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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013
FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Os psicanalistas sabem debater?
Do psychoanalysts know how to debate?
¿Los psicoanalistas saben debatir?
Elias Mallet da Rocha Barros
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBSP
RESUMO
O autor discute neste trabalho as condições que dificultam um debate, e menciona historicamente alguns debates no campo da psicanálise que foram importantes, embora nem sempre tão frutíferos quanto poderiam ter sido.
Palavras-chave: debate, controvérsia(s), condições, Poincaré, Skinner, Green, Widlöcher.
ABSTRACT
In this paper, the author discusses the conditions that hinder a debate and mentions some historical debates on the psychoanalysis field that were important though not always as fruitful as they could have been.
Keywords: debate, controversy(s), conditions, Poincaré, Skinner, Green, Widlöcher
RESUMEN
En este trabajo, el autor discute ciertas condiciones que dificultan un buen debate y menciona históricamente algunos debates en el campo del psicoanálisis que fueron importantes, aunque no necesariamente tan fructíferos como podrían haber sido.
Palabras clave: debate, controversia(s), condiciones, Poincaré, Skinner, Green, Widlöcher
O título deste artigo é o mesmo de um livro, editado por Daniel Widlöcher em 2008, que se dedica ao exame de alguns dos grandes debates que marcaram a evolução da psicanálise durante o século passado. Não seria exagerado dizer que alguns dos saltos teórico-clínicos dos últimos 60 anos foram fruto direto ou indireto de um conjunto de controvérsias que marcaram a psicanálise nas diversas culturas e regiões do mundo. O livro nos propõe um plano para pensar a questão expressa pelo título. Não pretendo resumir nem resenhar o livro, mas tomá-lo como fonte de inspiração.
Widlöcher introduz seu trabalho fazendo algumas considerações sobre a natureza de um debate e procedimentos implícitos que podem ou não tornar frutífera uma controvérsia em debate. Pretendo neste artigo aprofundar esta questão com base em minha experiência de participação em debates, seja como espectador ou como debatedor.
Em seu livro, o autor conclui que os psicanalistas não sabem debater nem entre si nem num contexto interdisciplinar, e acrescenta que paradoxalmente, apesar dessa incapacidade, a psicanálise necessita desenvolver uma cultura do debate, e reforça seu ponto de vista mostrando o quanto nossa disciplina mapeou (ainda que em grau muito mais pobre do que poderia ter acontecido) grandes problemas teóricos e clínicos através dos debates que examina no livro. Nicole Delattre (2008) reforça este ponto de vista citando uma antiga preocupação já expressa por Ferenczi por ocasião da fundação da Associação Internacional de Psicanálise (ipa) em 1912. Em seu discurso na ocasião, Ferenczi diz que conhece bem a patologia das associações regidas pela "megalomania pueril, a vaidade, pelo respeito dedicado a formas vazias, obediência cega, pelo interesse pessoal em lugar de um trabalho consciencioso consagrado ao bem comum" (citado por Widlöcher, 2008, p. 199). É interessante mencionar o contexto em que esta associação (a ipa) foi fundada, contexto esse relacionado com a necessidade de se criar espaços para discussões, debates e controvérsias, escassos naquele momento. Na Europa do começo do século xx, particularmente em Viena, a fundação de associações visava criar um espaço de abertura para debates e controvérsias, dado que as estruturas universitárias e hospitalares eram muito hierarquizadas, e por isto hostis a qualquer exercício do espírito crítico. Nesse sentido, pretendia-se que a ipa fosse uma entidade menos controlada por hierarquias, e foi também nesta perspectiva que se criou a obrigatoriedade dos congressos internacionais.
Sempre me lembro de um comentário verbal de Jean Bertrand Pontalis dizendo que para sermos analistas precisaríamos de um paciente, de uma teoria e de um amigo com quem debater nossas ideias. Sem o amigo, dizia ele, corremos o risco de ficar congelados em nós mesmos. No mesmo sentido, John Steiner me dizia da importância para seu trabalho clínico de contar com amigos de quem pudesse ouvir o que ele chamava de second opinion. Uma segunda opinião proveniente de outra arquitetura afetiva em diálogo com a dele para reavivar sua imaginação clínica.
Os debates examinados no livro em foco são os seguintes:
"A discussão sobre as controvérsias", debate ocorrido na Sociedade Britânica entre 1941 e 1945, que opôs Anna Freud e seu grupo a Melanie Klein e seus companheiros. Este debate foi inteiramente documentado e objeto de um livro organizado por Riccardo Steiner e Pearl King, publicado em 1989 e traduzido no Brasil pela Imago;
"Os diálogos do rio da Prata - técnica e prática da psicanálise". Este deb ate ocorreu em 1972 na Argentina e na Sociedade uruguaia e versou sobre as diferenças de concepção e técnica existentes entre kleinianos e lacanianos. Dele participaram M. e O. Manoni, Serge Leclaire, J. Bleger, W. Baranger, D. Libermann e diversos outros analistas argentinos e uruguaios. Este importante acontecimento científico é relatado por Ricardo Bernardi no International Journal of Psychoanalysis, em 2003. Este artigo foi premiado como o melhor do ano;
A controvérsia entre Jean Laplanche, Daniel Widlöcher e Peter Fonagy, que teve por título: "Você leu Freud? Você leu Bowlby?";
O debate entre Daniel Widlöcher e Jacques Alain Miller sob o título "Que Lacan nós conhecemos?".
Nenhum destes debates teve vencedor, predominou o espírito de controvérsia. Widlöcher acentua que o fato de não ter havido um vencedor é positivo, mesmo tendo havido trocas acerca de pontos de vista e até acusações mútuas. Este espírito de disputa interfere na qualidade da argumentação e torna menos frutífera a ampliação dos pontos de vista sob cotejamento. O aspecto central foi o ganho propiciado pela necessidade de cada participante ser forçado a esclarecer seus pontos de vista. Esta pressão para esclarecer o pensamento faz com que cada debatedor se veja obrigado a estruturar seu pensamento de forma coerente, segundo o princípio da melhor argumentação e ao mesmo tempo forçando cada um a fazer face a seus impasses conceituais. Penso que este tipo de controvérsia tem aspectos muito positivos também por mostrar que cada pensador nunca é capaz de abraçar todo o campo epistêmico no qual navega. Cada um desses debates, ao mostrar e ressaltar os pontos de vista divergentes, propiciou também, através da elaboração das diferentes perspectivas, a compreensão de quão complexo era o assunto examinado. Dessa forma sugeriu novos problemas, diferentes perspectivas e uma ampliação das implicações dos conceitos em jogo. Penso que estes elementos é que permitem considerar exitoso determinado debate.
O quadro dos debates que vivi como positivos não estaria completo se não mencionássemos os encontros mais recentemente organizados sob o título "Klein-Lacan" em Londres e Paris, a cada três anos, que em seguida são publicados em livro. Antes desses, eu também acrescentaria como tendo sido frutífera para a psicanálise a polêmica entre a Associação Francesa de Psicanálise e Lacan nos anos 1950, 1960 e 1970. Este último debate não tem um período definido para iniciar-se e acabar, pois subjaz de certa forma a toda a história de constituição da psicanálise na França. De meu ponto de vista, todas estas controvérsias tiveram aspectos positivos, embora menos do que poderiam ter tido, e estão diretamente relacionadas com o desenvolvimento do pensamento psicanalítico no mundo. É claro que existiram outros debates e controvérsias importantes, mas o objetivo deste trabalho não é examinar exaustivamente este campo nem descer aos detalhes de cada um desses encontros, e sim me fixar no que facilita e o que dificulta o progresso do conhecimento por meio de debates.
Não podemos ignorar que foram algumas dessas grandes controvérsias que contribuíram para muitos avanços conceituais da psicanálise e para a parametrização de certas questões complexas que decorreram do mapeamento das diferenças entre as posições que até hoje estão presentes em nossos encontros científicos. Notem que estou considerando positivo não a predominância de um pensamento sobre outro, mas principalmente o aprofundamento das questões que se colocam à psicanálise numa determinada época de seu desenvolvimento e que eventualmente se tornam atemporais.
André Green (1992) aponta um paradoxo que assombra nossa escrita, mas que também vale para nossa postura em debates ao expormos as controvérsias: o analista-escritor faz face a um paradoxo quando escreve, pois pretende ao mesmo tempo comunicar e convencer, refletir e ter razão. O mesmo se aplica a um debatedor. Similar a esta é a nossa postura, legítima, diga-se de passagem, de mostrar que temos razão diante de nossos opositores, mas que facilmente se perverte redundando em perdas de potencial reflexivo, em manipulação da audiência, sedução e com grande frequência contribui para cristalizar uma atitude sectária. E nesse contexto a audiência facilmente se transforma numa torcida de futebol na expectativa de quem faz mais gols! Nessas condições, é evidente que a experiência deixa de ser educativa. Inúmeras são as posturas que dificultam a realização de um debate frutífero. Procurarei indicar algumas:
1. Um diálogo só pode existir se as diferenças de pontos de vista, sua magnitude e seu alcance forem reconhecidos. Como diz Guy Hall (2001), somente a partir do mapeamento das diferenças é que podemos estabelecer possíveis campos comuns. Nas suas palavras: "É difícil resistir à tentação de não atenuar as diferenças ou de promover falsas concordâncias. Em vez disso o que necessitamos é a reformulação dos sistemas irredutíveis que cada um tem" (Hall, 2001, p. 11);
2. Outra atitude que frequentemente observamos quando analistas de tendências diferentes (muitas vezes opostas) se encontram para debater um assunto consiste em evitar o debate argumentando um ponto de vista, através de uma fala que basicamente consiste/se limita a em homenagear o assunto em questão, enfatizando, por exemplo, a importância de um conceito, para em seguida aproveitar seu tempo para expor seu ponto de vista que nada tem a ver com a questão sob escrutínio;
3. Outra postura que impede a realização de um verdadeiro cotejamento de posições com vistas a uma ampliação da compreensão da problemática envolvida em um campo proposto para exame consiste em desqualificar o adversário de forma sutil, seja sugerindo que o ponto de vista do outro provém de uma visão já ultrapassada, seja que se tornou "caduca". Neste contexto um dos debatedores adota uma atitude de ignorância ativa, mas benevolente, do ponto de vista representado pelo outro polo do conflito de ideias. Essa atitude impede a exploração do valor heurístico da hipótese sob debate;
4. Mata-se também o diálogo através do que em certos ambientes acadêmicos se convencionou chamar de argumento do espantalho. Este consiste basicamente em atribuir ao adversário uma afirmação ou uma consequência de seu ponto de vista que jamais aquele pretendeu arguir. E assim lá se vai o debate, pois grande parte do tempo será centrado na argumentação de que isto nunca foi afirmado pelos representantes de um campo de ideias e nem por ninguém... e lá se foi um tempo precioso!!!
5. Tanto a utilização de conceitos amplos demais quanto fechados em excesso impedem um debate frutífero. Se de um lado é positivo que deixemos aberta a porta para uma construção progressiva dos conceitos, de outro, se neste cabe tudo, não é possível ampliá-lo no contexto de uma controvérsia, pois a falta de precisão borra as diferenças.
Luiz Tenório de Lima, em debate recente na SBPSP (abril 2013), destacou um ponto que a meu ver merece ênfase e nos convidou ao mesmo tempo a fazer certas discriminações. Disse ele:
Mas a diferença está relacionada também com a plasticidade e a maleabilidade do conceito. Por isso ele é eficaz: por ser um conceito imperfeito, um instrumento imperfeito de investigação analítica que está sempre em curso, desenvolvendo-se. É por isso que tenho simpatia pela identificação projetiva. Digo sempre isso em meus seminários. É um conceito imperfeito, uma teoria mais ligada ao que Popper chamava de teoria nominalista - uma teoria que só serve para a investigação. Não é essencialista como a maioria das teorias. Um dos equívocos nas nossas discussões é tomar uma teoria - como a teoria da identificação projetiva - como se fosse uma essência, uma teoria essencial segundo a qual as formas são formas degradadas em relação à sua forma perfeita. Então uma discussão do tipo "isso é identificação projetiva", "não, isso não é identificação projetiva" é uma discussão na qual se supõe que estamos tratando de uma categoria perfeita, de uma essência.
É fundamental esta diferença entre teorias nominalistas e essencialistas, sendo que as produtivas para um debate são as nominalistas, que convidam ao pensamento indagador e a uma atitude de pesquisa. As essencialistas servem mais à pesquisa do que ao espírito de debate e a trocas de ideias. Mas, de meu ponto de vista, é preciso não confundir a natureza imperfeita e incompleta de um conceito, que pode ser considerada positiva, com a falta de precisão em sua definição. A falta de precisão na definição, ainda que seja uma simples delimitação do campo abarcado, impede a pesquisa, dificulta o trabalho do pensamento reflexivo por borrar as diferenças, que caracterizam as teorias nominalistas. A imprecisão favorece a postura essencialista;
6. Um fenômeno comum nos debates institucionais pode ser observado na interação que se estabelece entre um debatedor que excita a plateia, que por sua vez se acumplicia àquele (de forma não consciente) de maneira a eliminar qualquer sentimento de exclusão ou de ignorância que possa estar sendo vivido por parte da audiência com a qual a exposição da ideia nova ou a atitude de aprofundamento conceitual pode confrontar. É importante ressaltar que textos que introduzem ideias novas são na maior parte das vezes difíceis de conviver. Um texto novo gera estranheza, demanda que a audiência ou o leitor convivam com ele um certo tempo para poder assimilá-lo. Este processo contém algo que pode ser vivido como desagradável. Mas, ao evitar a estranheza gerada pela novidade, podemos nos arriscar a encontrar permanentemente o mesmo, fantasiado de cores e figurinos diferentes.
Uma maneira, nem sempre consciente, de excitar uma plateia consiste em ampliar o tema, fugindo do centro da questão em debate. No caso da psicanálise, é fácil conectá-la com literatura, diferentes formas de sexualidade, fenômenos culturais, significado da experiência humana, questões artísticas etc. E, diante deste espetáculo que convida todos da audiência a se sentir parte do mundo do conferencista, já que este tipo de fala abre muitas portas, a controvérsia desaparece. E ai daquele que nesta atmosfera tentar trazer novamente o debate para as especificidades de um conceito como, por exemplo, o de transferência, suas diversas acepções etc., quando um dos debatedores está falando, suponhamos, da criatividade na arte ou na beleza de um Bernini. É preciso ficar claro que não estou me posicionando contra as reflexões sobre a interconexão entre os diversos campos do saber. Exemplos frutíferos disso podem ser encontrados nos trabalhos de Meltzer, em que associa o campo da estética com o da psicanálise, fazendo um uso muito proveitoso de conceitos provenientes da teoria da música para o processo analítico. A questão em voga é a manipulação da audiência, conscientemente ou não, através de uma ampliação do campo do debate de forma a evitar o desconforto do sentimento de exclusão que o novo inevitavelmente produz.
Este tipo de démarche, que por sinal é muito comum, exige da parte da audiência e/ou dos promotores do encontro muita coragem e firmeza para manter o foco do debate, e assim discriminar um espetáculo cênico de um verdadeiro debate;
7. Muitos debates morrem através da criação de uma atmosfera ideologizante. Esta atmosfera assume muitos coloridos e se manifesta através de um clima de leve excitação coletiva. Por exemplo, cria-se um clima de que todos os presentes são inovadores, todos são obviamente de esquerda ou todos rejeitam o conformismo, além naturalmente de estimular o sentimento de que todos somos criativos... e ai de quem confrontar tal audiência, naquele momento, com a necessidade de parar para pensar!
E, por fim, um ponto que não poderia deixar de mencionar mais uma vez: nós analistas estamos adotando um modelo de debate com tempo de exposição muito limitado, o que é profundamente deletério para o desenvolvimento de nosso campo, que necessita de controvérsias, discordâncias, variedade de opiniões etc.;
8. Em nome da democracia e do estímulo ao desenvolvimento da criatividade individual, nossas revistas, congressos e painéis progressivamente reduzem os tempos e espaços para nossas manifestações reflexivas. Sou integralmente favorável a que façamos tudo para prevenir a chatice, para combatermos aqueles que repetem sempre o mesmo assunto e nunca mudam de opinião. Mas não estou tão seguro de que, ao limitarmos os tempos de exposição aos famigerados 20 minutos (nossa nova unidade de inteligência, como ironizava André Green), estejamos fazendo apenas isto.
Ao reduzirmos o tempo (e o espaço, no caso das revistas) de manifestação na maioria de nossos congressos (e o espaço nas revistas à cerca de 10.000 palavras diante das 16.000 vigentes dez anos atrás), criamos um ambiente muito mais convidativo para concordar com um autor ou ideias, do que para criticar, discordar, montar um argumento para expor a inconsistência de uma teoria, algo impossível num intervalo restrito de tempo. Concordar exige menos espaço e menos tempo do que discordar de forma rigorosa. É fácil concordar em poucas páginas com a imbecilizante teoria criacionista, hoje disfarçada sob o convidativo nome de desenho inteligente, do que destruí-la com argumentos científicos a favor do evolucionismo em 20 minutos ou em dez páginas. Tenho a impressão de que estamos adotando - sem sabê-lo - um modelo conformista que nos convida a apagar as diferenças, que mata a controvérsia e cria espaço para a construção de um curioso paradoxo: a concordância se dá em torno da ideia de que somos pluralistas, que isto é bom num certo nível (não disputo esta opinião), e não, como deveria ser, em torno da natureza deste pluralismo.
Agora, quais são as exigências de um debate produtivo?
Antes de mais nada, o objetivo de um debate sobre visões controversas não pode ser - no nosso caso - homogeneizar nossas concepções ou teorias analíticas - temos uma tendência pluralista -, mas fazer avançar nossas reflexões sobre o que observamos através do aprofundamento de suas raízes constituidoras. Buscamos num debate, penso eu, ângulos comuns para a observação de diferentes experiências, de modo a podermos conversar sobre aquilo que apreendemos e, com isto, nos fertilizar mutuamente. Nosso objetivo não é avaliar que abordagem ou que escola é melhor, mas compreender a natureza das problemáticas geradas e das respostas fornecidas pelos diferentes pontos de vista, de modo que possamos estabelecer um debate profícuo e uma verdadeira troca de opiniões. Uma discussão torna-se proveitosa quando somos convidados pelos argumentos dos outros a duvidar de nossas crenças, a perceber os limites de nossos modelos. Nesse sentido, Poincaré expressa elegantemente qual deveria ser o fruto de um confronto intelectual:
As boas teorias são flexíveis. Elas triunfam sobre as objeções sérias e o fazem, transformando-se. As objeções servem não para invalidar as boas teorias, mas para que estas possam desenvolver todas as suas potencialidades latentes. (Poincaré & Hadamard 1993, p. 27)
Com o fito de delinear a natureza das problemáticas geradas pelas posturas em debate, necessitamos destrinchar a lógica interna dos conceitos-chaves de cada uma das posições. Contudo, para tanto é preciso enfocar a matriz mais ampla, social e intelectual, da qual nasce uma obra. Esta postura implica num trabalho árduo de exegese dos conceitos e do vocabulário usado para defini-los. Quentin Skinner enfatiza que "a natureza e os limites do vocabulário normativo disponível em qualquer época dada também contribuirão para determinar as vias pelas quais certas questões específicas virão a ser identificadas e discutidas" (Skinner, 1969, p. 17).
Conceitos como o de contratransferência, identificação projetiva, ou mesmo o de transferência evoluíram, ganharam novos significados, perderam algumas conotações e adquirem sentidos diferentes na obra de cada autor.
É importante levar em conta que mesmo os textos considerados clássicos adquiriram novas conotações à medida que foram lidos ao longo dos anos. É frequente que um texto recente lance uma nova luz sobre os artigos clássicos. Os textos sofrem transformações através daquilo que Octavio Paz (1993) chamou de intertextualidade. Os textos das diversas épocas interagem entre si, produzindo novos sentidos, apagando outros etc.
Essa postura nos defronta com a questão de como esse procedimento proposto nos permite identificar, nos textos clássicos, aspectos que não podem ser encontrados na sua mera leitura. Ainda é Quentin Skinner quem diz: "A resposta, em termos genéricos, penso é que ele nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando os escreveram" (Skinner, 1969, p. 17). E eu acrescentaria, seguindo Julia Kristeva, que "todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto" (Kristeva, 1978, p. 72).
Agradecimento
Agradeço Haroldo Pedreira pelo seu competente editing desse artigo e pelas sugestões feitas ao texto, todas adotadas.
Referências
Delattre, N. (2008). La psychanalyse requiert-elle des principes d'exception? In Widlöcher, D., Les psychanalystes savent-ils débattre? Paris: Odile Jacob. [ Links ]
Green, A. (1992). Transcrição da origem desconhecida, a escrita do psicanalista: crítica do testemunho. Revista Brasileira de Psicanálise, 26(1/2),151-190. [ Links ]
Hall, G. (2001). Introdução. In B. Burgoyne & M. Sullivan (Eds.), Diálogos Klein-Lacan. (pp. 9-12). São Paulo: Via Letera. [ Links ]
Kristeva, J. (1978). A palavra, o diálogo e o romance. In J. Kristeva, Semiótica do romance. Lisboa: Arcádia. [ Links ]
Paz, O. (1993). A outra voz. (W. Dupont, trad.). São Paulo: Siciliano. [ Links ]
Poincaré, H. & Hadamard, J. (1993). Essai sur la psychologie de l'invention dans le domaine mathématique: L'invention mathématique. Paris: Sceaux. [ Links ]
Skinner, Q. (1969). Meaning and Understanding in the History of Ideas, History and Theory, 8 (pp. 3-53). Oxford: Oxford University Press [ Links ]
Widlöcher, D. (2008). Les psychanalystes savent-ils débattre? Paris: Odile Jacob. [ Links ]
Recebido em: 24/5/2011
Aceito em: 28/5/2013
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