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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.77 São Paulo dic. 2009

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Violência do femininino e destinos da feminilidadade em uma paciente borderline1

 

Violence of femininity and destinations of womanliness in a female borderline patient

 

Violencia del femenino y destinos de la feminidad en una paciente límite

 

 

Patrícia Cabianca Gazire*

Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Universidade Federal de São Paulo/EPM

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende retomar o debate em torno da feminilidade à luz das experiências com o feminino vividas por uma paciente borderline no processo analítico. O hibridismo apresentado pelo borderline auxilia, neste caso, as articulações teóricas entre a neurose, a psicose, o feminino, o arcaico. No caso clínico a ser discutido, a ênfase será a dimensão arcaica do feminino que é atualizada na transferência, mais do que a dimensão estrutural, psicopatológica.

Palavras-chave: Feminino, Feminilidade, Borderline, Psicanálise, Pulsões arcaicas.


ABSTRACT

This paper intends to recuperate the debate on femininity, in the light of experiences with femininity lived (experienced) by a borderline patient during a psychoanalytical process. In the case of this patient, the hybridism presented by the borderline structure helps the theoretical articulations between neurosis, psychosis, the feminine, and the archaic. Special attention will be given to the archaic dimension of femininity as it is updated in transference, more than to the structural psychopathological dimension.

Keywords: Femininity, Womanliness, Borderline, Psychoanalysis, Archaic drives.


RESUMEN

Esta exposición tiene la intención de reanudar el debate a respecto de la femenidad a la luz de las experiencias con lo femenino que vive una paciente límite durante el proceso psicoanalítico. La relación híbrida presentada por esta paciente límite posibilita hacer articulaciones teóricas entre la neurosis, la psicosis, lo femenino y lo arcaico. En este comentario clínico, el énfasis está en el arcaísmo de lo femenino, el cual se actualiza en la transferencia, no en la dimensión estructural de la psicopatología.

Palabras clave: Femenino, Feminidad, Borderline, Psicoanálisis, Instintos arcaicos.


 

 

Introdução

Tecer. É isso que as mulheres fariam se fossem entregues à sua solidão. As mulheres gostam de tecer. Tecer fios e ficções. Só que nunca inventaram uma tecelagem para enviar às mulheres quando elas começam a não querer comer, ficam paralíticas, mudas, apaixonadas ou cegas.

Holck (2008)

 

A expressão “violência do feminino” tem sido utilizada por alguns psicanalistas para designar o sofrimento que algumas mulheres experimentam no encontro analítico. Essa violência aparece em situações clínicas em que a transferência é marcada por uma ambivalência fusional entre paciente e analista, provocando uma situação de resistência à análise (Schaffa, 2007). A expressão “fome de amor” sintetiza essa espécie de resistência aos esforços de compreensão por parte dos analistas, o que os coloca, como assinala Fédida, diante de uma sensação de fracasso: “O fracasso de numerosas análises de mulheres pela expressão dessa violência põe em desafio a contratransferência do analista” (Fédida, 1999, p. 140).

A concepção do feminino, tal como proposta pela teoria freudiana, pode ser definida, por um lado, como ligada às pulsões orais, anais, arcaicas (pré-genitais ou pré-edipianas), tratando, portanto, o feminino como arcaico;2 pode ser também pensada em relação à resolução do complexo de castração e à identificação fálica (nesse caso, a mulher passou pela experiência da castração e entrou na organização fálica). Para diferenciar o “feminino” - como ligado às pulsões arcaicas - de “feminilidade”, que abarcaria o feminino em seus desdobramentos, sua resolução ou seus destinos possíveis, percorreremos, adiante, as controvérsias em torno do feminino observadas nas escolas inglesa e francesa.

Em um seminário sobre o amor, François Perrier sustenta que a feminilidade faz fracassar a interpretação na medida em que ignora o recalcamento. Parece atuar aqui, como resistência ao tratamento, não o recalcamento, mas o mecanismo da censura (Perrier, 1971/1992). O primeiro - recalcamento - supõe o processo de simbolização e é estruturante; a segunda - censura (recusa) - está aquém da representação da castração, é o branco, a anulação da falta, o “não dito”, aquilo que permanece em estado selvagem.

Ora, uma dinâmica psíquica não estruturada a partir da castração encontra-se no domínio psicótico. A estrutura psicótica, como definida por Freud na última fase de sua obra (Freud, 1924/1986d; 1924/1986c) tem em sua gênese o mecanismo operante de rejeição da realidade da castração. Ao se deparar com a castração - frustração, proibição e interdição, e com o amor materno pelo pai -, há uma recusa em admitir tal “estado de coisas” e a proibição é excluída da consciência, criando-se uma “nova” realidade. Na neurose, por outro lado, o mecanismo operante é o do recalcamento, ou seja, diante de uma frustração, o psiquismo, já marcado pela interdição ao incesto, pela falta do objeto primário de satisfação do desejo, encontra substitutos para a realidade “faltante” através da possibilidade de simbolizar a castração.

Já a produção da patologia borderline está associada, segundo André Green (Green, 1990/1977) à ausência de uma boa articulação entre um “duplo limite”: o limite entre o interior (psíquico) e o exterior (realidade); e o limite efetuado pelo recalcamento (uma precariedade nas fronteiras internas). Haveria, ainda, falhas graves no desempenho das funções primordiais pelo “objeto absolutamente necessário”,3 que não fica disponível como “esquecido” (recalcado, perdido), perdendo, portanto, seu caráter negativo. Perde por estar sempre presente sua possibilidade de dar lugar a uma série de múltiplos outros objetos - a serem desejados ou repelidos. Esse “objeto absolutamente necessário”,4 deixando de ser esquecido, produz uma intrusão intolerável, excessiva, traumática, incompatível com a representação e o pensamento. Proliferam, então, as saídas não representacionais, como a passagem ao ato. Green também menciona, ao discorrer sobre os casos-limite, o conceito de analidade primária, pelo qual há uma identificação com o objeto destruído. Nessa identificação, o paciente dá ao objeto destruído um uso de sustentação e preenchimento, criando vínculos narcísicos baseados no ódio, o que o leva à inibição, paralisia e outros impedimentos.

Portanto, no borderline operam mecanismos psíquicos arcaicos que levam à precariedade nos processos de simbolização, o que, em certos momentos, os assemelha, em termos de funcionamento e estrutura, aos psicóticos e, em outros, aos neuróticos. Essa oscilação é observada também em termos dos afetos - há uma constante instabilidade afetiva - e no que se refere à impulsividade, frequentemente presente, que se manifesta por meio de ataques ao setting analítico, agressividade, automutilações.

Cabe, então, a seguinte questão: qual seria a razão de se falar em feminino e feminilidade e não em psicose, neurose e borderline? Em que medida a experiência do feminino se diferencia da experiência psicótica, visto que ambas se direcionam para a recusa e censura e não para o recalcamento? Se o feminino é violento e louco, ele é “borderline”?

O presente trabalho pretende retomar o debate em torno da feminilidade à luz das experiências com o feminino vividas por uma paciente borderline no processo analítico. O hibridismo apresentado pelo borderline auxilia aqui as articulações teóricas entre a neurose, a psicose, o feminino, o arcaico. No caso clínico a ser discutido, enfatizarei, mais do que a dimensão estrutural, psicopatológica, a dimensão arcaica do feminino que é atualizada na transferência.

 

O debate em torno do feminino

Nos textos tardios, Freud (Freud, 1933/1986b) descrevia a feminilidade como “continente negro”, a ser experimentado e construído pela mulher a partir das experiências pré-edípicas com a mãe. Na pré-história edípica da menina, a mãe é a sedutora e o afastamento da mãe para que esta possa ser trocada pelo pai produz na menina a imersão no ódio. Ao escrever que “A anatomia é o Destino...”, Freud (1924/1986a, p. 178) discute que a anatomia feminina e masculina, ou a diferença de gêneros, por conter expressões psíquicas engendradas no corpo através da cultura, traz consequências para o psiquismo que ultrapassam a questão biológica. Portanto, cabe frisar, não se trata de equiparar feminino e masculino aos gêneros, mas sim de situá-los como duas matrizes subjetivas diferentes, que podem ser encontradas nos dois gêneros. Na menina, o complexo de castração prepara para a entrada no Complexo de Édipo, ao invés de destruí-lo (como ocorre com o menino). A menina é levada a abdicar de sua ligação com a mãe e entra na situação edípica como refúgio, permanecendo nele por um longo tempo. A menina vive o sentimento de insatisfação com a mãe, o que a leva buscar um “pênis melhor” externo (o do pai). Daí as intensas experiências de ciúmes, ódio, rivalidade, inveja que as mulheres parecem viver de maneira intensa e louca, extravasando os limites da alteridade.

O debate em torno do feminino é antigo na psicanálise. Ernest Jones (Jones, 1927, 1933, 1935) caracterizou-o como uma discussão entre a escola vienense (representada por Freud) e a escola inglesa (dele próprio). A escola vienense concebe as questões do feminino de maneira falocêntrica, em que a mulher viveria o complexo de castração à procura por um substituto do pênis. O homem tem o pênis, a mulher não tem. Ao serem investidos libidinalmente na fase fálica, a vagina ou o clitóris adquirem valor de falo. Esse valor, entretanto, logo se perde, levando a menina a procurar um equivalente do falo no exterior (primeiro no pai, depois em bebês).

Apoiado na experiência das mulheres analistas de sua época (M. Klein, K. Horney, J. Muller), Jones sustenta que um ponto de vista falocêntrico não é suficiente para dar conta da sexualidade feminina. Esse autor costumava descrever o feminino através de sua concentricidade, afirmando que a menina, no início, privilegia o interior do corpo e a vagina. Há a introdução de outra lógica, diferente da lógica da castração. O feminino estaria associado, de acordo com Jones, às pulsões arcaicas orais e anais. Nessa medida, os dois orifícios alimentares - boca e ânus - constituem, lado a lado com útero e vagina, “órgãos femininos receptores”, concêntricos. A sexualidade feminina se inscreve, assim, pelas bordas.

A ideia do feminino como máscara foi inicialmente introduzida por Joan Riviere em artigo publicado em 1929 (Riviere, 1929), no qual a autora ansiava continuar as pesquisas de Jones no campo da vida sexual feminina. Em seu artigo, tenta mostrar que as mulheres podem colocar uma “máscara de feminilidade” justamente quando o que mais anseiam é a masculinidade. Esse desejo é acompanhado de uma fantasia de vingança por parte dos homens e a máscara de feminilidade seria uma tentativa de evitar a ansiedade gerada por essa fantasia.5 Segundo a autora, a máscara é uma defesa neurótica que protege a mulher da angústia de castração, ou seja, da culpa por entrar em um terreno masculino.

Posteriormente, Piera Aulagnier (Aulagnier, 1967), influenciada pelas ideias de Lacan, retoma a questão, colocando a feminilidade como máscara, não como uma defesa (como sustentou Rivière), mas como um véu, um negativo, um simulacro verdadeiro. A feminilidade é assim concebida como um dos destinos possíveis da sexualidade, um investimento que a mulher faz naquilo que no início é uma falta. A falta vai sendo travestida com adereços, buscando se constituir como objeto de desejo do homem. A principal angústia seria a da perda do amor do outro.

De meu ponto de vista, o feminino está engendrado, tanto para Rivière como para Aulagnier, na organização fálica, e não na concentricidade descrita por Jones.

Finalmente, Michèle Montrelay (Montrelay, 1977) radicaliza a questão ao entender o feminino como contraditório, justamente por conter as duas ordens: a fálica e a concêntrica. Segundo a autora, há um inconsciente feminino que implica uma ordem contraditória: se organiza através da castração, mas também escapa a ela. Ou seja, a sexualidade feminina está estruturada tanto a partir do recalcamento como também da censura. No corpo da mulher, há um duplo e contraditório movimento, que oscila da ordem simbólica para a dimensão primitiva, arcaica do psiquismo. Portanto, o feminino violento e louco é um resto ou, mais que isso, é um abismo, aquilo que escapa ao recalcamento e é vivido como experiência sensorial com o corpo (da mãe). Nessa medida, a autora sustenta que o trabalho da análise, em relação ao feminino, deve ter uma função recalcante. Essa função recalcante, função de corte, tenta transportar a fala vazia - cheia de corpo - para uma fala com sentido, simbólica.

 

Ilustração clínica

Marta é uma paciente de pouco mais de 20 anos que está em atendimento há um ano e meio no Centro Clínico de Psicoterapia Psicanalítica da Unifesp/EPM. Viveu experiências agressivas com os pais desde a infância, presenciando brigas e sofrendo maus-tratos. A mãe sempre foi desorganizada e pouco atenta aos cuidados com Marta. A casa era suja; faltavam alimentos. A família sofreu intervenção judicial, por não oferecer condições suficientes para o desenvolvimento das crianças.

A mãe foi diagnosticada com uma síndrome neurológica degenerativa que exige muitos cuidados. Marta sente-se sobrecarregada e com raiva da mãe, porém nunca conseguiu se separar dela. Ainda hoje é responsável pelos cuidados com sua saúde, acompanhando-a em suas consultas médicas e exames.

Mora com o companheiro e onze gatos na parte de trás de um porão úmido e escuro (na parte da frente, é mantida uma loja de jogos eletrônicos). Já sofreu dois abortos. O primeiro, durante a adolescência, natural; o segundo, fruto da relação com o atual companheiro, provocado (por ingestão de remédios), com complicações clínicas graves que a levaram a permanecer na UTI de um hospital.

Em certo momento da análise, a analista interrompe o processo para se casar. Na volta, Marta descobre que está grávida. Pelas contas, teria engravidado no dia exato da volta de viagem da analista. Sua gestação é de sete semanas; vive momentos de ambivalência e preocupação, com dúvidas em relação à maternagem, considerando a possibilidade de um terceiro aborto.

No decorrer daquela interrupção, Marta passou por uma bateria de testes psicológicos no Centro Clínico,6 sendo avaliada por uma psicóloga que estava grávida. Ficou muito angustiada, não conseguiu o desempenho esperado nos testes, tendo demorado quatro horas para realizar um deles.

Marta está muito brava quando narra à analista o ocorrido. Surgem fantasias de que a psicóloga que aplicou os testes é tirana e agressiva: não respeitou os limites de Marta e lhe fez mal.

“Me senti como um rato de laboratório. Tenho pena de quem é atendido por essa psicóloga. Numa relação, tem de haver troca. De duas uma: ou essa psicóloga não tem uma mãe doente como eu, ou é egoísta e não se preocupa com a mãe dela”.

Certo dia, após marcar atendimentos com a psiquiatra, com a analista e com a psicóloga que a testou, Marta não compareceu a nenhum deles. Naquela mesma tarde, ingeriu medicamentos e provocou o aborto de sua gestação. Teve hemorragia e precisou ser internada, pois ficou clinicamente debilitada.

Nos atendimentos que se seguiram, a analista se percebe com dificuldade de estabelecer contato afetivo com Marta, que vem faltando com maior frequência às sessões. Nota-a deprimida e angustiada. Marta diz que nunca gostaria de ser mãe, pois teria um filho defeituoso, acéfalo, monstro. Afirma também que não queria por um filho no mundo para que ele sofresse.

Certa sessão, tensa, encolhida na poltrona, narra sua situação à analista:

“Estou sentindo muitas dores na barriga, acho que posso estar com alguma doença, estou com um corrimento com aparência de leucócitos mortos... pus. Outro dia saiu um líquido estranho da minha vagina. Assim... acho que não devo te contar senão você nunca mais vai querer comer carne. Saiu algo de minha vagina que se parece com uma gordura de carne fria. Tirei essa ‘coisa’ e guardei. No dia seguinte, tinha ficado dura e joguei fora”.

Narra, a seguir, um sonho:

“Estava internada em um hospital, trancada dentro do banheiro, sem conseguir sair. Por uma fresta na porta, vi uma enfermeira que ficava como sentinela do lado de fora, com os braços cruzados, segurando a porta do banheiro me impedindo de sair”.
Faz a seguinte associação:

“Lembrei-me de que quando estive internada após o aborto, havia uma enfermeira, a mesma que aparece no sonho, que não queria mais cuidar de mim depois de saber que eu teria alta, e ficou me atendendo com birra”.

Durante esse tempo, a analista fez poucas intervenções, por falta de clareza a respeito do que estava ocorrendo. No entanto, sentia-se preocupada e próxima à Marta.

A analista, por sua vez, igualmente sonhou:

“Estava em sessão com Marta que, para minha surpresa, se apresentava diferente de seu estado habitual de angústia e tensão. Ela estava sentada na poltrona de forma descontraída, parecendo sentir-se confortável no encontro comigo. E eu estava grávida! De repente, a sessão começa a ser invadida. Um dos invasores era o companheiro de Marta, o outro era um homem desconhecido. Os dois pareciam drogados. Não falavam nada, apenas entravam na sala e eu os acompanhava para fora. Ao terminarmos a sessão, já fora da sala, encontramos outros terapeutas do Centro Clínico que pareciam estar em um ambiente tumultuado”.

Passado esse período, diz Marta que gostaria, sim, de ter um bebê, desde que tivesse melhores condições para criá-lo.

 

Discussão

A função simbólica da mãe é, segundo Montrelay (1977), arrancar a criança da “noite orgânica da carne” e introduzi-la no mundo simbólico. Para tanto, é importante que a mãe introduza o pai. A mãe, como “mensageira da castração” (Freud, 1913/1986e), precisa abrir espaço para que o pai entre como lei, colocando impedimento à relação incestuosa.

A relação da mãe com a filha é mais fortemente permeada pelo terreno corporal, do gozo. O gozo, no sentido lacaniano, é diferente do prazer. No prazer, há o reencontro com uma marca de satisfação. Isso implica que o objeto primário tenha sido perdido e possa ser recuperado através de substitutos simbólicos. No momento de gozo, revive-se um traço de prazer construído a partir da perda do objeto originário (Lacan, 1956/1957, 1995). Mas esse traço de prazer é no gozo vivido como uma aderência ao real do corpo, ou seja, o objeto obstrui a perda e a possibilidade de recuperar as marcas simbólicas da experiência de prazer. Há no gozo, portanto, uma dimensão “além do princípio do prazer”, mortífera, que tampona o movimento de perda. O gozo comporta, assim, uma dimensão direta de fusão com o corpo do outro, estando incluído no registro do imaginário (especular).

O entrelaçamento entre a mãe e a filha, o prazer e a completude vividos corporalmente em um momento primordial, retornam frequentemente no corpo da mulher como uma experiência de gozo. Daqui, aproxima-se o feminino ao qual nos reportamos. A violência do feminino “louco” aparece nos momentos em que falta a dimensão castradora da representação, e há a volta a um tempo em que os corpos de mãe e filha e o mundo confundiam-se em uma mesma intimidade caótica.

Há, aqui, a indicação para uma possível diferença entre o feminino e o psicótico. Na psicose, o simbólico não é acessado, pois não houve a ação do recalcamento primário e, tampouco, a inscrição de uma marca materna que insere o sujeito na linguagem, no universo das representações. No feminino, há momentos de abertura para a experiência com o real, o não representável do corpo da mãe. São momentos em que um resto da experiência do primeiro tempo do recalcamento é revivido. Momentos de anulação da representação e do simbólico, que logo após tornam a funcionar. Daí a contradição que comporta o feminino, apontada por Montrelay, em que oscilam a concentricidade (experiência de fusão) e o falocentrismo (possibilidade da castração e da representação).

Freud retrata metaforicamente o feminino:

Há uma técnica que as mulheres parecem ter inventado: aquela do trançar e do tecer ... A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita, causando o crescimento, na maturidade, dos pelos pubianos que escondem os genitais. O passo que faltava dar era fazer os fios unirem-se uns aos outros, enquanto, no corpo, eles estão fixos à pele e só se emaranham (Freud, 1933/1986b, p. 132).

Também nessa passagem encontramos no feminino a fusão e a castração, a natureza e a cultura. Há um estado bruto, natural, dos corpos da mulher e da mãe entrelaçados; e há também o trabalho da cultura, que passa pela civilização. Ou seja, está presente a ideia de que o corpo feminino não é natural, é algo a ser construído na relação do sujeito com seu outro.

Na vinheta clínica apresentada, uma possível leitura poderia ser a de que Marta, muito fragilizada pelo recente aborto, é invadida por vivências psicóticas, acompanhadas de angústias de fragmentação corporal. Além disso, há as sensações de o útero e a vagina estarem contaminados com defesas mortas (pus), ou seja, sua sexualidade está “doente”, estragada. Há o predomínio de identificações projetivas maciças ocorrendo com a figura da analista. Devido às vivências contratransferenciais e à concretude das experiências, a analista se encontra, por um momento, incapaz de compreender e se comunicar verbalmente com Marta. No entanto, ao sonhar, a analista introduz a possibilidade de elaboração, metabolizando os elementos primitivos que atravessam a relação.

Em contrapartida, apenas a abordagem do aspecto psicótico da situação clínica parece deixar a desejar. Enfocar essa situação pela via da patologia, (psicótica ou borderline) não nos instrumentaliza para a compreensão abrangente que os fenômenos narrados exigem. A analista corre o risco de permanecer em um caminho normatizador, afastando-se da dimensão analítica da situação clínica.

Tomar a questão enfocando vivências em torno do feminino amplia o campo da construção analítica. Para sua compreensão, é preciso deixar de lado orientações psicopatológicas e seguir em outra direção.

No caso de Marta, algo nas vivências primordiais de fusão com a mãe parece não ter sido alcançado, de forma que a sexualidade é disforme e o feminino adquire a conotação de estragado, contaminado. Algo não se entrelaçou com o corpo da mãe, de forma que Marta, ao vivenciar o aborto e a situação da perda de um possível bebê (que é também bicho, bactéria, algo como uma carne disforme), se desestrutura. Permanece, assim, imersa em uma situação de fragmentação.

A mãe (como objeto interno) é muito insuficiente, estragada, doente. Aspectos do feminino são projetados na psicóloga (aplicadora dos testes) que consegue se manter grávida, mas ultrapassa os limites de Marta de forma violenta. A ambivalência também é vivida em relação à enfermeira do sonho, uma mãe que cuida, mas que tem características “devoradoras” (quer prender Marta dentro do banheiro, da barriga). A analista pode também ser devoradora de sua carne, por isso o alerta de Marta: você não vai mais querer comer carne!

O sonho da analista produz o entrelaçamento que faltava entre “mãe e filha”: a analista, ao se sonhar grávida, traz para dentro de seu corpo o feminino e o experimenta junto a Marta. Ao mesmo tempo, as figuras do companheiro, do homem desconhecido, dos terapeutas e do próprio bebê dentro da barriga da analista tentam resgatar para a relação analista/(mãe)-Marta o terceiro, fundamental para a vivência da castração, que Marta tenta deixar de fora. Eis aqui representado o corte exercido do processo analítico em sua função recalcante. É importante notar que a função recalcante não ocorre de forma verbal, mas é algo intrínseco à experiência subjetiva da analista, ao contato, portanto, com as marcas de sua própria castração.

Assim a análise faz seu trabalho: Marta adquire vida dentro da analista que, por meio do seu trabalho onírico, trança e tece com Marta as marcas necessárias para a entrada no mundo simbólico.

Essa experiência abre possibilidades para um feminino menos sombrio: após o período de elaborações ocorridas no momento do processo analítico narrado, Marta considera que ser mãe é possível, em condições diferentes das vividas até então.

O feminino se abre para uma dimensão louca7 do psiquismo. Como ilustra o caso discutido, embora a transferência feminina se apóie na transferência maternal, estando ancorada nela:

a relação torna evidente uma diferença considerável na qualidade da comunicação quando se coloca em questão o maternal - em que se está no terreno da separação e da via regressiva da fusão - ou o feminino - em que a cisão e a violência predominarão a partir da introdução do terceiro masculino parental (Guignard, 1987).

Nesse sentido, feminino e psicose não se equivalem, embora possam se alternar e por vezes coexistir na relação analítica. Mas o feminino vai além.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Patrícia Cabianca Gazire
R. Leandro Dupret, 204/23 - Vl. Clementino
04025-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3487-2288
E-mail: pgazire@gmail.com

Recebido em: 13/04/2009
Aceito em: 07/12/2009

 

 

* Membro filiado do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Psicóloga e doutoranda do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Professora e supervisora do Ambulatório Clínico e de Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica da Unifesp/EPM.
1 Este trabalho foi apresentado como tema livre no XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, em maio de 2009. Agradeço a Sandra L. Schaffa, Ester Sandler, Fernanda V. Strang (analista da paciente que ilustra as questões discutidas neste artigo) e Julieta F. Ramalho da Silva - coordenadora do Ambulatório Clínico e de Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica da Unifesp/EPM.
2 Arcaico é aqui utilizado no sentido de Unheimliche (Freud, 1919/1981b): o “estranho”, material oriundo de “camadas geológicas glaciais” (Freud,1926/1981a) do psiquismo, que se torna presente na transferência, acompanhado da vivência de um total estranhamento. Essa noção escapa a qualquer ressonância de uma teoria desenvolvimentista da sexualidade.
3 O caráter negativo do objeto é adquirido quando o objeto pode ser “esquecido”. Esse esquecimento, por sua vez, só pode ocorrer quando o objeto exerce sobre o psiquismo uma ação adequada e eficaz, de forma que pode se tornar “invisível e inaudível” (Figueiredo & Ulhoa Cintra, 2004).
4 A expressão “objeto absolutamente necessário” foi utilizada por Jacques Lacan, no famoso texto de 1971, intitulado “Lituraterra” (Lacan, Lituraterra, 2003).
5 Nesse artigo, Rivière discute o caso clínico de uma mulher que era excelente em vários setores de sua vida: dona de casa, mãe, esposa. Ou seja: era uma “supermulher”. No entanto, logo após ministrar uma brilhante conferência no trabalho, saindo-se muito bem em sua capacidade de lidar com audiências e no trato de discussões, ficava excitada e apreensiva na noite que se seguia, necessitando reconhecimento por parte dos homens através de atenções sexuais.
6 Por participarem de protocolos de pesquisa em psicanálise, os pacientes atendidos no Centro Clínico são submetidos periodicamente a avaliações externas ao atendimento psicanalítico, tanto psiquiátricas como psicológicas. A avaliação psicológica descrita ocorreu em um momento peculiar da análise, tendo sido violenta e disruptiva, embora Marta tivesse conhecimento desse procedimento, já que fora avaliada em momentos anteriores.
7 André Green (Green, 1990, 1977) diferencia duas situações: a loucura materna e a psicose. À primeira corresponderia um retorno à fusão materna, que caracteriza estados de ameaça à individualização, sobretudo quando evoca um paraíso perdido, do qual jamais se desejaria novamente partir. A situação é bastante diferente no segundo caso, quando desvinculações psicóticas assumem o controle das operações psíquicas.

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