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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

TRADUÇÕES

 

As mulheres no contexto e no texto freudianos

 

Women in Freud’s context and text

 

Las mujeres en el contexto y el texto freudianos

 

 

Leticia Glocer Fiorini*

Membro efetivo com função didática e ex-diretora da Comissão de Publicações da Asociación Psicoanalítica Argentina
Diretora do Comitê de Publicações da Associação Psicanalítica Internacional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Propõe a autora um percurso pelos escritos freudianos, tomando como eixo as conceituações sobre as mulheres e o feminino e as relacionando com as experiências de Freud na Viena de fim de século. Em tal análise, é enfatizada a necessidade de uma desconstrução do discurso freudiano nesse sentido. Enfocam-se as posições sujeito/objeto e sua conexão com a polaridade masculino/feminino, assim como as teorias sexuais infantis e os diferentes caminhos do desenvolvimento psicossexual na menina. Traçam-se conexões com o conceito de otredad1 vinculado ao feminino. Nesse contexto, são analisados os supostos epistêmicos e as influências de época, ideológicas, ao tempo em que se destaca que as descobertas freudianas respondem, em parte, a esses pressupostos e influências &– e, em parte, em sua condição de criação original, os excedem.

Palavras-chave: História, Sigmund Freud, Mulher, Objeto, Sujeito, Diferença dos sexos, Feminilidade.


ABSTRACT

The author invites the reader to review Freud’s works, focusing on his conceptualizations regarding women and the feminine, connecting them at the same time to Freud’s experiences in turn-of-the-century Vienna. In her analysis, she highlights the need to de-construct the Freudian discourse on this subject. The author discusses the subject/object opposition and its relation to masculine/feminine polarity, as well as to infantile sexual theories and the different paths of psychosexual development in girls. She also establishes a connection with the concept of otherness in regard to the feminine. In this context, she analyzes the epistemological suppositions and ideological influences of the times, while pointing out that the Freudian discoveries respond in part to these suppositions and influences and partly go beyond them, being an original creation.

Keywords: History, Sigmund Freud, Woman, Object, Subject, Difference of sexes, Femininity.


RESUMEN

La autora propone un recorrido por los escritos freudianos tomando como eje las conceptualizaciones sobre las mujeres y lo femenino, y las relaciona con las experiencias de Freud en la Viena finisecular. En este análisis destaca la necesidad de una deconstrucción del discurso freudiano al respecto. Se enfocan la oposición sujeto/objeto y su conexión con la polaridad masculino/femenino, así como las teorías sexuales infantiles y los diferentes caminos del desarrollo psicosexual en la niña. Se trazan conexiones con el concepto de otredad vinculado a lo femenino. En este contexto se analizan los supuestos epistémicos y las influencias epocales, ideológicas, a la vez que se destaca que los descubrimientos freudianos responden en parte a esos supuestos e influencias y en parte los exceden en su condición de creación original.

Palabras clave: Historia, Sigmund Freud, Mujer, Objeto, Sujeto, Diferencia de los sexos, Femineidad.


 

 

Introdução

Falar das mulheres na experiência e na obra de Freud suscita questionamentos e problemáticas de grande alcance, tanto do ponto de vista teórico como da prática clínica. Incita a refletir a respeito da relação entre o criador e sua obra, entre suas experiências e suas elaborações teóricas. Podemos afirmar que se trata de uma relação sumamente complexa, na qual as teorias sobre a diferença sexual estão em jogo.

Em primeiro lugar, pensar na Viena de Freud é pensar nas ideias imperantes nos discursos vigentes, no contexto sociocultural no qual sua obra é gerada. Sabemos que isso induz inevitavelmentea determinadas construções teóricas e práticas. A relação entre o contexto sociocultural (crenças, ideologias, costumes) e uma obra como a de Freud, não é direta nem esquemática: segundo meu julgamento, não há, entre ambos, uma relação direta causa-efeito.

Em segundo lugar, o contexto sociocultural e ideológico é somente um aspecto das influências possíveis. Não podemos nos esquecer do âmbito epistêmico no qual uma obra se desenvolve, marco que induz a determinadas formas de pensar as problemáticas, que aceita certas lógicas e exclui outras.

Esses dois níveis são o ponto de partida do presente trabalho. Isso significa que as propostas freudianas respondem, em parte, a uma influência dos códigos culturais e das épocas vigentes, mas também têm um suporte epistêmico, um modo de pensamento baseado nos códigos da modernidade. Ambas estão em relação.

Entretanto, gostaria de sublinhar um terceiro ponto, uma vez que se trata, ao mesmo tempo, de uma obra que excede demasiadamente essas determinações. O inconsciente freudiano, as obscuras forças pulsionais descritas por Freud, vão para além do pensar e das lógicas da razão ilustrada.

Os românticos alemães, nos quais Freud se saciou, mostraram essa vertente da condição humana. No entanto, as obras que marcam viradas fundamentais na história do pensamento produzem algo de novo, que não está incluído em seus predecessores.

Portanto, há vários aspectos a discutir relacionados com o tema a desenvolver: a) ideológicos, descritivos e de época; b) fundamentos epistêmicos e lógicas em jogo; c) quais propostas, nos escritos freudianos, estendem-se para além dessas determinações em caráter de descobrimentos originais?

É minha intenção construir um diálogo crítico com as ideias freudianas, por considerar a melhor homenagem por ocasião de seu aniversário natalício.2 Acredito que seja, a meu ver, a única maneira de reconhecer um criador como Freud.

 

A Viena de fim de século

Falar das mulheres no contexto da vida e obra de Freud implica referir-se à Viena de fim de século. Mas, o que foi a Viena de Freud? Com frequência, são citadas as ideias burguesas patriarcais que então imperavam (Moscone, 2006). É verdade que se tratava da Viena imperial, com um forte influxo de ideias tradicionais sobre a família e a mulher. Naquele contexto, a categoria mulher era, ao menos, motivo de desconfiança e de alarme. Por outro lado, o início do século 20, em Viena, foi igualmente o berço de movimentos que revolucionaram tanto a pintura (lembremos Klimt e o movimento de secessão) como as artes em geral, a literatura e a crítica de costumes (Musil, Von Hofmannsthal, Karl Kraus) e, obviamente, a psicanálise. O mesmo Freud foi revolucionário em suas propostas sobre o inconsciente e a sexualidade. Também devemos lembrar que o clássico lugar da mulher estava sendo questionado pelas mulheres de ideias liberais &– incluindo algumas feministas, que Freud também conheceu muito bem. Ele discutiu abertamente com as feministas em seu artigo “A feminilidade” (1933). A questão sobre o lugar da mulher estava instalada. Stuart Mill escrevera sobre o tema, questionando o lugar secundário adjudicado às mulheres na sociedade, e Martha Bernays já havia mencionado a Freud, no intercâmbio epistolar que mantiveram durante o namoro (Freud, 1963). Apesar disso, Freud estava imbuído de ideias patriarcais, como pode se constatar em sua resposta. Sustentava ele que as mulheres têm uma função iniludível no cuidado da casa e das crianças, o que determinava que não podiam nem deviam ter profissão alguma. Acrescentava em sua carta que, diante da possibilidade que desapareça “nosso ideal feminino”, “prefiro ser anacrônico e guardar meu anelo de Martha tal como foi até agora, não acreditando que ela queira ser diferente” (p. 33).

Temos de enfatizar que essas ideias se trasladaram, em parte, à sua produção teórica, como assinalarei adiante. De igual modo, é necessário mencionar que as experiências e os contatos de Freud com as mulheres foram muito diversificados. É bem conhecido que as mulheres com que Freud conviveu ou se relacionou não correspondiam a um padrão homogêneo. Bem diferente era o modo de seu relacionamento com Martha, esposa e esteio do lar; com Minna, a cunhada com quem (segundo alguns biógrafos) compartilhava confidências, comentários sobre o seu trabalho, jogos de mesa e viagens (Appignanesi-Forrester, 1992). Quanto às suas discípulas e colegas, todas exerciam uma profissão. Ter-se-ia que diferenciar, aqui, como menciona Chasseguet-Smirguel (1964), entre aquelas que concordavam com sua atitude (Hélène Deutsch, Marie Bonaparte, J. Lampl-de Groot, Ruth Mack Brunswick) e aquelas que discordavam de suas concepções (Karen Horney, Josine Muller), como, por exemplo, em relação à inveja do pênis, à passividade da mulher, ao masoquismo feminino, etc. Isso tudo nos mostra que a experiência de Freud, sua vivência e contatos em seu relacionamento com mulheres, ultrapassavam o contexto da Viena imperial e dos costumes burgueses e patriarcais.

Nesse sentido, gostaria de enfatizar um daqueles desvios que podem conduzir à tentação de trasladar mecanicamente a história e a experiência de uma vida a uma obra determinada. Não esqueçamos que Freud contribui para o que poderia se denominar uma “História das mulheres”, uma escuta que até então não existira. A histérica fala através de seus sintomas, diz Freud. Por esse caminho, avança ele para uma compreensão do psiquismo, em que a repressão e o inconsciente passam a ser elementos fundamentais. Também é verdade que algumas de suas pacientes se rebelam contra seus “destinos de mulher”, sob a forma do sintoma.

Minha hipótese é que em Freud conviveram diferentes correntes de pensamento &– o classicismo com a modernidade em ebulição, a razão ilustrada com as forças irracionais do id &– e que essas correntes coexistiram com suas próprias e diversas experiências, manifestando-se, em parte, em suas propostas teóricas sobre as mulheres e a diferença sexual, com todas suas contradições. Isso possibilita que não exista, a meu modo de ver, uma homogeneidade total em suas propostas sobre a feminilidade. Significa, também, que possa se delimitar linhas teóricas diferentes a partir dessa não homogeneidade.

 

O feminino, o objeto, o outro no discurso freudiano

É minha intenção desenvolver este trabalho através da análise e da desconstrução do discurso freudiano sobre o feminino e as mulheres, com o objetivo de mergulhar em suas genealogias e em seus significados e, em consequência, em seus eventuais efeitos na clínica. Baseio-me especialmente na obra freudiana, já que dela proveem as diferentes teorias sobre o feminino em psicanálise.

Neste percurso, proponho-me a desenvolver alguns aspectos da obra de Freud vinculados à polaridade masculino/feminino e ao lugar de sujeito e objeto &– seja de conhecimento ou de desejo &– nessa polaridade, bem como situar esses aspectos da obra freudiana em relação a outros desenvolvimentos que a tornam mais complexa e têm um efeito multiplicador.

 

a) A questão sujeito-objeto

Na obra freudiana, está em jogo a polaridade sujeito-objeto em relação com a diferença sexual. Em Três ensaios de teoria sexual (1905) e na Organização genital infantil (1923a), Freud estabelece uma nítida divisão entre masculino, sujeito, ativo e posse do pênis, por um lado &– e feminino, objeto, passivo, não posse do pênis, por outro. Há, aqui, uma definição do feminino pela negativa. Em Totem e tabu (1913b), as mulheres são posse do Pai da horda e objeto de intercâmbio (lugar de objeto). A posse do objeto também é assinalada por Freud em O tabu da virgindade (1918-1917), quando nos diz que uma das causas do tabu é o fato de ser a mulher, para o homem, estranha, hostil, estrangeira. Esse breve passeio nos indica que há um inevitável ponto de vista: o do sujeito de conhecimento diante de um objeto a conhecer. Isso se traslada ao campo do desejo: a relação do sujeito desejante, masculino, ante o objeto de desejo, feminino. Freud reconhece essa posição de sujeito na conferência sobre “A feminilidade” (1933), quando diz ao público, referindo-se ao enigma feminino: “Obviamente que, para as damas presentes, não há nenhum enigma com respeito a si mesmas” (p. 105). Aqui, há uma referência clara à posição do sujeito cognoscente definindo seu objeto, e também a de que esse sujeito parte de um ponto de vista determinado. Esse ponto de vista é o do investigador, o teórico, que tenta conhecer seu objeto, sujeito de conhecimento versus objeto a conhecer. A isso, acrescenta-se em psicanálise: sujeito de desejo versus objeto de desejo. Ainda que Freud reconheça que não podem se homologar as categorias de ativo-masculino e passivo-feminino, no entanto, as polaridades descritas estão amalgamadas ao campo do masculino e do feminino, respectivamente, no marco de uma ordem binária. Também não se pode eludir nessas reflexões as relações de poder, que são inerentes às propostas binárias (Foucault, 1979).

No percurso que efetuamos, é necessário pontuar que a posição de objeto de conhecimento para a mulher está intimamente conectada ao lugar do enigma, do continente negro e, portanto, da otredad. E aqui se traça uma forte conexão da experiência freudiana com as pacientes histéricas.

A histeria foi modelo e protótipo dos desenvolvimentos freudianos em vários sentidos, especialmente aquele vinculado à descoberta do inconsciente e aos mecanismos de repressão. Foi também fonte de considerações com respeito ao desejo, sendo que os jogos de sedução das histéricas mantiveram-se conectados ao conceito de feminilidade e ao chamado continente negro. Lembremos da pergunta freudiana: O que quer uma mulher? Trata-se do enigma que, o mesmo Freud garante, é enigma para o sujeito masculino &– ainda, podemos acrescentar, que essa fantasmática possa ser compartilhada por ambos os sexos.

 

b) As teorias sexuais infantis

Na história clínica do pequeno Hans (1909), Freud instala a questão da diferença dos sexos a partir das teorias sexuais infantis (1923a). Lembremos que são teorias descritas por dois adultos: o pai do pequeno Hans e Freud. O menino é um pequeno investigador e suas descobertas são teorizadas por adultos. Nessa investigação, surge a temática da castração: o pequeno sujeito investigador descobre a diferença sexual e adjudica à menina uma falta. Isso implica um marco prévio, uma teoria interpretativa que permite que essa diferença seja interpretada como carência. Essas teorias estabelecem na menina o outro castrado, mas também a estabelecem como objeto de desejo ante a um sujeito desejante. Isso suscita um paradoxo interessante, porque o mais desejado seria aquilo que, por outro lado, provoca “horror”.

Em psicanálise, a relação sujeito-objeto delineia-se no campo da sexualidade e do desejo. Mas, tal como foi apontado, acontece, concomitantemente, no campo do conhecimento. Neste capítulo, Laplanche (1980) enfatiza que as teorias sexuais adultas fazem eco às teorias infantis.

No entanto, tais questões dizem respeito somente a um aspecto das propostas freudianas. E sublinhar-se-á que a obra de Freud, como assinalamos, é aberta e multicêntrica. Dela, surgem diferentes afirmativas que nos mostram também diferentes vertentes teóricas; dessa maneira, vemos que o tema da bissexualidade, assim como o das identificações e desejos cruzados do complexo de Édipo, tornam complexa a questão. Podemos, então, constatar que o lugar de sujeito ou de objeto é intercambiável nesse jogo de identificações e desejos (Freud, 1923b). Isso significa que se acrescentam outras variáveis, ainda que Freud nunca renuncie à equivalência entre as polaridades sujeito/objeto e masculino/feminino, seja no plano do conhecimento, seja no plano do desejo.

Pois bem, do ponto de vista da menina, Freud abre, a meu ver, duas instâncias: por um lado, seus desenvolvimentos sobre o complexo de Édipo-castração que, entre outras significações, acentua o fato de que a posição feminina adquire-se no conhecido debate natureza versus cultura. Do mesmo modo, introduz a fase pré-edípica (Freud, 1925, 1931, 1933), com o que acentua cada vez mais o eixo na diferença dos sexos. Mas, por outro lado, e com respeito à diferença, a menina adota o ponto de vista do pequeno Hans: o da carência. Quer dizer que a menina é diferente, mas o ponto de vista é o mesmo. E fecha o círculo ao colocar, novamente, o enigma em si mesma.

 

c) A anatomia é o destino versus o complexo de Édipo

A afirmativa “a anatomia é o destino” (1924), parafraseando uma sentença de Napoleão, se impõe a outra proposta freudiana: a ideia de que a mulher não nasce, senão que se faz, tal como surge de seu desenvolvimento a respeito do trânsito edípico. Justamente, Freud (1933) postula que a menina é, primeiramente, um pequeno menino (ao sustentar uma masculinidade inicial da menina) e deve fazer uma passagem dessa masculinidade inicial para a feminilidade através de sucessivas substituições guiadas pela inveja do pênis.

A ideia de uma masculinidade inicial da menina tem duas vertentes de significações divergentes. Por um lado, decorre daí conceber a menina como outro similar ao sujeito masculino, do qual logo deverá se diferenciar. Essa proposta foi discutida por Jones (1927) e Klein (1945), que subscreveram fortemente a noção de uma feminilidade primária, logo desenvolvida por outros autores.

No entanto, por outro lado, essa proposta freudiana contradiz as teorias naturalistas a respeito da diferença sexual. Como frisei, há, para além da anatomia, determinações próprias de um marco intersubjetivo: a trama edípica, como uma rede de lugares, de desejo e identificações, em que se plasma a identidade sexual, o curso da sexualidade e a eleição de objeto. Temos, então: o conceito de mulher em processo, em devir, por um lado, versus a anatomia é o destino, por outro. Aqui, vemos já duas linhas diferentes no discurso freudiano que bem podem dar lugar a divergências excludentes ou bem podem ser trabalhadas em suas oposições e concordâncias. No entanto, em ambas, o enigma da diferença está localizado na mulher.

 

d) Os caminhos do desenvolvimento psicossexual na menina

Freud (1924, 1931) propõe para o desenvolvimento psicossexual da menina três caminhos: a inibição ou frigidez, o complexo de masculinidade e a maternidade, esta última considerada a meta ideal para a feminilidade e a sexualidade feminina. Está aqui ressaltada uma ênfase fundamental na maternidade como culminação da sexualidade feminina. Mas sabemos que, para Freud, se trata de uma meta de ordem fálica, que estará guiada pela inveja do pênis. Caso contrário, ficarão os caminhos da histeria, a frigidez ou o complexo de masculinidade como destinos femininos. Aqui, nos defrontamos com um vácuo: o lugar da sexualidade feminina. A questão é se sobra um espaço na teoria para a sexualidade feminina, para além da maternidade ou da histeria. A pergunta seria: é o desejo de filho a via princeps para a realização da sexualidade e do gozo nas mulheres?

Justamente, a via da maternidade, como meta ideal, enfatiza dois desvios possíveis: a idealização, por um lado &– e o desmentido de uma sexualidade feminina autônoma da maternidade e da histeria, por outro. Assim, a idealização reafirma o lugar da otredad. O outro idealizado é a mãe por excelência. Mas é também o lugar em que o mais familiar provoca um efeito ominoso (Freud, 1919). No meu parecer, este é um ponto fundamental: o outro materno é o lugar do desconhecido, do não pensável, do misterioso, do primordial. Isto é o que constitui o enigma do outro de um ponto de vista psicanalítico. E esse enigma, o materno primordial, é trasladado à mulher num mal-entendido fundamental (Glocer Fiorini, 1996).

Autores pós-freudianos ocuparam-se das aporias e paradoxos inerentes a essas questões. Como já assinalado, Jones e outros autores sustentaram a hipótese de uma feminilidade primária, tanto para a menina quanto para o menino, e, em consequência, a inveja do pênis seria secundária. Winnicott (1966) postulou a diferença entre o ser, vinculado à feminilidade e sustentado em identificações primárias, e o ter, relacionado com a masculinidade. Lacan (1958), por sua vez, propôs descentralizar a diferença sexual da anatomia e do registro imaginário com seus significados, ao considerar o falo como um significante fundamental, como um terceiro termo ante o qual se posicionariam ambos os sexos de maneira diferente. Desarticula ele o falo simbólico do pênis real e do falo imaginário. Assinalemos que este conceito não é equivalente à proposta freudiana e que, por outro lado, mantém o problema das inevitáveis conotações e ressonâncias com o imaginário e com a realidade do pênis, impossível de delimitar ainda em níveis de abstração.

Monique David-Ménard (1997) enfatiza que sempre há uma fantasmática em jogo, inevitável no sujeito que elabora a teoria. Não há sujeito neutro no campo do conhecimento, e a angústia de castração é uma marca da posição masculina que define conceituações e teorias. Em consequência, vemos que o enigma da diferença é localizado na menina, quando, na realidade, o enigma é a diferença dos sexos em si, e nesse deslocamento a mulher é situada como encarnação da otredad.

 

Desconstrução do outro feminino. Supostos epistêmicos e de época

Tal como foi anteriormente desenvolvido (Glocer Fiorini, 1998, 2001), a meu ver, é necessário efetuar uma desconstrução do discurso freudiano sobre as mulheres e o feminino, reconhecer os obstáculos e pontos cegos na teoria e seus efeitos na prática clinica. E reconhecer que propostas existem numa relação direta ou indireta com os discursos ideológicos, de época, sobre a mulher; que propostas respondem às lógicas epistêmicas imperantes, e quais excedem essas condições, constituindo desenvolvimentos teóricos que vão para além de seus condicionamentos ideológicos e epistêmicos.

Devemos ter em conta que cada época, cada sociedade, cada tempo está sujeito a um regime de enunciação e de visibilidade, tal como postula Foucault (1984), e que há limites implícitos que marcam o que pode ou não ser enunciado.

Foucault propôs pensar o século 19 a partir de um modelo de fechamento e o século 20 sob um modelo de controle. Se aplicarmos isto às concepções sobre a mulher, poderíamos pensar que Freud estava imerso na passagem entre esses dois modelos. Já não é mais o simples fechamento, senão o modelo de controle, ou seja, como devem ser as mulheres. Nesse sentido, Freud também trabalhou sobre um regime de enunciação possível que, segundo meu modo de ver, claramente se manifestou nas suas propostas sobre a diferença sexual. No entanto, devemos igualmente enfatizar que caminhou ele para além desse regime de enunciação, ao superar a noção de sujeito da consciência, de sujeito transcendental, e introduzir o conceito de inconsciente.

Avançando, então, nos eixos propostos, podem ser analisadas as propostas freudianas:

a) As ideias imperantes, que refletem, em suas afirmativas a respeito da rigidez psíquica das mulheres, um superego deficitário, escasso sentido de justiça, interesses sociais mais débeis, menor aptidão para a sublimação, assim como suas afirmativas a respeito da pouca capacidade de mudança “como se o difícil desenvolvimento da feminilidade houvesse esgotado as possibilidades da pessoa” (Freud, 1933). E, aqui, Freud, alertando para que as feministas não o acusem de discriminação, conclui que as mulheres intelectuais, profissionais, existem somente porque desenvolveram sua parte masculina: uma verdadeira tautologia, como assinala S. Kofman (1980).

Por outro ângulo, Freud reconhece (1929, 1930, 1933) a influência dos fatores socioculturais na repressão da sexualidade, quando postula para a mulher a necessidade de uma passagem do ativo para o passivo, juntamente com a mudança de zona do clitóris à vagina e a mudança de objeto da mãe para o pai. Mas indica que há um fator pulsional que rege essa passagem, indispensável para aceder à feminilidade. Acrescenta que, certamente, não há um destino passivo: a meta da pulsão sempre é ativa, por definição. Aqui, reafirma ele a complexidade e a interpenetração das determinações socioculturais e pulsionais. Se bem que, ao tempo que reconhece a força das determinações das culturas vigentes, igualmente enfatiza a força do fator pulsional e das respectivas fantasmáticas.

b) A episteme vigente. Queria mais uma vez assinalar que falar das mulheres na Viena de Freud não é falar somente das mulheres com as quais ele se relacionou ou dos prejulgamentos imperantes, senão, e fundamentalmente, dos modos de pensamento e lógicas envolvidos nas suas concepções sobre a diferença sexual.

Lembremos das noções de continente negro (1926), o enigma, o misterioso, a mulher como tabu. Isto responde ao que Foucault (1966) denominou a episteme da Modernidade, baseada na oposição entre o Si Mesmo e o Outro. O outro é o estranho, o desconhecido, o que ataca as certezas do ego. O que deve ser desconhecido ou eliminado ou bem integrado ao ego. Neste dualismo (Si Mesmo/Outro) não há um reconhecimento do outro como outro, ou seja, como sujeito, radicalmente heterogêneo ao ego (Levinas, 1947).

Como assinalei, nessa lógica, a posição masculina fica identificada com a de sujeito do conhecimento e sujeito do desejo, e dessa posição se localiza outro lugar: o do enigma; enigma porque não entra nas coordenadas do sujeito de conhecimento. É outra realidade: a otredad. E assim permanece desmentida a subjetividade e a sexualidade feminina. Mas, como assinalei anteriormente, o enigma é o feminino ou a diferença sexual o seria? O enigma é o feminino ou o materno? Esses questionamentos não anulam a noção de enigma no campo da sexualidade. Nesse sentido, faz-se necessário reafirmar que relocalizar o enigma não significa anulá-lo como tal. O enigma circula, não se enclausura: pelo contrário, sustenta-se sem homologações esquemáticas. O enigma se desloca à diferença dos sexos, ao mistério das origens, à sexualidade.

Certamente, o conceito de otredad tem outra cara, o lugar do outro também pode ser subversivo, um lugar de onde se postulam questionamentos, surgem perguntas, que podem questionar uma posição confortável enquanto aos saberes vinculados &– neste caso, aos ideais da cultura sobre a feminilidade. O outro está no limite em relação com um centro, o sujeito. E o limite também é um lugar de perguntas e questionamentos do centro.

Deste ponto de vista, é interessante recuperar perguntas sobre a diferença sexual e o feminino, bem como a afirmativa freudiana sobre as dificuldades em se chegar a delinear e outorgar significados precisos às categorias de masculino e feminino (Freud, 1933).

Para finalizar, considero que o discurso freudiano sobre a diferença sexual é também um discurso sobre os gêneros, discurso sobre homens e mulheres, que se sustenta, ainda que não totalmente, na episteme da Modernidade. Discurso em que as mulheres são os outros. Mas que, ao mesmo tempo, oferece uma conceituação basicamente centrada na sexualidade e na diferença. Resgata, ilumina e enfatiza o papel da sexualidade, da pulsão, do desejo, enquadrados numa legislação metaforizada no complexo de Édipo-castração.

Trata-se de uma teoria que tem uma vertente logofalocêntrica, como pontua Derrida (1987), e encontra seus pontos débeis e contradições em algumas conceituações sobre as mulheres e a sexualidade feminina. Inclusive é, para alguns autores, uma descrição aguda da realidade das sociedades vigentes e, nesse sentido, do lugar da mulher nessas sociedades.

A meu ver, sobre essa questão há uma multiplicidade de pontos de vista no interior da obra freudiana, e isto explica a diversidade de teorias pós-freudianas. Da mesma maneira que, tal como assinalamos anteriormente, a vida e a experiência de Freud em sua Viena e com suas mulheres foi plena de diversidades. No entanto, os escritos freudianos contribuem com fundamentais conceitos, dentre os quais mencionarei:

a) Que as teorias freudianas operam no registro do humano, da cultura, para além de uma causalidade naturalista: é o que o conceito de devir, como movimento, em processo, nos indica para cada mulher.

b) Não existiria uma verdade essencial sobre a feminilidade &– e isto se expressa nos paradoxos que obstaculizam qualquer tentativa de sustentar um universal sobre a mulher.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Leticia Glocer Fiorini
Zapiola 1646, Piso 2
1426 Ciudad de Buenos Aires, Argentina
Fone: 4551-5440
E-mail: lglocerf@intramed.net.ar

Recebido em: 20/12/2008
Aceito em: 22/01/2009

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
* Médica e psicanalista. Membro efetivo com função didática e ex-diretora da Comissão de Publicações da Asociación Psicoanalítica Argentina. Diretora do Comitê de Publicações da Associação Psicanalítica Internacional.
1 Preferimos manter o termo otredad no original, por tratar-se de um termo proposto pela autora. Otredad seria equivalente a qualidade de ser outro ou outra coisa, ter uma existência distinta do Eu. Equivalente em inglês a otherness (the quality of being not the same) e, em espanhol, a la cualidad de ser otro u otra cosa, es decir, existencia como cosa distinta del Yo. (N. do E.).
2 Publicado originalmente, em 2006, na Revista de Psicoanálisis (LXIII, 2, pp. 311-323, detentora do copyright), o presente texto homenageou o sesquicentenário do aniversário de Freud: 6 de maio de 1856. (N. do E.).

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