de Alexandria. Assim que começou a escrever, os espíritos se esvaneceram. No segundo dia de escrita, a tensão estava de volta, com menos intensidade. No terceiro e derradeiro dia, a casa ficou novamente em paz. Como podemos perceber, essa experiência peculiar transita entre dois mundos: as imagens psíquicas e a casa de Jung. A explicação de Jung se restringe aos aspectos psicológicos, mantendo a sua conhecida parcimônia epistemológica (SHAMDASANI, 2006), ou seja, garantindo o princípio estrito de aplicação psicológica: "Jung dedicou-se muitas vezes - para surpresa de seu público - a despir várias doutrinas esotéricas de sua roupagem metafísica, tornando-as objetos da psicologia" (HOELLER, 1990, p. 115).

Os Sermões, escritos por Jung como um diálogo com os mortos, caracterizam-se como uma tentativa de elaborar um fenômeno completamente atípico através da linguagem lírica. Aos poucos, porém, o psiquiatra suíço passa para o nível de elaboração conceitual (HILLMAN; SHAMDASANI, 2015) e podemos afirmar que ocorre, também, uma elaboração metodológica. Dessa maneira, a fantasia passiva que se origina exclusivamente de processos inconscientes, dá lugar à fantasia ativa. Há, nesse caso, a disposição consciente para entrar em contato com as imagens do inconsciente, que necessitam ser compreendidas (JUNG, 2011b). Assim, a oposição inicial entre os campos da consciência e do inconsciente gera uma tensão, possibilitando o confronto em que os dois pontos de vista sejam levados em consideração e a dicotomia seja ultrapassada. Jung denominou esse processo pelo termo função transcendente, que "resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes" (JUNG, 2011c, p. 13).

A proposta de Jung (2011d) caracteriza-se, portanto, pela criação de um método introspectivo de elaboração de conteúdos inconscientes. Dessa maneira, há a concentração em determinada imagem que possua valor emocional e as fantasias são anotadas de maneira objetiva. Com o passar do tempo, tem-se uma série de imagens e esse fluxo imagético é acompanhado de maneira detalhada. No acompanhamento das imagens do inconsciente, são enfatizadas as transformações simbólicas. Assim, a situação emocional é o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o objeto de observação e de confronto que acontece através das minuciosas e objetivas anotações das fantasias e seus desdobramentos (JUNG, 2011c).

O confronto com as imagens do inconsciente possibilita a função transcendente (JUNG, 2011c) que pode ocorrer através da análise dos sonhos (Jung, 2011e), da técnica da caixa de areia (KALFF, 2003) e da imaginação ativa (JUNG, 2011f). As elaborações de Jung referentes à imaginação ativa encontram-se em três tipos de produções: em seu autoexperimento (JUNG, 2013, 2021), na prática da psicoterapia (JUNG, 2011g) e na alquimia como termo de comparação histórico-filosófico para a fundamentação da psicologia analítica (JUNG, 2011h; JUNG; WILHELM, 2013). Em relação ao texto poético-gnóstico Sete Sermões aos Mortos, podemos afirmar que faz parte de seu autoexperimento e, junto às demais imagens, fantasias e sonhos ocorridos entre 1913 e 1916, constitui a semente de sua obra posterior.

Envoltos em mistérios, os Sermões de Jung foram publicados, inicialmente, de maneira artesanal e distribuídos a poucos amigos. Posteriormente, foram inseridos em Memórias, Sonhos, Reflexões (JUNG, 2012b), n'O Livro Vermelho (JUNG, 2013) e, mais recentemente, nos Livros Negros (JUNG, 2021). Uma das diferenças entre as três publicações encontra-se no nome do autor: Jung (Livros Negros), Filemon (O Livro Vermelho) e Basílides (Memórias, Sonhos, Reflexões). Na versão final, portanto, a conversa com os mortos que haviam voltado de Jerusalém em busca de respostas é assinada por Basílides de Alexandria. Basílides é o gnóstico herético que teria afirmado o caráter divino do diabo e de pecabilidade de Deus (TISSOT, 1996). Alexandria, por sua vez, é a cidade denominada por Jung como o local onde o Oriente encontra o Ocidente.

Ao finalizar o último sermão, Jung desenha a sua primeira mandala, denominada Systema Munditotius, uma espécie de mapa para adentrar o mundo psíquico, uma configuração do Si-mesmo (HORTEGAS, 2016). De acordo com Sonu Shamdasani, os Sermões e a primeira mandala se caracterizam, respectivamente, como uma cosmologia psicológica - "um mito de criação gnóstico" (SHAMDASANI, 2013, p. 37) - e uma cosmologia pictórica dos próprios Sermões.

Um enigma se soma à cartografia da psique apresentada por Jung a partir da cidade de Alexandria e da mandala Systema Munditotius: ao final do último sermão há, sem nenhuma explicação, um anagrama de quatro linhas, nunca solucionado ao longo desses mais de cem anos de existência. De acordo com Mary Dian Molton (2021), o filho de C. G. Jung, Franz, relata que foram efetuadas algumas tentativas infrutíferas para solucionar o enigma deixado pelo anagrama. Em certa ocasião, um grupo de estudiosos reuniu a família de Jung para apresentar o resultado, que foi negado pelo filho e demais membros da família. O argumento para a recusa foi de que as palavras apresentadas não eram coerentes com os conhecimentos e a obra de Jung. Posteriormente, ainda segundo Franz Jung, Aniela Jaffé fez nova tentativa, usando seus conhecimentos sobre a obra de Jung, sua relação pessoal com ele e a capacidade intuitiva, apresentou um resultado, mas as palavras que ela encontrou não tinham a graça esperada. É sobre este anagrama de Jung que vamos desenvolver este estudo: NAHTRIHECCUNDE / GAHINNEVERAHTUNIN / ZEHGESSURKLACH / ZUNNUS (JUNG, 2012b, p. 471).

 

O anagrama de Jung: das letras aos números

Um anagrama é um jogo de palavras que faz do leitor um investigador, ao qual cabe decifrar o seu mistério rearranjando as letras na busca de sentido para as palavras. O anagrama de Jung segue, portanto, esse padrão. Existem muitas especulações a seu respeito. Afinal, qual o idioma utilizado? Seriam letras embaralhadas em alemão? Ou seria a composição de mais de um idioma? Nesse caso, as línguas alemã, inglesa e sueca seriam importantes? Será que as possíveis palavras estariam submetidas a outros fatores, como as imagens? E se fossem números que, ordenados a partir de alguma lógica, elucidassem as preocupações desse psiquiatra irreverente? Enfim, o que estaria escrito naquelas quatro linhas?

Estamos diante de um enigma proposto por um experiente terapeuta e pesquisador acostumado aos meandros dos conteúdos psicológicos. Nesse sentido, lembramos, por exemplo, que uma interna do Hospital Burghölzli se referia a si mesma como notas do Monopoly ou rainha dos órfãos e, quatro anos depois, como a Germânia e a Helvécia exclusivamente de manteiga doce, entre outras enigmáticas definições. Essas frases seriam sem sentido? Com o passar do tempo, Jung diz que "o nonsense patológico aumentou consideravelmente" (JUNG, 2011i, p. 194). As frases eram tidas como ininteligíveis e a interna como um exemplo patente de delírios absurdos. No entanto, a partir de seus estudos experimentais, pautados no teste de associação de palavras (JUNG, 2011j), foram efetuadas análises dessas diversas autodefinições que passaram a configurar um sentido: a interna afirmava ser Sócrates, Maria Stuart, Lorelei, uma suíça, sino de Schiller, Hufeland etc. Assim, foram traçados os significados contidos nessas proposições fragmentadas, comparáveis aos conteúdos oníricos (JUNG, 2011i).

As manifestações inconscientes que se originam nos sonhos colocam-nos, a princípio, diante de processos imprevisíveis. Mas, o acompanhamento da série de imagens do inconsciente permite estabelecer quais os temas que se repetem e se desdobram de maneira cíclica. Como o material é, muitas vezes, de difícil compreensão, Jung passou a utilizar associações e analogias para configurar um possível significado. Essa amplificação dos conteúdos "é recomendada sempre que se trate de uma vivência obscura, cuja vaga insinuação deva ser multiplicada e ampliada através de um contexto psicológico a fim de tornar-se inteligível" (JUNG, 2011h, p. 308).

Dessa maneira, por mais enigmáticos que sejam os delírios e as imagens dos sonhos, há a possibilidade de reconhecer o significado que possuem. Frente ao anagrama de Jung, encontramo-nos exatamente nessa perspectiva, pois se trata de um conteúdo de difícil apreensão - talvez impossível -, mas, seguindo as pistas e métodos deixados por seu autor, podemos nos aproximar das letras embaralhadas nesse anagrama e tentarmos entrever um sentido. Além de todo o consistente arcabouço teórico oferecido por Jung, o uso da imaginação ativa, do diálogo com as fantasias e da criatividade sempre foram importantes ferramentas de seu trabalho. Seria possível, enquanto pesquisadores, trazer estas possibilidades para agregar ao exercício teórico intelectual a que nos propusemos? Assim, articulando fantasia e racionalidade, ousamos pensar que sim. Com isso, percebemos que além da linguagem por palavras e por imagens, as representações simbólicas podem ser configuradas através da linguagem numérica2 (FRANZ, 2012; JUNG, 2011k; VALE; MELO, 2019).

Os números se apresentam na obra de Jung em seus aspectos quantitativos e qualitativos, evidenciados em diversas categorias: tempo de reação dos testes de associação de palavras e intensidade da energia psíquica; conteúdo psíquico, elemento organizador da psique, caráter numinoso, grandeza imprevisível entre mito e realidade, elemento presente em fenômenos sincronísticos e como arquétipo da ordem que adentrou no campo da consciência (VALE; MELO, 2021). De acordo com Jung (2011k), a psicologia do número diz respeito a algo misterioso e possibilita ordenar o mundo a partir do reconhecimento de uma regularidade até então desconhecida.

O número como um fator de ordenação do mundo coloca-nos frente ao mistério da psique indivisa (anima mundi), da unidade psique e matéria, enfim, da unidade do mundo (unus mundus). Todos esses assuntos são abordados em diversas obras de Jung (2011k, 2011l) e de Marie-Louise von Franz (2002, 2012), sendo sintetizados em carta de Jung a Stephen Abrams, de 21 de outubro de 1957: "Tenho a nítida impressão de que o número é a chave do mistério, uma vez que é tanto descoberta quanto invenção. Ele é quantidade, mas também significado" (JUNG, 2003, p. 116-117). E finaliza: "Parece que estou velho demais para resolver esta charada, mas espero que um espírito jovem aceite o desafio. Valerá a pena" (JUNG, 2003, p. 117).

Nessa perspectiva, o número possui aspectos quantitativos, qualitativos, de ordenação e está envolto por mistérios relacionados aos temas da unidade - da psique, psicofísica e do mundo. O número seria, assim como o anagrama proposto por Jung (2012b), um enigma. Esse enigma, no entanto, pode se configurar, também, como uma possível chave para os mistérios apontados acima. Nesse aspecto, Jung (2011m) enfatiza o caráter arquetípico dos números, pois se caracterizam como formas apriorísticas e que possuem um considerável grau de autonomia em relação à consciência.

A partir dessas proposições, poderíamos imaginar se, para resolvermos o enigma do misterioso anagrama, seria necessário transformar as letras em números? Essa substituição resolveria o enigma ou apenas caracterizaria uma numeração aleatória? Caso a numeração apresente algum sentido, estabeleceria uma reta? Ou, quem sabe, indicaria um sistema de coordenadas?

Lembremos que os Sermões de Jung são dirigidos aos mortos, mas esses não teriam a capacidade de responder a indagações e, para isso, necessitariam dos vivos (SHAMDASANI, 2013, p. 41), ou seja, daqueles que habitam um mundo tridimensional. As imagens originais (arquetípicas) se apresentam "fora do tempo e do espaço [...] como uma nuvem difusa de conhecimentos" (JUNG, 2012b, p. 368). Assim como para os mortos dos Sermões, para se obter conhecimento, é necessário levar em consideração as configurações atemporais, mas em confronto com o campo da consciência, estabelecer um sistema de coordenadas, uma espécie de cartografia da psique.

 

Onde o Oriente encontra o Ocidente

Há linhas imaginárias que dividem o planeta de maneira horizontal e vertical. Na intersecção dessas várias linhas surgem pontos precisos na superfície da Terra que estabelecem localizações no tempo e no espaço, chamados coordenadas geográficas. As linhas horizontais caracterizam os paralelos, que circundam a Terra a partir do Equador:

Todos os pontos do equador terrestre têm latitude geográfica igual a 0°. Pontos situados ao norte do equador têm latitudes maiores que 0°, variando até 90° que é a latitude do polo geográfico norte. De mesma forma variam as latitudes ao sul do equador terrestre, desde 0° a 90°, latitude do polo geográfico sul. Para se diferenciar os valores, atribui-se sinal positivo para as latitudes norte e negativo para as atitudes sul (SEBEM; MONGUILHOTT, 2010, p. 27).

As linhas verticais estipulam os meridianos, tendo como pontos nodais os polos Norte e Sul: "Longitude geográfica ou geodésica: é o ângulo entre os planos do meridiano de Greenwich e do meridiano que passa pelo ponto considerado, sendo positiva a Leste (0 a +180°) e negativa a Oeste (0 a -180°)" (SEBEM; MONGUILHOTT, 2010, p. 27). Essas coordenadas são medidas em graus, minutos e segundos. Nesse sistema, cada grau é dividido em 60 minutos, cada minuto se divide em 70 segundos e assim por diante, chegando a frações cada vez menores que são os milésimos de segundos que são desprezíveis em termos cartográficos. Essas informações são importantes para compreendermos a maneira como vamos proceder a substituição das letras do anagrama por números, como também os resultados daí advindos.

Assim, estabelecemos um sistema simples de correlação em que, para cada letra do alfabeto3, foi estipulado um número: A = 1; B = 2; C = 3 etc. Cada linha do anagrama passou a contar com uma série numérica e, com a finalidade de encontrar a coordenada geográfica, a série numérica foi desmembrada em duas partes proporcionais, apresentando, respectivamente, a latitude e a longitude. Neste sentido, na primeira linha, por exemplo, temos 14 letras, as sete primeiras corresponderiam à latitude e as outras sete, à longitude. Na linha 2 do anagrama, o número de letras é ímpar, o que impossibilitou que as dividíssemos proporcionalmente, então, resolveu-se desprezar a última letra, que já seria desprezada por fazer parte dos milésimos de segundos. Obtivemos, assim, os graus, os minutos e os segundos e descartamos os números referentes às divisões dos milésimos de segundos de cada parte das linhas. Adicionamos o zero à frente dos números unitários, possibilitando a conversão em coordenadas.

É importante frisar que as latitudes não podem passar de 90° e as longitudes não podem passar de 180°. Por exemplo, na linha 1 do anagrama só poderíamos ter a latitude 14, pois se fossemos adicionar o 1 da letra A teríamos 141 e esse número ultrapassaria os 90°, que é o número máximo de uma latitude. Procedemos dessa maneira em todas as linhas do anagrama, respeitando o valor máximo de latitude e de longitude. De maneira semelhante, os minutos e segundos das latitudes e longitudes não podem passar de 60, pois uma hora tem no máximo 60 minutos e um minuto tem no máximo 60 segundos. Outra questão que deve ser explicada é a escolha das direções de cada latitude (Norte ou Sul) e longitude (Leste ou Oeste). A cidade que tomamos como referência foi Alexandria4, sendo localizada na Latitude: 31°12'56" N Longitude: 29°57'18" E, decidiu-se, a partir desta orientação, que as latitudes seriam norte e as longitudes leste.

 

Figura 1

 

Ao traçarmos uma linha ligando as quatro localizações encontradas, criamos uma seta que se dirige à quinta coordenada, a chave do enigma, à cidade de Alexandria, cidade do gnóstico Basílides, nome utilizado por Jung (2012b) para assinar os Sermões. O anagrama de Jung não nos oferta a coordenada desta cidade, entretanto, nos aponta sua direção. Esta seta seria o último ato simbólico para a compreensão do anagrama, a cidade que marca o encontro entre Oriente e Ocidente, como mostra o mapa na Figura 2.

 

A analogia geográfica

O espaço é objeto de estudo em várias áreas do conhecimento, por exemplo: na geografia humana de Milton Santos (2012); na filosofia de Maurice Merleau-Ponty (1999), como parte da fenomenologia da percepção; é motivo de reflexão, a partir das imagens poéticas abordadas por Gaston Bachelard (1996) na relação entre novidades imagéticas em poesias e um arquétipo; no modo original de Mircea Eliade (1996) estabelecer a relação entre o espaço sagrado e o espaço profano; e nos estudos de Jung (2011k) sobre os fenômenos de sincronicidade.

A noção de sincronicidade foi desenvolvida a partir de vivências pessoais, de relatos de outras pessoas, dos estudos de parapsicologia de Joseph Banks Rhine, de profícuos diálogos com o físico Wolfgang Pauli (MEIER, 2000) e, também, das concepções filosóficas de harmonia preestabelecida de Gottfried Wilhelm Leibniz e de relação de simultaneidade de Arthur Schopenhauer. No caso específico de Schopenhauer (2014), trata-se de um sistema de coordenadas. Nessa "analogia geográfica" (JUNG, 2011k, p. 19), os eventos acontecem de maneira simultânea, como um elo entre duas cadeias distintas, configuradas pelos paralelos e meridianos. Assim, a vida de cada pessoa seria constituída, ao mesmo tempo, por duas conexões distintas: uma objetiva e outra subjetiva; uma, dos acontecimentos em si e outra na maneira particular como cada um vivencia uma determinada situação.

A partir do sistema de coordenadas apresentado por Schopenhauer, é possível conceber relações acausais entre imagens psíquicas e acontecimentos tangíveis (JUNG, 2011k). Dessa maneira, os pontos de referências espaciais, com a determinação de graus, minutos e segundos que surgem da transposição das letras do anagrama para números, seriam sistemas de coordenadas que apontam para a conexão entre o sujeito no mundo e o mundo no sujeito. Assim, temos, por um lado, Níger e Nigéria, banhados pelo caudaloso rio Níger, e, por outro lado, a Líbia, com seu grande deserto. O rio Níger é denominado grande rio, mar ou rio dos rios, aquele que fecunda, tendo as características de um rio espermático, como uma água da vida (JUNG, 2011h). E, na mitologia grega (GRIMAL, 1993), Líbia gerou três filhos de Poseidon, o deus das águas (BRANDÃO, 2004). Então, no anagrama de Jung, há a conjunção entre um rio que fecunda e uma ninfa oceânica, apontado na direção de Alexandria.

Inferimos que o sistema de coordenadas indica uma seta que parte da Nigéria, passa por Níger e pela Líbia, chega a Alexandria, a cidade prometida no anagrama de Jung. Simbolicamente, portanto, temos o encontro da desértica Líbia com o fértil Rio dos Rios, gerando Alexandria. Trata-se da cidade indicada no título dos Sermões e apresentada no mapa que criamos a partir do anagrama. Etimologicamente, Alexandria significa, a partir do grego Ἀλέξανδρος (Aléxandros), protetor do homem, defensor da humanidade. É este o tema do sétimo e último sermão escrito por Jung. Ali ele diz: "O homem é pórtico" (JUNG, 2012b, p. 341). Assim, não se trata mais de Jerusalém, berço do cristianismo e de onde vieram os mortos sem encontrar nenhuma resposta. Alexandria promove o encontro entre Oriente e Ocidente, articula o cristianismo e o gnosticismo, faz com que aquele que assina os Sermões, Basílides, responda aos mortos e aplaque a intensidade dos afetos exteriorizados no ambiente. Alexandria aponta, portanto, para uma mudança de atitude, sintetizada nas palavras de Stephan Hoeller (1990):

Jerusalém, a velha cidade da paz, que serviu tanto de morada do Deus judaico como de local da vida e da morte do Filho de Deus dos cristãos, era e continua a ser muito mais do que uma simples cidade. Como Alexandria, ela representa um arquétipo, mas seu sentido psíquico é de uma ordem diferente. [...] a cidade egípcia do Delta simboliza liberdade, criatividade, pluralismo espiritual [...]. Em Alexandria, deuses e deusas caminham pelas ruas lado a lado com prostitutas, bispos e vendedores de peixe (p. 108-109).

Alexandria se caracteriza, portanto, como um símbolo de união dos opostos. Mais do que uma região territorial, Alexandria resulta das coordenadas para uma compreensão acerca da totalidade da psique, do homem como portal para o interior de si mesmo, o próprio protetor de seu maior tesouro: "Os mortos viajam a Jerusalém em vão, sendo obrigados a voltar a Alexandria, à vida e à Gnose" (HOELLER, 1990, p. 109).

Esse símbolo da totalidade é configurado no mesmo período que a primeira mandala pintada por Jung (2013), denominada Systema Munditotius. Assim, ao mito de criação gnóstico é acrescida uma cosmologia pictórica (SHAMDASANI, 2013). Trata-se de uma imagem da totalidade psíquica: "as estruturas dos mandalas têm o sentido e a função de um centro inconsciente da personalidade" (JUNG, 2011n, p. 243).

Os Sermões são compostos por símbolos de união de opostos, como o deus Abraxas (JUNG, 2012). A mandala desenhada configura o Si-mesmo (HORTEGAS, 2016) e é possível pensar que o sistema de coordenadas criado a partir do anagrama aponta para a cidade de Alexandria, que também se apresenta como símbolo da unidade. O tema preponderante é, portanto, a união de opostos. Nos escritos de Jung de 1916, esse tema se encontra presente de maneira poética nos Sermões e imagética na mandala, passando a ser desenvolvido como objeto de estudo em dois textos teóricos: A Função Transcendente (JUNG, 2011c) e O Eu e o Inconsciente (JUNG, 2011o).

Jung utiliza o termo transcendente sem nenhuma conotação metafísica. Trata-se do confronto entre duas posições opostas: da consciência e do campo inconsciente. Desse embate, pode ocorrer a conjunção dos opostos, indicando uma mudança de atitude, fruto da alternância de argumentos e efeitos, possibilitando a síntese do processo psíquico. Assim, há a possibilidade de reconhecimento dos efeitos dos conteúdos do inconsciente sobre a consciência e uma gradual diferenciação entre esses dois campos, caracterizando um processo denominado por Jung (2011o) pelo termo individuação.

Os Sete Sermões aos Mortos são produzidos em meio a uma experiência singular de intensa atividade do inconsciente, exteriorizada para o ambiente (JUNG, 2012b). A escrita desse texto poético está carregada de referências gnósticas, pautadas em considerações de caráter metafísico. Jung (2011c, 2011o), no entanto, aborda essas questões pelo ponto de vista da psicologia, enfatizando o confronto da consciência com os conteúdos inconscientes, na tentativa de ultrapassar os opostos. Esse processo não possui um modelo prévio que deve ser seguido, caracterizando-se, antes, pela expressão simbólica que deve ser compreendida com o objetivo de não apenas curar os sintomas, mas "de conduzir a personalidade em direção à totalidade" (JUNG, 2011p, p. 289).

 

Considerações finais

A produção dos Livros Negros (JUNG, 2021) e d'O Livro Vermelho (JUNG, 2013) caracterizam a expressão das imagens do inconsciente e o confronto da consciência com esses conteúdos. Essa experiência viva guiou a produção teórica de Jung a partir de então. Essas são genuínas manifestações da cartografia da psique, com os símbolos da união dos opostos, a mandala Systema Munditotius, as múltiplas personificações e o anagrama. Para compreender esses processos, Jung procurou conhecer diversas tradições e campos do saber, dentre os quais a gnose. Em um primeiro momento, os estudos sobre a gnose trouxeram importantes analogias sobre as manifestações do campo inconsciente, notadamente acerca do Si-mesmo como arquétipo central (JUNG, 2011n).

Nesse contexto, o texto poético Sete Sermões aos Mortos teve um papel fundamental, constituindo a base intuitiva para as elaborações teóricas. Em meio a tantas expressões simbólicas, temos o anagrama de Jung, que nos coloca frente a um enigma. Seguindo as pistas deixadas por Jung ao longo de sua obra, consideramos a possibilidade de substituir as letras por números e, em seguida, compor um sistema de coordenadas, indicando os paralelos e os meridianos em um processo cartográfico que estrutura um caminho que passa por Nigéria, Níger e Líbia, apontando Alexandria como meta: "A psique é o eixo do mundo (...) [e] uma alteração, por menor que seja, em um fator psíquico, se é uma alteração de princípio, é da maior importância para o conhecimento do mundo" (JUNG, 2011f, p.167-168). Levando em consideração o ponto de vista psicológico, temos um caminho simbólico, em que as águas do rio fecundam e vivificam as terras desérticas, e dessa união de opostos chega-se à meta, o ponto central onde Oriente e Ocidente se encontram, o Si-mesmo.

 

Referências

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Recebido: 14/02/2022
Revisado: 31/05/2022

 

 

1 No livro Memórias, Sonhos, Reflexões (JUNG, 2012b) consta que os Sermões foram escritos em três dias. Porém, em estudo sobre o gnosticismo, Stephan Hoeller (1990) afirma que Jung desenvolveu a escrita de 15 de dezembro de 1916 a 16 de fevereiro de 1917.
2 Essa possibilidade foi sugerida pelo filho de uma das autoras do presente artigo, David Alex Devitta Macdillen. Em conversa com a mãe, o rapaz de 15 anos sugeriu, de maneira intuitiva, que tentasse esse caminho. A partir dessa feliz sugestão, todo o trabalho de pesquisa avançou para a presente hipótese e resultados.
3 Os Sermões foram escritos em alemão. Dessa maneira, poderíamos pensar que teria sido esse o idioma utilizado para a elaboração do anagrama. No anagrama não há, entretanto, nenhuma vogal com trema, símbolo ou a letra eszett,
β, própria do alfabeto alemão. Assim, a correlação entre letras e números teve como base o alfabeto latino.
4 Alexandria não se apresenta no anagrama como coordenada. Ela está relatada enquanto a cidade onde Oriente encontra o Ocidente e de onde vem Basílides, nos Sermões. A partir do texto, inferimos que Alexandria poderia ser a chave do mistério, já que, simbolicamente, representa a união de opostos, o Si-mesmo, a origem e meta da alma (JUNG, 2011q) e, a partir dela, iniciamos nossos cálculos e chegamos também à nossa conclusão, como alfa e ômega, princípio e fim, preexistência (JUNG, 2011e) e finalidade da vida (JUNG, 2012a). Toda esta reflexão está desenvolvida ao longo do artigo.

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