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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dic. 2019
EROS
Eros na constituição do objeto estético: fragmentos de uma escuta a fim de entender melhor o que eu quero dizer
Eros in constitution of the aesthetical object: fragments from a listening to better understand what I want to say
Eros en la constitución del objeto estético: fragmentos de una escucha para mejor entender lo que quiero decir
Eros dans la constitution de l'objet esthétique: fragments de l'écoute pour mieux comprendre ce que je veux dire
Suzana Alves Viana
Psicanalista; professora do curso Formação em Psicanálise, do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo; doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. São Paulo / suzanaviana@gmail.com
RESUMO
Neste trabalho faço uma exploração sobre o objeto estético, descrito por Meg Harris Williams como um processo da mentalidade estética. Tecendo associações entre poemas, experiências emocionais e sonhos, vou construindo um texto, em que as ideias nascidas são compreendidas como função dos objetos internos que, no recolhimento de sua câmera nupcial, criam símbolos, pensamentos oníricos e pensamentos de cuja matéria se fazem pensamentos.
Palavras-chave: objeto estético, Meg Harris Williams, objetos internos, símbolos
ABSTRACT
In this paper I explore the aesthetic object described by Meg Harris Williams as a process of the aesthetic mindset. Weaving associations among poems, emotional experiences and dreams I build a text where the born ideas are understood as a function of the internal objects that, in the recollection of their "bridal camera", create symbols, dream thoughts and thoughts from whose matter thoughts are made.
Keywords: aesthetical object, Meg Harris Williams, internal objects, symbols
RESUMEN
En este artículo exploro el objeto estético descrito por Meg Harris Williams como un proceso de mentalidad estética. Tejiendo asociaciones entre poemas, experiencias emocionales y sueños construyo un texto donde las ideas nacidas se entienden como una función de los objetos internos que, en el recuerdo de su "cámara nupcial", crean símbolos, pensamientos y pensamientos de los sueños de los cuales están hechos los pensamientos.
Palabras clave: objeto estético, Meg Harris Williams, objetos internos, símbolos
RÉSUMÉ
Dans cet article, j'explore l'objet esthétique décrit par Meg Harris Williams en tant que processus de la mentalité esthétique. Tissant des associations entre poèmes, expériences émotionnelles et rêves, je construis un texte dans lequel les idées nées sont comprises comme une fonction des objets internes qui, dans le souvenir de leur "chambre nupciale", créent des symboles, des pensées de rêve et des pensées à partir desquelles des pensées sont créées.
Mots-clés: objet esthétique, Meg Harris Williams, objets internes, symboles
Fragmento 1
Sobre o título
O título tem o propósito de mostrar a construção de um texto que se dá durante o próprio processo do escrever - o texto vai surgindo.
Ele começou a ser escrito para uma conversa, uma mesa-redonda, para comemorar o lançamento da tradução do livro O desenvolvimento estético, de Meg Harris Williams, no Instituto Sedes Sapientiae em 2018.
Williams (2018) afirma que a "vida de pensamento está contida, como a Bela Adormecida, na 'autoinclusão' estável do objeto de arte, sempre pronta para ser redespertada" (p. 256).
A Bela Adormecida faz alusão àquilo que o artista deve desvelar quando faz despertar sua arte.
Ainda sobre o título, trago uma passagem na qual Bion (1989) disse que ao ler Kant não estava em busca de interpretá-lo, mas sim de usar seus conceitos para combinar com suas intuições, tornando possível experimentar, nas palavras dele, "que assim eu sei o que eu quero dizer" (p. 207).
Dentro desse clima, deixei-me tomar por impressões da leitura do livro de Williams que me levaram a compreender um pouco mais sobre o que eu quero dizer.
Ler sobre o desenvolvimento estético tem sido uma experiência profunda de expansão dos meus pensamentos, uma experiência de espanto, admiração, compreensão e mistério diante do que chega desconhecido, mas que evoca a crença de que estará lá, acessível para mim por meio de uma experiência com o sagrado. Como descrevo o sagrado?
Uma reverência respeitosa diante do que sei que é maior do que sei; o texto de Williams faz-me pensar a figura de um círculo central que se projeta, para fora, em múltiplos raios visíveis e, para dentro, numa projeção infinita para o escuro.
Cada conceito compreendido guarda seu mistério, guarda dentro de sua visibilidade sensuosa1 uma aura que desfaz a certeza de sua completude.
Fragmento 2
Eu resido na Possibilidade - Uma coisa mais bela que a Prosa -
Mais numerosa em Janelas
Superior - pelas portas.
(Dickinson, 657, citado por Williams, 2018, p. 235)
Escolho esse poema, porque ele toca o desejo de existir em muitas possibilidades.
No contraponto, trago a passagem de um texto que circulou pelas redes sociais no contexto que envolveu o clima da política eleitoral em 2018, no Brasil.
Bianca Dias escreveu:
Hoje soube que Eduardo Viveiros de Castro não poderia falar sobre os índios, pois ele não é índio. Bem, chegamos ao limite daquilo que está se colocando já tem tempo: um cerceamento raso e absurdo ao exercício de liberdade intelectual e artística... A abordagem de questões importantes e de alta complexidade é feita através do espírito de manada, via legitimidade identitária com o emudecimento do espírito crítico que tenciona verdades prontas para consumo.
Esse texto traz um cotidiano que toma o conhecimento por um único vértice, num plano bidimensional, em que só existe: eu e não eu. Aparentemente é mais fácil familiarizar o desconhecimento do outro, como aquele que, não sendo do meu grupo ou da minha tribo, ameaça fazer-me impactar pelo conflito e pela mudança catastrófica.
Oposto a esse universo de um pensamento de manada, Keats escreveu como o princípio do pensar nasce em nós:
o "efeito de uma visão apurada", é paradoxalmente experienciar o confuso mistério - nebuloso, fruto da união entre escuridão e luminosidade e também as emoções simultâneas de amor e ódio: o conflito estético. (Williams, 2018, p. 55)
Em Metapsicologia Ampliada, Meltzer escreve que a observação psicanalítica e a observação infantil revelam, assim como fazem os poetas, que o "conflito estético" na presença do objeto é primário em relação aos conflitos de separação, de privação e de frustração ... (citado por Williams, 2018, p. 68).
O "conflito estético" pressupõe olhar para o desenvolvimento mental como uma função estética, fundada no princípio da reciprocidade entre a mente interna infantil e seus objetos internos, a começar com a real resposta do bebê à mãe-enquanto-o-mundo, que serve como protótipo para todas as explorações mentais subsequentes. É a complexa experiência da beleza do mundo, juntamente com o desejo de conhecê-lo, que põe em movimento a peculiar atividade humana de criar símbolos, uma função do "nível estético" da mentalidade.
...
Símbolos, tal como relacionamentos íntimos, representam nosso "esforço para falar do sentido interior das coisas" (Harris) e são atos comuns em tributo ao princípio da beleza no mundo. (Meltzer citado por Williams, 2018, p. 69)
Aqui está sugerida uma ampliação da metapsicologia para a psicanálise que será formulada na proposta de Bion como um dos vértices necessários para se alcançar o Conhecimento: o vértice estético. Em conjunto como o vértice científico e religioso, o vértice estético complementa o triângulo necessário ao conhecimento que se projeta assim para o plano tridimensional ao alcançar o símbolo.
Keats compara o processo do pensar onírico ao de uma aranha tecendo sua teia de dentro para fora, tornando-se gradualmente mais complexa e espacialmente ousada. (citado por Williams, 2018).
Mas, para o Homem-Aranha construir sua teia, deverá suportar a mudança catastrófica.
A mudança catastrófica é um conceito formulado por Bion e é para ser pensado não como uma catástrofe comum, mas como a vitalidade da turbulência emocional que acompanha o sujeito em seu trânsito para o Conhecimento ou na recusa dele. Alcançar o Conhecimento requer um tipo de tolerância especial nomeada como capacidade negativa para Keats.
Portanto o conflito estético e a mudança catastrófica são experiências emocionais que ocorrem em conjunto, na melhor das hipóteses.
A capacidade negativa é a força para tolerar a turbulência emocional do não saber: deixar de impor soluções falsas, onipotentes ou prematuras a um problema. É uma formulação especial do "princípio da incerteza" (Bion, 1989, p. 220)
Esse conceito está por trás da formulação da "mudança catastrófica" de Bion e suas emoções contrárias de amor e ódio, que precisam estar desgastadas para que uma verdadeira orientação na direção do conhecimento seja alcançada. Trata-se, em essência, de enfrentar a experiência, e não a evitar. (Williams, 2018, p. 90)
Fragmento 3
Hoje entendo o que se passou comigo quando escrevia minha tese sobre a contratransferência e a entreguei a um amigo para que a comentasse. Lia seus comentários com muito entusiasmo, quando, chegando ao final, deparo com a seguinte frase:
O texto está assombrado por um ranço de como o analista deve ser.
A partir dessa frase não pude mais continuar lendo. O contato com ela provocou-me uma espécie de colisão, um efeito físico: experimentei-me desnorteada, confusa e com vontade de vomitar. Não pude engoli-la e muito menos metaforizá-la.
Diria com Pontalis (2005) que a frase tocou-me em carne viva.
O que fiz a seguir foi escrever, procurar falar na escrita sobre o que estava me acontecendo. Busquei tanto descrever minhas associações, como também as ia lendo, segundo os referenciais que já possuía.
A frase causou-me um estranhamento, mas não da ordem do olhar do estrangeiro, que tem o sabor da surpresa, do olhar que vê pela primeira vez aquilo que olha.
O estranhamento experimentado por mim era da ordem do sinistro; introduzia um efeito de paralisação, em especial da linguagem. Minha mente foi ocupada por falas repetitivas e circulares que a inchavam, mas nada acrescentavam; todos os caminhos conduziam ao mesmo lugar: árido, seco, desértico e mudo.
Essa repetitividade foi dotada de uma força compulsiva: repetia-se em minha cabeça, mas o resultado era mecânico e vazio, não me dando o alívio de uma saída na forma do insight. Não havia transformação.
A frase teve uma qualidade estética, carregava uma materialidade afetiva: uma sensação pesada, sem sentido.
E assim era feia.
Chamei-a de angústia contratransferencial siderante e mortífera.
Hoje, à luz de Meltzer e Williams, proponho-me a pensá-la como a frase que me pôs dentro do conflito estético.
Ao reescrever sobre esse episódio, recordei-me de que quando procurava um orientador para minha tese fui até um professor com quem trabalhava num outro projeto e lhe perguntei se podia ser meu orientador. Respondeu-me que sim, desde que eu desenvolvesse algo ligado a seu projeto. Recusei, porque queria trabalhar com a questão da Contratransferência.
Pergunto-me, então, se o que ocorreu foi que um projeto meu, pelo qual tinha tanto apreço, era transformado, no comentário, a uma ideia de manada.
Submetida a um ideal pré-formado, inconscientemente, traía minha busca? Espantada, deixei-me trabalhar pelo efeito do comentário, apropriando-me dele para pensá-lo como parte do processo da contratransferência. Hoje penso que o conflito estético e uma mudança catastrófica ali tiveram lugar.
Fragmento 4
"Contratransferência é tudo em psicanálise", disse Meltzer; "a ideia histórica de que você não deve comunicar a contratransferência é uma ilusão. Você a está comunicando na música da sua voz o tempo todo" (em Oelsner& Oelsner, 2005, citados por Willians, 2018, p. 249).
Bion, em sua última e mais estética filosofia, percebeu a contratransferência como uma ferramenta privilegiada do analista para fazer observações.
"Diante da 'escuridão total' de uma nova situação, a primeira coisa que o analista pode ver, com certeza, são as 'marcas' que essa situação emocional particular deixou nele mesmo" (citado por Williams, 2018, p. 249).
Fragmento 5
No capítulo 5, Meg Williams escreve sobre "A beleza em movimento".
Aqui nos fala sobre um tipo particular de desenho de modelo vivo (life-drawing) que envolve a combinação das características estéticas da dança, da música e do corpo humano, enquanto ideia subjacente de um objeto estético (Williams, 2018, p. 210).
Nesse tipo de desenho, é o modelo quem deve descobrir a pose, não deve ser posicionado, ele não é uma ferramenta passiva do artista. O modelo concentra-se na busca de uma pose, e é interrompido pelo artista quando ela é encontrada. A música é um emoliente essencial neste processo... Sua função é mobilizar o que Stokes (1965) chama de "encantamento", o convite para participar de uma situação dinâmica em que linhas de tensão são estabelecidas entre modelo e desenhista, para que sejam incorporadas nas linhas e marcas sobre o papel. Sem o encantamento dos processos identificatórios não há nenhum sentido de autoexploração... (Williams, 2018, p. 213).
A seguir, Williams nos justifica por que entende que trabalhar com essa técnica pode ajudar a compreender o trabalho do analista e seu analisando:
O objeto estético não fica imóvel, mas está em processo de evolução, e o desenho de modelo vivo - uma arte que é temporal, bem como espacial - nos possibilita o relacionamento direto com essa qualidade e a observação do seu impacto. O trabalho de desenhar o corpo em movimento ..., pode parecer distante do modo contemplativo da relação entre analista e analisando, cuja técnica de comunicação desencoraja até mesmo os meios comuns de contato visual. No entanto, essa mesma distância entre as formas de arte pode ajudar a melhorar a capacidade de observação em relação aos movimentos ocultos, à música oculta, ao equilíbrio escondido e à capacidade de resposta ao processo de formação de símbolo que está acontecendo entre duas mentes distintas. (Willians, 2018, p. 210)
Nessa técnica/arte, qualquer marca sobre um papel branco e virgem é inicialmente experimentada como cicatriz. Isto acontece devido à ansiedade que ali pode estar contida, não uma cicatriz como produto do impacto agressivo da mão sobre o papel.
Essa imagem da cicatriz sobre o branco do papel, comparo-a ao impacto da contratransferência sobre o analista e me fez lembrar um episódio relatado por um membro de um grupo de estudo, o Leituras kleinianas.
Estávamos trabalhando sobre o livro O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment, de Roosevelt Cassorla.
Quem relata é um artista plástico, e ele nos conta sobre o que ocorreu em um ateliê de pintura com pacientes do cpas. Ele percorria os quadros, quando sua atenção é atraída pelo quadro de uma paciente, em particular, pelas tonalidades de vermelho e preto que usava. Observava o quadro atrás da paciente. Ela se vira para ele e diz:
- Na minha família só há sociopatas.
Ele é tomado, nesse momento, por uma angústia muito grande, que o leva posteriormente a conversar com o supervisor. Essa angústia e desconforto perduram.
E ele tem um sonho, que agora sentia vontade de nos trazer ali.
Sonhara com um caixão, e este caixão retratava o quadro da paciente.
Na discussão que segue nos informa que na família da paciente havia casos de sociopatas e de suicidas.
É para mim um belo exemplo de uma comunicação que se estabelece entre eles e que produz um material onírico, uma congruência simbólica, que permite adentrar a nova ideia, ao símbolo. Este - o símbolo ou a nova ideia - pode nascer dentro desse analista quando estabelece com a paciente as condições para uma escuta que possibilita o surgimento do pensamento onírico.
Williams (2018) traça paralelos com a função da crítica estética de Adrian Stokes para apontar o caminho desde onde se possam ler livros, pessoas, pinturas, músicas com reverência, ou seja, com a ajuda de nossos objetos internos.
Segundo Williams, Stokes entendia:
a nossa própria busca pela compreensão de uma obra de arte como se fosse um traçado sobre a própria busca do artista para finalização estética da obra de arte: nós seguimos os seus contornos emocionais... As características transitórias da fixação ao objeto nunca desaparecem. Ficam para sempre contidas nas pinceladas, cores, marcas do cinzel... e é a qualidade da exploração mental que evoca nossa identificação. (Stokes citado por Williams, 2018, p. 252)
Em paralelo pergunto se o sonho, ao ser configurado e trazido à cena entre analista e analisando, evoca no analista (o artista plástico) essa identificação? Pergunto-me se o sonho configurado evoca a própria história da constituição do objeto interno. Se ele, objeto interno, não seria constituído pelas pinceladas, pelas marcas e precipitados de experiências emocionais que transcendem gerações.
E aqui um pensamento que nasce na escrita deste texto. Poderíamos pensar o objeto interno, também, como aquele com quem conversamos nesses momentos, analista e paciente, e que nos ajuda a seguir por um caminho, ditado pelas intuições, transmitidas pela permeabilidade ao aprender da experiência com nossos antepassados internos?
Enquanto estava às voltas com a pergunta sobre essa extensão profunda do Objeto Interno, fazia-o com a pressão de buscar uma resposta nos poucos dias que me faltavam para o término do trabalho. Indagava como pensar o processo de configuração que culminou no sonho do nosso artista plástico sobre o quadro da paciente.
Aí tenho o seguinte sonho:
Estava na sala da casa da fazenda da minha infância e eu acomodava José Saramago, já envelhecido e talvez um pouco doente, em uma poltrona/cadeira de balanço, e o cobria com uma manta. Ele iria assistir a algo importante (talvez uma apresentação dele mesmo pela TV). Junto estava Joana, que morou comigo, ajudando-me com as tarefas domésticas, por cerca de 25 anos, ela procurava alguma coisa na minha bolsa. Tem um cachorro pequeno que também estava meio doente, e eu vou à cozinha com ele e falo alguma coisa à minha mãe, que lá se encontra.
Despertei cansada, havia dormido pouco, o sonho estava mais para a travessia do conflito estético do que para a apropriação final da compreensão.
Voltei, entretanto, à minha questão sobre o objeto interno.
Algumas associações me vieram:
A sala da fazenda: esta fazenda vem dos antepassados maternos, pais da mãe de minha mãe, meus bisavôs. Joana é neta de Manuel, cuja família ajudou minha avó, viúva muito jovem, no trabalho com a fazenda. Minha mãe, já falecida, e representante muito forte das histórias contadas sobre os começos dessa família na sua luta para sobreviver. Saramago talvez evocando o escritor almejado que eu gostaria de ser, para dialogar com Meg Harris Williams. E é português, pátria desse ramo da família. Mas também poderia fazer alusão à minha irmã mais velha, formada e dada às Letras, fazedora de poemas e a quem perdi em um acidente, há bastante tempo.
Volto, então, a pensar o objeto interno.
Estará configurado pelos múltiplos personagens do sonho, trazendo marcas das histórias que o constituem para além das gerações? E que habita naquela profundidade que nutre nossos sonhos, abrindo-os a múltiplas possibilidades de leitura? E que assim se constitui em um objeto estético como processo que conduz à formação do símbolo - aos sonhos?
Se considerarmos as implicações do conceito de vida onírica de Meltzer, os sonhos individuais são apenas a ponta do iceberg. Sonhar é coextensivo à fantasia inconsciente de Melanie Klein e gera significados que aplicamos à nossa visão de mundo. "Neste sentido, os sonhos não são entidades independentes, mas tramam-se um no outro, assim como a história da nossa vida interior" (Williams, 2018, p. 238).
Pensando em meu sonho, me perguntei: é também um sonho que mantém uma conversa com o sonho do nosso artista plástico?
Uma congruência simbólica?
Continuando dentro desses pensamentos, retomo um artigo de Meltzer (1992) em que desenvolve os fundamentos para uma teoria da criatividade.
Nesse artigo, propõe a psicanálise como uma pesquisa da mente que se dá na direção e em conjunção com a história da arte, da filosofia e da religião.
Onde o conceito de mistério, de que há mistérios sobre o funcionamento mental que são essenciais, áreas essencialmente misteriosas, impenetráveis, onde a mente não consegue penetrar, seja nela própria, seja na de outra pessoa - esse é um conceito que estabelece uma conexão entre a psicanálise e a história da arte e o pensamento literário, especialmente na Inglaterra... (p. 40)
E recordemos Keats:
O quarto do pensamento virginal escurece gradualmente e, ao mesmo tempo, por todos os seus lados muitas portas se abrem - mas todas escuras, todas conduzindo a caminhos escuros. Nós não vemos o equilíbrio entre bem e mal. Estamos em uma neblina - Estamos agora naquele estado - Sentimos o "peso do Mistério". (Carta a Reynolds, 3 de maio de 1818, Keats, 1970a, p. 95. Citado por Williams, 2018, p. 55)
Meltzer (1992) cria aqui sua nova ideia: o objeto combinado, na sua potência criadora, como fonte que engendra a nova ideia.
o que estou querendo estabelecer é que essa constituição de uma zona de mistério não apenas transforma a atmosfera da investigação analítica como também tem uma certa relação com o conceito de superego. É que Bion achava que a primeira realização da função alfa na vida do bebê não é realizada pelo bebê, mas que a primeira realização da função alfa dessa misteriosa transformação de emoção em símbolo a ser usada na atividade do sonhar é realizada para o bebê pela mãe. E que quando o bebê está sendo amamentado, no epítome de sua relação com a mãe, ele não está simplesmente se alimentando do leite do seio, também está se alimentando com a rêverie da mãe, que lhe chega através dos olhos e da voz da mãe, bem como da forma como ela o segura, e assim por diante. (p. 405)
A mãe transmite ao seu bebê alguma coisa que elaborou em sua mente com base na experiência emocional que tem com ele nesse momento, alguma coisa que permite ao bebê ter seu sonho - seu primeiro pensamento.
E Meltzer (1992) acrescenta:
se o bebê internaliza não apenas um seio e um mamilo, mas um seio e um mamilo pensantes, temos aqui um acréscimo significante ao conceito de superego. Temos um superego pensante: e não apenas um superego pensante, mas um superego que será o iniciador do pensar sempre que o self se defrontar com uma nova experiência emocional sobre a qual não tenha equipamento para pensar. (p. 405)
essa passagem - o seio pensante e sua importância enquanto qualidade do superego com o grau de combinação, representado em nível infantil por seio e mamilo combinados, e representado em níveis mais sofisticados como mamãe e papai numa relação harmoniosa - dá novo significado ao que Freud definiu como complexo de Édipo e cena primária. Estabelece-se um conceito de superego que é, novamente, muito similar... a pais que precisam ter uma área de privacidade onde recolher-se sem a companhia das crianças, ... uma área de quietude e intimidade em que possam fazer seja lá o que façam relativamente a seu ritual amoroso, seja qual for seu significado. (p. 406)
E, então, Meltzer (1992) completa sua hipótese afirmando que no mundo interno deve haver algo semelhante a uma câmara nupcial em que os objetos internos podem se recolher para fazer seus bebês, que são pensamentos, símbolos, pensamentos de cuja matéria se fazem pensamentos.
Segundo essa teoria, diz Meltzer (1992), toda função criadora considerada artística, científica, tem suas raízes na criatividade desses objetos internos, e essa criatividade depende de os objetos internos terem permissão para retirar-se para sua câmara nupcial e renovar sua combinação um com o outro.
E sabemos da violência das forças da personalidade que se opõe a isso.
O trabalho de Eros como força propulsora das atividades de ligação na mente tece seu trabalho no acontecer da experiência emocional, na luta por conseguir ultrapassar o ciúme e a inveja e reverenciar os objetos internos em seu recolhimento criador.
Essas indagações me levam de novo à minha tese sobre a contratransferência. Agora um novo olhar.
Lá, esteve presente todo o tempo uma busca de articular os contrários pensados por intermédio de Melanie Klein e Fédida.
Penso-os agora na qualidade de objetos internos, evocadores do objeto estético. E na esteira dessa associação penso em um artigo de Fédida (1985) em que ele aborda a questão da memória épica diferenciando-a, como abaixo:
ao contrário de uma memorização obsessiva ou paranoica que faz cálculos e de uma repetição melancólica que só pode impedir a exumação dos fantasmas de suas figuras mortas, a rememoração épica é a instauração de uma memória - a sua conquista - por uma parole decidida a pensar... (p. 24)
Ao retomar esse artigo de Fédida, o faço para me perguntar se essa conversa que mantemos com nossos objetos internos, quando eles falam conosco e quando temos a coragem de ouvi-los para alcançarmos o objeto estético, não seria a rememoração épica?
Essa memória épica pertenceria ao campo da linguagem que atravessa o tempo e está disponível ao artista quando ouve a musa dentro de si; ou o objeto estético, fruto da procriação do casal combinado em sua câmera nupcial.
A ancestralidade dessa memória, só alcançada pela coragem de reconhecer quem sou e quem é o outro, nos põe numa conversa que transcende os contrários, que os ultrapassa para nos pôr dentro de uma rede como o tecer da Aranha de Keats.
Quase todo Homem desejaria o tecer da Aranha dentro dele mesmo, de sua própria Fortaleza rarefeita - são poucos os pontos das folhas e dos ramos nos quais a aranha começa seu trabalho, e ela preenche o Ar com um belo percurso; o homem deveria estar satisfeito com tão poucos pontos para direcionar a delicada Teia de sua alma e tecer uma tapeçaria empírea - cheia de Símbolos para o seu olhar espiritual, de suavidade para seu toque espiritual, de espaço para suas andanças, de distinção para seu requinte. (Carta a Reynolds, 19 de fevereiro de 1818, Keats, 1970a, p. 66. Citado por Williams, 2018, p. 250)
Williams continua "A Aranha, como a Bela Adormecida no centro da mente, gera 'símbolos para o olhar espiritual' em uma rede contida de infinitas possibilidades" (p. 251). E Keats desenvolve a teia de aranha em um encontro de mentes:
As mentes afastar-se-iam em direções opostas, atravessariam umas às outras em Inúmeros pontos, e finalmente cumprimentar-se-iam no fim das Jornadas - um Homem velho e uma criança conversariam juntos, e o Homem velho seria orientado em seu Caminho, e a criança, deixada a pensar... (citado por Williams, 2018, p. 251)
Referências
Bion, W. R. (1989). Uma memória do futuro. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Fédida, P. (1985). Passé anachronique et present réminiscent, épos et puissance memoriale du langage. L'Écrit du Temps, 10,23-45. [ Links ]
Meltzer. D. (1992). Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, 26(3),397-408. [ Links ]
Pontalis, J.- B. (2005). A partir da contratransferência: o morto e o vivo entrelaçados. In J.- B. Pontalis, Entre o sonho e a dor. Aparecida: Ideias&Letras. [ Links ]
Viana, S. A. (1993). Contratransferência: a questão fundamental do psicanalista. São Paulo: Escuta. [ Links ]
Williams, M. H. (2018). O desenvolvimento estético. O espírito poético da psicanálise: ensaios sobre Bion, Meltzer e Keats. São Paulo: Blucher. [ Links ]
Recebido em: 31/10/2019
Aceito em: 16/11/2019
1 Termo cunhado por Nina Liro Cecilio quando fez a tradução de O desenvolvimento estético, livro de Meg Harris Williams (2018). A explicação encontra-se na nota de rodapé (p. 20).