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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013
SESSÃO DE CINEMA
Melancolia de Lars Von Trier e a psicopatologia contemporânea
Lars von Trier's Melancholia and contemporary psychopathology
Melancolía de Lars von Trier y la psicopatología contemporánea
Luiz Meyer
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
Diferentemente das abordagens que veem o filme de Lars Von Trier como ilustrativo de um quadro de melancolia, o autor, partindo de um interpretante que permeia todo o enredo - o slogan - o vê como uma reflexão psicopolítica sobre os impasses em que estão envolvidos os sujeitos ativos no mundo ocidental, englobados pelas formas contemporâneas do capitalismo e do cientificismo tecnológico.
O slogan é usado pela personagem central - uma publicitária - como prótese que substitui as relações afetivas básicas. A necessidade de uso desta prótese, que estrutura um comportamento histérico, está ligada a dinâmica da família de origem da personagem. Quando esta prótese perde seu papel de sustentação ocorre o encontro com o vazio, a depressão, e uma lenta reconstrução da identidade agora des-alienada. Alegoricamente este processo está representado pelo choque entre um planeta desgarrado e a terra.
Palavras-chave: cinema e psicanálise, melancolia, interpretante, impasses contemporâneos, histeria
ABSTRACT
Differently from approaches that see Lars von Trier's film as illustrative of a melancholic state, the author, from the standpoint of a concept that permeates the entire plot and functions as an interpreter - the slogan - sees it as a psycho-political reflection about the impasses where active subjects of western world find themselves surrounded by contemporary forms of capitalism and technological scientificism. The slogan is used by the main character - a publicist - as a prosthesis that replaces basic affective relationships. The need of using this prosthesis, which structures a hysterical form of behavior, is related to the character's original family dynamics. As this prosthesis loses its supportive role, emptiness and depression show up and afterwards a slow reconstruction of the now dis-alienated identity begins. Allegorically, this process is represented by the collision of a planet hurling through space and the Earth.
Keywords: Psychoanalysis and Cinema, melancholia, interpreter, contemporary impasses, hysteria
RESUMEN
A diferencia de los abordajes que ven la película de Lars von Trier como ilustrativa de un cuadro de melancolía, el autor de este texto, partiendo de un interpretante que permea todo el enredo -el slogan- lo ve como una reflexión psico-política sobre los impases en que se encuentran los sujetos activos en el mundo occidental, englobados por las formas contemporáneas de capitalismo y cientificismo tecnológico. El slogan es usado por el personaje central - una publicitaria - como una prótesis que substituye las relaciones afectivas básicas. La necesidad del uso de esta prótesis, que estructura un comportamiento histérico, está relacionada a la dinámica de la familia de origen del personaje. Cuando esta prótesis pierde su papel de sustentación sobreviene el encuentro con el vacío, la depresión y una lenta reconstrucción de la identidad, ahora des-alienada. Alegóricamente este proceso está representado por el choque entre un planeta desgarrado y la tierra.
Palabras clave: cine y psicoanálisis, Melancolía, interpretante, impases contemporáneos, histeria
Melancolia é um filme composto de um prólogo e duas partes - dois painéis complementares -, intituladas "Justine" e "Claire", nomes de duas irmãs de perfis psicológicos contrastantes. Na aparência, é um disaster film, já que tem como pano de fundo um planeta desgarrado de sua órbita, que ameaça chocar-se contra a Terra e eventualmente destruí-la.
Digo "na aparência", porque não há verdadeiramente suspense, uma vez que o prólogo deixa claro como as coisas terminam, seja mostrando explicitamente a colisão final entre os dois astros, seja:
1. antecipando o cenário de desequilíbrio gravitacional e magnético causado pela iminência do choque (aves que tombam, o chão que cede, a natureza alterada);
2. seja aludindo às vivências internas dos personagens diante da iminência da catástrofe (Justine caminhando com seu vestido de noiva presa a uma rede de novelos de lã. Claire perdida, carregando o filho no colo).
Na primeira parte assistimos à festa do casamento de Justine, realizada em uma suntuosa mansão, localizada em um campo de golfe e diante do mar. A festa é patrocinada por John, seu cunhado milionário, e gerida por sua irmã. Ao longo da celebração, Justine lentamente vai se desgarrando (como o planeta) da atmosfera festiva e convencional, se isolando, queixando-se de sensações corporais estranhas, se ensimesmando, até que a festa e a relação com o noivo desemboquem em um fracasso patético.
Na segunda parte, passada a festa, John, Claire e seu filho retomam a rotina cotidiana e aprazível na mansão palaciana. Justine, entretanto, em continuidade com a crise que pusera fim ao projeto de casamento, mergulha em um estado de confusão, perplexidade, abulia, desorientação e inapetência, do qual vai se recuperar paulatinamente. Em paralelo ao sofrimento de Justine (e à sua recuperação), vai ficando progressivamente mais presente a ameaça de um choque planetário capaz de destruir a Terra. Claire exprime sem inibição sua apreensão, angústia e sentimento de perseguição, enquanto John procura manter a fleugma, apoiando-se numa retórica científica. Em ambos painéis ocorre o rompimento de uma rotina previamente planejada: provocada por um agente interno, no primeiro, e por um externo, no segundo. Este corte vai descentrar os personagens, obrigando-os a redimensionar a perspectiva com que até então encaravam sua existência.
O caráter alegórico do enredo é evidente. A trama serve à exposição de questões de extrema importância do/no mundo contemporâneo. Entre elas, ganha relevo a desvalorização da vida íntima e o desinteresse pelo poder criativo da vida emocional a ela atrelada. Em contraste, a vida contratual é abordada com deferência e apresentada como atraente e despreocupante. Nos consultórios dos psicanalistas, as chamadas "novas patologias" - objeto crescente de artigos, ensaios e congressos - espelham a produção psíquica resultante dessa conjugação. Embora ostente como título uma entidade nosográfica "clássica" (basta lembrar o trabalho de Freud, "Luto e melancolia"). O filme de Lars Von Trier se vale da questão da depressão para, na verdade, contextualizar estes quadros onde imperam o vazio psíquico e a vacuidade de projetos existenciais. Esta contextualização faz com que os vínculos com os objetos primários, a fratria, a dinâmica familiar, as relações amorosas, sejam continuadamente referidas ao contexto social onde operam, de modo que o filme pode ser considerado uma reflexão psicopolítica sobre os impasses em que estão envolvidos os sujeitos ativos no mundo ocidental, envolvidos pelas formas contemporâneas do capitalismo globalizante e do cientificismo tecnológico. É preciso lembrar que haverá sempre um preço a ser pago pela lucidez que vier a resultar da eventual apreensão do funcionamento do sistema gerador destes impasses. Cada sessão de psicanálise pode se tornar um passo na caminhada que perfaz esta apreensão.
Minha intenção, neste trabalho, é rastrear estas questões, tal como se desvelam no filme, valendo-me do referencial psicanalítico como ponto de fuga. A fortuna crítica do filme, bastante extensa, centra-se, como era de se esperar, no conceito de Melancolia, procurando estabelecer conexões e ramificações abrangentes, que vão da evocação hipocrática da bílis negra e o humor a ela ligado, influenciado por Saturno, à clássica representação de Durer, que a figura no aguardo da inspiração, presumida como finamente perceptiva e agudamente lúcida. Esta fortuna mencionará também o soleil noir do poema El desdichado de Nerval, não deixando de aludir à resistente Justine, contraponto de sua viciosa irmã Juliete, na obra do Marquês de Sade, Justine ou os infortúnios da virtude.
Slogan
Meu interesse, entretanto, voltou-se mais para a compreensão do projeto existencial da personagem Justine e de sua forma de inserção, o que abrange a natureza das relações que ela estabelece e que a envolvem. Para levar adiante esta linha de pensamento, vou me valer de um interpretante, esperando que minha forma de explorá-lo não esteja traindo o pensamento de Fabio Herrmann, idealizador do conceito. Entendo-o como um elemento presente no material, por vezes de forma explícita, e outras, de modo simbólico ou apenas alusivo, cujo percurso, à maneira de um fio que vai aflorando e imergindo na tela de um bordado, termina por alinhavar um nexo que, rebatido sobre o material - embora lhe seja inerente - cria um foco interpretativo abrangente. O interpretante flagrado é o slogan: uma frase curta, fácil de lembrar, cuja intenção é tornar notável uma ideia ou produto. A palavra original usada no filme é tag, slogan é a tradução brasileira utilizada nos subtítulos. O tag (legenda) seria uma frase bem conhecida e/ou frequentemente usada com finalidade enfática. Slogan, que Houaiss define como "expressão concisa, fácil de lembrar, utilizada em campanhas políticas, de publicidade, de propaganda, para lançar produto, marca etc." é muito apropriada ao espírito do filme, como se verá ao longo da exposição.
O slogan visa produzir no receptor uma aceitação e convicção acrítica a respeito da mensagem que lhe é dirigida. Em vez de construir um juízo próprio relacionado ao que é percebido, apoiado nas evidências que lhe estão disponíveis, o sujeito substitui o trabalho de dedução pelo uso de uma formulação preconcebida que se apresenta não só como óbvia, mas também como se fosse resultante de um percurso elaborativo. O significado das coisas - e seu valor - nos são dados de imediato pelo slogan, poupando ao sujeito a necessidade de discriminação diante de alternativas possíveis. A adesão ao slogan é um freio à imaginação e um convite à submissão. Sua meta, entre outras, é a de abolir a capacidade de avaliar. O slogan está a serviço de um sistema de pensamento (que ele simultaneamente organiza), cuja característica central é a substituição da experiência pelo uso repetitivo de uma fórmula preconcebida e induzida, que o sujeito entretanto concebe como pessoal. Vemos que esta operação é um somatório de dois movimentos: de um lado, o objeto é percebido como possuindo um sentido nele já incluído e, de outro, o sujeito é levado a acreditar que foi ele que criou o sentido. Nada é problemático, pois a veracidade da percepção está garantida pelo viés onisciente do slogan. Assim, através do slogan o mundo é oferecido como ready-made. Como ele é puramente afirmativo, portanto alheio à experiência, propõe-se a induzir a confiança e não a conquistá-la. Do consumidor - no seu sentido amplo e genérico - a quem o slogan se dirige, nada é exigido a não ser a fidelidade ao seu lema. A oferta do produto, aparentemente livre, oculta a indução à premência de escolher - esta sim é imprescritível. Mesmo entendendo que o que lhe é oferecido é o mundo do consumo organizado pelo slogan, o sujeito o adota como visão de mundo, como estruturador de sua percepção. Acredito que um dos temas do filme é o da institucionalização do slogan (até o ponto em que ele mesmo se torna instituição) e as consequências literalmente catastróficas que dela decorrem. Deste viés, o filme nos mostra o ancoramento de Justine no mundo do slogan, seu lento afastar-se quando surge a percepção de sua artificialidade, o sofrimento psíquico decorrente deste distanciamento e a recuperação pessoal, ao final, face a um mundo condenado. Se, no limite, slogan e ideologia se confundem, o preço da lucidez a ser pago, ao qual me referi linhas acima, passa pelo esforço de pensar autonomamente.
Quando adotamos o interpretante como guia, dissemos que ele pode surgir no material ora de forma explícita, ora alusiva. No filme, a primeira se faz presente como uma caricatura mordaz.
Mark, padrinho do noivo, e patrão da noiva, ao longo do seu discurso de saudação aos recém-casados, nos revela que Justine é uma brilhante publicitária e que, a título de presente de casamento vai promovê-la a diretora de arte. Entretanto, ele encadeia sua fala, disparando: Justine onde está meu slogan?Você sempre foi boa em criar um slogan rapidamente. E prossegue: Será que a vida emocional tomou conta de você e não consegue mais trabalhar?, dilema que para ele não existe, já que sempre considerou Justine "mais funcionária do que noiva". Ato contínuo, projeta, numa tela ao fundo, uma foto, proclamando em tom grave e rítmico: Publicidade, Justine, Publicidade. Deixa então no ar uma proposta: ela deve criar, até o fim da festa, um slogan para aquela imagem (para auxiliá-lo neste objetivo encarrega seu sobrinho Tim de assediá-la continuadamente ao longo do evento. Um pouco como nas fábulas infantis, se Tim obtiver êxito será regiamente recompensado; caso contrário, será defenestrado do emprego). Ele termina seu discurso agradecendo a Justine por continuar sendo boa em publicidade.
Mark dá a entender que algo está a acontecer com Justine que o deixa preocupado. Sempre ágil na criação do slogan, ela teria passado a atrasar sua entrega. Mark não hesita em fazer seu diagnóstico: Justine está intoxicada por uma vida emocional que emperra sua criatividade. Ele não quer ver sua funcionária parasitada por emoções que a distraiam de seu dever. O bordão Publicidade... Publicidade serve como advertência e acompanha a intimação para que ela encontre o slogan necessário. A oposição que Mark estabelece entre vida emocional e vida profissional - a primeira sendo uma ameaça para a segunda -, de certa forma, escancara as linhas de força que estruturam a identidade do personagem, e até mesmo o funcionamento da própria festa. Esta se organiza como um espetáculo burguês, com tinturas aristocráticas, devendo evoluir segundo etapas predeterminadas, numa programação diagramada, cuja analidade é ironizada pelo diretor do filme. Se John e Claire são os maestros que ditam o compasso, não podemos esquecer que foi Justine quem a desejou e idealizou: e é ela que finalmente traz sua vida emocional, seu desconforto e ansiedade latentes e disruptivos para o interior desse espetáculo obsessivo e desvitalizado. Espetáculo este que é basicamente a ratificação da função do slogan: pois ele aí opera em um tal nível de naturalização que sua presença e progressão no interior da festa, assim como a exigência feita por Mark, são aceitas de modo inquestionado, como se fossem inerentes à própria comemoração.
Casamento
Na maioria das vezes, entretanto, o interpretante emerge na trama narrativa de forma alusiva, indireta, metafórica. A cena inaugural da primeira parte é exemplar neste sentido.
Uma limusine branca vai enfrentando dificuldades para mover-se num caminho coleante. As curvas são fechadas, a estrada estreita, pedras funcionam como obstáculos, as rodas derrapam. Parece um animal hesitante e acuado, deslocando-se para frente e para traz à procura de uma saída. Há uma inadequação evidente entre o tamanho do carro e a largura e o traçado da estrada: algo ali está fora de lugar. Mas não para os passageiros, um casal de noivos elegantemente trajados com as roupas clássicas da cerimônia, conduzidos por um motorista uniformizado: para eles o problema é vivido de forma lúdica, despreocupada. Além do mais, não cessam de demonstrar o amor que os une: olhares langorosos, beijos incessantes, falas apaixonadas. Este duplo nível de acontecimentos e, sobretudo, sua insistência e repetição causam no espectador um vago constrangimento, uma quase aflição, ligada ao empenho com que o casal expõe e impõem um ao outro o seu afeto, enquanto o carro se debate. Face ao exagero, nasce no espectador uma desconfiança a respeito da autenticidade da relação: eles se amam real e espontaneamente ou estão seguindo ditames de amor; é amor ou encenação de amor?
Da limusine, passamos a outra encenação: a festa, inteiramente planejada por um profissional do ramo, elemento central e centralizador do evento que, num determinado momento, percebendo o desmantelamento da programação exclama: Ela arruinou o meu casamento! A função do casamento havia se tornado a de confirmar o seu próprio planejamento, estando a serviço do planejador. O sucesso do casamento se avaliaria pela sua capacidade de cumprir as etapas previamente programadas. John, o cunhado, não perde nunca a oportunidade de enfatizar as somas elevadas que estava gastando para patrocinar a festa.
A festa vai servir também para apresentar e caracterizar os pais de Justine. Ele é um bufão, que faz brincadeiras infantis e trata todas as mulheres pelo mesmo nome: Bety. A mãe é uma mulher amarga: instada a falar na cerimônia, diz que detesta a ideia de casamento; trata o marido com desprezo, apresentando-o como um homem sem ambição. Ao longo da festa, a descrição ganha em contundência: convidada a presenciar o corte do bolo, a mãe diz que detesta rituais, e não seria agora que iria prestigiar um deles, já que, no passado, não estivera presente quando Justine fizera seu primeiro cocô no penico e tivera sua primeira relação sexual. Mais tarde, quando Justine conta para a mãe os sintomas que está sentindo - dificuldade de andar, a sensação de que um novelo de lã lhe envolve os pés, a impressão de estar anestesiada - ela se mostra impérvia e simplesmente diz à filha que caia fora. Quando Justine se volta para o pai, pedindo para que ele durma na mansão, pois precisa falar com ele a sós, no café da manhã, ele se desembaraça do pedido e deixa-lhe um bilhete - endereçado a Bety - dizendo que voltou à cidade aproveitando uma carona. Von Trier certamente não colocou estes pais no filme por acaso. O comportamento deles e suas falas na festa parecem estar na raiz da debacle que lentamente vai acometer Justine.
Prótese
Até aqui minha narrativa teceu a hipótese da existência de um interpretante - o slogan -, que estrutura o enredo, nele surgindo de forma explícita (como na fala de Mark), seja de forma implícita (os comportamentos de "encenação"). Já o comportamento dos pais é uma cunha inserida nesta encenação. Intercalado no fluxo festeiro - embora dele derivado -, esta cunha cria ao seu redor uma turbulência que serve para evidenciar com contundência o aspecto artificial da celebração, a falsidade dos afetos e a superficialidade das relações. John, aliás, percebendo que a sogra está funcionando como um obstáculo ao livre curso da encenação desse fluxo, numa atitude preventiva algo tardia, a expulsa, jogando fora sua mala e suas roupas, despejando-as na entrada da mansão (que o mordomo, mais tarde, diligentemente, seguindo o figurino, recuperará).
O vitupério da mãe contra o casamento traduz seu empenho em degradar a cena primária. Ela afirma não só que numa alcova nupcial nada se passa de atraente e criativo (ou mesmo excitante), como também, em paralelo, através de uma ausência afirmativa, desqualifica a maternagem: toda relação libidinal entre mãe e filha é esvaziada e tratada como ritual mecânico.
O pai, por sua vez, com seu comportamento conformista e veleidoso, ao chamar todas as mulheres pelo mesmo nome, as transforma em genéricas, destituindo-as da posição singular que, em cada relação, elas ocupam no triangulo edipiano.
Certamente não é gratuito o perfil que Von Trier emprestou aos pais de Justine, como também não é arbitrário supor que eles pouco a investiriam libidinalmente, dificultando assim a construção de sua autorrepresentação enquanto filha (é apenas uma Bety, entre outras). Justine não teve objetos primários que funcionaram anacliticamente. Tampouco é arbitrário postular que esta carência identitária a leva à procura de algo que venha de fora, aposto a ela, que lhe proporcione um sentimento de inclusão: a leva à procura de uma prótese. Minha hipótese é que esta prótese é o slogan e, de certo modo, a vida em slogan (padrão que ecoa parte de nossa clínica, mas que também aponta para o perigo de fazermos da psicanálise a nossa prótese).
O que estou fazendo é sugerir uma dinâmica que precede, ou melhor, cria condições para certas formas de psicopatologia contemporânea. O aspecto relevante desta hipótese não reside na descrição da relação de Justine com seus objetos primários e nem no delineamento das peculiaridades destes, mas sim em apontar para a atitude oportunista do slogan, sempre à espreita de todo vácuo identitário, de prontidão para preenchê-lo. Por este viés, produção capitalista, consumo e reificação psíquica se entrelaçam. Nos entrelaçam, isto é, passam a fazer parte da problemática do mundo interno do analista, que é passível, tanto quanto seu paciente, de ser cooptado pelos sestros do mercado.
Histeria
O fato de ter colocado a melancolia entre parênteses não me desobriga, sobretudo agora, após mencionar a função defensiva da prótese psíquica e o imediatismo do slogan, de dar forma psicopatológica à dinâmica descrita. A plasticidade do slogan - que circula como a goteira que, ao escoar, procura sucessivos declives, terminando por desaguar no nível mais inferior, bem longe de seu ponto de origem - evoca a polimorfia da histeria. Afinal, qual patologia possibilita ao protagonista adquirir as mais variadas faces, acomodando-se à tutela onipresente do slogan?
A forma neurótica habitual é tradicionalmente compreendida como um conflito (por exemplo, entre desejo e interdição), do qual resulta uma solução de compromisso, isto é, o sintoma cuja estrutura por sua vez "revela" este conflito. Freud (1969/1908), em seu artigo "As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade", escreve que "um sintoma histérico é a expressão de um lado de uma fantasia sexual inconsciente feminina e de outro, de uma fantasia sexual masculina" (p. 89). A histérica sobe ao palco para tornar-se um dos personagens da cena primária. Esta representação permite que ela se torne um, ou outro, ou ambos membros do casal primário, isto é, permite que ela se torne onipresente e polivalente (auntstellbreaker, noiva langorosa e brincalhona, diretora de arte criativa). Ocorre um deslocamento contínuo, um vaivém desconcertante provocado pela mudança de posição cada vez que sua presença usurpadora é denunciada ou impedida.
No caso de Justine, entretanto, não se trata da cena primária inconscientemente percebida ou instituída, mas de uma cena estruturada e oferecida sob o signo do slogan: Justine se encaixa nos modelos publicitários da cena primária, modelos pré-fabricados, que tornam sua vida amorosa e seu casamento pura encenação. Por isto mesmo, congruente com um projeto de adesão submissa a uma vida de pura superficialidade.
Pode parecer paradoxal que um trabalho que tenta abordar aspectos das "novas patologias" termine identificando-as com a histeria, síndrome clássica, presente nos livros de psiquiatria desde o século xix, cujo estudo é o marco inicial da psicanálise.
Mas é preciso atentar para o fato que na contemporaneidade o conflito neurótico há pouco aludido tende a se resolver predominantemente por tamponamento, através da adesão a um comportamento naturalizado. Nesta circunstância falta o "trabalho de elaboração", solução sintomática construída pelo sujeito. Quando o comportamento se desgasta e a adesão se rompe - comportamento e adesão que são comumente componentes da histeria - aparecem o vazio existencial e sua desesperança, tão características dos quadros atuais.
Quando seu noivo lhe propõe, como plano de vida, uma existência à sombra de um pomar de macieiras imperiais, com um balanço de criança amarrada a um dos galhos, Justine, que a esta altura já começara seu processo de desgarramento, percebe o descompasso entre o projeto do noivo e a ruptura que nela se operava. O projeto dele é, digamos assim, autêntico, e aponta para evolução da cena primária que ele havia internalizado e que espelha o mundo burguês no qual havia sido criado. Mas ela agora o percebia tão somente como parte do mundo do slogan, do qual começara a tomar distância. Justine vai se dando conta que está vivendo uma vida que não é sua.
O filme prossegue como a narrativa da debacle de Justine, isto é, seu caminho em direção ao abandono da prótese (que se completará na segunda parte, ganhando ares de depressão melancólica), para desembocar num final niilista, carregado de ceticismo, face a um mundo que Justine julga indigno de ser restaurado. Este itinerário - que vou rastrear em parte - remete à emersão de formas alusivas e simbólicas do slogan, já agora problematizadas por Justine, que vai percebendo o universo segregado que construíra e flagrando suas consequências.
1. Metaforicamente, a percepção de que é possível impor um limite à eficácia do slogan e seu voluntarismo é representada pela recusa de Abraham, o cavalo, a transpor a pequena ponte, durante duas cavalgadas. Justine o esporeia e chicoteia, mas ele mantém sua teimosia que, no caso, aponta para seu instinto de preservação.
2. Uma das cenas mais comoventes, indicadora da turbulência por que passa Justine, ocorre quando ela entra na biblioteca de forma desesperada, substituindo sofregamente os livros que estão dispostos nas prateleiras. Eles mostravam desenhos e pinturas abstratas, que ela troca por pinturas renascentistas. Uma das características da arte moderna é romper com a reprodução da aparência. A arte tradicional devolvia ao universo burguês uma representação que confirmava e consolidava sua visão de mundo. Na biblioteca, nicho no interior da mansão, os livros abertos que Justine encontrara lhe mostravam uma estética que desequilibrava sua autorrepresentação. Ou melhor: propunham uma combinação formal que resistia e se opunha a uma apreensão canônica e autoritária, tal como a que é proposta pelo slogan. É como se a arte abstrata, vanguardista, geométrica, fosse percebida por Justine não como uma nova possibilidade de figuração e, sim, como a denúncia de sua incapacidade de simbolizar, de sua adesão ao slogan. Elas são obras "abstratas", sujeitas a conjecturas imaginativas e, com isto e por isto, denunciam a paralisia simbólica de Justine, o engessamento de sua sensibilidade. As pinturas que Justine vai retirar proveem de um processo de criação que escapa à racionalidade inerente ao slogan, à sua exigência funcional. Mais do que isto, escapa à normatização por ele exigida. De certo modo, são pinturas e desenhos que se prestam a representar a vivência de fragmentação, de fragilidade identitária, espelhando a experiência contraditória pelo qual está passando Justine; esta arte de vanguarda aponta para a fratura em curso de seu projeto. Há um paralelo entre a expulsão da mãe por parte de John e a substituição dos livros: ambas são ações defensivas, proteções diante de um discurso disruptivo. Neste momento de vacilação, Justine clama por um retorno à ordem, por um realismo apaziguador. Mas a operação de Justine falha e a debacle prossegue, porque ela ainda está tentando evadir-se do vazio em vez de, como acontecerá mais tarde, procurar conviver com ele. Fica no ar, entretanto, uma indagação: por que na biblioteca John - afinal é dele a mansão - escolhera dar a esta arte tanta visibilidade? Estaríamos diante da prática tão comum de recuperar, mercantilizar e, com isto, expropriar a produção que se opõe ao estabelecido?
3. A criação de um simulacro, como prova da capacidade de controlar o objeto, está presente, de forma romantizada, na bela cena na qual os convidados, encaminhados para o jardim noturno lançam ao céu pequenos balões iluminados. Vistos pelo telescópio, eles simulam um cosmos, agora povoado de astros pelo poder do homem, num desafio às leis da natureza (que Abraham, o cavalo, havia respeitado). Face ao que se aproxima - a colisão irrefreável dos astros - sentimos o olhar irônico de Lars Von Trier diante da arrogância deste propósito.
4. Quando os noivos vão para o quarto e o noivo começa a se despir, Justine experimenta um crescente mal-estar, ficando visivelmente ansiosa à medida que ele dela se aproxima. Por fim, ela pede uma pausa e sai para o jardim, onde é seguida por Tim, aprendiz de Mefistófeles, sempre a insistir que ela lhe crie um slogan. Justine o derruba sobre o gramado, o cavalga e, dominadora, de certo modo o viola. Esta é a relação sexual possível no mundo governado pelo slogan. O mal-estar de Justine está ligado ao fato de que a experiência de intimidade, de acolhimento do outro na sua essência não faz parte do mundo do slogan, a não ser que seja por ele prescrito. As relações deste mundo, além de utilitárias, se caracterizam por sua pura externalidade, pelo que produzem como aparência. O contrato de trabalho que Tim vai lhe propor mais tarde traduz à perfeição este gênero de aliança.
5. O rompimento explícito com este mundo se dá quando a invasividade de Mark deixa claro para Justine o papel que ela vem desempenhando e o personagem que ela se tornou. Mark, em forma de elogio e sempre a assediando, diz que ela não para de trabalhar nem no dia do casamento. Ela reage, respondendo: Você é um ser desprezível,nada é bastante. Odeio você e a firma! A voracidade de Mark, sentinela avançada de um certo gênero de canibalismo, rompe de vez a capacidade de contenção de Justine. Ocorre uma fratura que coloca Justine em dissonância com sua própria imagem: ela percebe que não é noiva, mas personagem noiva, slogan de noiva, e esta percepção lhe revela o mundo de aparências que já começara a rodar em falso. A criação repetida de climas dissonantes (os noivos na limusine, Justine se retirando em meio à festa para tomar banho), que se somam em crescendo ao longo do filme, é um procedimento integrador da narrativa, que ajuda a mostrar a realidade precária da qual são prisioneiros os personagens.
Em contraste com a primeira parte, a segunda descreve num tom intimista a vida cotidiana de John, Claire, seu filho, Justine e o mordomo. Em vez do atormentado mundo interno apresentado anteriormente, nosso olhar pousa agora sobre a fruição do dia a dia doméstico que, aparentemente, não padece de contradições. John ordena este mundo com seus modos algo afetados, que sublinham seu comportamento contido e educado, sua estudada elegância britânica, seu otimismo cientificista (que, ironicamente, vai levá-lo ao suicídio). Existe uma ameaça, é verdade, mas ela vem de fora, é identificável e presta-se a ser monitorada por qualquer espírito prático e investigativo.
Em paralelo, acompanhamos o impacto que a perda da prótese causa na vida psíquica de Justine. Sua regressão é mostrada de modo poético e comovente, assim como sua recuperação. Anteriormente mulher-de-slogan, ela consegue agora apenas balbuciar, choramingar, perder-se na sua confusão. O corpo, que ela instrumentava para suas performances, torna-se rígido, desvitalizado, massa amorfa e sem brilho, como vemos na dramática cena do banho. A recuperação é simbolizada pelo eletrizante banho de luar no qual, já de posse de um corpo erotizado, e em contato com ele, busca a penetração direta pela natureza, eludindo toda intermediação.
O episódio do bolo de carne é também ilustrativo da miséria simbólica a que Justine se reduzira. Claire cozinha para ela um prato mítico, reencontro com uma lembrança provedora idealizada, que deveria se presentificar em toda sua sensualidade (odor, forma, sabor). Mas, ao colocar a carne na boca, o que ela sente é o gosto de cinza: seu mundo interno está calcinado e é com ele que ela precisa se haver na rememoração que a irmã lhe propõe.
Em paralelo ao restauro que Justine faz deste mundo interno, Claire e seu marido John vão sendo encurralados pela ameaça de destruição externa. É a confiança que Justine deposita na nova percepção que alcançara que vai lhe permitir criticar de modo acerbo a proposta da irmã de esperar a grande colisão sob a forma de uma encenação kitsch, ditado pela fórmula slogan. Justine propõe que a enfrentem, sem ambiguidade, sob a proteção da intimidade restaurada.
A cabana é uma solução "descontaminada", fruto da liberdade da imaginação e do poder criativo da fantasia. Não é uma solução onipotente da Justine steelbreaker, mas fruto de um olhar materno, atento às necessidades da criança e aos cuidados que ela necessita. A prótese-slogan dá lugar à compreensão da angústia, ao contato com ela e à capacidade do objeto de mitigá-la.
O risco de uma abordagem como a que estamos fazendo é o de propor uma compreensão reducionista do filme, comumente presente nos trabalhos que aplicam mecanicamente conceitos psicanalíticos ao seu objeto de estudo. Procuramos evitar este viés, propondo um percurso cujo ponto de origem é a identificação de um interpretante - o slogan - emanação de uma sociedade de consumo, cuja função é usurpar a voz do sujeito, ao mesmo tempo que o livra - o alivia - da experiência penosa de construir sua própria voz ao lhe oferecer substitutivamente uma solução ready-made. Este interpretante tem como sua forma expressiva ótima o modelo histérico que é por ele, digamos assim, atraído como um imã. Foi isto que nos levou a propor, sempre seguindo o percurso, que a debacle que Justine sofre está ligado à sua impossibilidade de continuar sustentando a prótese.
Nosso empenho em traçar um percurso induzido pelo filme e não inserido no filme ganha peso se atentarmos para o partido estético adotado por Lars Von Trier. Seria um pouco abusivo chamarmos de histérica a conjunção formal reunido pelo diretor. Mas a beleza envolvente do espetáculo, parte a serviço da sedução do espectador, parte visando despertar seu espírito crítico, cria uma disjunção correlata ao modo de ser histérico; teatral, verboso, prenhe de clichês que se desenrolam sobre um fundo de angústia e ameaça de perda.
E, é realmente assim que o filme procede: seu começo e toda apresentação inicial é grandiosa, operística, infiltrada pela música neoromântica de Wagner que, aliás, percorre todo o filme. As paisagens são misteriosas, sobrenaturais, expressão de uma estética romântica desenfreada. Somos apresentados a uma miscelânea de citações plásticas (dos "Caçadores" de Brughel à "Ofélia" de Millais) que converge para a criação de um clima onírico evocativo dos quadros de Delvaux, conjuntamente com uma atmosfera poética inquietante e ameaçadora. Somos induzidos a passar ao largo da racionalidade, tal como o sintoma histérico passa ao largo das leis de anatomia, ao mesmo tempo em que um detalhe mínimo - o astro desgarrado vem ao encontro da Terra e se choca ativamente contra ela, produzindo no seu impacto, tal como o avião que se choca contra a torre do World Trade Center -, uma breve nuvem de resíduos que precede à explosão - um detalhe mínimo, dizíamos, nos ancora na contemporaneidade. Creio que a representação princeps deste mundo parasitado pela ambiguidade é dada pela cena do jardim francês com o relógio de sol ao centro, perfeito na sua construção geométrica cartesiana, mas enlouquecido pela duplicidade das sombras.
Referência
Freud, S. (1969). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 9, pp. 84-90). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]
Recebido em: 22/4/2013
Aceito em: 7/5/2013
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