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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

De Berggasse à Villa Nova: uma aventura vienense na Pauliceia desvairada

 

From Berggasse to Villa Nova: a viennese adventure in frantic Pauliceia

 

De Berggasse a Villa Nova: una aventura vienense en la metrópolis paulista desvariada

 

 

Maria Ângela Gomes Moretzsohn

Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise - SBPSP. São Paulo. documenta@SBPSP.org.br

 

 


RESUMO

Esse trabalho, baseado em resultados ainda parciais de uma pesquisa que vem sendo realizada no acervo da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP, procura acompanhar as trajetórias de Durval Marcondes e Adelheid Koch focando especialmente o período em que desenvolveram sua luta pela construção da Sociedade Brasileira de Psicanálise, partindo do levantamento das raízes familiares e sociais desses dois personagens.

Palavras-chave: psicanálise, Durval Marcondes, Adelheid Koch, Sociedade Brasileira de Psicanálise, história


ABSTRACT

This paper, based on still partial results of a research taking place at SBPSP's Division of Documentation and Research on the History of Psychoanalysis collection aims to follow the trajectories of Durval Marcondes and Adelheid Koch focusing especially on the period in which they developed their struggle for the construction of the Brazilian Psychoanalytic Society, based on the survey of family and social roots of these two characters.

Keywords: psychoanalysis, Durval Marcondes, Adelheid Koch, Brazilian Psychoanalytic Society, history


RESUMEN

El presente trabajo está basado en resultados parciales de una investigación que está en curso actualmente en el acervo de la División de Documentación e Investigación de la Historia del Psicoanálisis de la SBPSP. Expone las trayectorias de Durval Marcondes y Adelheid Koch, partiendo de una investigación de sus raíces familiares y sociales, para luego focalizar en especial el periodo en que lucharon para la construcción de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de San Pablo.

Palabras clave: psicoanálisis, Durval Marcondes, Adelheid Koch, Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de San Pablo, historia


 

 

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam - se preciso - voar.
Carlos Drummond de Andrade

1919 - março: um aluno iniciante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo lê no jornal mais importante de seu país um artigo escrito por um neurologista, Franco da Rocha, que se aposentava de sua cátedra na mesma faculdade. O artigo trata de ideias inteiramente inusitadas para aquele momento e lugar: no Brasil a escravidão tinha sido abolida havia apenas 31 anos, a República se instalara há 30 anos, o país emergia de uma economia puramente rural para uma industrialização ainda recente. E o texto noticiava uma revolução: aquela operada pela nova concepção da mente humana proposta por Sigmund Freud. O aluno, Durval Marcondes, fica irremediavelmente fascinado por ela e se inicia na aventura da psicanálise, que irá durar até o fim de sua vida.

1922 - fevereiro: o vendaval modernista atinge São Paulo, e a novidade da psicanálise anunciada no artigo de Franco da Rocha é parte dele. Durval, em sua inquietação intelectual, é também tocado pela efervescência da Semana de 22. A revista Klaxon, porta-voz do movimento, traz em seu número de agosto, ao lado de trabalhos de Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Rubens de Moraes, um poema seu, Symphonia em branco e preto. Não fará grande progresso como poeta, terá outro caminho, mas sua presença ao lado dos renovadores da arte brasileira fala, mais uma vez, de sua sensibilidade para o novo.

1927 - julho: Durval casa-se com Herminda Brasília Philomena Bocchini, formando com ela um jovem e aristocrático casal, sempre bem recebido nas rodas intelectuais e mundanas da sociedade paulista de então. A casa da rua Siqueira Campos, n. 42, onde vão viver, será, ao mesmo tempo, consultório e ponto de reuniões para um pequeno grupo de interessados naquelas surpreendentes ideias de Freud, que se formará em torno de Durval. Herminda, que aparece muito bonita e elegante nas fotos da época, será sua companheira fiel em grande parte da aventura que ali se inicia.

1927 - 24 de novembro: no salão nobre do Lyceu Nacional Rio Branco, à rua Villa Nova, n. 20, em São Paulo, Durval, em uma demonstração inicial da sua capacidade de mobilização, consegue reunir nomes bastante expressivos da cultura da época: entre outros, os médicos Osório César, Raul Briquet, Pedro de Alcântara Marcondes Machado, os escritores modernistas Menotti Del Picchia, Cândido Motta Filho, o educador Lourenço Filho. Estão ali para a sessão de fundação da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, que será presidida por Franco da Rocha, com o objetivo de ser, segundo consta em ata, "um centro coordenador dos estudos ... e um foco de propaganda das ideias de Freud". E assim será: durante alguns anos, essa sociedade promoverá frequentes conferências sobre a psicanálise, bastante noticiadas pelos jornais da época e sempre assistidas por uma refinada plateia. Alguns anos mais tarde, Durval irá acreditar que a instituição já havia cumprido a sua finalidade, e ela desaparecerá.

1928 - junho: incansável em sua luta, Durval lança a Revista Brasileira de Psychanalyse - Órgão da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, com o projeto de "concorrer, quanto possa, para divulgar a theoria freudiana nos nossos meios scientificos e, o que não é de somenos, defendel-a das deturpações a que infelizmente está sujeita". Terá vida curta nesse primeiro momento, quando esse único número é editado. Único, mas precioso: enviado a Freud, motivará uma carta de agradecimento deste a Durval:

Muito estimado colega,

O aspecto da nova Revista Brasileira de Psicanálise muito me alegrou. Que um fecundo futuro lhe seja reservado! O efeito que se seguiu a essa remessa foi que eu comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-português. Quero ver se com isso eu consigo ler, por mim mesmo, a revista, durante estas férias.

Mas a verdade é que os votos de um fecundo futuro dessa carta não foram em vão. A Revista Brasileira de Psicanálise voltará a ser publicada ininterruptamente a partir de 1967.

Durante esses anos, em Berlim, Adelheid Lucy Schwalbe empenha-se em seus estudos para tornar-se médica, como seu pai. Um pouco depois se casará com Ernst Heinrich Koch, jovem que advogava na cidade. Adelheid encontra-se também com a psicanálise, tornando-se paciente de Otto Fenichel, candidata, e, mais tarde, membro da Sociedade Psicanalítica de Berlim. Filhas que nascem, cuidados com a casa, trabalho no consultório. A vida plácida construída pelo casal começa a ser coberta pela névoa da guerra que chega. É preciso partir. A Palestina parece um destino possível, logo inviabilizado pela intensificação de grandes conflitos na área.

Enquanto isso, no Brasil, Durval, na luta para desenvolver um movimento psicanalítico no país e atento aos acontecimentos dessa área no exterior, já compreendera que isso seria impossível sem o trabalho de um analista regularmente preparado para tal. Passa a fazer vários contatos na Europa e nos Estados Unidos com o objetivo de trazer um deles para o Brasil. Em julho de 1934, uma carta de Abraham Brill, da American Psychoanalytic Association, parece aproximá-lo da solução do seu problema:

You undoubtedly know that the present situation in Germany has made a num ber of very able and well known physicians practically homeless. Most of them are Jews, some of them are just liberals and anti-Nazi. A number of them have come to the United States, and some of them spoke to me about the advisability of establishing themselves in South America. Now, is there any future for physi cians of this type in your country or in any other South America country? You know the psychoanalytic and psychiatric movements in South America better than anyone else, and I would appreciate it if you would tell me whether very able physicians in that line of work, who have already attained reputations in Europe, could establish themselves in some place in South America.

Nesse momento, Durval não consegue apoio suficiente para atender o pedido. Ainda não foi dessa vez que a questão seria resolvida, mas a notícia de sua busca já corria o mundo. Enquanto isso, desenvolve seu trabalho aqui em várias frentes: no consultório, em hospital psiquiátrico e nas áreas de saúde e higiene mental escolar da rede pública.

1934 - Durval torna-se professor de Higiene Mental no Curso de Educadoras Sanitárias do Instituto de Higiene, dirigido por Geraldo Horácio de Paula Souza. Homem de cultura e visão, formado em Saúde Pública pela Universidade Johns Hopkins, em Baltimore (EUA), Geraldo Horácio de Paula Souza lá se surpreendera ao ter colegas mulheres. Na volta ao Brasil, cria o Curso de Educadoras Sanitárias segundo o modelo norte-americano, oferecendo às mulheres paulistas uma possibilidade de qualificação que ia além da formação para professora primária, praticamente único caminho disponível na época para uma jovem de classe média que desejasse ter uma profissão. Esperam por Durval, nesse novo trabalho, duas mulheres: Virginia Leone Bicudo, de origem proletária, negra, formada na Escola de Sociologia e Política, única mulher de sua turma, e, mais tarde, Lygia Alcântara do Amaral, descendente da aristocracia cafeeira mineira, professora primária. Serão aí suas alunas e, tomadas de paixão pela novidade da psicanálise, tão entusiasticamente anunciada pelo professor, se tornarão também suas parceiras de aventura pelo resto de suas vidas.

1936 - outubro: no convés do navio Astúrias, Adelheid prepara-se para mergulhar na curiosa piscina de lona que ali existia. O marido fotografa o animado grupo formado por ela e por suas duas filhas, ainda crianças, Esther e Eleonore. Haviam deixado para trás Berlim, a antiga casa com seu jardim de árvores esguias, o apartamento da Sachsenplattz, 12, as aulas de hebraico. Agora, a partir do porto inglês Southampton, o destino da família é a América do Sul, mais precisamente o Brasil. País remoto, com o qual o único vínculo de Adelheid até pouco tempo atrás fora o de uma pequena viagem feita em um navio de bandeira brasileira. Mas ali, no convés do Astúrias, o nome Brasil já havia adquirido contornos mais nítidos para ela. Durante o XIV Congresso da IPA em Marienbad, Ernest Jones, sabendo dos seus planos de emigração, contara que um certo dr. Durval Marcondes procurava um analista didata para trabalhar neste país. Para ela, naquele momento, a possibilidade de trocar a Europa culta e refinada, com sua instigante vida cultural, por um país no mínimo exótico, de língua e costumes desconhecidos, não era simples. Mas, às vésperas da Segunda Guerra, com o violento crescimento, na Europa, das pressões nazistas, o Brasil aparecia no tumultuado cenário internacional como um país que ainda aceitava estrangeiros, tornando-se uma alternativa atraente para emigrantes. Com esse panorama, a sugestão do dr. Jones acabou sendo a peça que faltava para a mudança de rumo da família Koch. Ali, entre as amenidades de uma viagem de navio feita na primeira classe, cujas passagens haviam sido compradas com o dinheiro que já não podia sair da Alemanha, as preocupações com o futuro permaneceram. Mas Adelheid tinha um plano de retaguarda: se, por algum motivo, o trabalho com a psicanálise não desse certo, sempre poderiam viver da confecção de chapéus, habilidade que lhe havia sido transmitida por uma tia.

Para os Koch a vida em São Paulo começa no Hotel Palace, e, logo em seguida, passa para a pensão Stettiner, na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta, uma boa localização na cidade. Ali se acomodam, um pouco apertados, com outros imigrantes alemães. Eleonore, a filha que então tinha 10 anos e que será uma artista plástica de renome, se lembrará mais tarde: "Um dia, ainda morando nesta pensão, um Zeppelin passou por São Paulo e subimos todos no terraço para vê-lo. Isso me emocionou muito, nunca mais me esqueci dessa cena".

Os primeiros meses são dedicados a difíceis tarefas: aprender português, conhecer um pouco a cidade, conseguir uma casa e se instalar nela, ter uma noção mínima da cultura brasileira. Desde o inicio, é Durval quem a auxilia: encontra a casa da rua Maristela, 16, na então denominada Vila dos Imigrantes, onde Adelheid irá viver durante toda a sua vida e onde, até hoje, vive sua filha Eleonore. Os móveis trazidos de Berlim, muito grandes para as pequenas dimensões da casa, em parte acabaram sendo vendidos, substituídos por outros mais práticos. A rotina da família aos poucos se restabelece em uma nova paisagem: há abacaxi e palmito sobre a pia da cozinha e o roxo barroco dos ipês nas árvores das ruas. As cartas que Adelheid escreve a sua mãe que ficara em Berlim são relatos emocionados desses primeiros tempos. Refinada, culta, Adelheid se preocupa com a formação das filhas. Aos poucos organiza reuniões em casa nas tardes de domingo, onde outros imigrantes, amigos das filhas e novos amigos brasileiros se reúnem em torno de um gramofone trazido da Alemanha, de grandes jarras de limonada e pratos de bolachas. Fala-se sobre literatura, música, pintura e, claro, psicanálise, hábito que manteve durante toda sua vida. Mais tarde, uma amiga brasileira da família Koch contará: "Frequentei as festas de aniversário da Eleonore e da Esther, suas filhas. Eram muito diferentes daquelas a que estávamos acostumadas aqui: havia jogos, brincadeiras, adivinhações, pequenas peças de teatro, tudo preparado por ela para entreter os convidados".

Algum tempo depois, chegam de Berlim, para viverem na mesma vila, Agnes Schwalbe, sua mãe, Dorothea Herz, sua irmã, e Else Cohn, sua sogra. Reúne-se, assim, no Brasil toda a família de Adelheid.

1937 - meados do ano: Adelheid diz a Durval estar pronta para começar a atender pacientes. Ela tem 40 anos e ele, 37. Consolida-se aqui a dupla de construtores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que nela trabalhará unida pelos próximos 43 anos. Essa dupla só será desfeita pela morte de Adelheid, seguida pela de Durval um ano depois.

Àquela altura, Durval e seu grupo de aficionados formado por Virginia Leone Bicudo, socióloga, Flavio Dias e Darcy Mendonça Uchoa, médicos, e Frank Philips, engenheiro, eram os potenciais candidatos à formação. Ele oferece à Adelheid uma sala em seu consultório que, como o do mestre vienense, funciona em sua casa. Ali Adelheid inicia a análise didática de seus primeiros pacientes. O trabalho analítico incluía também uma dificuldade adicional: a barreira linguística ainda existia. O português de Adelheid era precário, e o alemão dos candidatos, inexistente. Socorriam-se às vezes de algum inglês e iam se entendendo como era possível.

"Eu fui a primeira pessoa a deitar no divã da dra. Koch. E ela, com seu chapéu preto de abas largas, era muita elegante, uma jovem e linda mulher", dirá Virginia Bicudo.

A chegada da psicanalista alemã, com autorização da IPA para formar outros profissionais, foi um impacto na vida desses médicos e professores de uma cidade ainda bastante provinciana.

Ela é muito exigente. Dizem que intolerante, mas muito culta. Parece que cobra muito caro, é até preciso pagar a sessão com antecedência. Acho que não aceita qualquer um em análise. Eram variadas as fantasias sobre Adelheid, contarão eles mais tarde. As piores profecias não se realizam. Dentro de pouco tempo todos serão seus pacientes, alunos, supervisionandos, e ela se desdobrará para desempenhar, praticamente sozinha, todas essas funções.

1938 - Nesse ano, realiza-se em São Paulo o "I Congresso Paulista de Psicologia, Neurologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Identificação, Medicina Legal e Criminologia", patrocinado pela Associação Paulista de Medicina e Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo. Entre os inscritos encontramos, além de Durval, Adelheid Koch, Raul Briquet, Flamínio Favero, James Ferraz Alvim, Flávio Dias, todos interessados na psicanálise. Nos anais desse congresso encontra-se o trabalho Aspectos do aproveitamento prático da psicanálise, de autoria de Durval. Nele o autor faz um apanhado geral dessa teoria, das possibilidades de sua aplicação clínica, além de empenhar-se corajosamente - isso em um meio predominantemente médico - na defesa da chamada psicanálise leiga: Questão de vulto é decidir se os psicanalistas que não sejam diplomados em medicina podem, uma vez tecnicamente habilitados, conduzir análises com finalidade terapêutica. Freud entende que ninguém deve exercer a análise sem possuir um preparo adequado, mas que é cousa secundária indagar se se trata de médico ou leigo na medicina. O indispensável é excluir os leigos, não na medicina, mas na psicanálise, como é o caso dos médicos em geral. Na verdade, o médico não tem direito algum ao monopólio de uma arma terapêu tica cujo emprego não lhe é ensinado nos cursos de medicina.

1943 - outubro: Adelheid Koch, já confiante no desenvolvimento obtido por seus pacientes, encaminha um pedido à Associação Internacional de Psychoanalyse, solicitando o reconhecimento oficial das atividades desse grupo. A resposta positiva, datada de 09 de dezembro de 1943, e que só chega ao Brasil em maio de 1944, vem em forma de uma carta, assinada por Ernest Jones, presidente da instituição naquele momento, que reitera sua confiança nos critérios usados por dra. Koch ao fazer sua recomendação.

1944 - 8h30 da noite de 05 de junho: reúnem-se no número 42 da rua Siqueira Campos, casa de Durval, este, Adelheid, Virginia, Flavio, Darcy e Philips. Estão ali para darem mais um passo na direção da institucionalização da psicanálise no Brasil: a oficialização do Grupo Psychoanalytico de São Paulo, nome que contraria a sugestão Grupo Psychoanalytico Brasileiro, feita por Jones, desconhecedor da extensão geográfica do país. Imediatamente ali é discutido o regulamento do grupo e eleita sua primeira diretoria assim composta:

Presidente: Durval Marcondes

Comissão de ensino: Durval Marcondes e Adelheid Koch

Secretário: Frank Philips

Tesoureiro: Virginia Leone Bicudo

1950 - sobrecarregada pelas inúmeras tarefas que desempenha, Adelheid Koch chama a si um trabalho que até então fora de Durval, passando a procurar pelo mundo outro psicanalista que pudesse vir ajudá-la. Em março recebe uma carta de Estocolmo:

Dear Doctor Koch,

The former president of the Swedish Psychoanalytical Society, dr Nycande, has sent me your letter with your inquiry for analysts from our Society, who might be interested in moving to São Paulo as training analysts. As a matter of fact - nobody there is interested except myself. That is the reason why I shall like to give you some information about my person and why I take the liberty to ask you some questions about different things in São Paulo.

E, realmente, em junho daquele ano, Nils Haak e família desembarcam na cidade. Ele vem disposto a aprender português e trabalhar como psicanalista. Mas, logo em outubro, Adelheid recebe outra carta, agora de um homem já desencantado:

São Paulo, 24 de outubro de 1950

Durante longo tempo uma série de infecções reduziu as minhas forças e ao mesmo tempo afetou a minha situação geral. Estou certo de que eu não suporto e não suportarei o clima daqui, tão diferente do da Suécia... Provavelmente eu sou velho demais para efetuar uma tão sensível mudança da Suécia para o Brasil... Minha esposa não se sente bem, ficou fraca, deprimida e cansada; meu filho não combinou com as crianças daqui... Isola-se todo o dia no apartamento... Todo o seu desenvolvimento psíquico parece estar em perigo.

Todas estas razões que acabo de apresentar forçaram-me a dar um passo... Isto é, regressar à Suécia provavelmente [em] 31 de outubro. Esta minha resolução é irrevogável...

Nils Haak

Durante esse mesmo período, a proposta de Adelheid havia sensibilizado um outro psicanalista: Theon Spanudis, grego de origem familiar e nascido na Turquia, havia estudado medicina em Viena, em cuja Associação Psicanalítica fez sua formação e onde foi analisando de August Aichhorn e Otto Fleischman. Também poeta, além de conhecedor de artes plásticas, enfrenta o desafio de vir para o Brasil:

Viena, 6 de abril de 1950

Mui estimada sra. dra. Koch,

Finalmente estou em condições de aceitar sua oferta em sua totalidade. Por favor, informe seu grupo desta minha decisão. A confirmação de meu status como analista didata a sra. receberá pelo dr. Otto Fleischman de Topeka (Menninger Klinik) onde este atua...

Theon chega ao Brasil no navio Conte Grande, trazendo na bagagem sua biblioteca de mil volumes, precioso bem naqueles tempos de edições limitadas. Colabora ativamente com Adelheid e Durval, mas alguns anos mais tarde se afastará da psicanálise, entregando-se a sua outra especialidade: a de colecionador e crítico de artes plásticas, área na qual marcará a cena cultural brasileira, tendo sido em parte o responsável pela afirmação e reconhecimento do pintor Alfredo Volpi.

1951 - 9 de agosto: em Amsterdã, sentadas no auditório da sala onde a IPA realiza o seu XVII Congresso Internacional, Adelheid Koch e sua analisanda Lygia Alcântara do Amaral ouvem a ratificação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo como membro daquela instituição. Lygia escreve a Durval, que permanecera em São Paulo:

Paris, 20 de agosto de 1951

Prezado dr. Durval

Estive duas semanas em Amsterdã que foram realmente exaustivas e só agora posso lhe enviar as impressões do Congresso. Antes de mais nada, a organização foi perfeita. O sr. não calcula a satisfação que tive ao ver o Jones, velhinho, ágil, com seus olhinhos muito expressivos, assistindo a todas as recepções do congresso. Ele é uma figura inesquecível; fui cumprimentá-lo, me perguntou de onde eu era, quando mencionei Brasil, tornou a perguntar e, quando mencionei São Paulo, comentou logo much better ... A dra. Koch foi realmente muito eficiente, falou com todo o staff. No meeting final a nossa sociedade obteve o que pretendia... Outra figura que também me impressionou muito foi a de Melanie Klein, ela é imponente, bonita apesar da idade... estava sempre cercada pelos seus discípulos: Paula Heimann, Rosenfeld, Philips, Rodrigué... Também me aproximei do pessoal de Anna Freud. Esta tem muito charme, fala com certo nervosismo...

1958 - provavelmente neste ano é fundado o Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que mais tarde receberá o nome Durval Marcondes, e onde tanto ele quanto Adelheid sempre exercerão atividades didáticas e administrativas. Ela será presidente da Sociedade por oito anos e, durante mais de 40 anos, exercerá a clínica psicanalítica, o que inclui seu trabalho como didata. Atuará permanentemente como divulgadora da psicanálise na Sociedade Brasileira através dos cursos e palestras que promove e como autora de inúmeros artigos na imprensa.

Durval, da mesma maneira, se dedicará nos próximos anos ao trabalho com a psicanálise, como presidente da SBPSP por nove anos e professor, analista e incentivador dos jovens em formação. Será o vigoroso defensor dessa disciplina nas polêmicas e ataques a ela que surgirão nos anos vindouros. Anos mais tarde, confidenciará com singeleza a um colega que não se tornou analista didata por achar que sua análise com a dra. Koch ficara comprometida uma vez que foi, simultaneamente, seu paciente e guia na instalação no novo país, isso mesmo nas questões mais prosaicas que esta envolvia.

Adelheid já envelhecida e gravemente doente faz sua derradeira profissão de fé na psicanálise: chama de volta seu ex-analisando, Felix Gimenes, agora na condição de seu analista, retomando com ele suas permanentes reflexões sobre a vida humana, já sob a névoa da morte. Em 1980, a brasileira Adelheid Koch, assim naturalizada em 1950, morre em São Paulo, na mesma pequena casa da Vila dos Imigrantes em que começara sua nova vida.

Despedindo-se dela, diz Durval:

Eu me sinto muito orgulhoso de ter conseguido trazer para São Paulo uma pessoa da qualidade, do desprendimento, do devotamento da dra. Koch, que aceitava para a análise todos os candidatos que apareciam e que eram promissores e não tinham às vezes condições econômicas para esse curso. Era não só uma pessoa muito devotada ao seu trabalho, como também era uma pessoa de altas qualidades de cultura, de altos conhecimentos psicanalíticos, hauridos numa das fontes psicanalíticas mais importantes daquela época.

Um enfarte levará Durval, aos 81 anos, na mesma casa da rua Siqueira Campos, cenário primeiro da vida da instituição psicanalítica no Brasil.

Como fruto, fundamentalmente, do trabalho pioneiro da dupla Marcondes-Koch existem hoje no Brasil 13 sociedades filiadas à IPA, que contam com 1.923 participantes.

Repetir, recordar e elaborar essa aventura poderá ser altamente inspirador para nossas próprias aventuras pessoais e institucionais.

 

Referências

Brill, A. (1934). [Carta] de julho de 1934 [para] Durval Marcondes. Acervo da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Franco da Rocha, F. e Marcondes, D. (1927). Ata de Fundação da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, 24 de novembro.         [ Links ]

Koch, E. (2000). A história de minha mãe Adelheid Koch. Entrevistadora: Maria Angela Moretzsohn. Entrevista concedida à SBPSP. Acervo da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Nosek, L. (Ed.). (1994). Álbum de Família: imagens, fontes e ideias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Revista Brasileira de Psychanalyse, n. 1, 1928. Acervo da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Whitaker, E. A. (1938). Atas. I Congresso Paulista de Psicologia, Neurologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Identificação, Medicina Legal e Criminologia, São Paulo, 24 a 30 de julho de 1938. Acervo da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/8/2014
Aceito em: 12/8/2014

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