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Psicologia Clínica

versión impresa ISSN 0103-5665versión On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.28 no.1 Rio de Janeiro  2016

 

CLÍNICA, PSICANÁLISE E CORPO

 

A questão da dificuldade da psicanálise: uma leitura do inconsciente entre negatividade e diferença

 

The issue of the difficulty of psychoanalysis: a reading of the unconscious between negativity and difference

 

La cuestión de la dificultad del psicoanálisis: una lectura del inconsciente entre negatividad y diferencia

 

 

Luiz Paulo Leitão MartinsI

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. Fonte de financiamento: CAPES

 

 


RESUMO

Este artigo realiza uma leitura do ensaio "Uma dificuldade da psicanálise", de Sigmund Freud, a partir de uma reflexão a propósito dos destinos do conceito de inconsciente no pensamento psicanalítico. Utilizando como chave interpretativa o texto de Freud sobre "A negativa", propõem-se duas modalidades de apresentação do inconsciente, uma pela exclusão e outra pela denegação, que definem uma abordagem negativa do conceito em psicanálise. Se se mantêm os registros de sujeito da identidade e de representação no horizonte do pensamento, o inconsciente como diferença não pode, de fato, se positivar. Uma segunda abordagem é empreendida na tentativa de afirmar o inconsciente para além desses registros. Recorre-se às análises desenvolvidas por Judith Butler e Slavoj Žižek da psicanálise de Jacques Lacan, de modo que a negatividade ganha outro estatuto. Se o inconsciente da psicanálise atinge os registros do sujeito e da verdade, um encontro efetivo com a dimensão real do conceito se torna possível. O destino desse encontro, por consequência, é a afirmação da dificuldade no pensamento e a formação de um sujeito da diferença em psicanálise.

Palavras-chave: inconsciente; verdade; pensamento; negatividade; diferença.


ABSTRACT

This article presents an analysis of the essay "A difficulty of psychoanalysis", by Sigmund Freud, based on a consideration about the destinies of the unconscious concept in psychoanalytic thought. With the Freudian text about the "Negation" as an interpretive key, we propose two modalities of the unconscious presentation, one by exclusion and another by denegation, which define a negative approach of this concept in psychoanalysis. If the fields of the subject of identity and of representation are kept on the horizon of thought, the unconscious as difference cannot indeed be promoted. A second approach is undertaken in the attempt to affirm the unconscious beyond those fields. We resort to the analyses developed by Judith Butler and Slavoj Žižek of the psychoanalysis of Jacques Lacan, so that the negativity achieves another status. If the psychoanalysis unconscious reaches the fields of subject and truth, so that an effective encounter with the concept real dimension becomes possible. The destination of this encounter, consequently, is the affirmation of the difficulty in thought and the formation of a subject of difference in psychoanalysis.

Keywords: unconscious; truth; thought; negativity; difference.


RESUMEN

Este artículo presenta una lectura del ensayo "Una dificultad del psicoanálisis", de Sigmund Freud, a partir de una reflexión al respecto de los destinos del concepto del inconsciente en el pensamiento psicoanalítico. Utilizando como clave de interpretación el texto de Freud acerca de "La negación", se proponen dos formas de presentación del inconsciente, una por la exclusión y otra por la negación, que definen un acercamiento negativo del concepto en el psicoanálisis. Si mantenemos los registros del sujeto de la identidad y de la representación en el horizonte del pensamiento, el inconsciente como diferencia no puede, de hecho, ser positivo. Consideramos el análisis desarrollados por Judith Butler y Slavoj Žižek del psicoanálisis de Jacques Lacan, por lo que la negatividad gana otro estatuto. Si el inconsciente del psicoanálisis llega a los registros del sujeto y de la verdad, un encuentro efectivo con la dimensión real del concepto se vuelve posible. El destino de este encuentro, por consecuencia, es la afirmación de la dificultad en el pensamiento y la formación de un sujeto de la diferencia en el psicoanálisis.

Palabras clave: inconsciente; verdad; pensamiento; negatividad; diferencia.


 

 

No ano de 1917, Freud (1917/2010b) escreve um texto breve, intitulado "Uma dificuldade da psicanálise". Aparentemente destinado ao grande público, formado por psicanalistas e por não psicanalistas, já no título é indicada a sua ambiguidade: ora, dizer que existe uma dificuldade da psicanálise é dizer que é possível localizar uma dificuldade entre duas posições distintas para um mesmo problema. Pode ser que a dificuldade seja interior à própria psicanálise enquanto discurso (uma dificuldade que constitui um tipo de obstáculo interno à sua operação teórica e prática, obstáculo talvez que a psicanálise enfrenta ou tem de lidar, e isso toda vez que ela acontece, que ela surge como uma realidade), mas também pode ser que a psicanálise enfrente ou se depare com uma dificuldade não de sua própria operatividade, mas sim de sua relação com outras formas discursivas, com outros enunciados e outros modos de compreensão e de prática do psiquismo (nesse caso, trata-se menos de uma impossibilidade no campo da prática e do saber, mas sim de uma irredutibilidade de sua realidade frente a outras realidades possíveis, formadas em outros lugares e outras posições discursivas). De um modo ou de outro, a ambiguidade do título caracteriza a questão introduzida pelo artigo, e ainda diz que não há apenas uma resposta possível a ela.

Ademais, quando uma resposta é dada, por um interlocutor qualquer, o que entra no debate é indicativo talvez de sua posição em relação à questão. Ora, se a dificuldade é na psicanálise ou fora dela, a única certeza lançada por Freud é que a dificuldade quando surge é da ordem da afetividade. O que significa que ela não é decorrente de uma incapacidade de compreensão do analista, do analisando ou do interlocutor da psicanálise, mas sim de uma posição transferencial da relação. Deve-se tratar de uma dificuldade que surge e a partir da qual o conteúdo transmitido é julgado não por seu conteúdo, propriamente, mas por seu afeto, por sua qualidade afetiva. Trata-se de uma outra concepção para a categoria de juízo, concepção que a psicanálise inaugura e que envolve, para usar os termos de Freud (1917/2010b, p. 241), os sentimentos do indivíduo, a inclinação à crença ou à credibilidade, o despertar do interesse e ainda o olhar simpatizante.

É sob essa marca que o ensaio de Freud é introduzido: ele quer falar da psicanálise, de alguns de seus conceitos, e discorrer de maneira investigativa e hipotética a propósito de alguns dos possíveis motivos para a relação entre o campo da psicanálise e a categoria da dificuldade. O texto divide-se da seguinte forma: (1) apresenta de maneira sistemática o enunciado de algumas das principais descobertas da psicanálise, (2) realiza uma leitura de duas novidades da investigação científica como sendo um afrontamento à categoria de narcisismo da humanidade e (3) localiza a psicanálise na esteira dessas afrontas, como sendo a terceira delas, na medida em que desloca o psiquismo da consciência para a inconsciência e a subjetividade de uma sexualidade moral para uma sexualidade perverso polimorfa. A temática da dificuldade atravessa o corpo do texto desde o momento dois, onde se trata dos avanços do campo científico (particularmente aqueles obtidos com as descobertas de Copérnico no campo da cosmologia e de Charles Darwin no campo da biologia), para chegar ao ponto final, aquele da descoberta da psicanálise, em que a dimensão afetiva dessas descobertas constitui uma verdadeira ferida narcísica no pensamento (Freud, 1917/2010, p. 244-245). Desde o início é a dimensão de descentramento (Birman, 2003, p. 58-74) que constitui o motivo comum dessas experiências: descentramento da Terra em relação ao universo, descentramento do homem em relação ao mundo animal, descentramento do eu em relação ao psiquismo. Não somos senhores de nossa própria casa, diz-nos Freud (1917/2010b, p. 250-251).

É a identidade do sujeito correlata à identidade da Terra e aquela do homem que é colocada em questão por esses descentramentos, de modo que é a dissolução dessas identidades, e isso no que tange ao mundo, ao outro e a si, que essas disciplinas inauguram na história da ciência e do pensamento. O pensamento deve encontrar a diferença de um real que não se deixa apreender por uma representação do mesmo. A inscrição da diferença é o que é capaz de promover a dissolução de toda e qualquer imagem cristalizada do um. Vemos um exemplo disso quando, num ensaio intitulado "O inquietante", Freud (1919/2010c, p. 340-346) discorre sobre algumas experiências no domínio da estética, em que figuras e objetos rementem a uma estranha familiaridade: a familiaridade de um conhecido, mas que, não obstante, surge como inquietação. Esses encontros, com efeito, não remetem aos protocolos já definidos por uma identidade da representação; antes, fazem surgir neles descontinuidades e rupturas; trata-se de um estado de diferenças livres, quando elas não estão mais submissas à forma que lhe davam um eu, quando se desenvolvem numa figura que exclui a coerência do um, fazendo valer a possibilidade mesma de muitos ou ainda de um múltiplo insubordinado (Deleuze, 1968, p. 148-149). Torna-se preciso, portanto, para Freud, pensar como o inconsciente da psicanálise produz essa diferença; torna-se preciso, portanto, pensar de que maneira essa produção da diferença introduz uma nova relação entre os termos da identidade e do pensamento e por que motivo essa introdução é caracterizada por Freud como sendo uma dificuldade.

Uma primeira abordagem dessa questão nos remete a um outro texto escrito por Freud (1925/2007), um pouco mais adiante, chamado "A negativa". É que talvez encontraremos por essa via uma tentativa bastante consistente por parte do autor em elucidar a presença do inconsciente na teoria e na clínica da psicanálise. Se o inconsciente intervém como uma dificuldade pelo signo do não, resta saber como identificá-lo e produzir a partir do não o sim de seu conceito. Após isso, numa segunda abordagem, buscaremos problematizar esse estatuto de negatividade do conceito para pensar como o descentramento desenvolvido na psicanálise deve dar espaço a um outro registro de atividade do inconsciente. Menos como negativo, o inconsciente pode surgir como campo positivo de produção da diferença no pensamento. Em todo caso, trata-se de propor destinos possíveis ao conceito de inconsciente, destinos que tocam a ambiguidade das relações entre psicanálise e história do pensamento, e que podem indicar uma possibilidade de encaminhamento à problemática levantada por Freud em "Uma dificuldade da psicanálise" (1917/2010b).

 

A dificuldade do negativo: expulsar ou denegar

Entre diversas alternativas para pensar a dificuldade do inconsciente, contemplamos na análise do texto de Freud sobre "A negativa" (1925/2007) uma abertura, uma possibilidade. Esse texto começa e termina com exemplos da experiência clínica de Freud: o paciente que diz: "Agora, o sr. deve estar pensando que eu queria dizer algo ofensivo, mas realmente não é essa a minha intenção", e aquele que diz: "O senhor me pergunta quem poderia ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe" (Freud, 1925/2007, p. 147). Diante desses casos e sem qualquer reflexão pormenorizada, Freud propõe a mesma saída, a mesma interpretação: despreza-se a negativa, retém-se o conteúdo. No primeiro caso, o analista conclui: "sim, essa é a sua intenção", e, no segundo: "é a sua mãe" (Freud, 1925/2007, p. 147). Com efeito, não se trata de uma técnica de interpretação que Freud está oferecendo como sendo válida para todo e qualquer contexto. O não de uma análise não corresponde ao não de um enunciado ou de um discurso qualquer, pura e simplesmente. Ora, não se trata de realizar uma psicanálise do enunciado ou do discurso, mas sim de identificar não o inconsciente a partir do não (o que aparentemente uma leitura apressada dos exemplos supracitados pode indicar), mas sim o inverso disso: o não da fala do analisando surge como um destino possível, entre outros, para o inconsciente. De modo que o inconsciente aparecerá como negativo se, e somente se, ele for ou estiver primeiramente sob a ação do que Freud chama de recalque ou repressão (Freud, 1925/2007, p. 147-149). É pela repressão que o inconsciente se torna negativo no pensamento. O exercício ou o trabalho do pensamento em análise consiste em propor a suspensão da repressão e a inversão da forma negativa do inconsciente em sua forma positiva (Freud, 1925/2007, p. 148).

Para realizar esse trabalho, com efeito, Freud propõe uma leitura a respeito do estatuto de negatividade do inconsciente, a saber, de como ele adquire esse modo negativo na atividade do pensar e do dizer. Ora, o negativo pode ser indicativo da presença ou da ausência de determinado objeto a que se faz referência, ou pode indicar certa qualidade relativamente a um objeto, uma coisa ou uma pessoa, qualidade moral, intelectual a que se opõe um polo positivo e um polo negativo. De qualquer modo, é por relacionar o negativo do inconsciente à atividade do juízo que Freud propõe duas modalidades distintas de negação em psicanálise. Para o autor, um juízo pode, por um lado, (1) decidir se um objeto tem ou não certa qualidade na representação: se ele é bom ou é mau, se ele é grande ou é pequeno etc., mas pode, também, por outro lado, (2) afirmar ou negar a existência desse objeto da representação na realidade do mundo, na experiência empírica da vida (Freud, 1925/2007, p. 148). Logo, no primeiro caso, o que está em jogo é a atividade de exercer juízo, a qual atribui predicados a objetos, representações que qualificam as coisas como boas ou más; no segundo, por sua vez, trata-se de um juízo que retorna às coisas mesmas, à sua realidade, para avaliá-las a partir das qualidades de sua representação. Em ambos os casos, é sempre a representação que está em jogo: seja atribuindo-se uma qualidade a uma coisa, seja pensando essa qualidade conforme a sua existência, o ponto de apoio da atividade de juízo é sempre aquele da representação (representação do predicado e existência da representação). De modo que é a representação das coisas que permite o juízo; da realidade à representação, o juízo se exerce no pensamento ora afirmando a positividade da representação, ora negando a sua presença na realidade. O que Freud destaca logo no início do texto é que os destinos do inconsciente e de sua formação no pensamento são marcados fundamentalmente pela categoria de negatividade. Nega-se uma qualidade do objeto, nega-se uma presença da realidade. De uma a outra negação é a verdade do inconsciente que aparece em análise, de modo que resta saber que especificidade relaciona o aparecimento dessa verdade à modalidade em questão da experiência de juízo no pensamento psicanalítico (Safatle, 2006, p. 50).

O primeiro tipo de juízo, segundo Freud (1925/2007, p. 147-148), é formado num momento pré-subjetivo da história. Evidentemente, trata-se de um modelo mitológico de explicação, modelo suposto e especulado por Freud, para o funcionamento de um eu-prazer, regulado pelo autoerotismo, cuja principal função é a busca pelo prazer. É nesse momento que o eu, por assim dizer, escolhe por meio de um ato simbólico de juízo os bons e os maus objetos: aqueles que lhe dão prazer na experiência e aqueles que implicam na dor e no desprazer. Surge, então, a diferença entre eu e outro: os objetos considerados bons são incluídos, introjetados, comidos pelo eu, e os maus, excluídos, expulsos, vomitados pelo eu. De um modo ou de outro, o critério para a definição entre o bom e o mau objeto consiste numa qualidade positiva ou negativa, qualidade determinada pela experiência de satisfação e atribuída ao objeto. É a identidade dessa qualidade que permanece existente para o mundo do eu, de modo que a alteridade surge como índice de ausência no pensamento (Safatle, 2006, p. 51-52). O que está fora é aquilo que da realidade não reproduz a identidade narcísica do prazer, é aquilo que como resto dessa realidade atua como fonte de desprazer, de dor na experiência subjetiva. Distingue-se da realidade um real da diferença: o que se lida na experiência da alteridade diz respeito não à realidade das coisas, uma vez que esta está mesclada e emaranhada por diferentes elementos, objetos de prazer e de desprazer, mas ao real propriamente dito, ao real como sendo aquilo que é resultado de uma expulsão e que, dessa maneira, subsiste como espaço de expressão do que está fora da identidade (Balmès, 1999/2002, p. 68-72). Com efeito, o reencontro com os objetos desse campo, do campo do real, só pode ser traumático para a subjetividade. É no campo desse real que a diferença em relação ao eu se introduz como modo de repetição de um outro (Deleuze, 1968, p. 167). Tais objetos são maus, inquietantes, estranhos; isso porque ameaçam a economia psíquica do princípio do prazer. Conforme Lacan:

Existem momentos de aparição do objeto que nos jogam numa dimensão totalmente outra daquela dada na experiência e que merece ser destacada como primitiva na experiência. Trata-se da dimensão do estranho. Este não será de maneira alguma apreendido, como deixando diante de si o sujeito transparente para seu conhecimento. Diante desse novo, o sujeito literalmente vacila, e tudo é colocado em questão na dita relação primordial do sujeito com todo efeito de conhecimento (Lacan, 1962-1963/2004, p. 73-74).

Assim, podemos sugerir que esse primeiro tipo de negação em psicanálise aponta para um trabalho do real: trabalho que se inscreve na experiência subjetiva como sendo o retorno daquilo que expulso do eu permanece fora do espaço da representação. Para dizer com Lacan (1955-1956, p. 25): "tudo o que é forcluído – verworfen – na ordem simbólica reaparece no real". Essa modalidade de trabalho parece ser descrita de maneira bastante apropriada por Freud (1920/2010d), em "Além do princípio do prazer", quando pôde indicar a presença de uma compulsão a repetição em experiências cujo objetivo não pode ser de modo algum aquele do prazer: a repetição nos sonhos traumáticos, nas neuroses de guerra e em algumas brincadeiras da infância. Se a tendência ao prazer pressupõe a submissão da diferença aos protocolos de identidade do eu, conforme a expulsão do outro de que falávamos, a compulsão a repetição parece indicar a insistência de alguma coisa, um resto, que permanece irredutível a esse fundamento: para além das ligações da representação, um desligar, um destruir, um sem-fundo que emerge, que apaga e que mata (Deleuze, 1967, p. 96-97).

Mas, como diz Freud (1925/2007, p. 148-149), não basta que um objeto seja bom ou mau, é preciso ele tenha existência efetiva na realidade do mundo. O eu não pode permanecer numa posição autoerótica para sempre, ele deve buscar lá no mundo externo o objeto de seu desejo. É essa busca que dá origem ao segundo tipo de atividade de juízo em Freud (1925/2007, p. 148-149), o juízo de existência. O objeto de satisfação deve existir, a representação do bom, a qualidade daquilo que satisfaz deve ser encontrada na realidade empírica, sendo, portanto, preciso, para além de uma razão do entendimento, uma razão prática, ou se se quiser, uma razão a que corresponda uma ação motora. Essa forma judicativa depende, à primeira vista, diretamente da primeira: depende do fato de que já se tenham definidos quais sejam os bons e os maus objetos, aqueles que constituem a identidade do eu e aqueles que formam a sua alteridade (Safatle, 2006, p. 52-53). Contudo, é preciso dizer que, num segundo momento, pode-se perfeitamente compreender o juízo de existência como que agindo de maneira autônoma e independente: se já se está no campo da realidade, onde os objetos com os quais se lida são apenas aqueles que são bons, não é necessário mais atribuir qualquer qualidade a eles. Exerce-se o juízo diretamente sobre a realidade e sobre a sua representação do bem. Conforme Lacan:

Temos aqui a noção de uma profunda subjetivação do mundo exterior – alguma coisa seleciona, peneira de tal modo, que a realidade só é percebida pelo homem, pelo menos em seu estado natural, espontâneo, sob uma forma profundamente escolhida. O homem lida com pedaços escolhidos da realidade (Lacan, 1959-1960/1986, p. 59).

Afirmar ou negar a existência de uma representação corresponde a exercer juízos num campo de realidade já definido por uma exclusão, corresponde a buscar e a lidar com objetos que já estão dentro do princípio do prazer. A questão que surge – e é essa a problemática central da negativa – é que o reencontro com os objetos da representação na realidade, ou antes, a possibilidade de adequação entre um e outro objeto nesse encontro é vivida pelo sujeito como experiência de inadequação (Safatle, 2006, p. 53). Ou seja, é preciso negar esse encontro e dizer: não, essa não é minha intenção; não, ela não é minha mãe; ou ainda, não, eu não pensei em nada disso. De modo que o objeto do desejo, o objeto que a psicanálise identifica na cena do fantasma, o objeto procurado, só pode aparecer no pensamento, no campo da fala e da linguagem, com a condição de que seu conteúdo seja denegado, censurado. O objeto com que se lida em psicanálise é marcado por essa censura fundamental do espaço da consciência, de modo que é apenas a partir da suspensão dessa censura que pode surgir a possibilidade mesma de "aparição do ser sob a forma de não-ser", como concluiu Jean Hyppolite (1954/1966, p. 886).

Logo, a negatividade do inconsciente é a expressão de um inconsciente da representação ou do fantasma. Diferentemente do real, essa realidade do inconsciente já está incluída nas cadeias simbólicas da representação. Não está excluída, expulsa da identidade do eu; antes, encontra-se nela presente sob a forma do negativo (Safatle, 2006, p. 53). Com efeito, é a partir dessa compreensão de inconsciente que a psicanálise de Jacques Lacan pôde se aproximar, sobretudo, nos anos de 1950, da filosofia de Hegel, ou melhor, da recepção de sua filosofia no cenário intelectual francês, como vamos abordar mais adiante. O inconsciente e sua verdade surgiriam como uma função negativa da consciência, de modo que por um sistema dialético de inversões seria possível, enfim, passar do "isso eu não pensei" ao "no fundo, eu sempre soube" (Hyppolite, 1971, p. 214-215, 378). A possibilidade de reconhecimento do inconsciente seria, enfim, alcançada pela suspensão do não do desconhecido, permitindo o advento do que seria essencial à análise: a reconstituição completa da história do sujeito, a reintegração pelo sujeito de sua história (Lacan, 1953-1954, p. 20). O problema é que, pensado por essa via, o inconsciente torna-se reduzido ao registro da representação. Por um mecanismo simbólico no interior do próprio campo representativo a identidade do eu recebe a diferença do inconsciente já mediada pela economia do prazer. Por essa via, a dimensão real do inconsciente não pode definitivamente aparecer, isto é, afirmar-se de maneira positiva e produtiva (Deleuze & Guattari, 1972-1973, p. 34-36); surge apenas sob o modo negativo do fantasma, mediado que é pela identidade de sua representação.

Se retornarmos à questão da "Negativa" perceberemos que tanto pelo juízo de atribuição quanto pelo juízo de existência o inconsciente permanece como uma dificuldade de afirmação. Se o sujeito é uma instância definida pela exclusão do real e se a realidade permanece em atuação nele apenas por uma qualidade representativa, um encontro efetivo e frontal com a diferença não pode, de fato, se dar. O espaço de expressão do inconsciente torna-se definitivamente marcado pela negatividade. Símbolo de uma expulsão originária ou de uma repressão avessa à sua produtividade, o inconsciente é reduzido a um negativo ainda que ele seja, por sua vez, afirmado. Os limites dessa compreensão são conhecidos por Freud: a aceitação intelectual do inconsciente, aceitação de seu conteúdo, não libera o que lhe é essencial, "o que está em jogo é só uma suspensão do recalque, naturalmente ainda não sua plena aceitação" (Freud, 1915/2007, p. 148). A dimensão afetiva permanece como o que escapa aos mecanismos simbólicos da representação; torna-se preciso propor para além do negativo uma outra referência para abordá-la.

Ora, se uma certa leitura de "A negativa"pode privilegiar os destinos do inconsciente a partir da categoria da identidade entre o sujeito e a representação, é preciso pensar um outro destino possível que resgate a dimensão do afeto do inconsciente. Trata-se de promover uma possibilidade de destino para além daquela que entende o conceito como que fadado à negação e à representação. Um real sem expulsão, um inconsciente sem negação: é isso o que queremos pensar, com o objetivo de afirmar na psicanálise a possibilidade efetiva de acontecimentos do inconsciente (Deleuze, 1969, p. 246).

Para tanto, na segunda parte deste texto buscaremos pensar o real da primeira negativa de Freud por uma outra perspectiva. Essa perspectiva será mediada pelo desenvolvimento teórico de Lacan a partir dos anos de 1960, e isso na medida em que sua perspectiva pode ser reenviada a Hegel de uma outra maneira, para além de sua primeira leitura, aquela da inversão do negativo em positivo e do reconhecimento do inconsciente via suspensão. Por um lado, Lacan será visto como anti-hegeliano, seguindo o ponto de vista de Judith Butler, para quem o psicanalista subverte a própria figura de sujeito ao propor a ideia de um sujeito do inconsciente; e por outro, ele será compreendido como um hegeliano sem saber, um pró-hegeliano. Ora, para Slavoj Žižek, é justamente quando Lacan recusa sua aproximação com Hegel que ele se torna mais hegeliano: hegeliano de um Hegel diferente, é verdade, mas hegeliano no sentido de que tanto o sujeito quanto o saber da psicanálise são marcados radicalmente pela categoria da negatividade, o que permitiria toda uma operatividade da verdade que para além da negação é afirmação. Menos como resistência, o inconsciente surge como conceito operatório, conceito capaz de produzir acontecimentos e de modificar os modos de determinação de um pensamento. Por esses dois encaminhamentos, contemplamos uma possibilidade de inclusão do afeto no destino do inconsciente. A dificuldade antes de se constituir como um obstáculo, impedimento, torna-se conceito, operador; aquilo que incluído promove uma outra dimensão de encontro da subjetividade com a experiência do inconsciente: menos como limite e clausura, mais como abertura e liberdade.

 

Anti-hegelianismo e pró-hegelianismo em psicanálise

Com Sujeitos de desejo, Judith Butler (1987) propõe uma história da recepção do pensamento de Hegel no cenário francês do século XX. Tendo como objetivo, em seus próprios termos, a dissolução do hegelianismo, ali onde ele aparece sob as formas mais discretas e disfarçadas, a filósofa apresenta diferentes versões e formas de emergência e reformulação da filosofia de Hegel na história contemporânea da filosofia. Ela percorre a tradição estabelecida por Alexandre Kojève e Jean Hyppolite com uma leitura que privilegia o desejo em sua dimensão histórica e dialética, onde a consciência de si é interpretada a partir de uma fenomenologia de Heidegger e um trabalho do negativo; a leitura desenvolvida por Jean-Paul Sartre relativamente à identidade do sujeito, à necessidade defendida pelo filósofo de se resgatar o ser do desejo, e isso no seio de um projeto de existencialismo ateu; e, por fim, as intervenções anti ou pós-hegelianas enunciadas por Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault, no campo da filosofia, e por Jacques Lacan, na psicanálise. Por uma ou por outra via, o que chama a atenção de Butler nesta última tradição é a demarcação de Hegel como uma espécie de contraponto necessário e fundamental a partir do qual os autores apresentam a novidade de seus projetos individuais. Nesse sentido, a proposição filosófica de Butler de retomar a história do hegelianismo na França inscrever-se-ia na esteira desta última tradição, uma vez que ela mesma buscaria contrapor-se a uma filosofia do sujeito, filosofia que entende o sujeito como uma metafísica da consciência, e à formulação de uma identidade da representação, capaz de, por essa via, formar um sistema (Butler, 1987, p. 230-238). Tais projetos estariam presentes nas filosofias de Kojève e de Hyppolite, com a filosofia das consciências históricas desejantes, e de Jean-Paul Sartre, com o existencialismo fenomenológico.

No que tange à psicanálise, a filósofa demarcará um afastamento progressivo do psicanalista francês, Lacan, em relação a essa tradição que mais o influenciou quando o assunto é Hegel: a da consciência histórica do desejo. Ora, se Kojève e Hyppolite promoveram sobretudo uma aventura histórica da consciência marcada pela negatividade, pela luta do reconhecimento e pela chegada, enfim, do espírito absoluto, Lacan, por sua vez, conduziu a negatividade até a figura do próprio espírito, e isso para dissolvê-lo (Butler, 1987, p. 15). Ou seja, ele conduziu o negativo da dialética, que antes era apenas um momento de apreensão da consciência necessário para a ascensão ao saber, ele conduziu esse negativo ao sujeito do saber. O sujeito que tudo sabe e o saber que fala plenamente da verdade ambos são barrados na psicanálise de Lacan (Butler, 1987, p. 186-204). Vale dizer também que nesse autor se tratou de um outro modo de compreensão do negativo que não aquele idealizado pelo filósofo existencialista, Sartre (1943).

Ora, para o filósofo de O ser e o nada, a psicanálise traria para a subjetividade uma experiência de dupla verdade: a verdade da consciência, a que a consciência tem acesso, e a verdade da inconsciência, a que apenas a inconsciência tem acesso (Sartre, 1943, p. 82-85). Entre elas, com efeito, existiria a censura, a repressão. Para Sartre, contudo, a distinção entre essas duas verdades, a verdade da consciência e a verdade da inconsciência, seria definitivamente um produto do ato da consciência. A separação do eu em relação a isso seria o resultado de uma ação de repressão que teria como contrapartida a suposição de um saber muito bem elaborado em relação tanto ao ato de repressão quanto ao seu conteúdo, o objeto reprimido (Sartre, 1943, p. 85-87). Tudo se passa como se a consciência devesse saber muito bem da verdade que deseja ocultar a fim de antecipá-la em todas as suas medidas. A manutenção de um desconhecido do reprimido consistiria, para o autor, num ato de má-fé da consciência (Sartre, 1943, p. 87-89). Assim, para o autor, o projeto de Freud visaria justamente à possibilidade de através da fala recolher num mesmo a verdade que separa o eu do isso e não em manter sob a forma da inconsciência esse registro primitivo, alvo de um primeiro ato de repressão. Sendo esse registro passível de pleno acesso à consciência, esta última, por sua vez, se torna capaz de operar um cruzamento fundamental para a existência individual entre a experiência da linguagem e a história das negações que constituem o sujeito (Butler, 1987, p. 174).

Ora, ambas essas perspectivas, a de Kojève e Hyppolite e a de Sartre, não correspondem à psicanálise de Freud, pelo menos não tal qual Lacan a entende. O inconsciente da psicanálise de Lacan, conforme a compreensão de Butler (1987, p. 197-198), não é redutível a uma operação da consciência, operação de reversão da censura ou da má-fé em cognição, nem se localiza no meio de um percurso, de um itinerário da consciência, como aquilo a partir do qual se atinge graus e momentos posteriores rumo a um saber ou a um espírito absoluto. O inconsciente da psicanálise deve ser capaz de produzir um sujeito do inconsciente (Butler, 1987, p. 186-187): sujeito definitivamente marcado por uma divisão, por uma ruptura entre os registros da consciência e da inconsciência, o qual na relação que estabelece entre saber e verdade permanece barrado, sempre aquém das possibilidades de fechamento e de conclusão da atividade de significação em relação à verdade (Lacan, 1964/1973, p. 25-29). De modo que o que estaria em jogo em Lacan, segundo essa perspectiva, seria não uma negatividade instrumental que visaria à formação de um sujeito ou de um saber da representação, mas sim uma negatividade motora e produtiva,ela mesma afirmativa de uma outra possibilidade de experiência de subjetivação e de pensamento (Butler, 1987, p. 206-207). Experiência que, distinta daquela da estrutura do negativo e também daquela da má-fé ou da covardia da consciência, convoca o sujeito a advir (Lacan, 1959-1960/1986, p. 15-17).

A partir de uma outra compreensão, evidentemente, mas que conduz a experiência psicanalítica também a uma outra possibilidade de relação com o negativo, Slavoj Žižek (1988/1991) irá notar a presença de um certo Hegel em Lacan, e isso menos nas passagens cujas referências do psicanalista a Hegel são explícitas e mais naquelas em que ele não cita ou mesmo denega as suas relações com o filósofo. Isso significaria, para Žižek, uma outra possibilidade de ler a negatividade de Hegel em Lacan que não se reduz à influência do Hegel de Kojève nem de Hyppolite. Mas que Hegel seria esse? E que Lacan, por fim?

Conforme Žižek (2012/2013, p. 38-40), seria preciso, primeiramente, nesse encontro, distinguir uma especificidade do negativo em Hegel, retomar a filosofia hegeliana por uma determinada via para fazer falar ali uma outra negatividade do pensamento: uma negatividade que não se resume à ascensão de um sujeito a um saber absoluto, nem à resolução do negativo no conceito. É que quando se fala em Hegel no espaço de recepção de sua filosofia na França, aquele a que corresponde o projeto do livro de Butler, imputa-se ao filósofo toda uma leitura histórica da consciência que reduz o negativo a um momento específico da dialética de um saber. A negatividade de Hegel é vista como que incluída em todo um jogo de contradições que antes de determinar a verdade própria à experiência dialética, a verdade do negativo enquanto tal, indica, na realidade, a verdade da relação entre uma coisa e outra (Hallward, 2006, p. 15), entre uma tese e uma antítese, cujo efeito é naturalmente aquele da síntese final no conceito (Lebrun, 1972, p. 357-358). Por essa via, não há verdade do negativo como um processo de autodiferenciação do ser, não há trabalho do negativo que intervém diretamente no devir da dialética e do conceito; antes o negativo é submisso ao ser e ao saber, como que à identidade e à unidade (Safatle, 2008, p. 97-98, 109-110).

Para Žižek (2007), essa perspectiva deixa de lado uma noção bastante cara a Hegel: a noção de que a negatividade se dá no interior da própria coisa. A negatividade da relação entre a consciência de si e os objetos da experiência, a negatividade que se dá na atividade de consciência que funda a distinção entre a certeza sensível e a verdade dos objetos, é a mesma negatividade que formula as condições reais da diferença no ser. É o caráter autorreferencial da negação que permite, como condição de possibilidade, o repetir do negativo no devir da experiência (Žižek, 2013, p. 335). Em outros termos, só há devir em relação ao ser se esse mesmo ser é atravessado de maneira central por uma força interna e explosiva da diferença (Žižek, 2007). Conforme a Fenomenologia:

Se esse negativo aparece primeiro como desigualdade do Eu em relação ao objeto, é do mesmo modo desigualdade da substância consigo mesma. O que parece ocorrer fora dela [...] é o seu próprio agir; e assim ela se mostra ser essencialmente sujeito (Hegel, 1807/2007, p. 47).

Ora, perguntamo-nos: não são esse negativo da relação e esse negativo do ser o movimento mesmo de devir, tal como concebe Hegel? Não é essa presença do negativo na coisa e na relação que ela detém com as outras aquilo que permanece o mesmo na aventura da dialética? Contudo, ainda assim, essa negatividade poderia permanecer pensada como sendo algo da ordem do passado, um resto rememorado dos momentos e das passagens da consciência rumo à sua ascensão no saber absoluto. Não estaria dissolvida essa diferença interna do negativo em sua resolução no momento final da experiência do saber, na formação daquilo que se chama em Hegel de espírito absoluto?

Para que isso não ocorra e a negatividade permaneça até o fim no movimento próprio da dialética, é preciso que exista uma figura irredutível a essa resolução, a que corresponda ela mesma à negatividade do saber e do espírito e não apenas àquela da experiência. É por essa razão que a última figura, em Hegel, o último ponto de determinação do progresso da consciência rumo ao espírito absoluto é a morte (Safatle, 2008, p. 97-99). Como figura central e intransponível para o saber, a morte é essa negatividade absoluta diante da qual a consciência se perde em suas certezas; senhor da dialética, ela surge e subsiste como termo de toda experiência, restando à consciência percorrer o seu caminho, firmemente e sem recuo. A experiência de horror e de angústia diante da destruição e da morte é a forma subjetiva da negatividade, forma que se mantém como contradição dialética, devir do negativo na história mesma de todo o percurso da consciência (Hegel, 1807/2007, p 149). É somente por esse encontro que a verdade surge para a consciência (Hegel, 1830/1988, p. 60-61), sendo capaz de promover uma outra possibilidade de experiência do ser a partir do negativo. O elogio ao negativo de Hegel segue a seguinte estrutura:

A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. […] O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo. […] Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser (Hegel, 1807/2007, p. 44).

Ora, se olharmos para o projeto de Hegel na Fenomenologia como que articulando diferentes formas e expressões da história da consciência rumo a um saber, saber que contém a espessura do encontro entre a dialética da história e a verdade da razão, a negatividade como princípio surge como sendo a condição mesma para a sucessão de tais experiências, e mais, a condição para a constituição de um pensamento da razão histórica. Diante desse trabalho, o saber antes de indicar o sistema de uma resolução do negativo indica na realidade o negativo da verdade (Žižek, 1988/1991, p. 110-112). Se ele é absoluto é porque reconhece a verdade daquilo que é sua condição, condição de progresso da consciência e de desenvolvimento de toda e qualquer dialética. Assim, o negativo que se imputava ao saber da consciência ingênua na certeza sensível, aquele que denunciava a distância entre o saber e a verdade, presumindo um certo segredo da verdade, esse negativo é incluído no modus operandi da própria verdade (Žižek, 1988/1991, p. 113). Em outros termos, trata-se de pensar na negatividade ou no negativo como sendo uma estrutura pertencente à própria verdade. A dimensão negativa da verdade deve incluir a possibilidade ativa de integração do que é outro no conceito (Lebrun, 1972, p. 359-360). É somente dessa maneira que do negativo pode surgir alguma coisa realmente nova no pensamento.

Se a negatividade, numa primeira aproximação, implica a perda do eu e do saber, a dissolução do sujeito e os limites da representação, num segundo momento ela surge como perda da perda, negação da negação (Žižek, 1988/1991, p. 72, 121). Quando deixa de ser a negação de uma coisa, a negação torna-se abertura para um espaço vazio, onde a perda não mais atua. Não se trata da perda de um sujeito, de uma verdade ou de um saber, uma vez que é a própria perda que atua em cada uma dessas coisas. É exatamente nesse lugar de perda, a partir desse lugar fundamental da negatividade, como aposta Žižek (1988/1991, p. 120-123), que alguma coisa de novo pode surgir. A positividade é restaurada; o negativo se torna condição positiva e produtiva no interior do sujeito e do saber, e isso não a partir de sua supressão ou suspensão, mas a partir da possibilidade de afirmar em seu interior a negatividade do que é apenas positivo. O negativo surge não por sua eliminação, mas por um deslocamento; deslocamento que permite com que o velho apareça por uma nova luz, por um devir (Žižek, 2004, p. 12-14).

 

O inconsciente, o negativo e a diferença

O que isso tudo tem a ver com Lacan? Sob que aspecto a reflexão a propósito do negativo em Hegel toca o plano interpretativo que Lacan faz de Freud? Ora, se dividirmos a obra de Lacan nos três períodos mais aceitos de seu itinerário, a saber, o imaginário, o simbólico e o real, temos de considerar que essa divisão não deve ser delimitada com muita rigidez nos termos da cronologia de suas construções conceituais; e isso como se estas últimas fossem autônomas e independentes umas em relação às outras ou mesmo bem definidas. Assim, é possível que se encontre na abordagem do período do imaginário, por exemplo, presenças antecipadas de um pensamento do simbólico ou mesmo do real, assim como, inversamente, nos períodos do simbólico ou do real podemos observar vestígios de um imaginário, tanto faz. De qualquer forma, a escolha que se faz, a divisão que se realiza do percurso intelectual de Lacan segue, em geral, a alguns propósitos bem específicos, de modo que quando Žižek (1988/1991, p. 76-81) escolhe reapresentar esses diferentes períodos num determinado plano teórico e com alguns textos lacanianos correspondentes, devemos respeitar as opções realizadas pelo autor e atentar para o seu objetivo no que tange à construção dos argumentos.

Como efeito, estranhamente vemos Žižek optar pelo texto "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (Lacan, 1953/1966) para falar do primeiro período do pensamento de Lacan, o período do imaginário. É ali que o inconsciente é pensado por Lacan como que constituído por uma história transindividual, uma história de acontecimentos censurados, capítulos lacunares, formados por representações de signos e de imagens diversas (Lacan, 1953/1966, p. 258-259). Essas representações aparecem como sintomas e traumas da vida psíquica, permanecendo incompreensíveis aos processos rememorativos e elaborativos da subjetividade. No contexto clínico, para retomar a verdade dessas histórias, torna-se preciso a passagem de uma fala vazia para uma fala plena: de uma fala formada por significantes sem sentido para uma fala cheia de significação e de representação inconsciente (Lacan, 1953/1966, p. 257). Por essa via, a verdade inconsciente desloca-se da expressão cristalizada e repetitiva do sintoma para surgir como fala, como verbo, no procedimento analítico. O fantasma é revelado e apreendido pelo simbólico do saber, como queria Freud (1914/2010), em "Recordar, repetir e elaborar". Na interpretação de Žižek (1988/1991, p. 78-79), pensando essa teoria em diálogo com Hegel, de um mundo imaginário das lutas e de representações condensadas e deslocadas surge o mundo histórico da palavra, mundo em que a verdade é simbolizada e encarnada na história. Logo, a referência fundamental para a psicanálise de Lacan, segundo essa leitura realizada por Žižek, é a possibilidade de se deslocar de um inconsciente imaginário para um inconsciente simbólico, este como sendo a verdade daquele.

O segundo momento da psicanálise de Lacan, conforme Žižek (1988/1991, p. 77), é complementar ao primeiro: é preciso que a linguagem funcione operativamente como inconsciente, é preciso que os significantes nela encadeados determinem a formação das subjetividades. Não se trata mais de encontrar a verdade apenas em um significado oculto, por trás de uma cadeia vazia de significantes, mas sim de encontrá-la ela mesma no desenrolar da fala. O texto fundamental de Lacan a que corresponde sua análise estrutural da linguagem é seu comentário sobre A carta roubada, de Edgar Allan Poe (Lacan, 1955/1966a). A ordem dos significantes que apresenta consiste numa cadeia de deslocamentos composta pela sincronia da metáfora e pela diacronia da metonímia. Dessa maquinaria a fala passa de um significante a outro e o que produz significação é menos um significante em si e mais o procedimento de automatismo e de sucessão de signos interior à própria linguagem (Žižek, 1988/1991, p. 79-80). O significado é língua e estilo e não palavra ou significante, percorre a linguagem como um todo e por inteira. Doravante o inconsciente de Lacan surge a partir não da revelação de uma verdade oculta a um imaginário, mas do próprio registro do simbólico: é efeito do deslocamento de significantes na cadeia de sua estrutura.

Com efeito, o sujeito que surge dessa cadeia é barrado: não se constitui por um registro de imagens reprimidas, nem por uma articulação entre eu (moi ou a) e outro (a'), mas através de sua alienação fundamental em relação ao simbólico, alienação constitutiva de uma relação que produz o assujeitamento do sujeito (Je) diante da estrutura plena da linguagem do Outro (A) (Žižek, 1988/1991, p. 77-78). É essa fórmula que se encontra descrita sistematicamente no esquema L, de Lacan (1954-1955/1978, p. 134; 1955/1966a, p. 53). Ora, se o Outro é completo e se a verdade do inconsciente se encontra em seu próprio funcionamento, o sujeito, de fato, não participa de sua realização (Lacan, 1954-1955/1978, p 200-201). O saber se torna uma estrutura sem sujeito, uma estrutura plena e independente que prescinde da categoria de subjetividade (Žižek, 1988/1991, p. 77-78).

É por essa via que o filósofo esloveno localiza o impasse da categoria de sujeito em Lacan: se, por um lado, o sujeito do imaginário é construído, conforme o primeiro modelo, a partir de uma estrutura dialética de desconhecimento, capaz de por meio de sua aparição inversa promover o reconhecimento, e se, por outro lado, o sujeito do simbólico, em sua vontade de saber, submete-se à estrutura plena de uma cadeia de significantes sem resto nem defeito, em qualquer um dos casos, ele mesmo permanece ainda impensável positivamente (Žižek, 1988/1991, p. 77-78). No imaginário, é desconhecimento e reconhecimento, pura inversão de contrários, sem positividade; no simbólico, é sujeito barrado, pois o Outro é completo, pleno; ou é estrutura de inversões entre imaginário e simbólico, entre negativo e suspensão do negativo, ou é exclusão do sujeito na soberania do Outro. Pelo negativo ou pela expulsão, para retomar os termos de "A negativa", o sujeito da psicanálise permanece aquele da metafísica do sujeito e/ou da representação absoluta.

É preciso passar para um outro registro do pensamento, é preciso passar para o registro do real. Mas, antes disso, deve-se dizer que esse último não consiste numa síntese dos dois anteriores: não se trata de propor uma síntese que resolva ao final o confronto criado entre a tese do primeiro e a antítese do segundo. Na realidade, a síntese dos dois primeiros já está entre eles: ambos formam um conjunto sintético, uma vez que já são as duas faces de uma mesma moeda (Žižek, 1988/1991, p. 79-80). Seja como palavra plena na assunção do imaginário, seja como puro deslocamento na cadeia de significantes, o inconsciente diz sempre a verdade do Outro. É o Outro que contém a possibilidade de enunciar a palavra plena e o seu deslocamento como acontecimento do inconsciente. Essa perspectiva, nesses termos, pode ser inscrita perfeitamente nas leituras de Hegel promovidas por Kojève e Hyppolite: a luta pelo reconhecimento e a constituição de um espírito absoluto, mediadas ambas pela relação entre a consciência de si, a negatividade e a suspensão do negativo rumo à verdade, são correlatas de uma acepção do inconsciente cuja verdade se realiza no Outro. Com efeito, o sujeito dessa verdade, mesmo sendo barrado, é o sujeito do Outro, o sujeito que encontra sua realização plena no Outro, tal qual o espírito absoluto de Hegel: é porque a verdade pode ser no final recolhida por um saber universal que o sujeito como sujeito do inconsciente torna-se senhor de sua história. Dito isso, perguntamo-nos: como pensar um terceiro Lacan nesse itinerário? E como pensar a relação entre esse Lacan e Hegel, tal qual forjada por Žižek (1988/1991, p. 113-116)?

Ora, o terceiro Lacan é aquele que quer pensar o inconsciente como intensidade, é aquele que retoma o inconsciente de Freud a partir de sua economia para elaborar no seio da psicanálise o que é e permanece avesso aos registros do imaginário e do simbólico (Žižek, 1988/1991, p. 80). Com efeito, esse inconsciente não se encontra nas formações imaginárias recalcadas, nas oposições representativas entre o significado vazio e o significado pleno e nem na maquinaria dos signos de uma cadeia de significantes; mas, como disse Lacan, "tem a ver com o real, com o real do inconsciente, isso se, de fato, o inconsciente é real" (Lacan, 1975-1976, p. 110). Nos registros do imaginário e do simbólico, estaríamos ainda lidando, para dizer nos termos de Freud, em "A negativa", com os objetos já introjetados, aceitos por um primeiro ato de simbolização e de elaboração (Safatle, 2006, p. 50-52); no registro do real, tratar-se-ia de elementos expulsos do eu narcísico, elementos que excluídos permanecem no campo da alteridade: o lado de fora corresponde não a uma simples oposição entre interior e exterior, mas sim a uma posição topológica (Deleuze, 1986/2004, p. 118). O lado de fora corresponderia ao campo das pulsões e aos objetos empíricos a que esse campo se vincula (Žižek, 2012/2013, p. 362): os objetos maus, desprazerosos, angustiantes, inquietantes, segundo Freud, e que retornam na experiência subjetiva como diferença, como morte do eu enquanto identidade e como dissolução da representação enquanto modo de subjetivação (Deleuze, 1968, p. 148-152).

Certamente, é em razão de um juízo de predicação que o eu narcísico assume a si mesmo como identidade, correlata que é da representação do um; o real, por sua vez, surge também dessa assunção, mas é exorcizado como diferença livre, sem modelo, nem representação: estado de pura multiplicidade (Deleuze, 1968, p. 236-238). Quando o real surge, acontece, é a presença efetiva de alguma coisa que está fora que faz face à identidade do eu, na medida em que é constitutiva de uma alteridade. A presença do que é ausente se expressa não como palavra ou como coisa, porque se assim fosse já estaria mediada pela representação e pelo prazer, submissa às determinações do um, mas sim como diferença, como ser que se diz da própria diferença (Deleuze, 1968, p. 52-53). Ora, para Lacan, esse ser revela uma verdade que simplesmente se apresenta e diz: "Eu a verdade falo" (Lacan, 1955/1966b, p. 409); ou também, que diz ser verdade sem garantias (não há Outro do Outro) (Lacan, 1958-1959, p. 308-309); ele se introduz para promover num espaço de identidade, numa imagem do pensamento, a introdução de um outro, de um pensamento sem imagem (Deleuze, 1968, p. 172-173). Esse acontecimento conduz o saber a uma destituição de si, uma vez que a verdade não está nele, antes é ele que é formado e atravessado por ela. A determinação da diferença, seus estados livres e selvagens, é o que promove o encontro do pensamento com o seu limite (Deleuze, 1968, p. 182). De modo que, de uma ponta a outra, é a violência discordante de um inconsciente, que para além de simbólico e imaginário é real, que surge como ser de uma alteridade radical, capaz de por sua imersão produzir não uma zona de obscuridade interdita, mas sim a potência de acontecimentos (Žižek, 2012/2013, p. 408-409).

O sujeito em relação a esse ser nada sabe, nem pode saber. Talvez, inversamente, seja justamente pelo fato de saber que nada sabe que se torna possível um outro sujeito (Žižek, 1988/1991, p. 80-81, p. 126-127). Um sujeito construído não pela constatação do limite, mas a partir dele: no lado de fora. Se o sujeito, como vimos, quando o saber é pleno, absoluto, quando o Outro é completo, não aparece: é ausente, barrado, dessubjetivado, capturado pela estrutura, quando esse saber falta, quando ele mesmo é barrado, alguma coisa de resto, de que não se sabe, permanece. É porque há resto no saber, é porque a verdade do real interrompe a possibilidade de um saber universal que há alguma coisa como um sujeito por aparecer. É por isso que Žižek vai relacionar essa formação do sujeito à conhecida distinção em Lacan (1964/1973, p. 162) entre alvo e meta da pulsão: se a meta é o objeto ao redor do qual circula o movimento da pulsão, o alvo é a continuidade mesma interminável dessa circulação (Žižek, 2012/2013, p. 350). É justamente aí que surge um sujeito, no ir e vir de uma pulsão, no devir de um movimento que não é representação, nem apreensão, mas trabalho, produção e afirmação (Žižek, 1988/1991, p. 122-123).

Ao contrário do que se poderia pensar, para Žižek essa leitura de Lacan é profundamente hegeliana. Quando a negatividade de Hegel atinge o ser e o saber do que é absoluto, a relação que se estabelece entre a consciência e a verdade muda. Não se trata mais de uma consciência que visa à progressão do estado de desconhecimento ao reconhecimento do saber, nem à eliminação do negativo na ascensão ao espírito absoluto, mas sim de uma consciência em Hegel que assume na sua existência a negatividade como verdade (Žižek, 1988/1991, p. 26-28, 69-70, 126-127). No caso de Lacan, o que vemos é a possibilidade de formação de um sujeito como resposta a esse negativo ontológico que se revela como real, o sujeito como resposta ao real, para usar os termos de Žižek (2012/2013, p. 593-595). Por essa via, essa última modalidade de sujeito na psicanálise de Lacan é pensada a partir de uma articulação estreita com a verdade profundamente marcada pela noção de real. É o real como diferença ou como pura negatividade que expressa o avesso de uma metafísica do sujeito e de uma linguagem da representação para produzir efetivamente uma subjetividade do inconsciente em psicanálise (Žižek, 2012/2013, p. 510-511). Nos termos de Lacan:

Ser de não ente, é assim que advém o Eu (Je) como sujeito que se conjuga pela dupla aporia de uma substância verdadeira que se abole por seu saber e de um discurso em que é a morte que sustenta a existência (Lacan, 1960/1966c, p. 802).

 

Considerações finais

Num primeiro momento deste artigo, seguimos uma leitura de "A negativa" de Freud que propõe duas possibilidades de destinação da dificuldade em psicanálise: a primeira a partir da expulsão de um real, em que o sujeito exclui de sua experiência de satisfação um conjunto de elementos que produz dor e desprazer, e a segunda decorrente da denegação da correspondência ou da adequação entre o objeto de desejo da representação e o objeto da realidade. Indicamos que na primeira a estrutura de formação do sujeito é mantida por uma representação da identidade, por um lado, e o real, por outro, é constituído por uma alteridade da representação, reproduzindo as cenas de seu aspecto destrutivo e mortífero. Na segunda, a negação já obedece às coordenadas de prazer da representação: busca-se a adequação entre o fantasma e a realidade e, por intervenção da censura, da repressão, a adequação é negada e invertida sob a forma da inadequação. Por uma via ou por outra, o inconsciente é pensado sempre a partir de um pensamento da identidade. Como pensamento do um, a psicanálise não pode afirmar outra relação com o inconsciente senão pelo negativo da expulsão ou da oposição.

A partir da expulsão, no entanto, desenvolvemos uma outra estratégia de positivação do negativo no interior do conceito. Seguimos, por um lado, a leitura de Judith Butler, com a finalidade de localizar o pensamento de Lacan na história de recepção de Hegel na França. De modo que essa localização nos indicou uma outra apropriação da noção de negativo em Lacan, a que atinge diretamente o sujeito da razão com a introdução da ideia de sujeito do inconsciente e do desejo. Além dessa leitura, retomamos algumas reflexões de Slavoj Žižek no que concerne às relações entre Lacan e Hegel, novamente, para indicar não o oposto de Butler e sua reversão no pró-hegelianismo, mas a continuidade de um ponto de vista, por uma outra via. O anti-hegelianismo de Lacan seguiria por um pró-hegelianismo se esse Hegel fosse conduzido a seu avesso. O resultado disso é, em Žižek, a realização de uma crítica da crítica de Hegel na França, da crítica anti-hegeliana, e a formação de um pensamento da diferença. O negativo imputado ao espírito e ao saber absolutos é capaz de promover uma outra possibilidade de compreensão do negativo em Hegel e do real em Lacan.

Se o inconsciente da psicanálise é uma dificuldade, interna à psicanálise ou constitutiva da relação entre a psicanálise e os outros campos do pensamento, é porque é uma força positiva: a afirmação da dificuldade é forjada pela intensidade de um campo real do inconsciente que é ele mesmo uma multiplicidade. Afirmar a dificuldade em psicanálise é afirmar o destino de um pensamento que assume as condições efetivas de um encontro com o outro; não há espaço para a negatividade do negativo, isso porque o negativo é ele mesmo acontecimento.

 

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Recebido em 05 de fevereiro de 2015
Aceito para publicação em 12 de outubro de 2015

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