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Psicologia Clínica
versión impresa ISSN 0103-5665versión On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. v.19 n.1 Rio de Janeiro 2007
Seção Livre
O delírio de negação de Cotard a Séglas
The negative delusion from Cotard to Séglas
Olivier DouvilleI; Tradução de Marylink KupferbergII
IPsicanalista; E.P.S de Ville-Evrard; Maître de conférences em psicologia clínica, Université Paris-10 Nanterre; Equipe de pesquisas, "Sciences du vivant, Médecine, Psychanalyse " (Paris 7); Diretor de publicação de Psychologie Clinique
IIDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
Vamos apresentar ao leitor, muito rapidamente, quem foi Séglas, a partir das distintas etapas que permitem destacar o delírio de negação, insistindo nas abordagens clínicas de Séglas e no modo pelo qual este organiza o seu texto, como um jardim à francesa, a fim de pôr em prática a discussão clínica em torno da melancolia delirante. Para encerrar, daremos algumas referências provenientes da clínica psicanalítica, na esperança de que tragam esclarecimento a respeito do significado atual do delírio de negação.
Palavras-chave: corpo, delírio de negação, melancolia, pulsão, psicose
ABSTRACT
We will present the reader, very briefly, who was Séglas, through the different stages that highlight the negative delusion, insisting in Séglas´ clinical approach and the way in which he organizes his text, such as a French garden, in order to clinically discuss delusional melancholy. To conclude, we will provide some references from the psychoanalytic clinic, in the hope that they bring clarification regarding negative delusion's current meaning.
Keywords: body, negative delusion, melancholy, drive, psychosis
INTRODUÇÃO
Durante muito tempo a herança de Cotard e de Séglas foi ignorada. Ela hoje é de domínio público e nada daquilo que conserva da arte da clínica se tornou arcaico.
A redescoberta inaugurada pelo trabalho de H. Ey (1950) teve continuidade graças às contribuições de alguns psicanalistas que jamais desprezaram a ligação da clínica psicanalítica com a psiquiatria clássica. Dessa forma, é através dos trabalhos de Lacan ([1954-1955] 1978; [1955-1956] 1981), de Resnick (1970), de Czermak (1986) e mais tarde de Cacho (1993, 2000) que a condição do corpo real na psicose assume uma atualidade inquietante, que traz consigo uma renovação do olhar antropológico e clínico sobre o corpo do ser falante.
Lembremos, antes de tudo, a descrição nosológica, proposta por Séglas, daquilo que Régis ([1885] 1892) nomeia "síndrome de Cotard". Esta se caracteriza por:
manifestações de ansiedade;
idéias de danação e possessão;
propensão ao suicídio e, mais ainda, a mutilações voluntárias;
analgesia;
idéias hipocondríacas de inexistência e destruição de orifícios orgânicos, de membros;
anulação física e metafísica, expressa por uma vivência tetanisante de imortalidade, e às vezes, também, por meio de temas de não-existência ou de destruição "cadaverizante".
Cotard já havia traçado uma linha que distinguia as idéias de negação do delírio de negação, sem separá-los radicalmente. Nessa ocasião, Falret (1878), que não corroborava as teses de Cotard sobre o caráter ascendente do caminho do delírio, introduziu os critérios diferenciais da articulação e da sistematização próprias ao delírio e opôs ambos os critérios à falta de coordenação e à disfluência das idéias sem delírio. Observações, verdadeiramente espantosas, de pacientes que "se curaram" de um episódio melancólico de longa duração (por vezes se estendendo por três ou quatro anos) interditam semelhante generalização1. É entretanto errôneo sustentar que Cotard tenha pretendido transformar o delírio de negação em uma entidade. É bem mais justo afirmar que, longe de tender a unificar todos os delírios de negação em uma única unidade patológica, Cotard tenha querido especificar uma forma de delírio que Falret, em 1878, julgou "essencial" e à qual Séglas iria conferir um contorno ainda mais preciso. Na seqüência desses trabalhos e na esteira traçada por Falret, restará separar a "loucura das negações" que pode se constituir em verdadeira doença do "delírio de negação", que permanece como um estado de cronicidade, particular a alguns melancólicos, cuja doença se tornou contínua.
Séglas vai retomar, discutir e desenvolver essa diferença, mas também corrigi-la no sentido de uma centralização sobre a loucura melancólica, o que poderia muito rapidamente se generalizar.
A INVENÇÃO DO DELÍRIO DE NEGAÇÃO E SUA LIGAÇÃO COM A DOR MORAL E OS TEMAS DE PERSEGUIÇÃO
Durante a primeira metade do século XIX, a questão da melancolia vai se tornando cada vez mais central em medicina mental. As teorias da doença mental relegam a plano secundário a oposição entre delírio geral e delírio parcial e levam cada vez mais em conta as perturbações do humor. Se, com Esquirol ([1838] 1976), o termo "depressão" designava uma paixão e não um humor o que é sublinhado por Lantéri-Laura (2003) , sob o nome de dor moral, tal perturbação vai se tornar rapidamente um dos pontos de partida da loucura.
A posição da melancolia como um distúrbio secundário a uma alteração do humor é comumente admitida entre os alienistas, pouco depois da segunda metade do século XIX.
Se pelo menos até Séglas era possível tornar equivalentes a depressão, a dor moral e a melancolia sem delírio, a existência da melancolia com delírio, com seu aspecto fixo, monótono e centrífugo, permitiu que se expusesse a redução da melancolia à patologia do humor. Revelava-se, assim, a relação do sujeito com uma alteridade que se apagava progressivamente os negadores negam até mesmo a existência de Deus , na qual o próprio sujeito continuava "a resistir". Uma modalidade de delírio imaginativo permanecia no lugar, traçando um misto mais ou menos durável de temáticas persecutórias e de temáticas depressivas e depreciativas. Ocorreu-nos reexaminar o valor estrutural das descrições de Cotard e Séglas para a partir de então considerar a existência de outras alterações da melancolia além daquelas pelas quais esta última se torna mania. Trata-se então de derrubar a evidência da PMD na qual a melancolia tendeu a se encerrar e reencontrar o sentido do binômio "paranóia-melancolia" fruto de um debate antigo, iniciado no século XIX, no campo da psiquiatria e mais particularmente na França. Esse binômio reúne o pólo melancólico e o pólo perseguido-perseguidor.
De Esquirol a Séglas, passando por Baillarger (1853), a investigação da melancolia "persecutória" sob a perspectiva de uma alteração diferente daquela que desviou a psicose para os tormentos da mania continuou a fornecer um ponto de ancoragem, descentrado em relação à descoberta da bipolaridade dos distúrbios do humor na psicose melancólica, a partir do qual surgiram novas perspectivas para a compreensão psicanalítica do sujeito na melancolia (Czermak, 1986; Lacan, [1954-1955] 1978, [1955-1956] 1981). A junção de perseguição e melancolia constitui inovação própria da psiquiatria. Além dessas elaborações, o trabalho de Cotard, baseado na compreensão dos mecanismos típicos dos discursos melancólicos, destaca uma perspectiva de conjunto, concernente tanto à melancolia quanto ao lugar e ao papel do corpo na psicose.
Cotard, seguindo Falret (1878), inscreve o delírio de perseguição no conjunto da melancolia. Os clínicos, em seu conjunto, demonstram grande prudência quando se trata de traçar uma linha fixa de demarcação entre perseguição e melancolia verdadeira. Temem o erro de diagnóstico, a confusão que pode alterar tanto o tratamento quanto o prognóstico. O lento declínio do modelo da paralisia geral libera o "delírio de grandeza" de seu laço com essa afecção. A hipótese que associa a aparição do delírio de grandeza à paralisia geral será gradualmente reconsiderada, principalmente por Georget (1820). Com maior freqüência é a Morel (1860) que se credita a primeira descrição de uma "passagem" entre sentimento de perseguição e megalomania. Esse psiquiatra foi o primeiro a descrever a transição entre sentimento de perseguição e a megalomania. Em seu Traité des maladies mentales [Tratado de doenças mentais], Morel considera que as idéias de grandeza, assim como a maior parte dos distúrbios delirantes, derivam de sensações hipocondríacas.
É sob a influência de estranhas transformações sofridas pela inteligência e pelos sentimentos do hipocondríaco que se organiza esta aberração singular que faz com que esses infelizes doentes suponham ser criaturas excepcionais, reservadas a destinos sobre-humanos. Essa última concepção é a prova mais evidente da nova loucura que os obseda. Esta loucura, apesar de se destacar pelas concepções delirantes com predomínio de idéias orgulhosas, não deixa de ser a conseqüência do estado neuropata mais conhecido sob a designação de hipocondria (Sauvagnat, 2000: 78).
Mais à frente, o autor ressalta que a sistematização das idéias delirantes conduz a idéias de grandeza, a temáticas de comportamentos megalômanos, nas quais os pacientes exprimem idéias de que grandes destinos os aguardam. Posteriormente essa concepção é retomada e criticada por Falret (1878). O período que leva à transformação das idéias persecutórias em delírio de grandeza passa a ser a quarta fase dos delírios crônicos o período "estereotipado do delírio ambicioso". Contudo, o modelo evolutivo que supõe inelutável progressão de uma fase a outra, da dor moral à hipocondria e em seguida desta última à perseguição que iria terminar em delírios de grandeza permanece um paradigma teórico, cuja verificação concreta continua longe de ser demonstrada. Ulteriormente, Cotard, endossando as vivas restrições expressas por Falret, critica a tese de uma transformação geral e constante do delírio de perseguição em delírio de grandeza e ressalta que quando sobrevém o delírio de grandeza este nunca substitui inteiramente o delírio de perseguição. Quanto ao processo de demência total, presente ao final da vida do delírio, o qual sucederia à cristalização desse delírio em estereótipos, ele próprio também está longe de ser tão total e tão generalizado.
Cotard admite uma possível evolução entre a melancolia ansiosa e a melancolia delirante. Para o neurologista, entre um estado hipocondríaco moral, ou depressão melancólica simples, e os delírios melancólicos que caracterizam as temáticas de ruína, de culpabilidade, de danação, de possessão, e mesmo de negação sistematizada, só existe uma diferença de gradação. Nos delirantes negadores, as simples tendências negativas iniciais tornam-se idéias de negação universais, relacionadas às alterações de personalidade mais graves. A evolução das posições de Cotard explica-se, em parte, pelo fato de lhe ter sido também necessário objetar à lei da transformação delirante, atribuída a Magnan (1883) e à sua escola, para explicar a passagem do delírio de perseguição ao delírio de grandeza dentro do ciclo evolutivo do delírio crônico. Semelhante transformação, suposta e contestada por Cotard, certamente não mais se ajusta à existência de diferentes casos de coexistência, talvez mesmo de alteração na ordem de aparecimento dos delírios. O delírio de grandeza emerge de forma diferente do processo lógico invocado pelos seus interlocutores e pelos defensores do delírio crônico.
Em seu artigo sobre o delírio de negação, Cotard adota um método de comparação entre dois tipos de evolução: evolução dos delírios de negação e evolução de perseguições. Os perseguidos nunca são realmente negadores. E a origem do verdadeiro delírio de negação reside tanto na melancolia com estupor, quanto na melancolia ansiosa. Temos aí dois estados, no fundo análogos; a ansiedade os aproxima e os caracteriza. A evolução difere; os melancólicos do segundo tipo estão mais predispostos a, de tempos em tempos, se dirigir a um pólo persecutório.
Em seus trabalhos, o melancólico se opõe ao perseguido acusador de um modo bastante sistemático e elementar. O debate é centrado no fenômeno da acusação. Ao que acusa o outro opõe-se aquele que acusa a si próprio. Essa dualidade construída por Cotard, contudo, circunscreverá mais os mecanismos e fenômenos do que os sujeitos. Não existe, de ordinário, a possibilidade de se estabelecer o prognóstico de que o melancólico auto-acusador permanecerá sempre instalado nessa posição de endereçamento ao outro; mantém-se a mesma ressalva no que concerne ao perseguido acusador. Há formas mistas e etapas dinâmicas. Os pacientes melancólicos se exprimem sob a forma de ladainhas. Relatar um fragmento de sua história parece sempre um exercício excessivamente anônimo ou por demais perigoso; em contrapartida, descrever a totalidade de seu destino não lhes parece absolutamente complicado. Confrontamo-nos aqui com a dimensão da certeza, de uma certeza antecipada, segundo a qual o destino é escrito sob a forma de condenação sem recurso e de castigo irremediável. Os encontros clínicos, e mais ainda os atendimentos de pacientes melancólicos, revelam-nos uma relação particular com o tempo e a temporalidade. Seja porque o tempo não existe, uma vez que só permanece e triunfa a eternidade aniquiladora de um intervalo de mortes, no seio da qual o sujeito não é nem morto, nem vivo, mas incrivelmente morto-vivo; seja porque o tempo existe como um futuro hermético, que contém em si mesmo a designação do sujeito como culpado, freqüentemente de uma culpabilidade sem limite.
Examinemos essa função que garante a alteridade (e, portanto, a temporalidade) própria às condutas de auto-acusação. Se na melancolia, em razão de suas auto-acusações, o sujeito é irremediavelmente só, único responsável, único culpado, é igualmente verdade que numerosos pacientes melancólicos permanecem instalados em um apelo ao outro, apelo que conserva e congela a auto-acusação. Aprisionada em uma assimetria fundamental entre futuro e previsões, sua temporalidade é a de um tempo imanente, nem mensurável, nem vivido como duração [durée], que termina em uma condenação. Qualquer escuta clínica um pouco mais constante de pacientes melancólicos destaca um paradoxo temporal estrutural, essencial, que arruína qualquer veleidade de antecipação. A disjunção temporal é clara entre as duas vertentes do delírio: a auto-acusação e a negação, delírio de inexistência. Como dar conta hoje em dia dessa relação tão particular com a temporalidade?
Não poderíamos partilhar a opinião, admitida com bastante freqüência, que faz da auto-acusação o auge e o fim da melancolia delirante. O exame clínico da "dor moral" do melancólico nos interdita tal parecer. Se, nessa anestesia que vem a ser uma forma extrema de desarranjo, o tempo do melancólico não mais se encontra soldado ao passado, é porque nenhuma nostalgia vem irrigar com sua força as retóricas de auto-acusação. Quando esses pacientes acentuam sem nenhum pudor essas formas pejorativas de sua presença, e também de sua existência, alcançam uma construção. De um lado, ao não mais se constituírem em um personagem "ideal", ou ao se constituírem, mais exatamente, em um ideal em negativo, destacam-se de qualquer identificação que os aliene de forma aniquiladora no ideal tirânico materno; de outro lado, ao nos transformar em juízes, justiceiros cuja tarefa será de condená-los, estabelecem dessa forma uma alteridade consistente. É possível nomear essa alteridade pela expressão: "um outro da perseguição". Nesse sentido, a auto-acusação, essa modalidade melancólica de bloquear o tempo e de prescrever seu fim, representa uma vitória sobre a melancolia. Ela conjura o aniquilamento do outro. O outro existe, por uma causa e para um objetivo fixos, mas ele consiste. A partir do momento em que um paciente se auto-acusa, não mais se encontra perdido no nada. Em 1897, mesmo ano em que Séglas escreveu o texto aqui apresentado, o excelente clínico Lalane (1897), na sua sólida tese sustentada em Bordeaux, a propósito dos perseguidos melancólicos, dedicou-se a colocar em evidência os benefícios subjetivos fornecidos pelos momentos persecutórios; nós lhe devemos a seguinte expressão, muito justa: "a melancolia faz errar, a perseguição fixa". O que, bem entendido, não significa em absoluto que o estado de perseguição seja tranqüilo ou constitua um ganho assegurado, ainda que a partida seja decidida sob luzes favoráveis. De fato, ela mal se decide. Sabemos que é exatamente no momento em que o melancólico recria o outro que ele também vai, e quase ao mesmo tempo, pensar em livrar este outro, enfim reconstituído, de sua presença embaraçosa e julgada perniciosa por ele próprio. O adágio segundo o qual os melancólicos se suicidam uma vez curados só pode ser compreendido dessa maneira.
Negação e destruição: tal seria o casal patognomônico da melancolia delirante. A clínica incontestavelmente progride e ganha em precisão. A idéia de que as convicções hipocondríacas podiam se situar na raiz dos temas ou dos delírios de perseguição era, como vimos, bastante difundida entre os alienistas. Encontra-se aqui o caráter divergente e centrífugo do delírio melancólico. Em vários de seus escritos, Séglas observa que os doentes que afirmam estarem seus órgãos em via de destruição e de consumição, apodrecidos, manifestam medo de incomodar as pessoas que deles se aproximam, em razão do cheiro que acreditam exalar. Além do mais, principalmente quando sofrem de idéias de possessão, temem pronunciar palavras, realizar atos prejudiciais aos outros; a diferença em relação à simples perseguição consiste no fato de que tais pacientes são bem distintos de outros possuídos que, ao contrário, pensam ser eles próprios objeto da ação nociva de outrem.
Movimento centrífugo do delírio: o que é destacado pela observação, em Séglas, não merece tal destaque apenas em virtude do que descreve a respeito da relação com o outro; o caráter marcante das observações deve-se também ao seu valor semiológico. A ação descritiva dos quadros de indignidade corporal dá lugar a uma clínica da alucinação. Certos melancólicos com alucinações olfativas, explica Séglas, longe de acusarem outras pessoas de lhes enviarem maus cheiros, como é o caso dos perseguidos, acreditam, ao contrário, que esses odores emanam deles mesmos, espalham-se pelo ambiente ao seu redor e podem incomodar as pessoas que deles se aproximam. O comentário prossegue: as alucinações sensórias, quando o diagnóstico dos diferentes sintomas é estabelecido com cuidado, apresentam-se na maioria das vezes como intermitentes, episódicas, pouco acentuadas, secundárias e surgem tanto como forma de manifestação, quanto como sintoma.
Essas alucinações "psíquicas", assim nomeadas por Baillarger, e denominadas por Séglas "alucinações verbais motrizes", não constituem um sintoma constante nem mesmo um signo patognomônico essencial nos melancólicos dos quais nos ocupamos. São freqüentemente elementares, transitórias e tardias. Confirmam as idéias delirantes. Sintonizadas com a ladainha do discurso dos melancólicos, parecem argumentar os temas recorrentes empregados nessas ladainhas. Entretanto, não devemos, sobretudo, subestimar essa pobreza de atividade alucinatória.
Uma vez mais, a clínica será dialética e diferenciada. O pivô da discussão e da demonstração diferencial entre o delírio de grandeza nos perseguidos e o delírio de negação nos melancólicos reside precisamente no exame da diferença entre as alucinações verbais motoras e as alucinações auditivas, cujo andamento nos perseguidos é estudado por Falret (1878). Na fase aguda, estas últimas são palavras codificadas, frases curtas, que evoluem para o monólogo e em seguida para o diálogo. É o terceiro movimento evolutivo dessas alucinações que as distingue mais claramente das alucinações verbais motoras destacadas por Cotard e Séglas. Esse terceiro tempo consiste no fenômeno do eco do pensamento, interpretado com muita freqüência pelo doente como um vôo de pensamento. Muito diferente, segundo Cotard, do que ocorre nas alucinações dos melancólicos; estes, mais do que acusarem o outro de querer roubar seu pensamento, acusam-no de querer roubar seus órgãos. Assim, o relevante é formalizar essa diferença, no que Séglas se mostra empenhado. Com efeito, a evolução das alucinações seria um critério para indicar a passagem das idéias de perseguição para as idéias ambiciosas. E a queixa de roubo dos pensamentos seria então um critério que leva em conta os fatos entre a mania de grandeza própria dos melancólicos e a megalomania delirante. Não podemos esquecer a extrema sutileza, a máxima precisão da clínica das alucinações, desde a segunda parte do século XIX. E, particularmente, devemos abrir espaço às observações que indicam até que ponto os próprios pacientes podem provocar suas alucinações. Mais tarde, em seu 3º Seminário, Lacan ([1955-1956] 1981) acrescentará que o importante no exame clínico de um alucinado não era saber se o paciente acreditava ou não em suas alucinações, mas sim avaliar de que forma este imaginava que tais alucinações se produziam em sua mente. Magnan (1883), entre outros, relata o caso de uma paciente cujas alucinações auditivas de ordem persecutória diminuíram à medida que se desenvolveram alucinações auditivas ambiciosas.
Que dizer ainda das alucinações nos melancólicos: inconstantes e por vezes provocadas, devem ser diferenciadas conforme se revelem auditivas ou visuais. Se estas últimas parecem se limitar a ilustrar as preocupações metafísicas dos negadores que, tendo idéias de inferno, vêem chamas , é igualmente necessário focalizar como Séglas nos convida a fazer o fato de que essas alucinações são comuns, sobretudo, nos estados de estupor. Pouco freqüentes, elas só se apresentam à noite, os personagens são indistintos e desprovidos de relevo, assemelhando-se a sombras. Sombras e chamas, essa paisagem derrisória e fantasmagórica reduz o humano à sua mais frágil plausibilidade: uma identificação que vacila na forma, no contorno humano, consumindo-se até desvanecer, ou deixada à fúria da destruição pelas chamas. Um desvanecimento do primeiro momento do espelho: aquele no qual o sujeito ainda não se identifica com o conteúdo de uma imagem e com a relação das tensões e das significações pulsionais entre as diferentes partes da imagem do corpo, mas se submete ao contorno, à Gestalt. É exatamente da dissolução desta última que se trata, dissolução sem princípio nem fim. É também essa dissolução que irá propor a maioria das questões aos clínicos da melancolia, Cotard e Séglas. As várias observações de "perda da visão mental" têm a vantagem de colocar em destaque a ligação entre o plano da visão e o registro da negação. Entretanto, a perda da visão mental não pode ser compreendida como uma perturbação da percepção, confusão dos sentidos; o que se expressa nesse caso é essencialmente uma severa perturbação da ligação entre percepção e pensamento. Séglas insiste nesse ponto e apresenta mais claramente a distinção entre essa perda e uma espécie de amnésia que incide sobre as imagens visuais. O regime da percepção passa a ser subordinado, mais nitidamente ainda que em Cotard, a um modo discursivo dominado pela negação. Ao modelo patogênico psicomotor é dada a prevalência sobre o modelo herdado da teoria das localizações cerebrais. Aqui Séglas investiga e escolhe dar razão às últimas conclusões apresentadas por Cotard no Congresso Internacional de Medicina Mental, realizado em Agosto de 1889 em Paris. O vivo interesse que este último demonstra pelos distúrbios de linguagem, suas observações extremamente sutis sobre o mutismo, presentes no texto que prefaciamos, só podem confirmar o quanto tal escolha foi bem fundamentada.
Devemos compreender, nesse caso, que não se trata de uma cortina que cai entre o sujeito e o mundo, fazendo-o encerrar-se em uma bruma mais ou menos deletéria. Seria necessário falar aqui dos momentos nos quais o que se desagrega são as cadeias de significantes que constituem materialmente os enunciados do sujeito; é a função de cortina que elas comportam que se encontra desregulada. O mundo não é obscurecido ou se torna indiscernível em razão de um aumento de opacidade imaginária; ao contrário, ele é onipresente, mas dissociado da aparente estabilidade da realidade do narcisismo. É a função fundamental da mistificação que é brutalmente expulsa. Ao mesmo tempo, os suportes materiais do significante se subtraem, e o sujeito só vai poder se referenciar se representado por um enunciado válido, enunciado este que, sob a forma de ameaça ou de insulto, é recriado na perseguição psicótica. Agora nada mais é verdadeiro, pois tudo é real.
Em resumo, retomamos aqui a demonstração indicada por Cotard: os distúrbios iniciais das operações intelectuais consistem em uma incomum e quase exclusiva extensão de seu funcionamento automático, manifestações desagregadoras da personalidade. Notemos de pronto que, desde Freud, o termo personalidade, na qualidade de fator de síntese, está muito próximo da idéia que se pode ter do Eu da primeira tópica. Trata-se de uma nova causa, talvez a mais marcante, da dor moral, constituída pela consciência do desarranjo sobrevindo durante o curso normal do pensamento. A análise das perturbações da energia psíquica motriz na melancolia e nas alucinações, as alucinações "voluntárias" em particular, acarreta a aplicação da origem motriz ao delírio de negação que acomete as formas graves de melancolia. Essas formas se desdobram segundo uma lógica, uma lei reinante que parece ser de uma crueldade inextinguível.
O fato de os psicóticos não se submeterem à lei do desejo não significa que não se submetam a lei alguma. O paranóico refaz incessantemente sua fracassada relação com a Coisa, o melancólico ansioso a presentifica. Ele não se constitui em objeto para o outro, mas pura presença. Eis uma das razões pelas quais o modelo do luto não pode servir de bússola durante muito tempo para situar a posição clínica e psicopatológica da melancolia. A grande diferença entre o luto e a melancolia reside no fato de que, enquanto o luto participa de uma contingência, a melancolia se desdobra em uma estrutura; mas é, sobretudo, a natureza do objeto perdido que separa esses dois estados. Na melancolia, trata-se do objeto na medida em que este se revela capaz de sustentar o Eu como tal. O real inicialmente o real do corpo tem valor de intrusão. O corpo não mais se constitui então em espaço de afirmações irredutíveis, essa perda se apresenta com um forte traço de brutalidade. A irrupção do poder de negação do real sobre as coordenadas narcísicas do sujeito poderia explicar as melancolizações, aquilo que na síndrome de Cotard representa, logicamente, para as psicoses, o signo último, sem se constituir necessariamente no momento final de todos os episódios psicóticos.
Séglas lança um alerta ao clínico: este último, fascinado pela vertente metafísica da negação presente nos delirantes melancólicos, poderia revelar uma tendência a encerrar o sujeito no aspecto implacável de suas palavras. Ora, o que conta e persiste em toda clínica concerne, antes de tudo, ao que resta da resistência do sujeito. Se nos entregamos muito facilmente à vertigem e ao terror diante de um paciente, se o situamos muito precipitadamente como outro radical destinado a errar em um mundo que não apresenta mais o menor vestígio de terreno comum com o nosso mundo existencial, corremos o risco de nos encerrarmos numa clínica contemplativa. É justamente por essa razão que podemos afirmar que a clínica do delírio de negação adquire toda sua atualidade quando nos ensina a respeito dos riscos da lógica da transferência na psicose. Poderíamos apresentar de forma diferente essa proposta e afirmar que a chance de uma clínica do sujeito em psiquiatria situa-se dentro de um movimento que, ao mesmo tempo em que constrói e defende as políticas institucionais, não pode se esquecer da própria história. Esses antigos escritos clínicos também têm seu valor, por terem sido redigidos por médicos que empenharam seu tempo para manter contato com os pacientes e para registrar, com sutileza e estilo, as evoluções, as reversões, os movimentos psíquicos, sempre na tentativa de compreender aquilo que poderia ser modificado. Estamos longe do culto, obediente e cego, da clínica instantânea, colhida na urgência da mais "a-teórica" das formas!
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NOTAS
1 Séglas, anos mais tarde, enviou ao doutor Camuset ([1892] 1997), através de Blois, uma forma resumida dessa observação de 1884. Tratava-se do caso de madame A. M., cuja doença começou, nos primeiros momentos da guerra franco-alemã, por um acesso de melancolia depressiva, semelhante aos episódios patológicos que seu pai conhecera. Durante a leitura de livros de devoção a paciente tem a revelação de que é um monstro e uma alma danada. Recebe revelações que lhe anunciam ser imortal, e não mais se constituir em "carne do mundo". Suas concepções delirantes de danação, imortalidade, bem como a hipocondria melancólica, são sistematizadas. Camuset considerará esse caso como "atípico", em razão de sua cura, e o classificará, de modo bastante expedito, na categoria de "delirantes intelectuais degenerados"; ao passo que Séglas, em sua observação de 1884, não havia recenseado qualquer traço característico de casos de "degenerescência hereditária".
Recebido em 1º de julho de 2007
Aceito para publicação em 4 de setembro de 2007