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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A questão da autoria: o impensado das obras de pensamento – arte, narrativa clínica e teoria psicanalítica

 

The question of authorship: the unthought known of the works of thought – artistic biography, clinical narrative and psychoanalytic theory

 

La cuestión de la autoría: lo impensado de las obras de pensamiento – arte, narración clínica y teoría psicoanalítica

 

 

João A. Frayze-Pereira1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Instituto de Psicologia – Universidade de São Paulo USP
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte – Universidade de São Paulo USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute as relações entre autor, obra e leitor. São analisadas algumas situações extraídas dos campos da arte, da clínica e da teoria psicanalítica que interrogam criticamente a figura do autor na relação com o leitor. Considera que o ato de ler uma obra cria um campo que sempre pede mais interrogação, abrindo a obra de um autor para o diálogo com outros autores. Considera relevante o conceito fenomenológico de "impensado" que significa não aquilo que uma obra deixou de pensar, mas o que ela, ao pensar, dá a pensar. Esta noção crítica abre portas para a obra escapar do campo da ideologia e transforma o tema da autoria numa questão complexa.

Palavras-chave: Autor, Leitor, Obra, Recepção crítica, Ideologia.


ABSTRACT

The article discusses the relations between author, his work and the reader. It analyzes some situations drawn from art, clinical and psychoanalytic theory's fields, which critically interrogate the figure of the author in relation to the reader. It is considered that the act of reading always creates a field that demands more interrogation, opening the work to a dialog with other authors. It is considered relevant, as well, the phenomenological notion of "non-thought", which means the thought that the work demands to be thought, not the one that hasn't been thought by it. This critical notion opens doors for the work to escape the field of ideology and transforms the theme of authorship in a complex question.

Keywords: Author, Reader, Work, Critical reception, Ideology.


RESUMEN

El artículo discute las relaciones entre autor, obra y lector. Se analizan algunas situaciones extraídas de los campos del arte, de la clínica y de la teoría psicoanalítica, que interrogan críticamente la figura del autor en la relación con el lector. Considera que el acto de leer una obra crea un campo que siempre pide más preguntas, abriendo la obra de un autor al diálogo con otros autores. Considera relevante el concepto fenomenológico de "impensado" que significa no aquello que una obra dejó de pensar, mas lo que ella, al pensar, nos da a pensar. Esta noción crítica abre las puertas para que la obra se escape del campo de la ideología y transforma el tema de la autoría en una cuestión compleja.

Palabras clave: Autor, Lector, Obra, Recepción crítica, Ideología.


 

 

Autoria é um tema complexo. Envolve os processos criativos que engendram obras – obras de pensamento e obras de arte, por exemplo – que, por sua vez, se articulam aos processos de recepção dessas criações. No entanto, o reconhecimento da relação entre autoria e recepção é relativamente recente, pois a figura do autor sempre ocupou o primeiro plano nos campos das ciências humanas e da filosofia. É somente a partir da década de 1960 que a valorização definitiva das figuras do leitor, do espectador ou mais amplamente do público, surge em várias disciplinas, desde a hermenêutica até a consolidação da estética da recepção. Nessa medida, o receptor passa a ser considerado não apenas um aspecto do processo de construção das obras, mas um componente sem o qual o trabalho do autor não se perfaz (Jauss, 1978). E pode-se acrescentar a essa vertente o ponto de vista psicanalítico segundo o qual ser autor não é um fato, mas um processo lentamente construído na relação com outrem – seja este um supervisor, um consultor, um outro psicanalista – que figura como leitor a testemunhar as operações realizadas pelo primeiro (Gabbard & Ogden, 2011).

 

Sobre a morte do autor e o nascimento do leitor

Cabe observar que a relação entre leitor e autor, invariavelmente marcada por atitudes de respeito e de admiração do primeiro pelo segundo, não se expressa apenas pela concordância entre ambos ou pelo elogio da obra lida, mas mediante a leitura rigorosa, quando a obra é examinada à luz de seus pressupostos e levada ao limite das suas possibilidades. Como bem lembrou Scarlett Marton, a tradição da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, por exemplo, sempre foi a de honrar seus professores, ultrapassando-os, porque, acreditava-se, "nisso consistia o seu desejo". Com eles e com sua obra estabelecia-se "uma relação de apreço que se expressava pela crítica radical de sua obra" (Marton, 2005, p. 112). Ora, não aponta esse princípio, justamente, para o sentido da Filosofia – o amor à sabedoria?

Quando se considera a relação entre leitor, obra e autor no campo da Psicanálise, entretanto, os procedimentos são ligeiramente diferentes se comparados aos que a crítica radical de uma obra emprega para o exame das condições de possibilidade do seu vir a ser. André Green, por exemplo, reconhece basicamente dois modos de ler ou analisar uma criação cultural. "O primeiro é endopoiético. Considerado deste ângulo, o estudo se reduz ao exame dos constituintes internos à obra. Ele é limitado a ela, ou às relações com outras obras do mesmo autor, ou ainda com obras de outros autores produzidas no mesmo campo" (Green, 1994, p. 97). É um procedimento que opera no registro sincrônico. O segundo modo de ler é exopoiético. "Deste ângulo, vai tratar-se de considerar todos os fatores determinantes da obra em vários níveis" (Green, p. 97). E aí se incluem desde a consideração pela vida do autor até o exame das condições sociais e políticas que formam o contexto de produção da obra, a história das formas culturais e ideológicas, entre as quais a obra se insere, os outros autores com os quais dialoga e as questões que a obra permite pensar para além dela mesma. A perspectiva exopoiética, pode-se dizer diacrônica, é reivindicada pela análise endopoiética, o que mostra que esta última é um momento necessário, mas não suficiente, à leitura crítica de uma obra. Com efeito, quando o estudioso adota exclusivamente essa perspectiva sincrônica, a impressão de totalidade e auto-suficiência que ela engendra pode nos fazer esquecer o vínculo da obra com o mundo, seu enraizamento nele e a possibilidade de sua abertura para ele. E o risco da ilusão retrospectiva que o esquecimento da origem acaba engendrando, característico desse modo sincrônico de leitura, é o de impossibilitar a transcendência da obra, a verificação do seu valor enquanto obra de cultura. O que significa isso?

Nos anos 1960 e 1970, com o movimento estruturalista francês, muito se escreveu a respeito dos discursos e das possíveis formas de análise do discurso. E Roland Barthes, na minha visão um dos mais poéticos e inventivos nesse campo, escreveu um ensaio que ficou célebre. Nele, esclarece que um texto é constituído de múltiplos escritos, hauridos em muitas culturas, que estabelecem relações mútuas de diálogo, de paródia, de contestação. Porém, há um lugar em que essa multiplicidade se encontra, e esse lugar é o leitor, e não, como sempre se pensou, o autor. Nesse sentido, Barthes defende a tese de que "a unidade de um texto está não em sua origem, mas em seu destino …" (1988, p. 70). Ou seja, Barthes sustenta a tendência moderna à dessacralização da imagem do autor. Ele argumenta que o autor, considerado como a origem única e a fonte singular do significado autêntico de um texto, é uma figura moderna, criada historicamente, que se pode associar às figuras do gênio ou do herói (Zilsel, 1993, p. 26), ideia que se mostrou bastante equivocada. E escreve: "Um texto não é uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico ( … a mensagem do Autor – Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas no qual se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é a original" (Barthes, 1988, p. 68). Não cabe ao autor necessariamente ter ciência dessa condição. É o leitor ou leitores que realizarão a tarefa de revelação dessa multidimensionalidade. E daí a tese do ensaio – "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor" (Barthes, 1988, p. 70).

Há que se observar que essa posição de Barthes não é individual. Vários outros pensadores concorrem para defendê-la até hoje, tanto no que diz respeito às obras de arte e literárias, sobretudo com os estudos mais recentes de estética da recepção, como às obras filosóficas propriamente ditas. Os autores são muitos. E eu destaco apenas alguns.

No ensaio O que é um autor, por exemplo, Foucault (1969/1992) interroga a função autor. E, tanto quanto Barthes, mostra o que modernamente é posto em questão: o conceito de autor como fonte determinada e fixa de uma obra e de seus significados. O autor é, na verdade, uma função que instaura discursividade. Freud, por exemplo, não é apenas o autor da Traumdeutung, ou Marx, do Kapital. São autores que estabeleceram uma possibilidade indefinida de discursos, que tornaram possível o advento de diferenças relativamente aos seus textos, aos seus conceitos, às suas hipóteses. E exatamente por isso é que se eternizaram. Mas, observe-se, essa perspectiva é possível porque o autor não é um sujeito individual, mas transindividual.

Com efeito, ao ler o teatro de Racine, Lucien Goldmann (1956) também concluiu que subjacente ao autor, enquanto sujeito de uma obra, encontram-se as condições de possibilidade culturais (não apenas epistemológicas) dessa obra, o que podemos chamar de origem ou de fundamento concreto da obra. E, com essa concepção, Goldmann aproxima-se de Foucault e Barthes, pois a análise estrutural de um discurso não se refere à psicologia, à biografia ou às características pessoais de seu autor, mas às estruturas internas do texto, ou à articulação dinâmica das imagens que sustentam determinada obra, seja ela literária, filosófica ou plástica. Nessa medida, para realizar o estudo biográfico de um autor, por exemplo, são esses princípios que o biógrafo deve considerar, confrontando fatos e documentos de várias ordens, cultural e histórica, para contextualizar o individual e o pessoal mais concretamente. Nessa direção, seria possível cumprir aquilo que, segundo Virgínia Woolf, constitui o principal

dever de um biógrafo, que é caminhar sem olhar para a direita nem para a esquerda, sobre os rastros indeléveis da verdade; sem se deixar seduzir por flores; sem fazer caso da sombra; sempre para diante … até cair em cheio na sepultura, e escrever finis na lápide sobre nossas cabeças. (1928/1978, p. 37)

No entanto, eis que chega um momento nesse percurso em que um episódio surge, algo inevitável, dependendo do biografado, e, entretanto, "sombrio, misterioso e indocumentado; de modo que também não é possível esclarecê-lo. Volumes inteiros poderiam ser escritos para interpretá-lo, e sistemas religiosos completos poderiam ser edificados sobre ele". Nessas ocasiões, o simples dever do biógrafo, conclui Virgínia, "é expor os fatos até onde são conhecidos e depois deixar o leitor fazer com eles o que puder" (p. 37). Em suma, muito antes dos estruturalistas franceses, Virgínia Woolf interroga a autoria, ao reconhecer que, na obra, há um lugar aberto à participação do leitor. E para ilustrar essa problemática, vamos considerar três diferentes situações.

 

Biografia artística, narrativa clínica, teoria psicanalítica

Quando se realiza pesquisa sobre a vida de algum artista com o objetivo de relacioná-la à sua respectiva obra, o estudioso enfrenta uma tarefa bastante difícil, pois não é fácil biografar artistas. Um exemplo, nesse sentido, é Max Ernst, um autor cuja vida real, conforme pode ser verificado com a leitura dos textos de sua autoria, é tecida com elementos maravilhosos referidos a uma origem extraordinária (Frayze-Pereira, 2010, p. 249). Porém, em se tratando de um artista relacionado tão intimamente ao Surrealismo – a ponto de não se saber bem quem veio antes, se o Surrealismo ou se Max Ernst – o enigma é algo que não pode ser ignorado. Tratá-lo como ficção, pela chave da fantasia, em oposição à chamada realidade dos fatos, é escamotear a complexidade surreal dessa mesma realidade, desrespeitando a seriedade da própria poética surrealista. Ora, a ideia que me ocorreu, ao ler Écritures (Ernst, 1970), foi a de que a escrita sobre a vida de um artista, surrealista ou não, sempre deve levar em conta a dinâmica interna de sua obra. Seus temas, materiais, técnicas, suas tendências estilísticas e seus compromissos críticos e estéticos devem assumir a posição de fio condutor. Ou seja, deve ser a obra o principal fundamento para se pensar um artista, e não o contrário. Devem ser as suas criações, suas invenções plásticas, os instrumentos privilegiados para se compreender o autor. E isto porque o sentido de uma obra de arte não é explicável pela vida do artista, como escreveu Merleau-Ponty ao considerar Cézanne e sua pintura, uma vez que vida e obra não são coisas ou acontecimentos externos uns aos outros. Assim, pensa o filósofo Merleau-Ponty:

é certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A verdade é que esta obra a fazer – exigia esta vida. Desde o início, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio apoiando-se na obra ainda futura, era seu projeto e a obra nela se anunciava por signos premonitórios que erraríamos se os considerássemos causas, mas que fazem da obra e da vida uma única aventura. (1966, pp. 34-35)

Isto significa que a vida do artista exprime sua obra, não entendendo esta como causa, mas como um motivo, nem entendendo o intercâmbio vida-obra como uma relação do tipo função-variáveis, mas como uma articulação de natureza expressiva. Nessa medida, se nos parece que a vida de um autor é a antecipação de sua obra, é porque conhecemos sua obra antes e vemos através dela as circunstâncias da vida. Quer dizer, para falar de um autor, delinear sua identidade ou escrever uma biografia, é da obra que o comentador necessariamente parte para chegar às questões relativas ao próprio autor ou ao sentido da vida na qual esta obra se encrava, por mais fantasioso e ficcional que esse sentido possa parecer. E, nesse caso, é a percepção do leitor, expressa em sua narrativa, que faz o trabalho de articulação entre a obra e o autor por ela pressuposto.

Não está muito distante dessas considerações, a situação do psicanalista que escreve sobre o seu analisando. A propósito, Rudelic-Fernandez (1999), psicanalista que trabalhou com Pierre Fédida, propõe quatro modelos para a narrativa do caso clínico em Psicanálise: científico, histórico, literário e hermenêutico. Enquanto os dois primeiros fazem o elogio da impessoalidade do relato e da apresentação sequencial dos acontecimentos clínicos a garantir a suposta objetividade do caso, os modelos literário e hermenêutico, respectivamente, concebem o relato como metáfora e o caso clínico como construção narrativa. Segundo essas duas últimas perspectivas, grosso modo, a história clínica seria modificada pelo próprio fato de ser narrada. E, nessa medida, o relato da ação de tratar um paciente não seguiria um esquema narrativo dado, não buscaria superpor a uma verdade canônica uma verdade narrativa. Ele se tornaria passo a passo uma construção circunstanciada, pontual, descontínua, desenhando o seu próprio modo de leitura. E segundo esses modelos – literário e hermenêutico – seria o próprio caráter perspectivo e irrepetível não só da experiência psicanalítica, mas de qualquer experiência, que problematizaria a ideia de haver uma única maneira de narrar um caso clínico.

Nessa mesma direção, Pontalis (2002) defende certa concepção da escrita do caso que se pode resumir livremente nos seguintes termos: uma construção que beira a ficção literária, ficando aquém ou indo além dela, nos confins do sonho e da dor. Ao fazer o elogio de uma perspectiva literária, perspectiva segundo a qual, grosso modo, a história clínica seria modificada pelo próprio fato de ser narrada, Pontalis abre mão da ideologia intrínseca aos mitos da neutralidade científica e da universalidade do conhecimento positivo, governados pelo ideal de objetividade. Com essa tomada de posição, assume criticamente o caráter perspectivo do relato e a particularidade do conhecimento proposto por ele, uma vez que é comprometido com a subjetividade do narrador e com a situação em que este se encontra. A particularidade do caso, nesse sentido, não derivaria de uma trama de acontecimentos e não seria a vinheta que daria dimensão clínica ao escrito. Mais profundamente do que isso, seria a lógica discursiva, a ordem simbólica que arranjaria os elementos de um tratamento numa estrutura, a condição que faria dele um caso. Portanto, considerando que este pressupõe a experiência clínica como seu principal referente, acredito que um paciente literariamente concebido para ser apresentado ao público deve ter sido tratado clinicamente de modo compatível, isto é, como um ser singular que justifica tal perspectiva. Nessa medida, se admitirmos, como afirma Pontalis (1991, p. 133), que não há uma diferença essencial entre o escrito psicanalítico e a escrita ficcional, a questão da autoria de um relato de caso mantém a complexidade anteriormente encontrada na relação entre artista-obra-leitor, ou entre biógrafo e biografado, pois a quem deve ser atribuída a autoria daquele discurso, antes mesmo de ele vir a ser lido por outrem – ao analisando ou ao analista?

Considere-se uma terceira situação, desta vez bem mais densa de sentidos, pois extraída do campo da produção teórica em Psicanálise: o livro de Leda Herrmann Andaimes do real – construção de um pensamento (2007).2 É um exemplo de leitura minuciosa dos escritos psicanalíticos de um autor com o qual a leitora é profundamente engajada: Fabio Hermann. Entretanto, considerando que a obra desse autor concebe a psicanálise com recursos da ciência, da literatura e da epistemologia, pode-se dizer que a área em que tal obra melhor se inscreve é a da Psicanálise, mas também, e não menos essencialmente, a da Filosofia, apesar de Fabio ter alguma restrição a esta possibilidade, como ele mesmo sugere numa das últimas entrevistas que concedeu:

sempre vigiei com cuidado meu gosto pela filosofia. A mistura de filosofia com interpretação psicanalítica pode levar aonde se quiser. Freud devia saber disso, a julgar por suas precauções. Não ter formação filosófica traz suas vantagens: nunca tive de escolher entre Hegel e Nietzsche, por exemplo". (Herrmann, 2007, p. 16)

De qualquer maneira, apesar desse livre-arbítrio teórico, do meu ponto de vista, é sobretudo no contexto da Filosofia que ambos os trabalhos se situam porque o tema privilegiado por Fabio é, essencialmente, a questão do método, e a problemática emergente no livro de Leda é a da leitura, temáticas filosóficas por excelência. Porém, como vimos, a questão da leitura, especificamente, envolve duas outras: as questões da obra e da autoria. Portanto, leitura-obra-autoria são os polos que definem o campo filosófico estruturante do trabalho realizado por uma autora que acompanhou, na intimidade dos bastidores, o desenvolvimento da obra que analisa a partir de seus fundamentos. No entanto, quando Leda Herrmann pergunta a Fabio Herrmann sobre os fundamentos de sua obra, na entrevista com a qual abre o seu livro, o autor responde:

mesmo se quisesse dizer, não conseguiria, porque simplesmente não entendo bem a questão. A menos que fundamento seja bibliografia. De onde Freud tirou a idéia de atender os pacientes daquele jeito? O pensamento da época deu-lhe linguagem, instrumentos. Mas a análise saiu da investigação com os pacientes, suponho … Quando me perguntam por minha raiz, costumo responder que sou freudiano, porque, na esteira de Freud, desconfio muito do patrimônio teórico acumulado e acho necessário submetê-lo a uma ruptura de campo. ( 2007, p. 17)

Fabio Herrmann pode ter razão ao dizer o que diz, isto é, que ignora os seus fundamentos. E isto porque os fundamentos de uma obra não estão fora dela, mas estão nela mesma, muitas vezes de modo indeterminado, ou, para usar um conceito filosófico, estão nela como o seu impensado. Então, cabe a pergunta: o que seria o impensado de uma obra?

 

A questão do impensado

Em primeiro lugar, devo esclarecer que, partindo de Merleau-Ponty, foi Claude Lefort (1972) quem mostrou que o impensado de uma obra é o trabalho que a própria obra realiza junto ao leitor e que, portanto, é do leitor que a obra depende para se fazer pensar, para se consagrar como obra de pensamento propriamente dita. Assim, a posição do leitor frente à obra que ele deseja ler é decisiva. Entretanto, o que faz uma obra ser obra de pensamento é a força para romper o círculo do mesmo e suscitar a diferença. Ou seja, a questão da obra de pensamento reside no trabalho que ela própria realiza para suscitar discursos, isto é, em possuir uma data, e, no entanto, transcendê-la, em existir no seu próprio texto e também no de seus leitores. Assim, a obra de pensamento é aquela que funda um campo livremente associativo que se explicita nela e graças a ela. Esse campo é simbólico e essencialmente indeterminado, sendo a indeterminação o que garante a gênese da sua posteridade. Uma vez que a obra de pensamento é aquela que ao pensar, dá a pensar, há nela um excesso de pensamento frente ao que está explicitamente pensado. É esse excesso que faz com que a obra suscite novos discursos. E é essa indeterminação essencial da obra de pensamento o aspecto que a distingue de todo outro tipo de obra. É essa característica, associada à imanência dos novos discursos na própria obra, que revela o ato de ler como interrogação. E o que seria interrogar?

Dentro dessa mesma linha de reflexão, interrogar é descobrir que a obra contém a potência de fazer falar, é acompanhar os caminhos que ela própria abriu, é encontrar de novo a sua fundação. Em suma, interrogar é tomar a obra de outrem como matéria prima para a nossa própria reflexão (Lefort, 1979, p. 15). É, portanto, garantir a transcendência da obra com o trabalho da leitura entendida como interrogação.

Baseando-se em Lefort (1972), Marilena Chauí (2002, p. 37) também considera que "se a obra de pensamento ou de arte é geradora de sua posteridade e se pode haver reativação do sentido sedimentado, é porque a obra se transcende, antecipando as vindouras, e nós a transcendemos reabrindo seu sentido, liberando o que ali estava cativo". Isso significa que há uma dupla transcendência, que articula leitura e escrita, leitor e autor, que revela sua assimetria e seu parentesco, ensinando-nos que a positividade irrecusável da obra dissimula o que a conserva viva para os outros. "No caso da obra de pensamento, observa Marilena Chauí (2002, p. 38), essa dupla transcendência dissimula o impensado que sustém o seu e o nosso pensar". O impensado não é, portanto, aquilo que não foi pensado pelo autor da obra, mas aquilo que a obra ao pensar dá a pensar. Não é, portanto, o menos; ao contrário, "é o excesso do que se quer dizer e pensar sobre o que se diz e pensa" (p. 38). É o que, no pensamento, faz pensar.

A esse respeito, finalmente, é preciso retornar ao nosso sempre bom e velho Merleau-Ponty para quem a noção de impensado se inscreve numa trama semântica muito complexa. Com ela são interrogadas as relações entre fato e ideia, obra e pensamento, tradição e invenção, o mesmo e o outro. E, segundo Chauí (2002, p. 42), essa noção permite perceber como se apresenta a questão do instituinte e do instituido para uma filosofia que renunciou à pretensão da autofundação. Nesse sentido, diz Merleau-Ponty:

se há uma idealidade, um pensamento que tem em mim um porvir, que até mesmo perfura meu espaço de consciência e tem um futuro para os outros e que, enfim, transformada em escrita tem um porvir em todo leitor possível, só pode ser porque esse pensamento que não me sacia e que também os deixa famintos, que indica uma deformação de minha paisagem e abre para o universal, é antes e, sobretudo, um impensado. As ideias muito possuídas já não são ideias, já nada penso quando as falo. (1964, p. 156)

Merleau-Ponty foi leitor de muitas obras de pensamento. E no trabalho que dedicou a Husserl, considera o "impensado de Husserl", que é dele mesmo e que, no entanto, abre-se para outras possibilidades a pensar. Portanto,

pensar não é possuir objetos de pensamentos; é circunscrever, graças a eles, um domínio para pensar que, portanto, ainda não foi pensado. (Merleau-Ponty, 1960, p. 260)

Nessa medida, pode-se comparar o campo do pensamento ao da percepção. Ou seja, assim como o mundo percebido mantêm-se graças a esses incorporais que são os reflexos, as sombras, os horizontes e os espaços entre as coisas que não são propriamente coisas, mas também não são nada, delimitando os campos de variação possível no mesmo mundo, Merleau-Ponty conclui:

assim também, a obra e o pensamento de um filósofo são feitos de certas articulações entre as coisas ditas, frente às quais não há dilema entre a interpretação objetiva e a arbitrária, visto que ali não estão objetos de pensamento, pois, como a sombra e o reflexo, também eles seriam destruídos se submetidos à observação analítica ou ao pensamento isolante. E se quisermos ser fiéis a eles, só nos resta um caminho: pensar de novo. (1960, p. 261)

Assim, pode-se dizer que toda e qualquer obra, todo e qualquer pensamento, em suma, toda e qualquer filosofia se ilude quando crê ser autofundada e se perde quando, dentro ou fora da academia, é possuída na dinâmica dos grandes sistemas, no catálogo dos museus e no arquivo das bibliotecas (Chauí, 2002, p. 42). Afinal, como bem disse Winnicott (1975, p. 138) "em nenhum campo cultural é possível ser original exceto numa base de tradição". Porém, se "a tradição, como pensava Husserl, é esquecimento das origens" (Merleau-Ponty, 1960, p. 259), ao instituir-se determinada obra (ou conjunto de obras) como tradição à qual determinada prática passa a ser referida, o risco que se corre é o de esquecermos do processo que fundamentou essa prática, isto é, a origem do instituído ou o processo instituinte que se caracteriza pela transgressão da tradição que o suscitou. Em outras palavras, o risco que a prática corre é o de adquirir um significado mítico ou ideológico, uma vez que ideológica é qualquer construção imaginária que ignora o seu fundo histórico-cultural, como a entendeu Merleau-Ponty (1964, p. 239).

Nesse sentido, se considerarmos que a questão norteadora do trabalho de Leda Herrmann (2007) – a ideia de dupla face: método-absurdo – é fecunda por ser enigmática, uma vez que articula paradoxalmente a ordem (método) e a desordem (absurdo), tal ideia requer mais trabalho de leitura para além do perímetro da obra de Fabio Herrmann, exigindo a passagem da endopoiesis para a exopoiesis (Green, 1994). É uma passagem necessária para garantir a transcendência da obra de Herrmann como obra de pensamento e não como discurso ideológico. Ou seja, é na exposição à alteridade, à diferença, ao debate público, que uma obra – qualquer obra – revela a sua particularidade, condição necessária para vir a se tornar universal, pois é a particularidade de uma obra que a torna irrepetível, capaz de ultrapassar o momento histórico em que se deu a sua produção. Com essa passagem, portanto, é dado um passo no sentido da transformação do campo instituído e delimitado pela obra, abrindo-se para esta um lugar contemporâneo na cultura contemporânea. Com efeito, é essa possibilidade que o trabalho de Leda Herrmann inaugura: por ser a primeira leitura publicada do conjunto da obra de Fabio Herrmann, ela tem o mérito de instaurar a fortuna crítica dessa obra e, portanto, de colocar a autoria dessa obra em questão. Ou seja, ao fazer a análise da obra, permite aos pósteros fazer contato com a Teoria dos Campos segundo uma nova chave, aceitando-a ou não. Com ela, é o campo da pré-formação do pensamento do autor que se abre à interrogação. Afinal, com a sua leitura, a autora deixa surgir um campo indeterminado a ser tomado em consideração por outros leitores cujos trabalhos, cada um a seu modo, se encarregarão de fazer a obra dialogar com outros autores, emergentes da filosofia, da psicanálise e da cultura num sentido amplo. E este é o impensado da leitura-obra dessa autora-leitora. Ou seja, ser levada a pensar aquilo que a obra de Fabio dá a pensar levou Leda a fazer surgir a necessidade de a obra ser considerada comparativamente, de sorte que, relembrando Roland Barthes, pode-se dizer que a eternidade de um autor não se deve apenas a ele mesmo, mas, em grande parte, ao trabalho diferencial de seus possíveis leitores. Instigados pela obra lida, são eles que proporão a ela perguntas diferentes às quais a obra poderá responder também diferenciadamente. A elaboração desse processo, que caracteriza o campo da recepção cultural de uma obra, surgirá mais ou menos densa de sentidos, dependendo, por um lado, da disposição dos leitores para o trabalho da interrogação e, por outro, da potencialidade da própria obra de fazê-los pensar. É desses dois aspectos que uma obra depende para se universalizar. Só assim ela realizará seu mais profundo desígnio: fundar um campo discursivo ou associativo em contato com o qual alguns leitores poderão se tornar novos autores – ideia que não é estranha aos psicanalistas. De fato, como afirmou Pontalis, em Psicanálise,

escrever não é exprimir ou comunicar, nem mesmo dizer, e menos ainda … "produzir um texto". É querer dar forma ao informe, alguma permanência ao mutável, uma vida – tão frágil, como se sabe – ao inanimado. O que autor e leitor esperam então obter não é, como no caso do escrito científico, uma verdade conclusiva, nem mesmo um fragmento único de verdade, mas a ilusão de um começo sem fim … (1991, p. 133)

Em suma, espero ter sensibilizado os leitores deste brevíssimo artigo para a complexidade da questão da autoria, seja ela referida à arte ou à psicanálise. E a questão é tão mais complexa quanto maior for a insistência na figura do autor como referência fixa da obra. Nesse caso, o risco que essa insistência cria é o de a obra cair no campo das ideologias, risco ao qual se expõe qualquer obra, quando a partir dela surge a tendência a sacralizar o nome do autor como detentor da palavra-verdade sobre o mundo ao qual ele se refere e sobre a disciplina que representa. Nesse caso, a implicação é o fechamento da obra de pensamento à alteridade que, como sabemos, sempre exige de nós abertura criativa para que dela possamos ter experiência. Nesse sentido, para escapar desse risco reducionista, o modo de ler exopoiético surge como uma perspectiva crítica. E a partir dela, atingido esse ponto da interrogação, repõe-se a pergunta que norteou este escrito – quem deve ocupar o lugar da autoria de uma obra que se destina a ser lida após ter sido narrada: aquele que a escreveu ou aquele que realizou a leitura da narrativa? Deixo aos interessados na questão um campo aberto para a elaboração das suas próprias reflexões. Afinal, como escreveu Pontalis, "enquanto houver livros, ninguém – nunca – terá a última palavra" (1991, p. 134).

 

Referências

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Endereço para correspondência
João A. Frayze-Pereira
Rua Joaquim Antunes, 727, cj. 72
05415-012. São Paulo, SP
Tel: 11 4702-4781
E-mail: joaofrayze@yahoo.com.br

Recebido em: 13/5/2012
Aceito em: 6/6/2012

 

 

1 Membro efetivo-docente da SBPSP. Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia – USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte – USP.
2 Esse livro de Leda Herrmann, originalmente, foi a sua Tese de Doutoramento em Psicologia Clínica, apresentada à PUC-SP, em 2005. Foi nessa ocasião que li esse trabalho como membro da Banca Examinadora. Posteriormente, escrevi um artigo sobre a Tese que foi publicado na revista Percurso, 38, pp. 31-38, 2007.