Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017
TRADUÇÃO
Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores1
Symbolization and objects in psychic life: objects that tutor
Simbolización y objetos en la vida psíquica: los objetos tutores
Symbolisation et objets dans la vie psychique: les objets tuteurs
Victor Guerra
Psicanalista da Associação Psicanalítica do Uruguai, Montevidéu. vguerra@internet.com.uy
RESUMO
Neste trabalho, o autor sustenta a hipótese da presença daquilo que denomina como objeto tutor - cujo estatuto difere do objeto transicional - e o relaciona com os processos de simbolização presentes no bebê, no adulto e na arte. Para tanto, apresenta vinhetas de observação de bebês, de um caso clínico e exemplos extraídos da arte, por meio de pinturas e de poemas que plasmariam também a hipótese. O objeto tutor emergiria como uma forma de cocriação psíquica com o outro, revelando a especial importância a intersubjetividade nesse processo. O autor desenvolve o conceito de expansão do objeto tutor numa futura função de testemunho, ou seja, como objeto portador de uma memória afetiva do sujeito que possibilitaria uma certa vivência de continuidade psíquica.
Palavras-chave: objeto, objeto tutor, objeto transicional, memória, arte
ABSTRACT
In this paper, the author defends a hypothetical existence of a "tutoring" object - whose statute differs from the transitional object. The author relates this object to those processes of symbolization that happen to babies, adults, and art. He presents vignettes in which we can observe babies and a clinical case. He also brings some examples from art, by using paintings and poems to illustrate the hypothesis. The tutoring object would emerge as a way of psychic cocreation with the other, by revealing the particular importance of intersubjectivity in this process. The author develops the concept of spreading the tutoring object into a future function of testimony. In other words, it would be like an object that carries the subject's affective memory, which would enable a certain experience of psychic continuity.
Keywords: object, tutoring object, transitional object, memory, art
RESUMEN
En este trabajo el autor sostiene la hipótesis de la presencia de lo que denomina "objeto tutor", diferente del objeto transicional, y su correlación con los procesos de simbolización presentes en el bebé, en el adulto y en el arte. Para eso, presenta viñetas de observación de bebés, de un caso clínico y ejemplos extraídos del arte, a través de pinturas y poemas que confirmarían, también, esa hipótesis. El objeto tutor emergería como una forma de co-creacíon psíquica con el otro, dándole así especial importancia al papel de la intersubjetividad. Desarrolla el concepto de la abertura de este "objeto tutor" hacia una futura función de testigo, como objeto portador de una memoria afectiva del sujeto, que daría una cierta vivencia de continuidad psíquica.
Palabras clave: objeto, objeto tutor, objeto transicional, memoria, arte
RÉSUMÉ
Dans ce travail, l'auteur soutient l'hypothèse de la présence de ce qu'il appelle l'objet tuteur - dont le statut est différent de l'objet transitionnel - et il le met en rapport avec les processus de symbolisation chez le bébé, chez l'adulte et dans l'art, au moyen de peintures et de poèmes que figeraient aussi l'hypothèse. L'objet tuteur émergerait comme une façon de co-création psychique avec l'autre, en révélant l'importance spéciale de l'intersubjectivité dans ce processus. L'auteur développe le concept d'expansion de l'objet tuteur dans une future fonction de témoignage, soit, comme un objet porteur d'une mémoire affective du sujet qui rendrait possible une certaine expérience de continuité psychique.
Mots-clés: objet, objet tuteur, objet transitionnel, mémoire, art
A simbolização e seus processos têm sido desde sempre um ponto fundamental nas hipóteses que se constroem com base na psicanálise, para se pensar tanto a constituição do psiquismo como a reflexão clínica (Winnicott, 1971; Milner, 1952; Golse, 2008; Roussillon, 2004, 2008; Casas de Pereda, 1999 e outros). Dentro de uma ampla gama de perspectivas a que nos remetem os diferentes autores, há tempos venho indagando sobre o papel dos objetos "inanimados" (Searles, 1980) "da vida cotidiana" na constituição daquele processo. Contudo, visitemos as origens. Recorramos à etimologia dos conceitos, à origem da palavra, para abrir um horizonte de sentidos dos termos. A palavra "simbolização" provém do grego symbolón, sinal de reconhecimento, aludindo a "um objeto dividido em dois entre dois indivíduos. Cada indivíduo retinha uma metade. Após uma longa ausência, um deles apresentaria sua metade e, se ela correspondesse à outra metade que o outro indivíduo possuía, isso colocaria em evidência um vínculo entre os dois" (Di Cegli, 1987).
A amplitude do conceito nos convida a uma polissemia, a respeito da qual esboçaremos seis caminhos de sentido: (1) a relação com um desejo de separação; evidentemente nessa experiência que "narra" a etimologia, são dois sujeitos que devem ou desejam separar-se. É parte da história da constituição subjetiva, na qual o sujeito não advém a não ser na separação do outro; (2) o interjogo de presença e ausência, já que se trataria da combinação da presença de um objeto concreto, à qual se atribui a memória de uma ausência de um objeto pulsional; (3) o emprego da agressividade para operar um corte, uma ruptura e, tomando-o como uma metáfora válida da constituição subjetiva: sem o emprego de alguma agressividade não se pode exercer a separação do outro. Isso estaria relacionado a Green (1998) ter renomeado a pulsão de morte como desagregativa; (4) o corte do objeto implica uma divisão do objeto mesmo e é também uma divisão de espaços (tópicos), já que os dois indivíduos passarão a habitar espaços físicos diferentes, com dois objetos que, partindo de uma mesma origem, ao dividirem-se, são diferentes e, (5) falando de metáforas, devemos levar em conta que não há simbolização sem uma experiência de separação-deslocamento no espaço;2 o jogo de substituições que configura toda a simbolização tem como eixo o trabalho da metaforização, o deslocamento de uma coisa em outra: se deslocam no espaço as duas pessoas, ao se separarem, e se deslocam vivências desde a mente do sujeito até o objeto que passaria então a ser continente de certos conteúdos psíquicos, experienciais do sujeito. Esse "amuleto"teria um valor superlativo frente a outros objetos "sem história", e, por último, tomaremos (6) a utilização de um objeto concreto que testemunha uma relação e que se supõe, foi eleito, investido por essas duas pessoas.
Entre todas essas possibilidades, gostaria de enfatizar especialmente o último ponto: o valor do objeto como marca, testemunho de um encontro que possibilita uma separação. Encontro que podemos analisar desde o ângulo da "intersubjetividade", em que a presença do outro como sujeito separado e representado em ausência é fundamental. Todavia, o acesso da representação como trabalho do aparelho psíquico é um processo complexo de interjogos de união-separação, continuidade-descontinuidade e presença-ausência, com o outro fundante e também com o ambiente e seus objetos. Como disse Roussillon (2008), "Os processos psíquicos têm necessidade de ser materializados, ao menos transitoriamente, de forma perceptível para receber uma forma de representação psíquica, uma forma de autorrepresentação" (p. 88).
Como isso apareceria na infância? A filósofa Susanne Langer nos ilustra esse conceito de uma maneira muito interessante:
Uma de minhas recordações mais antigas é que as cadeiras das mesas conservavam uma aparência invariável, ao contrário das pessoas, e que essa permanência me impactava. Projetar os sentimentos sobre os objetos exteriores é o primeiro meio que temos de simbolizar e conceber esses sentimentos... (1967, p. 68)
Vemos que estaria presente nela, desde pequena, essa espécie de surpresa ou fascínio pela permanência, pela continuidade dos objetos, enquanto os seres humanos se caracterizavam por certo grau de impermanência-descontinuidade. Dessa maneira, ela nos descreve que o processo de simbolização também estaria em relação com encontrar um continente seguro, permanente, controlável pela criança pequena: os objetos cotidianos. Que por meio da animação própria da visão infantil, conformariam um suporte fundamental para seu self.
A intersubjetividade
Falar em intersubjetividade é falar em um processo de separação do objeto, como Golse acrescenta:
Entre o modelo de uma intersubjetividade secundária adquirida a partir de uma fase de indiferenciação inicial absoluta (Spitz e Mahler) e o de uma intersubjetividade primária própria do recém-nascido (Stern e Trevarthen), uma terceira via existe, mais dialética e que nós defendemos com interesse. Essa terceira via consiste em pensar que o acesso à intersubjetividade não se faz de um tudo ou nada, mas, do contrário, se dá de uma maneira dinâmica entre momentos de intersubjetividade primária efetivamente possíveis, mas fugidios, e de prováveis momentos de indiferenciação. Todo o problema do bebê e de suas interações com seu entorno é o de estabelecer, progressivamente, esses primeiros momentos de intersubjetividade e torná-los - pouco a pouco -, mais estáveis e contínuos. (2011, p. 6)
Seguindo Roussillon (2008) entendemos a intersubjetividade como em nada desligada da vida pulsional: "Seria o encontro de um sujeito animado de pulsões e de uma vida psíquica inconsciente com um objeto que é também um outro-sujeito e que apresenta as mesmas características" (p. 66). Também a pensamos como uma forma (assimétrica) de compartilhar estados afetivos com o outro, participando de suas intenções e desejos, por meio do recurso da empatia. Como disse o poeta Porchia (1960): "Estar em companhia não é estar com o outro e, sim, estar no outro" (p. 22). E diferença entre o "com" e o "em", implica um deslizamento para a vida subjetiva, uma viagem para o interior da paisagem afetiva do outro, sua vida pulsional e seus fantasmas. As investigações atuais no campo psicanalítico que se nutrem também das observações dos bebês e seu entorno nos forneceram dados suficientes para pensar que esses processos intersubjetivos vão se formando desde o início. Como declarou há tempo Mazet:
A relação pais-bebês é concebida atualmente como um processo bidirecional, no qual o bebê não é apenas sujeito às influências dos pais, mas também produz modificações importantes neles. Pelo seu sorriso, seus gritos, pelo conjunto de sinais a que os dirige, ele contribui intensamente na determinação de suas vivências, suas satisfações, suas angústias, suas culpabilidades, a imagem que fazem de si mesmos enquanto pais. (1992, citado em Hochmann e Ferrari, p. 115)
A análise, sobretudo das interações lúdicas, nos mostra ao vivo essa intersubjetividade e o papel dos objetos desde os primeiros meses de vida. Tomaremos como exemplo uma observação realizada segundo o método de Esther Bick, com um bebê de 9 meses em interação com sua mãe.
Observação, bebê aos 9 meses
A mãe, logo após alimentar o seu bebê, observa como ele olha com interesse um boneco, um Mickey que havia ganhado no dia anterior de sua avó. Ela capta seu interesse, comenta "vivamente" que era um presente para brincar. Percebe que o bebê se entusiasma e espelha com um "Siiiim, a vovó que trouxe!". Fernando ri e se agita ainda mais. A mãe lhe fala mais sobre isso perguntando, ritmicamente, se o quer. O rosto do bebê se ilumina, e ela se levanta, pega o boneco na prateleira e traz para o filho. Então agita-o bem perto de seu rosto. Fernando parece oscilar entre desfrutar, sorrir, pestanejar e assustar-se. A mãe se detém, e ele começa a desfrutar, mas deixa de pestanejar e olha para ela com intensidade. Ela diz que Mickey queria brincar com Fernando e que perguntava por ele. O bebê pega o boneco, coloca-o e tira-o da boca. A mãe diz "Que lindo, quer dar um beijinho nele! Espere só quando eu contar para a vovó e para o papai!". O bebê então parece ainda mais contente e dá um grito de alegria. Ela lhe fala quão feliz está e se retira um pouco para que ele manipule o boneco. Em seguida, Fernando aperta o braço do objeto e este faz um ruído. Encantada, a mãe descobre que seu filho desfruta disso. E comenta que está muito lindo brincando com Mickey. O bebê manuseia o brinquedo, afastando e aproximando, para cima e para baixo, empurrando a roupinha e se entretém tocando com seu dedinho o nariz do boneco. A mãe sai e Fernando continua só, entretido com o Mickey, o agarra, o atrai para seu rosto e boca, como se estivesse falando com ele por certo tempo. Parece feliz e muito atento.
A mãe e seu bebê se encontram criando juntos3 uma nova experiência lúdica muito gratificante. Podemos apreciar como, gradualmente, vão construindo suas próprias regras implícitas de distanciamento e aproximação com o Mickey e com a própria mãe, pautadas pela "animação narrativa" que ela inaugura. Evidentemente, a mãe vai criando junto com seu bebê novos ritmos lúdicos, pautados por um encontro intersubjetivo claramente libidinal. É evidente a circulação do prazer da sexualidade (assimétrica) em ambos.
No entanto, essa forma de sexualidade na mãe não permaneceria coagulada na posse do bebê como objeto dual, já que a mãe mostra uma disposição interessante, não somente de abrir sua atenção a um objeto terceiro-brinquedo, mas de que em seu discurso aparece investido seu desejo de que o bebê abra seu horizonte libidinal a outros, por exemplo, para avó e para o pai. Ela disse: "Que lindo, espere só quando eu contar à vovó e ao papai!". E isso é muito importante, porque demonstra por um lado essa fascinação, alegria que chamamos de "emoção estética". A mãe permanece "encantada" por um gesto de seu filho e, ademais, integra-o a uma narrativa futura em outro espaço e outro tempo. Em outro momento o gesto de seu filho será narrado, traduzido em palavras a um terceiro que deseja escutar histórias. É uma forma de narrativa aberta à terceiridade que, em nossa experiência, é muito mais clara nesse momento estrutural.
Em outras observações realizadas em muitas consultas terapêuticas, observamos que antes de iniciar a marcha, a narrativa materna se dedica muitas vezes a pôr em palavras a relação de seu bebê com objetos terceiros, sejam brinquedos ou pessoas. Dessa maneira, ela vai aceitando que seu filho está se separando dela, e esta seria uma antecipação elaborativa do que será a separação próxima da marcha. Antes de caminhar por conta própria, o bebê "caminha", se desloca por um espaço simbólico, nas palavras da mãe dirigidas a um terceiro em ausência.
Ao finalizar a interação verificamos que quando ela se retira, o bebê parece pôr em jogo uma forma de identificação ao tentar "falar" com Mickey, mantendo a continuidade do vínculo por meio desse objeto que foi "testemunho" do encontro (inter)lúdico com sua mãe. Mas que objeto é esse? Parece diferente do Objeto Transicional, já que não foi eleito pelo bebê, tampouco parece ter sido criado em um momento de separação ou perda da mãe. Este objeto surge em um momento gratificante da inteiração com o outro, e parece ser parte de uma experiência lúdica coconstruída.4
A observação possui uma riqueza polissêmica que nos convida a refletir desde diferentes pontos de vista. Tomaremos unicamente dois aspectos dado o espírito deste trabalho: a) o papel da atenção conjunta; b) o papel do objeto (Mickey) e que função cumpriria para esse bebê?
A atenção conjunta e o objeto
Na observação se pode apreciar, durante todo o processo do encontro mãe-bebê, a presença de uma atenção mútua muito rica. Isso é parte da reciprocidade esperada no contexto de uma relação pontuada por uma vivência libidinal de vínculo. Como se observa, a atenção é configurada em um movimento aberto entre a díade e o objeto (Mickey). No entanto, como entendemos a atenção? A etimologia nos diz que atenção em sua origem provém do latim attentio,attendere, tender o espírito para, prestar atenção em relação a três aspectos: (a) tomar cuidado: atenção!; (b) dirigir os sentidos em direção a algo - por exemplo "um olhar atento"; (c) prover, por exemplo, atender, cuidar de alguém (Houzel, 2002). A atenção contempla aqui um processo ativo de movimento psíquico em direção a um objeto. Essa perspectiva é também sustentada por Freud (1995/1911), quando observou:
Se instituiu uma função particular, a atenção, que viria a explorar periodicamente o mundo exterior, de modo que seus dados foram conhecidos antes que se instalasse uma necessidade interior implacável. Essa atividade sai ao encontro de impressões sensoriais, em lugar de aguardar sua emergência. (1911, p. 222) [itálicos do autor]
Este "sair ao encontro" ilustra eloquentemente a sensação de um movimento, na medida em que o bebê, em seus primeiros meses de vida, não consegue se deslocar de forma autônoma e - poderíamos dizer - que a atenção seria "as pernas de seu psiquismo", já que o bebê viaja, se desloca pelo espaço atento aos objetos. É a este movimento que a mãe está atenta em Fernando, quando detecta a orientação da atenção de seu bebê voltada para um terceiro objeto: o Mickey na parede. Como vimos, ela logo o comenta e incorpora à cena com seu bebê, para iniciar um intercâmbio lúdico e linguístico.
Então pudemos apreciar como, a partir dessa forma de atenção, emergiria certa capacidade do bebê de jogar com o objeto, já que a mãe se retira e Fernando continua atento e "falando com ele", sem angústia. Essa experiência configura a chamada atenção conjunta. Seguindo Bruner (1990), diríamos que:
Seria a capacidade de orientar seu olhar em direção a um mesmo objeto com o parceiro com quem interage. ... Busca captar a atenção do outro (geralmente a mãe) com o intuito de alcançar um objeto ansiado ou de compartilhar um centro de interesse. ... Essa capacidade começa a se desenvolver aos quatro meses e estará plenamente eficaz no final do primeiro ano. (p. 111)
Trata-se tanto de uma experiência intersubjetiva, como de uma forma de descobrimento, e um procedimento de designação. Entretanto, essa experiência intersubjetiva, que é de muita importância na subjetivação (a tal ponto que a sua ausência é já um sinal de dificuldades no bebê) contém, a partir de minha perspectiva, duas modalidades: a atenção conjunta operatória e a atenção conjunta transicional.
A atenção conjunta operatória é aquela em que a mãe contempla aquilo que o bebê contempla, mas não introduz nesse momento nenhuma experiência lúdica e nem faz uso da narratividade (abrir, inaugurar uma pequena história ou conto em relação a esse objeto). Seu cuidado é operatório, está atenta, mas sem infiltração fantasmática, como uma ação sem muita espessura psíquica, nem possibilidade de jogo.
Em contrapartida, a situação é outra, quando a mãe tem a possibilidade (por seus recursos interiores) de captar os pontos de interesse dos objetos que são contemplados pelo bebê (forma, cor, conteúdo, som) e "apresentá-los" de forma lúdica, narrativa e rítmica, de modo a construir uma "frase lúdica" em um processo de atenção conjunta transicional que permite uma abertura em direção ao espaço intersubjetivo. Então apreciamos como a partir dessa forma de atenção, emergiria certa capacidade do bebê de jogar com o objeto, já que a mãe se retira, e Fernando continua atento, "falando com ele" sem angústia. Mas então de que objeto se trataria?
Não vou desenvolver nesta oportunidade uma análise dos diferentes tipos de objetos que eventualmente entrariam em jogo no universo de um bebê em seu primeiro ano de vida, objeto prelúdico (Gutton, 2000), objeto autístico (Tustin, 1990), objeto fetiche (Winnicott, 1971), etc. Mas, sim, parcialmente incursionar a respeito da ideia de que esse objeto não seria, por exemplo, um objeto precursor (Gaddini, 1980), pois ele não é uma parte do corpo do bebê, nem um objeto que sirva para aliviar angústias de aniquilamento primárias. Em nenhum momento da experiência, Fernando demonstra estar atravessando situações angustiantes. No entanto, o objeto parece ter uma importância especial.
Tampouco creio que seja um objeto transicional, pois, conforme assinalou Winnicott, este deveria ser fundamentalmente descoberto pelo bebê. E ainda, que não seja parte nem da mãe e nem do bebê, devendo aparecer em momentos de angústia, já que serve para suportar a angústia de separação. Por outro lado, em geral tem uma qualidade sensorial, já que evoca algo do contato com a pele da mãe (paninho ou bicho de pelúcia). Tem um caráter único; Winnicott não descreve a situação de pluralidade no objeto transicional. É eleito pelo bebê, é único, e o bebê se agarra a ele diante da angústia. Mas na observação que analisamos, o objeto Mickey não foi eleito pelo bebê, ele foi apresentado pela mãe, inaugurando um encontro lúdico a partir da atenção conjunta. Ademais, pelo que logo constatamos na observação é um objeto variável e plural, já que essa mesma experiência se repetiu com outros objetos que lhe foram apresentados dessa forma: rítmica, lúdica e narrativa (Guerra, 2010b). Será que esse objeto, como um "testemunho", registra uma "proto-história" desse encontro recente e assegura ao bebê uma sensação de continuidade? Então, como poderíamos denominar esses objetos? Ensaio a hipótese de chamá-los de objetos tutores.
Definição de tutor
Há um duplo significado no termo tutor: (1) "cana ou estaca que fica ao lado de uma planta para mantê-la direita em seu crescimento" (Coromines e Pascual, 1980, p. 220); (2) "exercer tutela: guiar, proteger ou defender". "Autoridade que na ausência paterna ou materna, se confere para cuidar de pessoas ou bens daquele que, pela menoridade ou outra causa, não tem plena capacidade civil" (p. 221). Esse duplo significado é rico em possíveis sentidos, já que, se tomarmos o primeiro, vemos que a cana operaria como um "terceiro objeto" que permite que a planta (como se fosse o bebê) possa separar-se da "mãe terra" e avançar em sua autonomia em direção ao espaço, como um espaço de terceiridade (Guerra, 2008). Desse modo, a cana tem uma função muito importante para que a planta não se incline para os lados, ou até mesmo não se curve excessivamente em uma direção que a retorne para a mãe-terra (da qual deve separar-se). Nesse sentido, o "objeto tutor" ajuda no processo de separação, pois sustenta e habilita o bebê a separar-se da mãe, investindo e interessando-se por outros objetos em um espaço que seja diferente do corpo dela.
E o segundo implicaria que também poderia fornecer uma vivência de cuidado, na ausência dos pais. Fernando suporta a separação da mãe, que vai para o quarto, pois está entretido com o Mickey. Talvez se ela não tivesse tido essa disposição lúdica com seu filho, teria sido mais difícil que ele ficasse "conversando" com o objeto. Diríamos que Fernando suportou a descontinuidade da ausência da mãe porque manteve uma continuidade com o objeto que representou um encontro agradável com ela. Como vemos, a ênfase está posta no que se coconstrói entre o bebê e sua mãe, em torno desse "objeto tutor". Ou seja, estamos em uma perspectiva intersubjetiva, de coconstrução em conjunto da experiência emocional.
Poderíamos então sintetizar o que é o objeto tutor, por meio das seguintes características:5 (1) aparece entre 6 e 9 meses; (2) está relacionado com o domínio manual (pulsão de domínio); (3) é modificável e plural (podem ser vários); (4) está em estreita relação com a atenção conjunta; (5) sustenta a atenção como função de investimento, exploração do ambiente (Freud) e separação da mãe; (6) é parte da "apresentação do espaço" feita pela mãe; (7) o bebê se entretém com objetos, brinquedos ou objetos do ambiente, no qual desdobra parte do que foi vivido com a mãe. Dessa maneira, o ambiente é povoado desses objetos que, em parte, "sustentam" a continuidade do bebê, na ausência da mãe; (8) são diferentes do objeto transicional, já que são variáveis e não são eleitos pelo bebê, mas sim "coconstruídos" com a mãe; (9) pelo momento estrutural em que emergem, seriam parte da passagem do bebê de um funcionamento bidimensional para um tridimensional e de abertura para a experiência de interludicidade (a capacidade de coconstruir com o outro uma experiência lúdica com suas regras implícitas).
Objeto tutor e animação narrativa
Um aspecto muito importante que podemos apreciar nessas experiências é a relação entre a apresentação do objeto e a narratividade. Em geral, o que se observa é que, quando a mãe tem a disponibilidade lúdica que assinalamos, ela realiza uma interação com o bebê por meio de uma "animação narrativa" do objeto. O objeto inanimado passa a "ganhar vida", pois a mãe lhe insufla um sopro vital. O Mickey pode conversar com ela, deslocando nele conteúdos do intercâmbio humano. Por vezes, o apresenta com um nome, ou o utiliza para estabelecer um pequeno jogo de esconder, ou o brinquedo persegue o bebê e vai comê-lo. Iniciativas lúdicas que têm a característica da ritmicidade e do suspense, de interrogação aberta a um enigma. A mesma pergunta é repetida e há um suspense narrativo, com surpresa, na aproximação lúdica, o qual é um elemento fundamental nesse processo. De maneira que toda a experiência configuraria uma das primeiras vivências de narratividade. Vejamos isso na clínica.
Vinheta
Trata-se da vinheta de uma consulta terapêutica com uma mãe e um bebê de 7 meses com transtorno de sono, que apresentava uma grande dificuldade de separação e uma necessidade de proximidade corporal para evitar sofrimentos. Isso condicionava seu retorno quase permanente ao corpo materno como solução às experiências de desprazer. Logo após algumas sessões, nas quais se trabalhou seu temor de repetir com seu filho sofrimentos ocorridos em sua própria infância, ela nos contava como ocorrera uma importante melhora na qualidade do sono e na capacidade de separação, quando ela começou a brincar mais e a não aliviar a angústia de seu bebê com o contato corporal (peito ou estar nos braços). Disse a mãe:
Você não sabe como estamos agora! Atento a tudo, desde que passei a brincar mais e me animei a conversar com os brinquedos, fazer perguntas esperando para ver como respondiam... e ele ria com uma atenção!!... e depois vejo que me imita ou, sei lá, porque ele arma cada história!!! Com o tigrezinho ou com os ursinhos é como se conversasse com eles, e depois eu vou fazer outra coisa, e ele se entretém sozinho, feliz.
Dessa vinheta, queria destacar cinco conceitos que nos traz a mãe: (1) atenção, (2) jogo interativo, (3) falar com os brinquedos ("como se"), (4) inventar histórias, (5) se entreter sozinho. Ela relata uma disponibilidade maior de atenção para seu filho, como um aspecto de mudança representacional nela (percebia seu bebê como frágil e com pouca iniciativa, o que tornava ainda mais difícil separar-se dele). Em seguida, ela me relata que modificou sua postura no contato, se abriu para uma perspectiva mais lúdica e de animação narrativa, já que começou a brincar e dar vida aos objetos. Elementos que confirmam essa estrutura vincular que denominamos como interludicidade, ou capacidade de coconstruir com outro significado uma experiência lúdica, intersubjetiva, gratificante, que possui suas regras implícitas (Guerra, 2014). Como consequência, o bebê "se animou" a incursionar mais no campo da comunicação. É como se ele, por um processo de identificação, também passasse a conversar. Mas, provavelmente, isso foi antecedido pelo fato de que "falar" com o objeto inanimado é "animá-lo" por meio de histórias, e, assim, ela inventa uma nova história (Golse, 2003) na relação com seu bebê, tendo o objeto como testemunho. Tudo isso agiria como disparador de processos de simbolização e deslocamento da vida psíquica em objetos do ambiente, que possibilitariam uma maior "capacidade para estar a sós", não somente em um bebê, mas também em sujeito adulto.
O objeto tutor e o jardim de infância
Evoco então um exemplo deste aspecto que presenciei espontaneamente em meu trabalho como psicólogo em um jardim de infância.6,7 Ali eu abria meu trabalho e minha escuta analítica em vários campos: (1) a observação de bebês e das crianças na sala de aula e em outras áreas (seguindo alguns parâmetros da observação de Esther Bick); (2) o diálogo com as educadoras e outros profissionais, para podermos pensar juntos os processos de subjetivação das crianças; (3) trabalho com os pais, sob uma dupla perspectiva: de um lado, oficinas mensais de trabalho grupal, a partir de temas que eles elegiam e, de outro (talvez mais importante), por meio da implementação de uma experiência de Consultas Terapêuticas abertas no tempo, para acompanhar o desenvolvimento contraditório e dinâmico da parentalidade e modificar alguns sintomas das crianças, que poderiam alterar seu processo de subjetivação.8 Vou me referir aqui a um ponto dos mais difíceis do jardim de infância, que era o chamado "período de integração", ou seja, o tempo em que o bebê deveria integrar-se à instituição e que é um momento gerador de intensas angústias de todo tipo no bebê, nos pais e nas educadoras. Esse período muito importante era abordado tanto em reuniões grupais com os pais, como em entrevistas individuais. A situação que quero relatar é a de uma bebê - Maria, de 11 meses - que, em pleno período de integração (ela frequentava quatro horas por dia), tinha alguns momentos de intensa angústia, nos quais resistia também a estar nos braços da educadora que procurava contê-la. Os pais eram muito adequados e confiavam no processo.
Em uma de minhas visitas à sala - e em situação de observação - aprecio o esforço da educadora por acalmá-la ocasionando, por momentos, uma situação quase de hiperestimulação, ao tentar tirar o foco de atenção da bebê da sua angústia, por meio de objetos e brinquedos que ela apresentava. Também observo que quando ela mudava o tom de voz, falando de modo mais suave e envolvente, apresentando algum objeto com um tom lúdico, a bebê se acalmava um pouco mais.
A partir disso, conversando em outro momento com a educadora, analisamos juntos a situação e o que ela sentia. Dizia sentir-se pressionada internamente por acalmar a bebê, para que os demais não pensassem que ela fosse ineficaz. Procurei pôr isso em palavras, e transmitir confiança na natureza normal desse processo e no que significa a integração para essa bebê, que começa a habitar um espaço sensorial e vincular totalmente novo, e que isso não é culpa dela. Aponto as duas coisas que eu observei e sugiro que pense sobre elas e que talvez Maria venha a se sentir mais integrada se ela sentir que o ambiente também lhe fornece continência por meio dos objetos e da forma como ela os apresenta.
Depois de alguns dias, voltei a visitar a sala, e a educadora me contou feliz, que a situação havia mudado muito. Ela ficou pensando em tudo o que conversamos e pôs em prática. Justo nesse momento, chegou Maria nos braços de sua mãe trazendo um sorriso no rosto e ao passar para os braços da educadora teve um momento de certa angústia. A educadora a recebeu com voz calma e entonação continente, falou algo com a mãe e, em seguida, se dedicou a apresentar os objetos e o ambiente a Maria. Diz a ela que no fim de semana os objetos a estavam esperando e que um ursinho de pelúcia e um tigrezinho queriam brincar com ela. Quando a bebê demonstrou interesse nos objetos, a educadora olhou sorridente para ela, entregou-os e foi percorrendo tranquilamente toda a sala de aula de parede a parede, falando do ambiente, dos brinquedos, e logo falou dos outros bebês que estavam ali também. Sentou no chão com Maria e começou a brincar de esconde-esconde com o tigrezinho; Maria riu intensamente, e, logo após um tempo de jogo comum, a educadora se levantou para fazer outra coisa e deixa-a ali brincando com o objeto.
O exemplo retrata a fecundidade da observação e intervenção sobre uma bebê, em um espaço de cuidado como uma creche. Esta situação que relatei ocorreu há vinte anos e foi uma entre muitas. Desde essa época, passei a refletir sobre o papel dos objetos na vida psíquica do bebê e no fato de que nem todos os objetos poderiam ser chamados de transicionais. Tudo isso ampliou meu registro sobre o papel (1) dos elementos inanimados do ambiente como elementos de contenção psíquica e (2) de como a narrativa e uma prosódia lúdica e rítmica configuravam elementos dessa contenção. Quero enfatizar que já estava em mim a ideia de que esses objetos lúdicos (tutores) formavam parte de uma ritmicidade que poderia ajudar ao par presença-ausência.
A professora contou a Maria que, em sua ausência, os brinquedos a esperavam, como que transmitindo confiança para que a bebê percebesse que - logo após a separação, a perda e a ausência - há um elemento de continuidade psíquica na presença efetiva do ambiente. Evidentemente, isso é uma metáfora do vínculo com a mãe como objeto libidinal. Quanto disso será percebido pela bebê? Não podemos assegurar, mas, sim, sustentar, de acordo com a experiência que Maria continuou integrando-se adequadamente e que buscava a sua educadora para continuar brincando com estes objetos, que pareciam por sua vez habilitar sua capacidade de estar a sós.
Capacidade de estar a sós
Nossos olhos passeiam continuamente pelo mundo das coisas e
percebemos ainda mais as coisas quando estamos sós. Um rosto humano
sempre desviará nossa atenção, apartando-a dos objetos; mas a
sós os objetos são nossa companhia. (Hustvedt, 2001)
A luz nem bem emergia de uma tela verde, já se espalhava sobre uma
toalha branca, onde estavam reunidos, como para uma festa de recordações,
os velhos objetos da família. ... Conforme a luz se afastava,
eles (os objetos) se aninhavam na sombra como se tivessem plumas e se
preparassem para dormir. Então ela disse que os objetos adquiriam alma
à medida que entravam em relação com as pessoas. (Hernandez, 2010)
Em seu reconhecido artigo, Winnicott (1958) nos oferece pistas sobre a construção da "capacidade de estar a sós" como sinal positivo do desenvolvimento emocional. Ele nos diz que "Trata-se da experiência de estar só na presença da mãe. O fundamento é paradoxal" (p. 335). O paradoxo que enuncia o autor se refere a que esse processo de estar só se constrói com a presença materna num mesmo espaço, porém, ocupada com outros horizontes libidinais. O bebê pode começar a estar só, quando a mãe também pode separar-se dele, embora esteja presente na sala.
Esta experiência é um fenômeno mais elaborado que apareceria no desenvolvimento individual, depois de estabelecida a relação a três ... Por assim dizer, consiste em um tipo de relação particular. A que existe entre o bebê ou menino que está só e a mãe ou substituto maternal, com cuja presença efetiva pode contar, mesmo se por um momento a mãe é representada pelo berço, outro objeto ou a atmosfera geral do ambiente imediato. (Winnicott, 1958, p. 336) [itálicos do autor]
Nessa frase, Winnicott nos mostra, seja a abertura à terceiridade, seja que a atmosfera do ambiente pode representar o cuidado ou presença da mãe ou dos outros. E isso nos convida a uma série de perguntas: O que é que faz um quarto, um ambiente, uma casa, possuir uma atmosfera continente? O fato de que é investida, povoada por histórias, de traços, de marcas de encontros? ... Plena de objetos que testemunham esses encontros? Então, quando não há nada ao redor estamos realmente sós? Um poema de Circe Maia, escrito a partir do quadro de Vermeer "A jovem que dorme", poderia nos aproximar de uma resposta. No quadro do pintor holandês, há uma jovem sentada numa cadeira, adormecida, apoiando sua bochecha em uma mão sobre a mesa e, à sua esquerda, uma porta aberta.
A jovem que dorme9
Com o cotovelo apoiado na mesa
e o punho na bochecha
luminoso tecido, parede em sombra
a jovem dorme.
Pela porta entreaberta
se vê um quarto sem ninguém
um móvel
um quadro
azulejos claros: ninguém.
Contudo, não solitária. Envolta totalmente
sustentada por formas e cores
em vívido equilíbrio
Com que gesto confiante está apoiada
apenas, a outra mão
e a luz é sossego.
Não sozinha. Protegida.
Seu quarto-barco viaja
onda de tempo estático
navega luz-silêncio...
(Maia, 2008, p. 67)
Maia marca com sutileza como a envoltura, a sustentação é dada pelo ambiente, que lhe outorga um "vívido equilíbrio", e uma forma de proteção na viagem que configura o dormir e o sonhar. Os "objetos tutores" que "envolvem" o bebê, cumprem a mesma função de proteção, continuidade e segurança que são descritas, imaginariamente, na pintura? Essa experiência, que aparentemente se iniciou na tenra infância, perdura ao longo da vida, por meio do valor especial que damos aos objetos e ao ambiente? E de que, às vezes, o lugar e o investimento de certos objetos em uma casa não nos falaria de como são os próprios sujeitos, de seus mistérios e segredos?
Objeto tutor e função testemunho
Vamos dar a palavra aos criadores, aqueles que como já sabemos estão muitas vezes um passo à frente de nós, os analistas, para descrever, transmitir e descobrir diferentes elementos de nossa vida psíquica. O escritor Manuel Mujica Lainez disse:
As coisas das quais se afirma carecerem de alma são donas de segredos profundos que se imprimem nelas e lhes criam um modo de alma especialíssimo. Transbordam de segredos, de mensagens, e, como não podem comunicá-los senão a seres escolhidos, se tornam, com o andar dos anos, estranhas, irreais, quase pensativas. Também os objetos poderiam contar a vida do escritor, e a história familiar, porque são testemunhas (frente àqueles que não se podem dissimular) de muitas horas de intimidade. Se pudessem nos falar ou se nós fossemos capazes de entender sua linguagem, quanto saberíamos sobre seus donos! (Lainez, citado por Cruz, 1996, p. 161) [itálicos do autor]
José Saramago, em seu romance Claraboia, assim disse:
Também os móveis e os objetos mais insignificantes de uma casa refletem alguma coisa da vida dos seus proprietários. Deles se desprende frieza ou calor, cordialidade ou reserva. São testemunhas que a toda a hora estão contando,numa linguagem silenciosa, o que viram e o que sabem. A dificuldade está em encontrar o momento mais favorável para recolher a confissão, a hora mais íntima, a luz mais propícia ... Abel ouvia as histórias que lhe contavam a cômoda e a mesa, as cadeiras e o espelho. E também as cortinas da janela. Não eram histórias com princípio, meio e fim, mas um fluir doce de imagens, a linguagem das formas e cores que deixam uma impressão de paz e serenidade. (Saramago, 2012, p. 166) [itálicos do autor]
Estamos, então, sem pessoas ao lado, "mas não sós", rodeados de objetos, de ambientes, de cores que "relatam nossa intimidade", que "narram histórias" de uma forma diferente e que poderiam representar o contato com os sujeitos ausentes. É muito interessante como Saramago marca a inter-relação entre um aspecto narrativo dos objetos e a qualidade de testemunho: aquele que por meio de um ato de presença recebe uma marca do encontro com o outro. E essa marca é uma "marca narrativa", um texto narrado pelos móveis com uma linguagem que não seria feita de palavras, mas uma forma de "narrativa sensorial": um fluir doce de imagens, a linguagem das formas e cores... Nesse sentido, Lydia Flem também nos diz:
As coisas não são meramente coisas. Levam em si pegadas humanas, nos prolongam. Os objetos que nos fizeram companhia, cada um tem uma história e uma significação mescladas com a das pessoas que os utilizaram e amaram. Objetos e pessoas formam juntos uma espécie de unidade que não pode desintegrar-se sem pena... (2001, p. 77)
Nessa linda frase de Flem (2001), se concentrariam aspectos importantes da relação com esses objetos: eles fazem companhia, têm "histórias que nos historizam" como sujeitos e significações afetivas íntimas que nos identificam. Isso tudo é ainda mais significativo nos processos de luto, nos quais, às vezes, os objetos têm um valor mais especial como "testemunhos" de encontros. A reflexão dessa analista provém de sua própria experiência diante dos objetos de sua casa de infância.
Caso clínico
Em relação ao luto e aos objetos, quero trazer o exemplo clínico de uma paciente de 40 anos em análise, cujo motivo de consulta girava em torno de insegurança, autoexigência muito acentuada, dificuldade para integrar seus afetos, medo de descontrole e depressão. Apresentava características obsessivas que, por momentos, dificultavam o trabalho de análise, por suas resistências ante a associação livre e a integração dos afetos em seu discurso. Em sua história, como fato marcante, viveu uma difícil situação de luto, pela morte de seu pai quando tinha 3 anos de idade, a qual provocou em sua mãe uma atitude de "endurecimento" e de dedicação plena ao trabalho, para "levar a família adiante" (tinha vários filhos). Parece que recrudesceu na mãe uma tendência a dedicar-se plenamente ao trabalho, com alto nível de cobrança e uma expressão de afetos mediante cuidados concretos e parcas possibilidades de falar das perdas, dos afetos, da dor psíquica. Ao longo da análise que durou vários anos foram trabalhados diferentes conflitos, sob predomínio de uma transferência positiva, mas também do desejo (e do problema) de reencontrar em mim o pai perdido em sua infância.
Por momentos, as sessões se tornavam repetitivas, pesadas, a própria paciente se queixava de como ela não podia imaginar temas novos e "interessantes" e se perguntava o quanto ela me entediava... Quero aqui mostrar a parte de uma sessão de um momento particularmente desestabilizador para a paciente (e para mim também). A mãe tinha estado doente havia certo tempo e por fim faleceu. A perda foi algo muito doloroso para minha paciente, que por sua vez permitiu incursionar um pouco mais no luto precoce da morte de seu pai e seus temores. Contudo, houve um momento muito especial, quando deveria junto com uma de suas irmãs "desmontar" o apartamento no qual viveu a mãe e no qual se encontraram seus objetos. A mãe havia decidido que certos móveis seriam destinados a alguns dos filhos ou netos. Mas alguns objetos não tiveram um destinatário fixo. Nessa sessão ela chega muito perturbada e me relata que não sabe o que se passa, encontra-se numa grande agitação pois teve um desentendimento muito forte com sua irmã (com a qual sempre teve boa relação), já que no apartamento, entre os objetos que permaneceram, encontraram uma caixa de costura. Quando a viu, reconheceu como sendo a caixa de costura de sua casa de infância e teve uma grande necessidade afetiva de tomá-la para si. A irmã também a queria, daí a discussão.
A paciente segue perturbada, em silêncio, demonstrando claramente estar embargada por uma grande emoção.
P - Não sei por que dou tanta importância se é apenas um objeto... (conta que nunca tinha dado muita importância aos objetos).
Depois de refletir um pouco disse:
P - Mas, se eu começar a pensar, a caixa de costura me traz a lembrança dos poucos momentos que minha mãe estava em casa tranquila...
A - Como era.
A paciente recorda esses momentos nos quais a mãe quase por um único momento do dia, estava tranquila, quieta, sem estar preocupada com outras coisas. Parecia outra pessoa. Costurava as roupas rasgadas para elas e, às vezes, também fazia tricô. E então começavam a falar com tranquilidade dos acontecimentos da vida.
P - Sim... (silêncio profundo) é que me traz recordações (chora) ... dos poucos momentos em que me sentia atendida...
A - Cuidada?
P - ... de certa forma, sim...
A - Então a caixa de costura é algo mais que um simples objeto, contém recordações...
P - Sim (chora emocionada), tem histórias dentro.... Parece que a quero porque ali permanecem guardadas histórias... de cuidado... ao possuí-la, teria algo bom de minha mãe...
A - Diante da perda de sua mãe, aparecem as histórias guardadas em objetos e abertas aqui em suas palavras... (ela segue emocionada e diz que sim) ...
Quero dizer que a partir do trabalho sobre o valor desse objeto, abriu-se um caminho diferente nas associações dessa mulher em relação a sua história pessoal. E também ao intercâmbio afetivo e ao investimento, com mais tranquilidade e prazer (sem tanta cobrança), em suas coisas e em sua casa...
Objetos, casas, histórias... Sutil trama de fibras que tecem as experiências do devir humano. Os objetos "tutores" (testemunhos) ganham valor pelas histórias que contêm, e as histórias "encarnam" nas coisas. Como expressou o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun:
Uma história é como uma casa, uma casa velha com níveis, com pisos, quartos, corredores, portas, janelas, despensas, ou grutas, espaços inúteis. As paredes constituem a memória. Derrube um pouco de uma pedra, preste atenção e escutará muita coisa. O tempo recolhe aquilo que o dia carrega e a noite dispersa. Guarda e retém. A pedra é testemunha. A condição de pedra. Cada pedra é uma página escrita, lida e alterada... (1985, p. 171)
Os objetos nos falam... afinemos a escuta... as histórias nos esperam...
Referências
Ben Jelloun, T. (1985). Menino da areia. São Paulo: Record. [ Links ]
Bruner, J. (1990). Actos de significado. Madrid: Alianza. [ Links ]
Cardozo, A., Guerra, F. e Lopez de Ponce de León, S. (1994). Comenzando los vínculos: el bebe, sus papás y el jardín maternal. Montevidéu: Roca Viva. [ Links ]
Casas de Pereda, M. (1999). En el camino de la simbolización. Producción del sujeto psíquico. Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Chnaiderman, M. S. (2001). Carnes e almas: devorando metáforas. In E. Sousa, E. Tessler e A. Slavutzky, A invenção da vida. Arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios. [ Links ]
Coromines, J., e Pascual, J. A. (1980). Diccionario crítico etimológico castellano e hispânico. Madrid: Gredos. [ Links ]
Cruz, J. (1996). Genio y figura de Manuel Mujica Lainez. Buenos Aires: Eudeba. [ Links ]
Di Cegli, G. (1987). Symbolism and a symbolon: disturbances in symbol formation in two borderline cases. Journal of Ipa. Londres. [ Links ]
Flem, L. (2001). Como vacié la casa de mis padres. Buenos Aires: Nueva Visión. [ Links ]
Freud, S. (1995). Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1911) [ Links ]
Gaddini, R. (1980). La renegación de la separación, em Winnicott. Buenos Aires: Trieb. [ Links ]
Golse, B. (2003). Sobre a psicoterapia pais-bebê: narratividade, filiação e transmissão. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Golse, B. (2008). Du corps à la pensée. Paris: PUF. [ Links ]
Golse, B. (2011). Des sens au sens. Revue Spirale, 1. Paris: Érès. [ Links ]
Gómes Mango, E. (1999). Vida y muerte en la escritura. Montevidéu: Trilce. [ Links ]
Green, A. (1998). La pulsión de muerte. Buenos Aires: Amorrortu. [ Links ]
Guerra, V. (2002). Intervenciones terapéuticas en la triada padre-madre-bebe. Revista Uruguaia de Psicoanalisis, 96,125-141. Montevidéu. [ Links ]
Guerra, V. (2007). Le rythme: entre perte et retrouvailles. Revue Spirale, 4(44),139-146. Paris: Érès. [ Links ]
Guerra, V. (2008). La triadificación y la terceridad en el primer año de vida del bebe. Cuando se necesitan tres, para que dos tengan (y dejen) la ilusión de ser uno. Texto não publicado. [ Links ]
Guerra, V. (2010a). Symbolisations et objets dans la petite enfance: les objets tuteurs. Apresentado na Université Lumière II. France. [ Links ]
Guerra, V. (2010b). Indicadores de intersubjetividad 0-2 años, publicação do MEC (pp. 87-126). Montevidéu. [ Links ]
Guerra, V. (2014). Indicadores de intersubjetividad 0-12 m. Del encuentro de miradas al placer de jugar juntos. [Filme-vídeo] Filme patrocinado pelo Comité Outreach da IPA, Montevidéu. [ Links ]
Guerra, V. (2015). Perspectiva psicoanalitica del Jardín de infantes como espacio de subjetivación del niño y su familia. Conferência no XXVI Encontro Inter-regional de Crianças e Adolescentes da fepal: Psicanálise e Educação. Desafios e prevenção no desenvolvimento infantil e adolescente na contemporaneidade. Recife. [ Links ]
Hernandez, F. (2010). De viva voz. Madrid: Visor. [ Links ]
Houzel, D. (2002). L'aube de la vie psychique. Paris: Érès. [ Links ]
Hustvedt, S. (2001). En lontananza. Barcelona: Circe. [ Links ]
Langer, S. (1967). Semtimiento y forma. Cidade do México: Unam. [ Links ]
Maia, C. (2008). Obra poética. Montevidéu: Del Acantilado. [ Links ]
Mazet, P. (1992). Imitation, interaction et harmonisation affectives dans la premiére année. In J. Hochmann e P. Ferrari. Imitation, identification chez l'enfant autiste. Paris: Bayard Jeunesse. [ Links ]
Milner, M. (1952). O papel da ilusão na formação simbólica. In M. Milner (1991), A loucura suprimida do homem são. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Porchia, R (1960). Voces. Buenos Aires: Adriana Hidalgo. [ Links ]
Roussillon, R. (2004). Agonie, clivage et symbolisation. Paris: PUF. [ Links ]
Roussillon, R. (2008). L'intersubjectivité. L'inconscient et le sexual. In A. Braconnier e B. Golse (Orgs.), Sexe, sexuel, sexualité. Paris: Érès. [ Links ]
Saramago, J. (2012). Claraboia. Madrid: Alfaguara. [ Links ]
Searles, H. (1980). L'environnement non-humanin. Paris: Gallimard. [ Links ]
Tustin, F. (1990). Barreras autistas en pacientes neuróticos. Buenos Aires: Amorrortu. [ Links ]
Winnicott, D. (1958). La capacidad para estar a solas. In D. Winnicott, El proceso de maduración del niño. Barcelona: Laia. [ Links ]
Winnicott, D. (1971). Realidad y juego. Barcelona: Gedisa. [ Links ]
Recebido em: 3/4/2017
Aceito em: 3/4/2017
Tradução de Walter José Martins Migliorini10 e Flávia Mendes Ferraz de Almeida11
1 Apoio FAPESP.
2 Há que se ter em conta que ainda hoje na Grécia, os veículos de transporte coletivo são chamados de "metáfora". E no plano da palavra, como disse Chnaiderman (2001, citado por Sousa, Tessler e Slavutsky, 2001, p. 155), "é um transporte coletivo de significações, montagem infinita de significantes intercambiáveis".
3 "Co-creando", no original.
4 "Co-constuida", no original. (N. T.)
5 Não me ocuparei neste trabalho da diferença com os "objetos de relação" (Chouvier), nem com os "objetos de mediação" (Gimenez).
6 Trabalho realizado durante dezoito anos no Jardin de Infantes Maternalico de Sara Ponce de León. Lugar em que encontrei uma grande abertura para colocar em jogo a escuta analítica dos processos e implementar, com liberdade, formas novas de abordagem dos bebês e da família (Cardozo; Guerra; Ponce de León, 1994).
7 Equivalente à pré-escola, no Brasil de hoje. (N. T.)
8 Tive oportunidade de seguir em consulta terapêutica mais de mil crianças desde a fase de bebê até os 5 anos, com um interessante efeito em seus processos de subjetivação (Guerra, 2002, 2015).
9 La jovem dormida / Con el codo apoyada en la mesa / y el puño en la mejilla /luminoso mantel, pared en sombra / la joven duerme. / Por la puerta entreabierta / se ve un cuarto sin nadie / un mueble / un cuadro / baldosas claras: nadie. / Pero no sola. Envuelta totalmente / sostenida por formas y colores / en vivido equilibrio / Con que confiado gusto está apoyada / apenas, la otra mano / y la luz es sosiego. / No sola. Protegida. / Su cuarto-barco viaja / ola de tiempo inmóvil / navega luz-silencio...
10 Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Docente do Departamento de Psicologia Clínica, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP.
11 Psicóloga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP.