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Psicologia Clínica
versión impresa ISSN 0103-5665versión On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.28 no.2 Rio de Janeiro 2016
SEÇÃO TEMÁTICA
A leitura freudiana da política
The Freudian reading of the politics
La lectura freudiana de la política
Joel Birman*
RESUMO
A intenção deste ensaio é a de sublinhar a existência da problemática da política no discurso freudiano, que como uma invariante teórica perpassa esse discurso como um todo. Pretende assim empreender a crítica de um arquivo instituído na tradição psicanalítica pós-freudiana, segundo a qual a problemática da política foi silenciada. Assim, para relançar a relevância dessa problemática no discurso freudiano, necessário foi restaurar no arquivo freudiano outras linhas de força e linhas de fuga para explicitar devidamente o diálogo estabelecido por Freud com a tradição da filosofia política, de forma a evidenciar os registros do laço social, do contrato social e do poder nas suas relações com os registros da pulsão, do inconsciente e da transferência.
Palavras-chave: poder; laço social; pulsão.
ABSTRACT
The aim of this paper is to highlight the existence of political concerns in the Freudian discourse, which as a theoretical invariant pervades this speech as a whole. Thus intends to undertake the review of a file set in post-Freudian psychoanalytic tradition, according to which the issue of policy was silenced. So, to revive the relevance of this problem in the Freudian discourse, was necessary to restore the Freudian file other power lines and drain lines to properly explain the dialogue established by Freud with the tradition of political philosophy, in order to highlight the records of the social bond, the social contract and power in its relations with the drive records, the unconscious and transfer.
Keywords: power; social bond; drive.
RESUMEN
La intención de este trabajo es poner de relieve la existencia de preocupaciones políticas en el discurso freudiano, que como invariante teórico impregna este discurso en su conjunto. De esta manera tiene la intención de llevar a cabo la revisión de un archivo creado en la tradición psicoanalítica post-freudiana, según la cual fue silenciado el tema de la política. Así que, para revivir la relevancia de este problema en el discurso freudiano, era necesario restaurar los archivos freudiana otras líneas de alta tensión y líneas de drenaje para explicar adecuadamente el diálogo establecido por Freud con la tradición de la filosofía política, a fin de destacar los registros del vínculo social, el contrato social y el poder en sus relaciones con los registros de transmisión, el inconsciente y la transferencia.
Palabras clave: poder; vínculo social; la unidad.
I. Interdisciplinaridade
Neste ensaio, pretendo aproveitar a comemoração recente do Centenário de "Totem e tabu", obra de Freud (1913/1975), que foi publicada inicialmente em 1913 como se sabe, para pensar não apenas sobre a hipótese inicial de Freud sobre a origem do laço social pela realização efetiva da morte do pai da horda originária pelos filhos reconhecidos num movimento de revolta contra a onipotência do pai originário (Freud, 1913/1975, Capítulo IV), mas também para poder refletir rigorosamente sobre a problemática da inserção da psicanálise no campo da pesquisa e do diálogo interdisciplinar. Com efeito, se na sua composição teórica e na estruturação de sua escrita Freud lançou mão de múltiplas referências oriundas dos discursos teóricos da sociologia, da antropologia social e da teoria das religiões (Freud, 1913/1975, Capítulo IV), em contrapartida essa obra de Freud teve uma recepção (Jauss, 1978) marcadamente crítica nos campos dessas diferentes disciplinas, desde o momento da sua publicação. Essa obra de Freud foi objeto de múltiplas críticas, como se sabe, principalmente oriundas do discurso da antropologia social. No entanto, é preciso dar o devido destaque de que a produção teórica dessa obra de Freud se inscreveu inequivocamente, desde o início, no campo da interdisciplinaridade, daí decorrendo como necessária a recepção de que ela foi objeto em diferentes disciplinas do campo das ciências humanas.
Além disso, é preciso destacar ainda que se a hipótese central de Freud (1938/1986), enunciada em "Totem e tabu", foi retomada de uma outra maneira na obra intitulada "O homem Moisés e a religião monoteísta" no final de seu percurso teórico, como uma verdade que seria de ordem histórica e não de ordem material (Freud, 1938/1986), não resta qualquer dúvida que o debate da interdisciplinaridade é crucial e que se acentua mais ainda na atualidade pela inscrição da psicanálise na estrutura da Universidade. Com efeito, a psicanálise não pode mais evitar esse debate na contemporaneidade como ela o fez outrora, ao se posicionar face às críticas a ela dirigidas de que seriam todas da ordem da resistência à psicanálise. Essa formulação não se sustenta mais hoje, pois inscrita no campo social da Universidade a psicanálise está submetida necessariamente ao diálogo e ao discurso crítico com as demais disciplinas teóricas, como ocorre aliás com todos os demais discursos teóricos. Enfim, com essa inserção efetiva no campo da Universidade a psicanálise tem que se deslocar decisivamente do registro privado e até mesmo secreto das instituições psicanalíticas para o registro do espaço público.
Daí porque retomar na atualidade a leitura de "Totem e tabu" implica em pensar necessariamente sobre a "Psicanálise e interdisciplinaridade no século XXI". Pretende-se com isso não apenas sublinhar a dimensão interdisciplinar presente na composição teórica dessa obra de Freud, mas também enfatizar a interdisciplinaridade como campo e destino inevitável para a circulação do discurso psicanalítico na contemporaneidade, em decorrência da inscrição desse discurso na estrutura da Universidade. Isso porque se esta se centra cada vez mais no ideário da pesquisa que orienta as suas práticas de ensino, principalmente a investigação interdisciplinar, a psicanálise não pode escapar disso por essa nova inserção institucional. Estaria delineado então, por esse novo viés, o futuro inequívoco da psicanálise no século XXI, destinando-a à interdisciplinaridade.
II. Filosofia política
O enunciado célebre de Freud nessa obra, do assassinato do pai da horda originária pelos filhos conjugados em revolta, foi considerado por Lévi-Strauss (1949) como sendo uma formulação da ordem do mito, na obra intitulada "As estruturas elementares do parentesco". Além disso, Lacan formulou ainda que se esse mito era certamente genial, esse mito era original, pois foi o único forjado no século XX. Contudo, é preciso dizer desde já que neste texto não vou me voltar para a questão do mito em Freud, mesmo que considere que esta seja teoricamente interessante, já que o meu propósito aqui é de outra ordem.
Assim, é preciso enunciar que o meu propósito neste ensaio é o de buscar apreender e de delinear devidamente a interlocução do discurso freudiano com a tradição da filosofia política e do pensamento político de sua época histórica, tanto em "Totem e tabu" quanto em outras obras ditas culturais e sociais, que foram publicadas por Freud ao longo de seu percurso teórico. Dessa maneira, a questão do contrato social e daquilo que lhe é correlato, qual seja, a articulação íntima existente entre os registros do individual e do social, estará assim no centro do desenvolvimento teórico que pretendo problematizar neste ensaio. É a questão do laço social que estará então no centro das proposições que vou apresentar esquematicamente ao longo deste ensaio.
A minha hipótese fundamental nesta incursão teórica é que Freud (1915/1981) enunciou uma primeira formulação sobre essa problemática justamente em "Totem e tabu", mas que ele começou a colocar decididamente em questão essa proposição no ensaio intitulado "Considerações atuais sobre a guerra e a morte", e que ele sistematizou a crítica de sua formulação inicial em 1921, com a publicação do ensaio intitulado "Psicologia das massas e a análise do eu" (Freud, 1921/1981). Isso implica em dizer que com o enunciado decisivo da existência do conceito de pulsão de morte, no ensaio "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1981), que subverteu a sua teoria anterior das pulsões, novos impasses teóricos sobre o laço social e sobre o contrato social foram imantados pelo discurso freudiano, relançando e complexificando assim bastante a sua leitura sobre a estrutura da sociedade e sobre as relações estabelecidas entre o sujeito e os outros.
Por isso mesmo, com esta incursão eminentemente crítica quero eloquentemente destacar como fundamental a presença da problemática da política no discurso freudiano, que foi francamente negligenciada e mesmo esquecida na tradição psicanalítica pós-freudiana, como se a dita problemática fosse não apenas ausente no discurso freudiano, mas também no discurso psicanalítico em geral. Vale dizer, se a psicanálise pretende ter um futuro e um lugar importante no campo da interdisciplinaridade do século que se inicia, necessário é destacar e colocar devidamente em evidência a problemática da política no discurso freudiano, para reinscrever a problemática da política no campo da psicanálise contemporânea.
III. Arquivo
Assim, para situar devidamente a legitimidade teórica da problemática da política no discurso freudiano é necessário empreender alguns comentários preliminares sobre os textos ditos sociais e culturais de Freud, que devem assumir um caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico. Dessa maneira, estes comentários delineiam uma leitura epistemológica da psicanálise, na medida em que a epistemologia desta se transforma de ponta-cabeça com a inclusão ou a exclusão da problemática da política no campo psicanalítico. A minha intenção com isso é a de incidir decisivamente no arquivo instituído oficialmente na psicanálise, para retomar um conceito forjado por Derrida (1995) no ensaio intitulado "Mal de arquivo", para desbloqueá-lo e relançá-lo numa outra direção teórica e ética, destacando a existência nesse arquivo de outras linhas de força e linhas de fuga que foram silenciadas e francamente congeladas pela tradição psicanalítica pós-freudiana.
Nessa perspectiva, é preciso dizer que o dito arquivo foi historicamente instituído por Jones (1970), no terceiro volume de sua célebre biografia de Freud, onde enunciou de maneira peremptória que os ensaios culturais e sociais forjados por Freud foram enunciados apenas quando este tinha já desenvolvido a totalidade da teoria psicanalítica e que aqueles evidenciariam afinal das contas as reflexões sobre a humanidade em geral de um sábio e que era já então um homem com a idade avançada (Jones, 1970).
Assim, pode-se constatar facilmente que essa formulação de Jones não é teoricamente consistente e não se sustenta dos pontos de vista cronológico e empírico. Uma rápida consulta das datas de publicação dos textos ditos sociais e culturais de Freud evidencia isso com clareza. Contudo, é preciso ir além dessa constatação factual, pois essa modalidade de leitura empreendida por Jones foi constitutiva dos arquivos do discurso freudiano e da psicanálise, no qual a problemática da política foi não apenas silenciada, mas também eliminada do campo psicanalítico. Em decorrência disso, o discurso teórico da psicanálise e da experiência analítica, representados aqui pelos registros da pulsão, do inconsciente e da transferência, ficou completamente sem fundamento, pela então eliminação da problemática da política do campo da psicanálise.
É preciso destacar que se essa formulação teórica de Jones teve a intenção de sublinhar que a experiência psicanalítica era o campo empírico por excelência da pesquisa metapsicológica de Freud, por um lado, ela pretendeu afirmar ainda que a dita experiência ficava restrita ao registro do indivíduo e não se expandia para o registro da sociedade, pelo outro. Dessa maneira, Jones relançou nesse contexto as mesmas questões que já lançara outrora no célebre debate que estabeleceu com o antropólogo Malinovski (1963) sobre a universalidade ou não do complexo de Édipo, quando aquele publicou a obra intitulada "A sexualidade e sua repressão nas sociedades primitivas". Naquela ocasião Jones sustentou uma leitura teórica da psicanálise inteiramente centrada no registro do indivíduo, de forma a não considerar nem o registro das relações sociais nem das formas culturais. Enfim, Jones eliminou com isso os campos da sociedade e da cultura do registro do aparelho psíquico, reduzindo assim a psicanálise ao registro do indivíduo, de forma a transformá-la numa mera psicologia.
Foi pela constituição desse arquivo oficial, assim constituído, que o discurso psicanalítico foi reduzido a ser uma simples técnica de tratamento dos indivíduos, na qual o campo dos laços sociais foi efetivamente silenciado. Com isso, a psicanálise foi posteriormente psicologizada e medicalizada, transformada que foi numa técnica terapêutica e até mesmo numa escola psiquiátrica. Enfim, foi pelo viés decisivo das marcas constitutivas desse arquivo oficial que o discurso psicanalítico pós-freudiano foi decididamente normalizado, de forma a perder inapelavelmente as suas especificidades teórica e ética, ao mesmo tempo.
Contudo, é preciso por isso mesmo empreender a desconstrução radical desse arquivo forjado pelo movimento psicanalítico pós-freudiano, retomando devidamente aquilo que estava presente no discurso freudiano, para relançar efetivamente as suas linhas de força e de fuga. Para isso, no entanto, necessário é retomar criticamente os ensaios escritos por Freud sobre os registros da cultura e da sociedade, para colocar em devido destaque a problemática da política no corpo do discurso freudiano.
Assim, Freud enunciou, no ensaio intitulado "Psicologia das massas e análise do eu", que a leitura do aparelho psíquico realizada pela psicanálise tinha como alvo não apenas os processos psíquicos narcísicos, em que o indivíduo estaria voltado apenas para si mesmo no registro psíquico do eu, mas também os processos psíquicos alteritários, em que o sujeito estaria voltado para as relações com demais sujeitos (Freud, 1921/1981). Isso implica em dizer, portanto, que os laços sociais do sujeito com os outros são fundamentais na leitura psicanalítica do aparelho psíquico. Além disso, é preciso dizer ainda que no campo teórico do discurso freudiano não existe qualquer oposição possível entre a psicologia individual e a psicologia coletiva, mesmo que Freud tenha empreendido a crítica contundente do conceito de inconsciente coletivo, que foi forjado por Jung, em "Totem e tabu" (Freud, 1913/1975), pelo viés da proposição da existência do inconsciente estrutural.
Parece-me ainda que quando Lacan enunciou, no longo ensaio intitulado "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", que foi publicado em 1953, que o registro psíquico do inconsciente seria de ordem estritamente transindividual e que seria preciso, além disso, opor radicalmente os registro do sujeito (Je) e do indivíduo (moi) (Lacan, 1953/1966), ele retomou a mesma leitura de Freud acima destacada, para impedir epistemologicamente qualquer redução teórica do discurso da psicanálise ao campo da psicologia, numa mesma operação conceitual que se repetiu inúmeras vezes ao longo de seu percurso teórico, de maneira irrevogável.
IV. Mal-estar
Seria em decorrência desse pressuposto teórico que a problemática do mal-estar na civilização perpassa a totalidade do discurso freudiano, como uma invariante fundamental, de forma que Freud forjou, aliás, duas versões diferentes, mas não necessariamente opostas, do dito mal-estar ao longo de seu percurso teórico.
Assim, se no ensaio publicado em 1908 e intitulado "A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos" (Freud, 1908/1973), Freud enunciou nessa primeira versão sobre o mal-estar que este estaria centrado no recalque das pulsões sexuais, no ensaio intitulado "Mal-estar na civilização", em contrapartida, a nova versão de Freud (1930/1971) sobre a problemática em pauta estaria fundada na economia da pulsão de morte.
Entretanto, é preciso enfatizar ainda que a leitura freudiana da problemática do mal-estar situa este no âmbito histórico da modernidade, como evidencia, aliás, o título do ensaio de 1908 acima citado. Portanto, pela categoria do mal-estar, centrado ora no registro da sexualidade ora no registro da pulsão e da morte, o discurso freudiano se refere sempre à modernidade e jamais a um referencial de ordem trans-histórica e transcultural. Vale dizer, seria nas bordas sempre conflitiva entre os processos psíquicos narcísicos e os processos psíquicos alteritários, na tensão estabelecida da relação do sujeito consigo mesmo e com os outros, que a experiência do mal-estar faz a sua emergência, implicando sempre, pois, a relação do sujeito e do Outro, nos registros social e histórico, ao mesmo tempo. Daí porque se enuncia então a presença ofuscante e eloquente do horizonte da modernidade na leitura freudiano do mal-estar.
Além disso, se a problemática do mal-estar é o solo teórico por excelência que norteia todas as leituras de Freud nos ensaios sobre a cultura e a sociedade, a referência à figura do pai está também sempre presente, mas os contextos de suas problematizações não são sempre as mesmas, mas diversas. Contudo, no que tange a isso são as variações e as diferenças que são efetivamente significativas.
Assim, se no livro "Totem e tabu" (Freud, 1913/1975) o discurso freudiano procurou colocar em destaque a morte do pai originário pelos filhos em rebelião, para pensar a oposição cortante existente entre a sociedade fraternal (moderna) e a sociedade pré-moderna, na obra "Psicologia das massas e análise do Eu" (Freud, 1921/1981) o discurso freudiano procurou enfatizar a regulação realizada pela figura do líder e do discurso políticos na organização da massa, no âmbito do espaço social da modernidade. O que estaria aqui em pauta é a maneira pela qual o político ordena ostensivamente a massa na modernidade, no exercício efetivo da governabilidade, pela regulação do mal-estar.
Contudo, no ensaio intitulado "O futuro de uma ilusão" (Freud, 1920/1973), a questão que foi sublinhada pelo discurso freudiano foi a da religião, pela mediação da qual o mal-estar poderia ser regulado pela ilusão religiosa e pela proteção realizada pelo pai do desamparo dos filhos, que seria a fonte maior do mal-estar engendrado na modernidade. Em contrapartida, no ensaio sobre "O homem Moisés e a religião monoteísta", Freud (1938/1986) sustentou a hipótese radical de que existiria a operação da repetição no âmbito da história e na longa duração temporal, retomando assim os efeitos diferenciais ao longo da história e das formas ocidentais de religiosidade, fundando-se para isso na tese formulada em "Totem e tabu" sobre a morte do pai da horda originária pelos filhos em revolta, motivada pela onipotência daquele.
Entretanto, não se pode jamais perder de vista que a referência fundamental à figura do pai, nos diferentes textos acima referidos e nos seus diversos contextos diferenciais, remete inequivocamente à figura emblemática da autoridade simbólica e à eminente figura do poder no discurso freudiano, ao mesmo tempo. Seria assim por este viés evidente que as problemáticas da política e do laço social fazem então a sua emergência teórica ostensiva no discurso freudiano. É isso que vamos examinar em seguida, de maneira esquemática, mas também sistemática.
V. Interdição de matar, culpa e piedade
O discurso freudiano se confrontou inicial e sistematicamente com estas problemáticas em "Totem e Tabu" (Freud, 1913/1915). Pode-se afirmar assim que nessa obra a hipótese freudiana fundamental, do assassinato do pai da horda originária pelos filhos em revolta (Freud, 1913/1975), esboçou a leitura inicial de Freud sobre a constituição da modernidade política e social no Ocidente. Com efeito, se a figura do pai onipotente representaria a figura da soberania absoluta, os novos laços sociais estabelecidos entre os filhos delineariam, em contrapartida, os alicerces da sociedade moderna centrada nos registros da igualdade, da fraternidade e da liberdade, que foram enunciados pela revolução francesa e que foram inscritos na Declaração dos Direitos do Homem.
Além disso, se enunciou ainda na leitura de Freud a formulação de que estaria interditado desde então aos irmãos a ocupação da anterior posição de soberania absoluta exercida pela figura do pai, sob a ameaça nefasta e a iminência de ter o mesmo destino deste, qual seja, a morte (Freud, 1913/1975). Uma nova ordem política e social foi assim meticulosamente esboçada sob essas coordenadas até então inéditas, que se desdobravam no registro ético que fundaria o sujeito e no registro propriamente da política, que seria assim constitutiva da figura do cidadão.
Portanto, por essa transformação radical a condição anterior do animal de horda foi suspensa e até mesmo abolida, na leitura enunciada por Freud, na constituição da sociedade. A indagação que se impõe aqui é por qual mecanismo e dispositivo essa suspensão e abolição efetivamente se empreenderia. Evidentemente o que se impõe é a ameaça de morte dos indivíduos pela interdição, que se enuncia de maneira eloquente, de qualquer um dos cidadãos que pretenda ocupar a posição da soberania absoluta exercida anteriormente pelo pai originário onipotente. Contudo, um outro dispositivo mais sutil foi então enunciado pelo discurso freudiano para evidenciar o que estaria aqui em questão, qual seja, a culpa (Freud, 1913/1975). Por esse viés, o sujeito seria o alvo fundamental para a incidência do dispositivo da culpa. Este seria certamente, com efeito, um mecanismo de subjetivação (Freud, 1913/1975) bem mais sutil e flexível, pois não implicaria abertamente no uso ostensivo da força sobre os indivíduos e os corpos para empreender assim efetivamente a regulação política dos laços sociais.
No que concerne a isso, é preciso evocar que na leitura realizada por Freud dos processos de subjetivação que ocorreram após o assassinato do pai primordial, os filhos foram tomados ostensivamente pela culpa, de tal maneira que a invenção do totem pela comunidade dos irmãos representaria ao mesmo tempo a evocação da filiação e da culpa pelo ato de assassinato do pai da horda (Foucault, 1976). Portanto, a ritualização regular da festa totêmica, pela comunidade constituída pela aliança estabelecida entre os filhos, condensaria ao mesmo tempo a evocação da filiação, do ato de assassinato e da culpa pelo ato perpetrado pelos filhos face ao pai da horda originária.
Entretanto, é preciso destacar ainda como essa formulação teórica de Freud, sobre a culpa dos irmãos/filhos face ao pai morto, retomava diretamente a tese pela qual Freud pensava nesse contexto teórico e metapsicológico tanto a pulsão de domínio quanto as relações entre o sadismo e o masoquismo, como formulara inicialmente nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1962).
De que maneira o discurso freudiano esboçou, nesse contexto metapsicológico, a transformação da pulsão? Assim, existiria no corpo do infante um movimento inaugural da pulsão de domínio em direção ao outro e ao objeto, que teria como consequência inesperada no corpo do outro a produção da dor. Em decorrência disso, no retorno da força da pulsão do registro do fora para o do dentro a figura do infans se culpabilizaria, transformando então o sadismo em masoquismo (Freud, 1905/1962). Portanto, nesse contexto teórico do discurso freudiano o sadismo seria então primário e o masoquismo sempre secundário. Enfim, a figura do sujeito esboçado inicialmente pela metapsicologia freudiana seria a de um sujeito fundamentalmente masoquista, atravessado que ele seria pela culpa, que o regularia do ponto de vista moral.
Contudo, é preciso reconhecer ainda que esse modelo metapsicológico enunciado por Freud é bastante próximo e até mesmo idêntico ao modelo teórico de Rousseau (1973), tal como este o desenvolveu na sua antropologia filosófica e que enunciou no "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens" (Rousseau, 1973). Nesse contexto teórico decisivo, com efeito, Rousseau enunciou como o dispositivo da piedade seria crucial para suspender o combate potencialmente mortal entre os indivíduos no registro estrito da Natureza, conduzindo-os assim para o estabelecimento da sociedade pela constituição do contrato social. Em decorrência disso, seriam constituídas assim as sociedades civil e política.
Pode-se dizer então que o dispositivo da piedade no discurso da filosofia política de Rousseau se articularia diretamente com o movimento inicial da pulsão de domínio e a produção da culpa pela inversão da força da pulsão no discurso freudiano, na versão inicial deste sobre a constituição da sociedade moderna, na qual a interdição de matar seria um imperativo fundante para a formação dos laços sociais. Enfim, existiria assim uma similaridade estrutural evidente entre os dispositivos da culpa e da piedade, numa conjunção teórica importante entre o discurso metapsicológico de Freud e a antropologia filosófica de Rousseau, em que essa se articula com o seu discurso sobre a filosofia política, de fundamento contratualista.
VI. Interdição e autorização para matar
Contudo, com a eclosão da primeira Guerra Mundial, a hipótese inicial de Freud (1915/1981), enunciada em "Totem e tabu", foi colocada radicalmente em questão, pois a interdição de matar seria pertinente apenas nos tempos de paz e não nos de guerra. Com efeito, se o Estado interditava o assassinato em situação de paz, ele o autorizava, em contrapartida, no contexto da guerra, de maneira ativa e deliberada. No ensaio intitulado "Considerações atuais sobre a guerra e a morte", Freud estava certamente perplexo diante da violência e da disseminação da morte realizadas pelos representantes maiores da civilidade Ocidental, quais sejam, a França, a Inglaterra e a Alemanha. No que concerne a isso, as populações civis não eram poupadas e o discurso da ciência promoveu a invenção de novos instrumentos bélicos de combate e de morte, que eram anteriormente inexistentes. Enfim, entre os registros da paz e da guerra a interdição de matar, formulada como universal em "Totem e tabu", se transformaria inequivocamente em autorização de matar, proclamada e norteada pelo Estado.
Em decorrência desse novo panorama bélico na cena europeia, o discurso freudiano colocou em questão o discurso de evolucionismo, pois passou a afirmar que as sociedades ditas primitivas seriam muito mais evoluídas em termos civilizatórios do que as ditas sociedades civilizadas, pois respeitariam certos códigos éticos que seriam francamente desrespeitados pela barbárie moderna. Com efeito, existiria um respeito pela figura do morto e pela experiência da morte nas sociedades primeiras que não mais existia nas sociedades modernas, não obstante estas serem consideradas sociedades mais civilizadas. Portanto, a barbárie estaria no campo da civilização avançada e não das sociedades primeiras, pela disseminação da violência e da morte que aquela realizava sem qualquer pudor. Enfim, a interdição do matar seria assim sempre relativa e circunstancial nos diferentes tempos de paz e de guerra, variando de acordo com os imperativos maiores da política dos Estados-Nação, que nos tempos de guerra autorizava ostensivamente a morte dos inimigos.
Vale dizer, os dispositivos éticos da culpa (Freud) e da piedade (Rousseau) não poderiam regular o interdito de matar, sendo, pois, dispositivos eminentemente frágeis para se contrapor aos poderosos imperativos de matar, enunciados pelo Estado nos tempos de guerra.
VII. Guerra e política
Parece-me que foi como consequência disso, de a culpabilidade em matar não poder mais regular efetivamente a violência e a crueldade entre os indivíduos e as comunidades, que Freud enunciou inicialmente, em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1981), a hipótese da existência da pulsão de morte e da pulsão de destruição como uma de suas derivações.
Em seguida, no ensaio sobre "A psicologia das massas e a análise do eu" (Freud, 1921/1981), Freud enunciou de maneira radical que o homem seria um animal de horda e não um animal de massa, retomando a metáfora da proximidade dos porcos enunciada por Schopenhauer, de forma que estes se repeliriam se estivessem muito próximos, devendo então estar numa certa distancia entre si para não se combaterem e no limite se matarem. Portanto, o discurso freudiano enunciava que a culpa e a piedade, como reguladores morais que seriam, não poderiam mais suspender e colocar à distância de maneira efetiva a condição fundamental de horda, que caracterizaria decididamente o sujeito humano.
É preciso enunciar então que dessa maneira radical o discurso freudiano empreendia a desconstrução teórica da leitura inicial sobre a organização social e política realizada em "Totem e tabu", pela qual o fantasma da condição da horda do sujeito seria definitivamente afastado e descartado pela culpa e pela interdição de matar. Vale dizer, o discurso freudiano sobre a política se transformou de ponta-cabeça nesse novo contexto teórico e histórico.
Nessa perspectiva, é preciso dizer que em "A psicologia das massas e a análise do eu" (Freud, 1921/1981) o discurso freudiano radicalizou mais ainda a tese enunciada inicialmente no ensaio "Considerações atuais sobre a guerra e a paz" (Freud, 1915/1981). Com efeito, se neste Freud opunha a interdição de matar à autorização de matar nos diferentes contextos da paz e da guerra, que seriam assim bem delimitados no espaço e no tempo, no ensaio "A psicologia das massas e a análise do eu" Freud, em contrapartida, enuncia como os imperativos de matar como o do exercício da violência permeariam o espaço social permanentemente, de forma que não seria mais a oposição entre guerra e paz o que estaria em pauta.
Com efeito, com o enunciado do conceito do narcisismo das pequenas diferenças, o discurso freudiano formulava que a dificuldade maior presente no espaço social da modernidade se centraria no confronto com a diferença, na medida em que indivíduos, segmentos, etnias e classes sociais não suportariam o convívio com tudo aquilo que fosse diferente de si (Freud, 1921/1981). Portanto, a violência e a crueldade se disseminaram na modernidade de maneira vertiginosa e perigosa, pois em diferentes registros dos laços sociais a relação com o Outro seria marcada de forma agonística, na qual a figura do diferente seria transformado não apenas na figura do adversário, mas principalmente na do inimigo.
Foi nesse contexto teórico, nos textos dos anos 20 e 30, que o discurso freudiano fez referências repetidas ao discurso filosófico de Hobbes, na obra intitulada "Leviatã", no qual se enuncia que "o homem seria o lobo do homem" (Hobbes, 1651/1972) de maneira que Freud se afasta decisivamente da formulação teórica de Rousseau. Entretanto, não obstante isso é preciso enunciar ainda que Freud não era certamente um teórico hobbesiano, pois não acreditava efetivamente que a construção de um Estado onipotente, representado em Hobbes pela figura do monstro Leviatã, seria capaz de evidenciar e suspender a condição de horda da condição do sujeito humano.
É preciso evocar ainda que foi precisamente nesse contexto metapsicológico que o discurso freudiano promoveu a inversão entre os registros do sadismo e do masoquismo, oferecendo uma outra compreensão para essas duas noções. Se em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1962) o sadismo era primário e o masoquismo secundário, com o ensaio "O problema econômico do masoquismo" (Freud, 1924/1973) Freud formulou que o masoquismo seria agora primário e o sadismo secundário, sendo essa a decorrência necessária da tese da existência da pulsão de morte e de um além do princípio do prazer (Freud, 1924/1973). Seria por esse viés ainda que o narcisismo das pequenas diferenças tomaria corpo e forma, na medida em que o sadismo e a violência face ao outro seriam formas assumidas pelo sujeito para se proteger da morte e do perigo agonístico representado pelo outro.
Contudo, a tese fundamental enunciada por Freud, em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/1981), de que o homem não seria um animal de massa mas um animal de horda, implica em dizer também que não seria possível domesticar e disciplinar a pulsão, que estaria agora no centro nevrálgico da nova leitura freudiana do mal-estar na civilização. Foi em decorrência disso que, no ensaio de 1937 (1985) intitulado "Análise com fim e análise sem fim", Freud pôde dizer que existiriam três práticas sociais impossíveis, quais sejam, educar, governar e psicanalisar, pois a pulsão não seria disciplinada e não poderia ser domesticada, de forma que seria impossível transformar o homem da condição de animal de horda na condição de animal de massa.
Portanto, pode-se afirmar efetivamente que no final de seu percurso teórico o discurso freudiano enunciou uma outra leitura sobre a política que se opôs radicalmente à tese inicial formulada em "Totem e tabu", na medida em que a problemática da guerra estaria permanentemente presente nas relações entre os homens, tanto nos tempos de paz quanto nos da guerra, permeando assim então os laços sociais estabelecido entre os homens. Enfim, a figura metapsicológica da pulsão, como sendo algo que não seria da ordem do disciplinável e do domesticável, seria então o signo eloquente que garantiria que o homem seria um animal de horda e não um animal de massa.
No que concerne a isso, é preciso dizer ainda que Freud subverteu assim as relações que foram estabelecidas na aurora da modernidade entre os registros da guerra e da política, tal como foi anunciado por Clausewitz (1996) na clássica obra intitulada "Da guerra", já que não seria a guerra que seria a continuação da política em outras bases, mas sim a política que seria a continuação da guerra sob outras formas. Com efeito, a política não elimina a questão da guerra, mas, na verdade, a perpetua.
De uma maneira inesperada a formulação de Freud se encontra com o que foi formulado por Foucault no curso intitulado "Em defesa da sociedade" (Foucault, 1976/1997), no qual Foucault critica em uma só penada as formulações de Hobbes e de Clausewitz, sobre as relações entre a guerra e a política. Enfim, na sua leitura sobre a política Freud se apresenta assim, no final do seu percurso teórico, como um autor de bastante atualidade, como se pode reconhecer na sua leitura sobre essa problemática.
Referências
Clausewitz, C. V. (1996). Da guerra. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
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Recebido em 28 de maio de 2015
Aceito para publicação em: 14 de dezembro de 2015