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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.77 São Paulo dic. 2009

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Reflexões sobre o feminino1

 

Thinking about the feminin

 

Reflexiones acerca del femenino

 

 

Mery Pomerancblum Wolff*

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora aborda o feminino como uma dimensão psíquica arcaica, fundante, não ligada ao sexual ou ao gênero. Em suas reflexões considera-o como parte estruturante da subjetividade e das posteriores identificações sexuais e de gênero.

Palavras-chave: Feminino, Subjetividade, Identificações.


ABSTRACT

The author approaches the feminine as archaic and a base for psychic dimension not linked to the sexual or gender. In her reflections she considers it as a structural part of the subjectivity and the posterior sexual and gender identification.

Keywords: Feminine, Subjectivity, Identifications.


RESUMEN

El autor aborda lo femenino en su dimensión psíquica arcaica, fundante de lo subjetivo, no vinculado a lo sexual o al género. En sus reflexiones lo considera como pieza estructurante de la subjetividad y de las posteriores identificaciones sexuales y del género.

Palabras clave: Femenino, Subjetividad, Identificaciones.


 

 

Ao refletir sobre o feminino e não sobre a feminilidade, proponho um modelo de pensar que, a priori, apresenta o meu modo de compreender esse tema complexo e, por sua natureza, repleto de vários sentidos e significados em que tais noções podem se superpor e se entremear pelo deslizamento entre seus conceitos.

Algumas questões me ocorrem neste momento: o feminino se constitui ou é primário? E a feminilidade, como se constitui? E o que se pode dizer acerca das identificações femininas?

No meu entendimento, o feminino é um aspecto da vida psíquica relacionado a uma dimensão do que é arcaico e não representado. É inicial, fundante, e não está ligado ao sexo ou ao gênero. É diferente de feminilidade, que tem a ver com o tornar-se feminina.

A feminilidade está relacionada ao tornar-se mulher e feminina, num entrelaçado entre o biológico e o cultural, tendo, então, hoje, uma configuração diferente do que possuía na época de Freud, por exemplo, para quem o ideal de feminilidade estava ligado à maternidade.

As identificações femininas instituem-se desde muito cedo, assentadas sobre variadas significações atribuídas pela mãe em sua relação com o bebê. Pressupõem a elaboração de diversas vicissitudes do desenvolvimento - prioritariamente, a questão da bissexualidade e o reconhecimento das diferenças, bem como a resolução do conflito edípico.

Essas questões estão presentes nos debates psicanalíticos desde seus primórdios até a atualidade e, independentemente da linha teórica e/ou do vértice que se tome, parece-me que existe um aspecto central. Ao falar em constituição do feminino, estamos, antes de tudo, falando na constituição do sujeito psíquico. No meu entendimento, esse sujeito, que virá a ser feminina, se constitui de uma forma específica, sendo, nesse sentido, a sexualidade uma parte importante dessa estruturação.

Faria (2005) assinala que a sexualidade é um aspecto central para a constituição do psíquico e afirma que esta “produz e povoa o campo psíquico” (p. 102), o que, a meu ver, coloca a mesma na origem e no funcionamento desse processo. Penso que é no interjogo entre pulsão e objeto que vai se criando o mundo interno, o que, como Faria assinala, também reproduz simbolicamente a complementaridade masculino e feminino.

Freud, desde as primeiras investigações sobre as mulheres e seus desejos, nos primórdios da psicanálise, considerou-as como um enigma que precisava ser explorado. No âmbito da cultura, através da palavra de Beauvoir (1949/2009), uma de suas expressões mais destacadas, a clássica afirmação “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (p. 361) refere-se, no meu entender, ao processo de subjetivação que institui a feminilidade na mulher.

Freud, marcado pelas vicissitudes de uma Viena no início do século 20, considerava as mulheres como um “continente negro” (1926/1976d), referindo-se ao desconhecido, ao velado e, quem sabe, numa leitura atual, ao difícil de representar.

Para aquela época, eram inovadores e desafiantes os novos conceitos desse autor sobre a sexualidade infantil (1905/1976f), que abriram caminho para o desenvolvimento do tema em questão e de vários outros, como as noções sobre bissexualidade, monismo fálico, passando pela questão da diferença na constituição edípica (1924/1976a), pela valorização da etapa pré-edípica na menina (1931), até chegar à noção, no meu entendimento, de que a transformação da menina em mulher é árdua e complexa.

Nos trabalhos posteriores sobre feminilidade (Freud, 1931/1976e, 1933/1976b), a castração continua sendo central no sentido de compreender o tema. Concebe a feminilidade inicialmente pelo caminho da neurose - pois, ao recusar o prazer, recusa o reconhecimento da falta - e assinala que o desejo está em outra parte, não no pênis. Num segundo caminho, que seria entendido por ele como normal, a mulher transforma o desejo masculino na fonte do próprio investimento narcísico. A feminilidade é, nesse caso, um dom, que pode ser oferecido ao parceiro, e não a constatação de uma falta.

A bissexualidade, no decorrer de sua obra, continua sendo um tema considerado obscuro (1930/1976c). A sexualidade é compreendida como a expressão de uma pulsão em busca de um objeto. Nesse processo se dão as identificações, fundamentais para a constituição da feminilidade e da masculinidade.

A ideia de Freud de que o feminino se constitui pela percepção da falta do pênis tem um papel importante na teoria psicanalítica e está relacionada com a centralidade da biologia como destino. Diversos autores questionam, divergem ou acrescentam aspectos a tal concepção.

Depois de Freud, outros autores, como Horney (1924, 1926/1967) e Jones (1927, 1933, 1935), questionaram esse conceito, por acreditarem que a menina percebia sua vagina, mas a negava.

Como os autores anteriores, Melanie Klein (1932/1975) entende que a menina possui uma percepção inconsciente da vagina, mas vai além. Essa mudança de enfoque traz uma contribuição importante para a compreensão da sexualidade feminina. Ela não é a falta. O masculino é para fora, é ativo, é agressivo. O feminino é para dentro, é passivo, é receptivo. Também considera que a feminilidade se constitui através de processos mais complexos.

Segundo Klein (1932/1975), os bebês, sejam meninos ou meninas, desde o nascimento estabelecem um vínculo de muita proximidade e de amor com a mãe; nesse processo, estrutura-se psiquicamente uma fase de desenvolvimento, que ela chama de feminina, independentemente do sexo. Essa fase é caracterizada pelo voltar-se para o pai em face da frustração em frente ao seio materno, pela ambivalência e por conter um montante importante de ansiedades depressivas, que corresponderiam aos primeiros estágios do Édipo precoce. Essa autora ressalta que, nesse momento, o funcionamento mental é semelhante em meninos e meninas, caracterizando-se pelo desejo de conter dentro de si o pênis do pai e os bebês da mãe, atitude essa continente e considerada como tipicamente feminina.

Destaco essa concepção de Klein porque a entendo como coincidente com a formulação que faço sobre o feminino, em que uma das características seria ligada ao desejo de continência como algo especificamente feminino, diferentemente de ser algo ligado à feminilidade.

Winnicott (1966/2005) descreve que meninos e meninas, homens e mulheres, possuem elementos femininos e masculinos. Esses elementos estão presentes desde uma etapa muito inicial da vida e, para esse autor, a mãe é parte fundamental desde o início da constituição psíquica. Na concepção winnicottiana, o bebê constrói seu sentimento de ser na relação inicial com o seio, e esse sentimento representa um elemento feminino puro, que precisa ser constituído na relação primitiva com o seio e com a mãe; refere-se à experiência de onipotência, que permite que o bebê sinta que o seio e a mãe são criações suas, dando-lhe o senso de continuidade. É o elemento feminino puro que prepara o caminho para o sujeito objetivo, que possui um self, e o senso do real, que possui um sentido de identidade. Winnicott sublinha que esse elemento feminino puro compõe-se como uma experiência inicial vital - numa experiência de identificação primária, matriz de identificações futuras, anterior à organização do elemento masculino puro, que, na sua relação com o objeto, pressupõe a separação e um ego disponível. Parece-me que esse elemento feminino é básico para a constituição psíquica, uma vez que funda a noção de si mesmo.

O conceito de elemento feminino de Winnicott, bem como o conceito de Klein sobre a fase feminina, serve de suporte e fundamento para o que entendo como o feminino, referendando que a organização desse aspecto da vida psíquica é inicial e ocorre com todos em sua relação de objeto mais precoce, sendo a raiz de futuras identificações.

Michele Montrelay (1979) também descreve a existência de um feminino que é muito inicial no ser humano. Segundo essa autora, o feminino parte de um vértice pulsional, um aspecto do conjunto de pulsões femininas (orais, anais e vaginais) que é mantido fora do recalque. Como tal, não é restrito às mulheres, mas Montrelay afirma que são necessárias determinadas condições. Por um lado, certas características do corpo feminino; por outro, o desenvolvimento da sexualidade que, nas meninas, permite um escape do recalque e mantém uma maior ligação com as pulsões primárias em oposição à castração e à lei.

Montrelay agrega o aspecto pulsional ao conceito do feminino, que, a meu ver, seria o elemento que possibilita ao ser humano desencadear essa experiência vital a caminho da subjetivação.

Cosnier (1987) não aprofunda o tema do feminino nesses moldes. Em seus trabalhos, ressalta a questão da identificação feminina, que se constituirá como uma síntese das identificações primária e secundária. Para a construção dessa identificação feminina, toma como referência a introjeção do feminino materno, apoia-se na diferenciação do ego, que é anterior ao reconhecimento da identificação sexual e da identificação sexuada - maneira pela qual o inconsciente reconhece e diferencia um sexo do outro.

Fiorini (1994) considera que o feminino seria um registro que abarca ambos os sexos e refere-se “às primeiras experiências, pré-edipicas, pré-especulares, com uma poderosa influência do materno, e que descentram a polaridade masculino-feminino, justamente por envolver a ambos os sexos” (p. 34). Descreve o feminino como uma experiência primária corporal, cenestésica, pré-discursiva, e que, por sua natureza, não pode receber representação psíquica direta, pelo excesso de excitação.

Essa contribuição de Fiorini agrega-se de forma muito clara ao modelo que estou tentando construir, reforçando a ideia do feminino como inicial, fundante, presente em ambos os sexos, ligado à relação primária com a mãe. Essa autora acrescenta uma questão que me parece importante e que se refere à dificuldade de representação psíquica dessa experiência.

Acrescento que, nessa experiência primária corporal, como conceitua Fiorini, não se pode esquecer que as diferenças anatômicas proporcionam marcas de experiências corporais distintas, e estas vão constituir representações específicas nas quais o tempo, o espaço e a sensorialidade (Wolff, 2005) constroem a imagem de corpo que vai estabelecer a identidade, incluindo a sexual.

Destaco também a influência dos registros parentais para a constituição do psiquismo do bebê. Desde antes de nascer, eles povoam o imaginário dos pais e têm uma inscrição em suas mentes que vão sustentar as identificações próprias ao ego ideal e, mais adiante, ao ser simbolizado, constituir o ideal de ego. Essa inscrição, além de outras influências, determinará de que modo esses pais vão nomear o filho, inclusive a que gênero sexual lhes parece pertencer o bebê. Essas fantasias inconscientes serão fundamentais para a constituição de um sentimento de ser, seja feminino, seja masculino.

Por meio da observação de bebês pelo método Ester Bick, acompanhei o modo como vai sendo construído o psiquismo do bebê, através da relação mãe-bebê, na qual este vai criar seu espaço mental e, neste, a capacidade de continência e de espera, que é uma característica do feminino. É através do guardar, brincar com ocos, vazios, com que bebês de ambos os sexos brincam, que vai se dando esse sentido de ser que é um modo feminino de lidar com os objetos.

Entendo que há uma aproximação entre os conceitos descritos por Klein e por Winnicott com o de Fiorini. Todos eles consideram que esse registro pertence à primitiva relação mãe-bebê, às relações objetais, desde o nascimento, o que não exclui, na constituição do feminino, a existência de aspectos mais especificamente da linha do pulsional.

O feminino, como o entendo, é substantivo, separado e diferente do feminino como adjetivo, de feminilidade e de identificação feminina. Não é uma qualidade, é um sentimento de ser, envolve a capacidade e o desejo de continência e se estabelece a partir da relação diádica tanto em mulheres quanto em homens.

Penso que o feminino refere-se a esta dimensão do que é arcaico e não representado. Um registro que se encontra em busca de uma simbolização. A meu ver, esse feminino constitui-se a partir do sexual, não do gênero sexual, que, na tessitura das relações objetais, constrói uma dimensão psíquica do que é subjetivo, qualquer que seja o gênero de cada um, e vai se tornando simbolizável e simbolizado na medida em que se constitui a mente.

Ou seja, é a partir desse feminino que vai se entretecendo a aquisição de uma identificação, que pode ser feminina, e de um senso de feminilidade. Isso não se dá de forma linear, mas sim em circunvoluções e a partir de inter-relações, num processo complexo que envolve desde os registros iniciais das relações mãe-bebê, que revela o feminino como um registro arcaico, passando pela busca de um modelo de mãe ideal para identificar-se e pelos aspectos pulsionais no campo do desejo e busca por um objeto sexual.

A constituição de um sentimento de feminilidade, bem como a sexuação, se organizam nessa tessitura entre o feminino, o arcaico pulsional, que encontra um objeto (mãe) que permite que o sentimento de ser vá se organizando, e, ao mesmo tempo, vão formando modelos identificatórios, postos em ação desde o nascimento, juntamente com a percepção do corpo (ter ou não uma vagina).

Ou seja, a feminilidade e a identificação feminina se constroem em um processo a partir do núcleo de identidade e constituem algo que é, em princípio, uma característica predominante nas mulheres.

Finalizando, ressalto o aspecto inerente do feminino que permanece como uma característica em homens e mulheres. Refere-se à capacidade de continência, ao que é receptivo, à capacidade de contemporização. Baseia-se em aspectos constitucionais, na identificação primária e nas transmissões feitas pelos pais mesmo antes do nascimento. Organiza-se na relação mãe-filho quando se constitui o sentido de ser (como Winnicott descreve), um modo psíquico, subjetivo, com sua identidade propriamente dita.

No nosso fazer clínico, o feminino está presente em nós psicanalistas, homens e mulheres, bem como nos pacientes. É através do processo, pelo interjogo transferencial, que esse feminino, expresso entre outras pela capacidade de continência, pode se desenvolver, ampliando nosso espaço mental.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Mery Pomerancblum Wolff
Av. Taquara 193/401 - Petrópolis
90460-210 Porto Alegre, RS
Fone: (51) 3330-6172
E-mail: merywolff@terra.com.br

Recebido em: 12/05/2009
Aceito em: 15/12/2009

 

 

* Psicóloga, psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
1 Trabalho apresentado no XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise.

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