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Psicologia Clínica
versión impresa ISSN 0103-5665versión On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.34 no.1 Rio de Janeiro ene./abr. 2022
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n01A02
SEÇÃO TEMÁTICA - DINÂMICAS SOCIAIS E PSICOLOGIA: COGNIÇÃO, FAMÍLIA, TRAUMA E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA EM RELACIONAMENTOS E TRATAMENTOS
A empatia e o infamiliar: Lendo Praça Paris como um caso clínico
Empathy and the unfamiliar: Reading Praça Paris as a clinical case
La empatía y lo infamiliar: Leyendo Praça Paris como un caso clínico
Bartholomeu de Aguiar VieiraI; Renato TardivoII
IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Especializado em psicoterapia psicodinâmica dos transtornos da personalidade borderline e em psicologia clínica com crianças. Professor convidado do curso de Pós-graduação em Psicologia Clínica Psicanalítica da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil. email: bartholomeu.vieira@gmail.com
IIDoutor e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio de pós-doutorado em psicologia da saúde (Umesp/CAPES) e em estágio de pós-doutorado em Psicologia Clínica (IPUSP). Professor colaborador do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, SP, Brasil. email: renatotardivo@usp.br
RESUMO
Neste artigo, os autores abordam a questão da empatia na clínica psicanalítica, orientados metodologicamente pelas articulações entre a estética da recepção e a psicanálise, de modo a ler o filme "Praça Paris", de Lucia Murat, como um caso clínico. Nessa obra cinematográfica, que versa sobre uma situação de atendimento psicológico conduzido por uma estagiária numa clínica-escola, a temática das identidades é posta como elemento importante no discurso social, o que, por sua vez, pode levar a usos equivocados da empatia. A partir das considerações de Sándor Ferenczi, articularemos um questionamento do lugar da identificação e discorreremos sobre suas conexões com o infamiliar, como apresentado por Sigmund Freud, com o objetivo de expor o que consideramos ser a postura ferencziana quanto ao uso da empatia na clínica. Sublinharemos como a sustentação do desejo de ser empático durante uma sessão deve estar articulada com a modalidade do juízo do analista: cogitar por que se está fazendo o que se está fazendo e até quando se deve fazê-lo. Como aponta esta leitura do filme, a característica humana de identificação tanto pode aprisionar e confundir, como servir de estranhamento diferenciador, ponto que consideramos relacionado à proposta.
Palavras-chave: empatia; Sándor Ferenczi; clínica psicanalítica; infamiliar.
ABSTRACT
In this article, the authors address the issue of empathy in the psychoanalytic clinic, guided methodologically by the articulations between the aesthetics of reception and psychoanalysis, in order to read the film "Praça Paris", by Lucia Murat, as a clinical case. In this cinematographic work, which deals with a situation of psychological care conducted by an intern at a school clinic, the theme of identities is presented as an important element in social discourse, which in turn, may lead to misuses of empathy. Based on Sándor Ferenczi's considerations, we will articulate a questioning of the place of identification and discuss its connections with the unfamiliar, as presented by Sigmund Freud, with the aim of expressing what we consider to be the Ferenczian posture regarding the use of empathy in the clinic. We will underline how upholding the desire to be empathic during a session must be articulated with the analyst's modality of judgment: considering why one is doing what one is doing and up to what point it should be done. As this reading of the film points out, the human characteristic of identification can both imprison and confuse, as well as serve as a differentiating estrangement, a point that we consider related to the proposal.
Keywords: empathy; Sándor Ferenczi; psychoanalytical clinic; infamiliar.
RESUMEN
En este artículo, los autores abordan la cuestión de la empatía en la clínica psicoanalítica, orientados metodológicamente por las articulaciones entre la estética de la recepción y el psicoanálisis, leyendo la película "Praça Paris", de Lucía Murat, como un caso clínico. En esa obra cinematográfica, que versa sobre una situación de atención psicológica conducida por una pasante en una clínica-escuela, la temática de las identidades es puesta como elemento importante en el discurso social, que, a su vez, puede llevar a usos equivocados de la empatía. A partir de las consideraciones de Sándor Ferenczi, articularemos un cuestionamiento del lugar de la identificación y discutiremos sobre sus conexiones con lo infamiliar, como es presentado por Sigmund Freud, con lo objetivo de exponer lo que consideramos es la postura ferencziana al respecto del uso de la empatía clínica. Subrayaremos como el sustento del deseo de ser empático durante una sesión está articulado con la modalidad del juicio del analista: pensar por qué se está haciendo lo que se está haciendo y hasta cuando se deber hacerlo. Como apunta esta lectura de la película, la característica humana de identificación puede tanto aprisionar y confundir, como servir de extrañamiento diferenciador, punto que consideramos está relacionado con la propuesta.
Palabras clave: empatía; Sándor Ferenczi; clínica psicoanalítica; lo ominoso.
Introdução
De cima do palco, ela diz para a plateia: "Na minha cabeça, era absolutamente impossível fazer análise com uma pessoa que não tivesse sido torturada, porque aquela experiência foi tão limite, tão desesperadora, que era impossível fazer análise com alguém que não soubesse pelo que eu tinha passado. Então, eu achei uma pessoa que também tinha sido torturada, e foi um absoluto desastre, porque houve um processo de contratransferência, um bolo total." Essas foram as palavras de Lucia Murat no Festival do Rio, oportunidade em que comentou sobre o filme "Praça Paris"1.
Tal produção fílmica será alvo de nossa análise nas páginas seguintes, com o objetivo de explorar a questão da empatia na clínica psicanalítica. Articularemos esse elemento, que modifica a conduta clínica clássica, mediante um questionamento do lugar da identificação - com suas certezas patologizantes - e defenderemos a experiência com o infamiliar (Freud, 1919/2019) como decorrência da empatia. Escolhemos o filme e este tema porque a questão das identidades se presentificou como elemento importante no discurso social, confundindo o uso da empatia.
Sobre o método de análise de um filme como caso clínico
Com relação ao método de análise do filme, adotamos, inicialmente, a perspectiva proposta pelo esteta Luigi Pareyson (2001). Segundo ele, o espectador de uma obra de arte, na condição de intérprete, é quem a executa. Dessa perspectiva, ler uma obra significa executá-la, na medida em que executar é fazer com que ela viva sua própria vida. Dizendo de outra forma, trata-se de tirar a obra de sua aparente imobilidade - de seu esquecimento, de sua quietude - para lhe devolver pulsação, vida. Nessa perspectiva, ao executar uma obra, ainda de acordo com Pareyson (2001), nada fazemos senão lhe devolver o que já era dela, já estava nela, à espera de uma leitura, um olhar, uma escuta.
Para a articulação entre a estética da recepção e a psicanálise, buscamos amparo nas formulações de Frayze-Pereira (2010). Ao delinear o campo da Psicologia da Arte entre a Estética e a História da Arte, o autor afirma:
a perspectiva aberta pela Psicologia da Arte é a de evidenciar os princípios de uma conduta própria ao homem, reguladores de uma estrutura ao mesmo tempo material e imaginária, consciente e inconsciente, no quadro e limite de seus poderes e de seus conhecimentos, num certo momento de sua história e em determinado círculo de civilização. É, portanto, uma perspectiva psicossocial. (Frayze-Pereira, 2010, p. 66)
Essa orientação metodológica recusa a aproximação reducionista segundo a qual a obra de arte é utilizada como receptáculo para aplicação e validação de teorias psicológicas, tendo por objeto seja a própria obra, seja o psiquismo do artista. Procura, em outra direção, considerar os aspectos envolvidos - trabalho do artista, obra e trabalho do espectador -, atentando para a comunicação entre eles. Dessa perspectiva, a Psicologia da Arte "requer a presença da psicanálise", uma vez que "a abertura do psicólogo social para a arte dependerá principalmente de sua disposição, como espectador da arte, para introduzir-se nesse campo abissal […] correndo o risco da vertigem e o da perda de pontos fixos". Assim, o espectador, "ao se abrir para o campo das obras", terá de se haver com "questões de ordem transferencial" e, "consequentemente, comprometer-se" (Frayze-Pereira, 2010, p. 66-67).
Em publicações de outros psicanalistas, já foram trabalhados o conceito da rigidez identitária (Santos & Polverel, 2016) e suas consequências iatrogênicas (Ferraz & Moretto, 2016). Sinteticamente, trata-se do problema em torno da suposta garantia antecipatória de segurança de uma análise, por meio dos traços identitários entre um analista e seu paciente. Sobre esse tema, desejamos articular tal problemática com a fala de Murat, para sustentar que a segurança trazida por uma relação de empatia é proveniente da construção do reconhecimento do lugar de fala de um paciente, que não tem qualquer garantia salvaguardada por traços identificatórios. Com esse argumento, queremos dizer que o trabalho do analista não possui, antecipadamente, qualquer certeza de que seu inconsciente não será atravessado (ou mesmo comprometido) por um discurso cultural em torno de sua própria identidade ou no que concerne à identidade alheia.
Tendo em vista que o objetivo do trabalho analítico é uma ação sobre o Inconsciente e que esse ofício é justamente o de desmonte de certezas, ação de desconstrução e reconstrução da identidade, como articular a empatia com tal processo e qual é a diferença entre ela e a identificação? Em miúdos, estamos nos perguntando sobre como garantir a atenção flutuante do analista diante dos discursos sociais que inevitavelmente o atravessam.
Narrando os primeiros momentos do filme "Praça Paris"
A sequência de abertura do filme se dá em Portugal, de frente para o mar. Do outro lado, está a América. Há na trilha sonora um fado, cantado por uma mulher. Uma moça, com roupas de frio, caminha na direção de um precipício que dá para a praia. A câmera se aproxima dela gradualmente até assumir a perspectiva do seu olhar. Ela olha para baixo. Depois, ocorre um novo corte, para uma tomada aberta do oceano. Os créditos com o nome do filme tomam a tela. A canção continua. Agora, a moça está nadando no mar. Um plano fechado capta detalhes do seu corpo. A câmera acompanha o seu retorno à superfície. A moça sorri. No fundo do quadro, vê-se a praia. Ela agora está no Rio de Janeiro. A canção termina.
A seguir, a câmera percorre os corredores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em plano-sequência, o filme mostra algumas pessoas sentadas em situação de espera, até parar diante da porta 1, que está fechada. Na próxima cena, dentro da sala, a moça do início está de frente para outra mulher. Camila e Glória. Terapeuta e paciente. Com sotaque português, Camila pergunta a Glória por que ela procurou as consultas. A paciente responde que foram muitas coisas. Ela fala sobre o pai, que bebia. Diz que ele deu muito trabalho, que era violento. A terapeuta, com expressão de desconforto, faz anotações em um caderno.
No desenrolar de sua fala, relatos escabrosos da realidade da violência que vive invadem Camila, que fica estarrecida pelo que ouve. Um determinado olhar sobre a clínica criticaria o estado de indignação que assombra Camila. Talvez uma postura quase inerte, que não transparecesse emoções, fosse mais apropriada para uma escuta clínica. De forma diversa, apostamos que as reações emocionais da terapeuta fazem diferença e que a dificuldade desse exemplo está no impedimento elaborativo dessas emoções. Para que fique claro, estamos propondo que o bom uso dos sentimentos é completamente diferente de uma atuação apática ou de uma postura sentimentalista pura e simples; nosso ponto de vista salienta que o eixo diferencial está na forma como os afetos do analista (Gondar, 2008) são trabalhados.
As sequências descritas acima correspondem aproximadamente aos três primeiros minutos do filme, mas já apresentam alguns de seus elementos fundamentais. De um lado, a terapeuta branca, europeia, com nível superior; do outro, a paciente negra, moradora de uma favela do Rio de Janeiro, ascensorista da universidade onde Camila a atende. A história de Glória é marcada por abusos, mortes, aprisionamentos. O trauma vivenciado na relação com o pai dá início a uma conjuntura complexa que o filme revela aos poucos. Seu irmão cumpre pena e, da cadeia, controla a vida da comunidade, bem como a vida da própria Glória.
Empatia e identificação
Freud (1912/2010) afirma que a empatia está no começo do tratamento e é aliada ao estabelecimento do vínculo terapêutico chamado de "transferência". Em outra passagem, ele nos diz que qualquer fala do analista de cunho interpretativo, se feita sem tato, acarreta uma psicanálise selvagem; ou seja, é inútil aos propósitos de um tratamento (Freud, 1910/2013), posto que é insensível, fria, intelectualizada e ignorante do aspecto transferencial.
A opinião de Freud sobre o tato merece considerações. Entendida como sinônimo da faculdade da empatia, caracteriza-se como um dom inato (Freud, 1925/2011) que aponta os limites da capacidade de analisar praticada por um psicanalista; ou seja, uma divisa capaz de ampliação a partir da experiência de uma análise. O paradoxo inerente a essa visão, que poderia ser confundido com falta de coerência, na verdade, remete ao profícuo diálogo entre o criador da psicanálise e Sándor Ferenczi, vivaz defensor daquilo que chama de "segunda regra fundamental" (Ferenczi, 1928/2010). Nessa proposta, o avanço de uma análise está articulado com a "equação pessoal do analista", que, em nome da higiene mental - isto é, de sua saúde psíquica -, precisa desenvolver um treinamento de suas capacidades sensíveis por meio da investigação de seu mundo mental pessoal, durante uma situação na qual ele mesmo é um paciente em análise. Posto de outro modo, estamos acrescentando que é um efeito específico da análise o aprimoramento da sensibilidade do paciente.
No que concerne à figura da terapeuta, Camila é uma personagem marcada por mistérios. Há em seu apartamento um retrato da avó na Praça Paris. Em uma das cenas do filme, ela olha com ressentimento para a foto e diz que o Brasil é o culpado por sua morte. A praça em questão se localiza no Rio de Janeiro, no bairro da Glória (sugestivamente, o nome da paciente), e foi inaugurada em 1929. No início do filme, levando a foto da avó tirada ali, Camila vai à praça com o namorado, que é fotógrafo, e posa para ele a fim de reproduzir a imagem.
Em determinado momento da trama, Glória é torturada por policiais para revelar informações sobre o esquema que mantém o irmão comandando a comunidade de dentro da prisão, algo de que Camila ainda nada sabe. Quando Glória chega com o rosto marcado pelas agressões e desvela o ocorrido, Camila se indigna e, após servir um copo d'água para a paciente, insiste em que ela faça uma denúncia e, indo além, toma partido da situação de um ponto de vista curioso: diz que a universidade poderia intervir e ajudá-la. Vemos aqui uma sequência interessante para encaminhar a dificuldade de circulação de afetos entre elas, em que Camila se vê tomada por ímpetos de ação onipotentes - e consequentemente impotentes - que ultrapassam as fronteiras de seu ofício. Não se trata de questionar uma medida protetiva e de acolhimento praticada por analistas, e sim de apontar como uma prática de cuidado pode ser ação de contratransferências não elaboradas como efeitos da dinâmica da dupla por ocasião da falha do analista em simbolizar e recuperar as partes perdidas traumáticas de determinada comunicação na relação terapêutica. Diante de uma situação clínica como a da cena, a sequência de eventos deveria evitar a paralisação da capacidade de internalização da experiência, responsável por gerar o arrefecimento da vitalidade e o bloqueio no acesso a dimensões da realidade.
Sobre o uso dos afetos, salientamos que a postura de Freud formaliza um dos possíveis pilares na escolha de conduta de uma análise. Ele explicitamente recomenda o uso da abstinência em um contexto de neutralidade (Freud, 1919/2017), dois articuladores do enquadre que podem ser resumidos como um "não entrar no jogo do paciente", uma evitação de captura que a transferência e suas inevitáveis armadilhas convocam. Essa é uma medida geral e importante para os casos em que uma análise segue os moldes da matriz clássica (Figueiredo & Coelho Jr., 2018). Tal modalidade indica que um dos trabalhos do analista é frustrar ganhos secundários do paciente capazes de beneficiar, ilegitimamente, o escoamento da angústia; ou seja, para que haja associação livre, é importante sustentar um certo tensionamento. Por sua vez, no que se refere às interpretações, deve-se, igualmente, evitar pecar pelo excesso de frieza, ou pior, por proximidade indevida, pois ambos distensionam o processo de análise. No contexto deste artigo, não entraremos em detalhes quanto à óbvia impossibilidade de universalização desse modelo para todo e qualquer tipo de paciente; contudo, por não acharmos adequado ignorar a oportunidade de fala acerca disso, fazemos a ressalva de que as modificações técnicas de Ferenczi se destinam, justamente, a tornar possível o acolhimento de pacientes que não estão no espectro daqueles usualmente abordados por Freud - fóbicos, obsessivos, histéricos - e abranger quadros mais amplos de sofrimento psíquico.
Desejamos ressaltar, relativamente à conduta, dois pontos. Primeiro, que o modelo clássico se fundamentou no abandono da teoria do trauma, escolhendo ignorar a especificidade que esse elemento produz; ou seja, Freud fez seu projeto de enquadre levando em consideração um tipo de sofrimento psíquico específico e um tipo de funcionamento mental. A outra consideração, mais voltada à autocrítica, toca às consequências da rigidez dessa dimensão. Presos a uma espécie de austeridade diante dos afetos, corremos o risco de nos tornarmos apáticos ou, pior, de sermos hipócritas com nossos pacientes, por fingirmos que aquilo que nós mesmos provocamos com o dispositivo clínico que oferecemos em nada nos diz respeito.
A oferta de psicoterapia feita por Camila conjuga a dimensão de uma dinâmica de cuidado, que, por sua vez, é considerada ingênua por Glória, talvez por fazer uso de uma série de ideias preconcebidas quanto a suas vivências e modos de existir. Diante dessa forma velada de silenciamento, Glória resiste: diz que sonhou com Camila, ou melhor, que sonhou que era a terapeuta. A câmera, em plano fechado, se desloca lateralmente, de modo a captar, ao longo da conversa, ora o rosto de uma, ora o da outra. Camila pergunta como foi o sonho. Glória responde que falava com o sotaque dela (Camila fica um pouco sem graça) e que "era rica e bonitinha, como se a gente tivesse… tipo trocado de lugar, sabe? Eu aí, você aqui. Mas você não ia querer ter a minha vida, ia?". Glória ri com sarcasmo. Evasiva, Camila diz: "É difícil porque… nós, de fato… Nós não podemos escolher ter a vida dos outros". Glória continua: "E eu, como a doutora, eu me enxergava igual um bicho de zoológico". Camila pergunta se é assim mesmo. Glória responde que "bichos, somos todos" e, triunfante, pergunta retoricamente se a terapeuta ainda acha que ela deveria denunciar a agressão.
Da abundância de conteúdos representacionais dessa cena, decidimos salientar a temática da empatia, pois, segundo nossa perspectiva, que acompanha a entrevista dada pela diretora no Festival do Rio, a expectativa de falar para alguém que sabe o que passamos é ponto nodal, seja do ponto de vista do roteiro ou da construção das imagens. Alguns exemplos: Glória não vai à sessão seguinte, e Camila se senta no lugar da paciente. Glória segue faltando, e, em um dos encontros no elevador da universidade, Camila pede que ela retome os atendimentos.
Noutra situação, Camila fica repetindo em sua mente a fala da supervisora de que "a empatia não é peninha do paciente". E, finalmente, o que dispara a interrupção do processo, dessa vez por parte da terapeuta: "Parece que você sente o que eu sinto", Glória lhe diz. Na sessão anterior, Glória esquece o celular na sala de atendimento, e Camila vasculha as fotos e vídeos, repletos de cenas de violência. A essa altura, Camila já sabe da existência do irmão de Glória, e a tomada de contato, por parte da terapeuta, com o histórico de violência de sua vida, incluindo o fato de que Glória teria matado o pai abusador, paralisa Camila.
A elasticidade da técnica, proposta por Ferenczi (1928/2010), é o elemento que se incorpora à equação pessoal do analista a partir de sua análise e que o torna capaz de tolerar os conteúdos psíquicos do paciente sem opor resistência, mas também sem sair do seu lugar. Trata-se mesmo de fazer as fronteiras do seu eu serem mais porosas e vacilantes (Figueiredo, 2003). Assim, se Freud se mantém desconfiado do que poderia ser feito em nome da empatia, tal fato não passa despercebido por Ferenczi, que, dentre outras modificações em relação à técnica psicanalítica, procura, em determinado momento de sua obra, formalizar o modo como devemos usá-la.
É importante ressaltar que nunca se tratou de refutar o modo de trabalhar proposto por Freud, e sim de afinar os meios terapêuticos mediante o desenvolvimento de uma teoria sobre a ética própria à Psicanálise. É com essa preocupação que Ferenczi retoma a indicação freudiana acerca da empatia no começo do tratamento, para desenvolver a forma como devemos, no exercício terapêutico, ser psicanaliticamente empáticos. Para isso, dirá:
Se, com a ajuda do nosso saber, inferido da dissecação de numerosos psiquismos humanos, mas sobretudo da dissecação de nosso próprio eu, conseguirmos tornar presentes as associações possíveis ou prováveis do paciente, que ele ainda não percebe, poderemos - não tendo como ele, de lutar com resistências - adivinhar não só seus pensamentos retidos, mas também as tendências que lhe são inconscientes. Permanecendo ao mesmo tempo e a todo momento atentos à força da resistência, não nos será difícil decidir sobre a oportunidade de uma comunicação e a forma de que deve revestir-se. Esse sentimento nos impedirá de estimular a resistência do paciente, de maneira inútil ou intempestiva. Por certo não é dado à psicanálise poupar o paciente de todo o sofrimento; com efeito, aprender a suportar um sofrimento constitui um dos resultados principais da psicanálise. Entretanto, uma pressão a esse respeito, se for desprovida de tato, fornecerá apenas ao paciente a oportunidade, ardentemente desejada pelo inconsciente, de subtrair-se à nossa influência. (Ferenczi, 1928/2010, p. 31, grifos pessoais)2
Propomos então que existe uma dimensão da empatia que entende a radicalidade da diferença na experiência com o outro, e não como outra versão, que se confunde quanto a esse assunto - decorrente de um entendimento errôneo sobre a frieza e o uso dos sentimentos - e que é exemplificado pela postura de Camila ao longo do tratamento que conduz. Isso fica claro na proposta de Ferenczi com seu texto Confusão de língua entre os adultos e a criança (1933/2011), no qual o autor diferencia a questão da identificação e da similaridade daquela da diferenciação, na postura empática do analista. Trata-se de observar como, muitas vezes, os pacientes se identificam com "os desejos, as tendências os humores, as simpatias e antipatias" (p. 113) dos analistas para evitar acusá-lo de erros.
Segundo nosso argumento, é justamente porque o analista sabe que não é como a outra pessoa que ele pode observar coisas sobre ela, coisas invisíveis para o paciente, já que ele está sob o efeito das resistências. Essa é a dimensão do infamiliar do paciente para o próprio paciente, pois apresenta para ele o contato afetivo com camadas que ele não consegue perceber no momento presente, mas que podem ser captadas pelo analista e trazidas para o campo de contato, como visto no exemplo anterior, que remete o leitor à curiosa categoria da "adivinhação".
O tipo de prática clínica que estamos sugerindo se volta ao estranhamento (aqui chamado por nós de "infamiliar") que decorre da empatia, e não da sensação de plena certeza, convicção e de conhecimento sobre o outro. Em seu bojo, há um questionamento da interpretação como uma atribuição de sentido, dando ênfase, em seu lugar, à capacidade do analista de se abrir aos não-sentidos e tolerar uma experiência que acolhe a radical diferença. Apostamos que é justamente no contato com o infamiliar que se pode desprender modos carregados de não-sentidos, possibilidades de criação diante da repetição compulsiva e mortífera e da sustentação do inesperado, que, carregados de descentramento, levam um sujeito ao "novo começo" (Balint, 1993).
Quando Camila fica estarrecida e paralisada ao ouvir os relatos de violência doméstica narrados por Glória em sua infância, a falta de reação emocional nessa situação demonstra o impacto traumático na terapeuta. Nesse momento do filme, vemos como a falta da capacidade de Camila de sentir junto contribui para a criação do que depois será vivido com persecutoriedade paranoide. Devemos diferenciar daí o que seria uma solução igualmente problemática: a falsa empatia promete uma garantia ilusória de compreensão por vias identificatórias. Essa seria a falácia da capacidade de entender uma pessoa porque a primeira acha que sabe como a outra se sente, porque supõe que já viveu situações semelhantes. Se desejarmos trabalhar com a noção de empatia, não poderemos correr o risco de silenciar a experiência singular de um sujeito com os estados emocionais sentidos pelo analista, isto é, não podemos tomar a vida ou a imagem do analista como um espelho para o paciente. Isso seria o mesmo que supor que somente um analista negro é capaz de atender negros, ou que ser homossexual é condição essencial para atender homossexuais, o que configuraria um perigoso eixo narcísico no tratamento. Deve-se deixar claro que não estamos com esse argumento entrando no mérito da identificação maior - inerente e indiscutível - entre pessoas de um mesmo grupo social. Nosso compromisso é apenas com o tema psicanalítico, para afirmar que justamente essa similaridade de vivências não deve influenciar, positiva ou negativamente, o nível de empatia entre paciente e terapeuta.
A respeito da empatia, Ferenczi (1930/2011) aponta que deve ser criada uma atmosfera amical e benevolente. Isso implica o tempero dos afetos de modo que as atitudes opostas de relaxamento e tensão se conjuguem; trata-se de sustentar a exigência de "total sinceridade" e não de um amor fingido (p. 69), tendo em vista a tensão emocional que será criada com esse pedido silencioso. Por sua vez, tal demanda só poderá ser sustentada se, de fato, for criada uma postura que contemple a problemática da identificação versus diferenciação no campo analítico.
Novamente remetidos à questão dos analistas safe, nossa discordância quanto a essa prática vem do argumento de que tal modo serve aos propósitos de aplainar e simplificar a subjetividade, além de fazer apenas metade da tarefa proposta por Ferenczi como ação da empatia na clínica, faltando o momento do afastamento que antecede a boa interpretação. O problemático dessa lógica da semelhança pela identidade está no fato de que algo fundamental da experiência humana é silenciado; isto é, a diferença ou o não saber sobre o outro, o singular, o subjetivo da experiência emocional de cada um. Aquilo que toca, propriamente, ao infamiliar.
O infamiliar
No ensaio "O infamiliar"3, Freud (1919/2019) se debruça sobre aspectos da relação entre Psicanálise e arte, priorizando uma dimensão propriamente estética - "as qualidades do nosso sentir" (p. 29). Em direção contrária às aproximações até então hegemônicas entre estética e teoria do belo, ele investiga as motivações para que uma obra provoque a impressão de infamiliar e que, por sua vez, se manifeste na consciência como aterrorizante. A partir de um estudo da palavra "Unheimliche" em diversas línguas e da consideração para as circunstâncias que despertam em nós o sentimento do infamiliar, Freud afirma que "o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo" (p. 33). Esse elemento fascina e afasta o sujeito, demonstrando a existência de um núcleo sensível a essa esfera dentro de cada indivíduo. A capacidade de aterrorizar em simultaneidade com o fascínio está intimamente relacionada ao processo de defesa envolvido no ato em que tal particularidade se dá, justamente no ponto de cruzamento entre o infamiliar e o familiar.
Na situação do filme, Camila se vê tanto impelida a ajudar Glória, pois enxerga toda a sua vulnerabilidade social e se sensibiliza com isso, como é tomada pelo terror ao ver que a paciente guarda vídeos de tortura em seu celular. Parece ser impossível comportar em sua própria mente uma representação integrada de quem é Glória sem que ela produza experiências de persecutoriedade em Camila. Essa conjugação nos faz lembrar da problematização de Freud quanto ao infamiliar e o familiar, quando o autor recusa a mera oposição entre os termos. Em alguns casos citados por Freud, o significado de "familiar" coincide com o seu oposto. A essa constatação, o psicanalista recorre à observação de Schelling, segundo o qual "infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona" (p. 45).
Ao longo das sessões, as tentativas iniciais de Camila de acolher Glória vão cedendo lugar para uma posição de persecutoriedade. Os relatos da paciente sobre os abusos que sofreu causam desconforto e, em seguida, forte angústia em Camila, circunstância que se intensifica gradualmente. A esse respeito, não vamos olhar apenas pela ótica da contratransferência - que será abordada na sequência do texto -, mas pela capacidade projetiva da paciente que faz a analista experimentar um forte sentimento de perseguição e vigilância. Estamos aqui no campo do pensar compartilhado, de modo inconsciente, segundo uma clínica da identificação projetiva (Bion, 1959/1991). Isto é, forma-se entre Camila e Glória uma fantasia inconsciente, de caráter agressivo e expulsivo, compondo um modelo de relação defendido. É nossa opinião que Camila e Glória tiveram dificuldades em estabelecer uma relação de comunicação objetiva, predominando cisão e projeção. Diante do bloqueio da comunicação entre terapeuta e paciente, Glória passa a ter necessidade de comunicar o sofrimento de uma vida vigiada e perseguida por outras vias, ou seja, fazendo Camila se sentir assim.
A tensão aumenta consideravelmente porque elas frequentam o mesmo espaço físico. Glória parece se dar conta dos efeitos que causa sobre a terapeuta e passa a convocá-la da perspectiva do assombro, parecendo adotar uma intenção de causar perplexidade. Mas, complementarmente, é na medida em que Camila não pode escutá-la que Glória se dirige a ela dessa forma, e, assim, as limitações da escuta da terapeuta alimentam os segredos guardados pela paciente. Chega o momento em que o potencial de assombro da paciente, isto é, a sensação de infamiliaridade que ela desperta na terapeuta, alcança um limite. Enquanto, colada à atmosfera violenta da vida de Glória, Camila tem sonhos e devaneios de perseguição, a paciente vai até a casa da terapeuta e implora: "Você pode me escutar por um segundo?". Camila não pode. Essa parte final da trama enfatiza as impossibilidades de contato entre elas e, ao mesmo tempo em que encaminha o desfecho trágico da história de Glória, potencializa as contaminações de sua história na vida de Camila.
No fim do filme, Glória prepara o prato favorito de seu irmão - frango com quiabo - e despeja uma quantidade considerável de veneno na refeição. Após levar a quentinha ao presídio, já em casa, Glória joga suas roupas numa mala e envia uma mensagem de áudio para Camila, dando a entender o que teria feito ao irmão. Ao chegar em casa, à noite, Camila fica sabendo pelo porteiro que um homem negro e alto a procurou. Trata-se do rapaz com quem Glória estava se relacionando e que, recentemente, havia sido agredido a mando do irmão dela. Na manhã seguinte, Camila vai à universidade atormentada e, enquanto caminha até a sala de atendimento, um homem está à sua espera. Com ar de preocupação, ele diz: "Doutora, eu preciso falar com a senhora". Tem início a última sequência.
Camila aperta o passo na direção oposta à que caminhava. O homem sai em seu encalço, o que chama a atenção dos seguranças da universidade. Camila sobe as rampas e lances de escada. O homem a persegue. Ela se depara com um portão gradeado, que alude a uma prisão, e o empurra para seguir adiante. O homem não desiste. Os seguranças, armados, o abordam. Quando leva a mão ao bolso, provavelmente para apresentar um documento que de alguma forma o assegurasse, ele leva um tiro. Há então um plano de Camila, que já está no terraço do edifício. Ao ouvir o barulho do tiro, ela segue correndo até o parapeito e se inclina. Em câmera subjetiva, lá embaixo, como na primeira sequência do filme, está o mar de Portugal. Começa a tocar o mesmo fado do início e sobem os créditos finais.
É interessante notar que, na sequência inicial, Camila se debruça sobre o parapeito que dá para o mar. Ela está na Europa; do outro lado, está a América. Camila atravessa o oceano e emerge no Rio de Janeiro. Agora, na sequência final, ela também se debruça sobre um parapeito - no alto do prédio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O último plano é do mar, com a trilha sonora portuguesa. O filme retorna ao início. Se tomarmos essas duas sequências dos extremos do filme, veremos que elas estabelecem entre si o efeito obtido pela ferramenta campo e contracampo - quando planos de um filme orientados em sentidos opostos se alternam. Na trama, Portugal e Brasil. Por meio dessa ferramenta, cria-se no espectador o efeito de que ambiências e personagens, que se encontram separados, ocupam o mesmo espaço cênico, e esse efeito contribui para a série de embates em que se desdobram as diferentes condições assumidas pela terapeuta e pela paciente e para a atmosfera infamiliar que as atravessa.
Nessa medida, podemos então perguntar: o assombro de Camila é indicativo de sua abertura à alteridade e sua disponibilidade para suportá-la, ou os sentimentos de infamiliaridade vividos por ela, assombrada pelos próprios fantasmas, a impedem de escutar Glória? Segundo Dunker (2019), "o infamiliar é o outro, o estrangeiro, a morte ou o lugar para onde vamos" (p. 206). No caso de Camila, há circunstâncias que reforçam ainda mais seus sentimentos de infamiliaridade: trata-se do mistério em torno da morte de sua avó e do retrato dela, reproduzido por Camila na praça que dá título ao filme. A convergência com a tese de Freud, para nós, não poderia ficar mais clara. O estrangeiro remete, aqui, ao velho conhecido, e a fotografia da avó na Praça Paris é emblema do que deveria permanecer oculto, mas veio à luz. Assim, parece ter faltado análise pessoal e supervisão a Camila, cujos fantasmas são despertados nos encontros com Glória, até que a própria paciente sucumba ao limite do infamiliar. O prefixo de negação "in" ("un", no original), que, para Freud, seria sinal do recalcamento, é colocado em questão à medida que Camila, aprisionada aos próprios fantasmas, não consegue acompanhar a paciente. Os sonhos e devaneios de perseguição de Camila sinalizam a intensidade com o que o infamiliar e o familiar correm um para o outro.
Camila parece se convencer muito rapidamente da fragilidade de sua paciente, esquecendo-se de que ela não é, nem sabe como é ser Glória. Se é indiscutível que há desamparo social na narrativa de Glória, Camila vai pela errônea via da boa intenção e da crença de que é ela quem possui alguma coisa faltante em sua paciente. Em situações como essa, somos levados a pensar, junto de Rosa et al. (2017), que Camila parece estar afetada pelo núcleo da resistência dos analistas à escuta dos sujeitos em situações de vulnerabilidade social, resistência praticada diante do contato com pessoas que estão alienadas por um discurso sociopolítico feito de narrativas taxativas que as impedem de acessar suas dimensões desejantes. Dito de outro modo, Camila confunde quem é Glória, pois fica invadida por argumentos jurídicos, médicos e políticos, e acredita já saber algo sobre sua paciente e ter indícios de sua dimensão social. Glória zomba desse jogo de imagens - como podemos ver na cena em que aparece travestida de Camila.
Não é aleatório, portanto, que Lucia Murat utilize no filme tantas vezes o campo e o contracampo: Portugal e Brasil, como terapeuta e paciente, correm um para o outro. Coloca-se, assim, outra temática trabalhada por Freud (1919/2019) em "O infamiliar": a temática do duplo. Tomando Glória por seu duplo, Camila, na ânsia de encontrar "uma segurança quanto à continuidade da vida", se depara com o "infamiliar mensageiro da morte" (p. 71). Parafraseando o escritor Heinrich Heine, Freud afirma que "o duplo se tornou uma imagem do horror, tal como os deuses, que, após a queda de suas religiões, tornaram-se demônios" (p. 73).
A consequência negativa da materialização do duplo é a adesão que se forma entre o par. Nessa dinâmica, a corroboração das ideias - a verdade - se encontra no exterior, condensada e materializada na figura do duplo, que se configura mediante reflexos do processo secundário. Botella & Botella (2002) explicam esse movimento por meio do que assume ser "a função do pesadelo" (p. 28), isto é, proteger o sujeito do desamparo de uma imagem que é não representada - a presença que se faz pela ausência. Assim, o analista, diante da angústia de um tipo de atendimento no qual suas interpretações não surtem efeito e as associações livres não ocorrem, se vê diante da possibilidade de ter percepções esvaziadas de sentido e pode recorrer a uma alucinação figurativa para dar contornos de imagem a um afeto.
Camila não é um objeto inanimado e certamente é afetada pelo que escuta e vê em sua paciente, assim como pelo que carrega em sua bagagem psíquica pessoal. Ao se envolver com a história, vemos como a analista se contamina com os índices de violência narrados e os reproduz internamente por meio de experiências possivelmente paranoides enquanto anda pela cidade. Camila é tomada pelo que consideramos fantasias de todo tipo. Lucia Murat, abordando a personalidade dessa personagem, afirma que as atitudes supostamente progressivas de Camila, que se acha bem-intencionada, esbarram nos limites do que ela pode realmente suportar4. Temos a impressão de que parte do processo defensivo se trata de um funcionamento persecutório - de cunho radicalmente projetivo - a partir do evitamento sistemático do contato da terapeuta com a paciente, o que inviabilizaria a experiência da empatia. Se avançarmos essa hipótese ao limite, interpretaremos a cena final da fuga de Camila como, por exemplo, a consequência de um funcionamento paranoico grave: uma passagem ao ato sob a forma de suicídio.
Em uma hipótese mais branda, consideramos que os sentimentos de perseguição vividos por Camila não completam uma forma realmente psicótica e são efeitos da necessidade de Glória de fazer a analista sentir o que ela sente, ou seja, um forte sentimento de perseguição e vigilância constantes. É algo que classificaríamos como "contratransferência complementar" (Racker, 1953/1985), isto é, um processo de identificação sentida pelo analista com aquilo que o paciente não consegue tolerar em si próprio e projeta no teatro interno do analista.
Sem pretendermos esgotar as possibilidades, frisamos que o modo defensivo e paralisado de Camila se sustenta por sua noção empobrecida do potencial de uso (e de desuso) dos seus afetos. Diferentemente, Camila poderia, por exemplo, ter recorrido ao pensamento de Paula Heimann, que ficou conhecida por representar uma quebra de paradigma quanto ao reconhecimento da contratransferência como veículo de comunicação na análise. Heimann (1950), ressonante com o espírito ferencziano, interpreta a contratransferência como uma resposta emocional do analista, que deve ser usada como instrumento de pesquisa, pois está afinada com o inconsciente do paciente. Ainda com respeito a Heimann, os afetos despertados no analista são sempre reações ao paciente, já que a contratransferência é parte da personalidade do paciente, criada por ele. Contudo, esse caminho ainda levaria Camila ao potencial problema de atribuir a Glória a responsabilidade de ter desenvolvido fantasias persecutórias; afinal, é Glória quem estaria projetando agressividade.
Sem recusar essa hipótese taxativamente, cremos ser útil recorrer à forma como Winnicott (1947/2000) trabalha o conceito de contratransferência, para evitarmos a atualização de pontos cegos na dinâmica entre as personagens do filme. Winnicott não atribui toda contratransferência ao paciente, em seu artigo "O ódio na contratransferência" (1947/2000). Ele comenta como o próprio analista tem partes recalcadas e pontos cegos; também afirma que os traços pessoais de cada participante da sessão são uma influência ao trabalho; finalmente, Winnicott termina dizendo que o amor e o ódio do analista são reações à personalidade e ao comportamento reais do paciente (p. 278). Com isso, afirma serem os fatos objetivos produzidos na situação clínica, e não aspectos de projeções, que marcam o surgimento da contratransferência. Dito de outra forma, não são mais conflitos passados ou controle projetivo, e sim o ódio proveniente de uma situação real. Contudo, se no texto de Winnicott, o objeto de análise é a forma como pacientes psicóticos eventualmente se comportam, objetivamente, de modo detestável, como isso apareceria no caso de Camila e Glória?
Se nos perguntarmos qual é a relação disso com a empatia, diremos que está ligado ao outro aspecto problemático do termo, que é associá-lo ao mero sentimentalismo. É nossa opinião que Camila tem uma ideia genérica de empatia. Irrefletidamente, ela acredita que pode compreender Glória, pois assim o deseja; afinal, ela a escuta com atenção. Falta-lhe poder apostar em um não saber para poder ser verdadeiramente afetada. Ao tentar ser acolhedora de forma irrefletida, procura usar seus sentimentos com boas intenções. Como vimos no tópico anterior, é justamente das boas intenções que Freud mais tem receio.
Ferenczi (1930/2011) sugere que se deve poder usar as próprias impressões adquiridas no contato e na vivência com o paciente, para, em comparação com as antigas e as novas tendências de outros momentos da análise, vez por outra, como em um impulso dentro do analista, deixar fluir uma comunicação espontânea. Fruto do julgamento que avalia todos os componentes citados, surge o que Ferenczi chama de "comunicação feita com tato".
Considerações finais
Com as pormenorizações que fizemos ao longo do texto, utilizando os apontamentos de Sándor Ferenczi e por meio do infamiliar, segundo Freud, procuramos especificar o uso da empatia na clínica psicanalítica sofisticando sua compreensão. Tivemos também o cuidado de diferenciar o que consideramos ser o uso apressado do termo, que, nessa situação, confunde empatia com identificação e paralisa nesse momento do processo, sem realizar o devido afastamento posterior.
Baseamos nosso trabalho na observação de um filme, tomando-o como uma situação clínica. Nessa empreitada, seguimos o propósito de expandir o que se compreende por "sentir com". A diferença entre a mera identificação e um processo empático é que levamos em consideração que o analista tem seu mundo inconsciente próprio que, por sua vez, precisa ser pensado e deve se tornar útil aos propósitos de uma escuta psicanalítica. Na perspectiva de usarmos a empatia como parte do tratamento, vemos como esse elemento se torna tanto o responsável pelo começo do processo, pelo estabelecimento e manutenção da transferência, como se preserva ao longo do atendimento, pois é mediante a ideia de tato que uma interpretação se torna viável.
Afirmamos a postura ferencziana segundo a qual a sustentação do desejo de ser empático durante uma sessão deve adquirir informações pelo acúmulo de escutas e respeitar a modalidade do juízo do analista: cogitar por que se está fazendo o que se está fazendo e até quando se deve fazê-lo (Ferenczi, 1928/2010). Nossa perspectiva sobre a empatia, neste texto, tem uma guinada operacional e intencional: trata-se de fazer uso terapêutico de uma capacidade humana natural. Essa atitude constitui no sujeito a capacidade de acolher e se interessar pelos próprios conteúdos mentais assim como pelos dos outros, para calibrar a condução da análise.
De um ponto de vista clínico, o efeito do uso da empatia é justamente a melhor separação entre Eu e Outro, e não a identificação misturada que vemos entre Camila e Glória. Observamos que, nessa situação específica, foi a falta de análise de Camila no que se refere aos efeitos que o mundo da paciente tinha sobre ela que incorreu na relação complementar de mistura indevida e, com isso, em uma contaminação, de toda sorte, da atmosfera analítica. Podemos dizer que os afetos mobilizados em cada processo necessitam de um trabalho minucioso, realizado tanto no paciente e em seu mundo como no mundo do analista.
Saber escutar com empatia é um processo complexo que envolve semelhança e diferença, complementarmente. Nesse trabalho, optamos por focar na segunda dimensão. Nela, empatia é saber esvaziar-se de si mesmo por um breve momento, tornando-se uma estrutura tanto sólida e resistente como côncava e oca, capaz de produzir o eco das vozes de um outro que procura alguém para, paradoxalmente, escutar a própria voz. Ser empático, em qualquer dimensão que estejamos tratando, não é saber exatamente o que o outro sente ou pensa porque se é parecido na superfície da pele, em gênero ou em sexualidade com o outro, é deixar-se habitar justamente pela radical diferença que é o estrangeiro. Assim, a empatia, em sua forma clinicamente aplicada, é consequência de um trabalho do analista, e não efeito de sua imaginação perigosamente bem-intencionada.
Podemos adicionar aqui, a título de esclarecimento, a ideia de empatia avançada por Olden (1953, 1958) sobre a relação mãe-bebê. Diz esse autor que é a mãe quem tem a responsabilidade de garantir o movimento empático da dupla. Essa forma de compreensão será prejudicada se a mãe não suportar manter sob controle sua própria tendência regressiva para o nível infantil, ou se a criança for forçada, por frustrações ambientais, a se adaptar rapidamente ao modo de funcionamento dos adultos.
Quando crianças são vítimas de negligência ou convivem com pais enlouquecidos, elas sofrerão a imposição, de dentro para fora, e ficarão forçadas à submissão e à indiferenciação com seu cuidador, precisando prever cada mudança de suas atitudes. Nessa ecologia relacional, a criança se tornará hipervigil aos afetos dos outros, sendo forçada à identificação e perdendo as próprias referências da percepção de separação, o que é fundamental para a empatia, como nosso texto desejou comunicar.
O clima emocional ao qual nos referimos neste momento, pelo ponto de vista da criança, é aquele que é dominado por um convite ao estado fusionado, proposto pela tendência regressiva que existe no psiquismo materno. Estamos diferenciando essa modalidade patológica do bom amor materno, cujo fundamento está na capacidade materna de perceber suas necessidades e aquelas da criança, tentando gratificar ambas.
Existe uma ética fundamental em que a psicanálise se funda e que, conjuntamente, inspira a noção aplicada à empatia - segundo a compreensão que formulamos e que pode ser extraída negativamente pelo exemplo de Camila, que é justamente o não entendimento completo do outro. Em termos da diferenciação, estamos nos inclinando contrariamente à crença de que traduzimos completamente o ponto de vista do outro em nosso conjunto de significados, de que temos um entendimento completo do outro e estamos em condições de aceitar ou rejeitar suas manifestações. Nossa articulação propôs um ponto nodal no infamiliar, afirmando que a característica humana de identificação tanto pode aprisionar e confundir, como servir de estranhamento diferenciador, ponto que consideramos relacionado à proposta ferencziana.
Referências
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Recebido em 06 de agosto de 2020
Aceito para publicação em 24 de novembro de 2021
Não se declararam fontes de financiamento.
1 Essa frase pode ser vista na integra em https://youtu.be/5rqKZ77xESM?t=502 (acessado em 25/05/2022), sob o título "Praça Paris" (Festival do Rio).
2 A versão consultada (Martins Fontes), como se sabe, foi feita a partir da tradução francesa da obra de Ferenczi. Desejamos aqui deixar para o leitor a tradução direta desse trecho, proveniente da versão em alemão, traduzida por um dos autores do texto em questão:
Se tivermos sucesso com a ajuda de nosso conhecimento, adquirido da análise de várias almas humanas, mas sobretudo da nossa, de visualizar as possíveis ou prováveis associações que o próprio paciente ainda não conhece, podemos, já que não precisamos lutar com resistências da mesma forma que o paciente, não só descobrir seus pensamentos ocultos, mas também as tendências que a ele são inconscientes. Dependendo da intensidade dessas resistências, não será difícil tomar a decisão sobre a possível relevância de uma interpretação e também sobre a forma na qual ela precisa ser pronunciada. Essa empatia evita que irritemos desnecessária - ou prematuramente - a resistência do paciente. (Ferenczi, 1928/1939, p. 383)
3 Tradução de "Das Unheimliche" adotada pela edição consultada, que preferimos manter por questões de coerência bibliográfica, mas que suscita inúmeras discussões acerca do termo, que deixamos de lado nesse momento.
4 Esse argumento pode ser acompanhado integralmente no vídeo Praça Paris (Festival do Rio), disponível em https://youtu.be/5rqKZ77xESM (acessado em 25/05/2022).