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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dic. 2019
EROS
Três aspectos de Eros em Silvia Bleichmar1
Three aspects of Eros in Silvia Bleichmar
Tres aspectos de Eros en Silvia Bleichmar
Trois aspects de Eros chez Silvia Bleichmar
Gisele Senne de MoraesI; Nelson Ernesto Coelho JuniorII
IPsicanalista, doutoranda e mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, em que estuda a obra de Silvia Bleichmar. São Paulo / giselesm@usp.br
IIPsicanalista e professor doutor do Instituto de Psicologia da USP, em que coordena o Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea. São Paulo / ncoelho@usp.br
RESUMO
O presente texto busca apresentar formas pelas quais a psicanalista argentina Silvia Bleichmar abordou Eros em sua obra. Os autores compreendem que há três aspectos de Eros no pensamento de Bleichmar. Em primeiro lugar, Eros como erótico, com base na erogenização inconsciente que a mãe imprime sobre sua cria, sobretudo nos primeiros tempos de vida. Em segundo lugar, Eros pelo aspecto de ligação da libido, isto é, Eros como amor a objetos totais. Finalmente, os autores ainda dão destaque a um terceiro aspecto de Eros trabalhado por Bleichmar, aspecto que se alinha ao segundo, mas cujo destaque visa dar foco à importância do amor no processo de recalque originário, uma vez que a criança, em um momento anterior ao recalque, renuncia a seus impulsos autoeróticos por amor ao outro, por amor à mãe, e pelo medo de perder o amor do outro.
Palavras-chave: signos de percepção, traços, amor, pulsão
ABSTRACT
This paper presents ways in which the Argentinean psychoanalyst Silvia Bleichmar approached Eros in her work. The authors understand that there are three aspects of Eros in Bleichmar's thinking. First, Eros as erotic, from the unconscious erogenization that the mother imprints on her offspring, especially in the early period of life. Secondly, Eros by the binding aspect of libido, in this sense, Eros as love of total objects. Finally, the authors still highlight a third aspect of Eros worked by Bleichmar, an aspect that aligns with the second, but whose emphasis aims to focus on the importance of love in the process of primal repression, since the child, in an earlier moment to repression, renounces his self-erotic impulses for love of the other, for the love of the mother, and for the fear of losing the mother's love.
Keywords: perceptual signs, traces, love, drive
RESUMEN
Este artículo presenta las formas en que la psicoanalista argentina Silvia Bleichmar se acercó a Eros en su trabajo. Los autores entienden que hay tres aspectos de Eros en el pensamiento de Bleichmar. Primero, Eros como erótico, de la erogenización inconsciente que la madre imprime en su descendencia, especialmente en los primeros tiempos de la vida. En segundo lugar, Eros por el aspecto vinculante de la libido, en este sentido, Eros como amor a los objetos totales. Finalmente, los autores también destacan un tercer aspecto de Eros trabajado por Bleichmar, un aspecto que está en línea con el segundo, pero cuyo énfasis apunta a centrarse en la importancia del amor en el proceso de represión originaria, ya que el niño, en un momento anterior a la represión, renuncia a sus impulsos autoeróticos por el amor al otro, por el amor a la madre y por el miedo a perder el amor de la madre.
Palabras clave: signos de percepción, huellas, amor, pulsión
RÉSUMÉ
Cet article présente les différentes manières dont la psychanalyste argentine Silvia Bleichmar a abordé Eros dans son oeuvre. Les auteurs comprennent qu'il y a trois aspects d'Eros dans la pensée de Bleichmar. Tout d'abord, Eros en tant qu'érotique, à partir de l'érogénisation inconsciente que la mère imprime à sa progéniture, en particulier dans les premiers temps de la vie. Deuxièmement, Eros par l'aspect contraignant de la libido, en ce sens, Eros en tant qu'amour des objets totaux. Enfin, les auteurs soulignent encore un troisième aspect de l'Eros sur lequel Bleichmar a travaillé, qui est en ligne avec le second, mais dont l'accent vise l'importance de l'amour dans le processus de refoulement originaire, une fois que l'enfant, à une époque antérieure à la répression, renonce à ses pulsions auto-érotiques pour l'amour d'un autre, pour l'amour de sa mère et par peur de perdre l'amour de l'autre.
Mots-clés: signes de perception, traces, amour, pulsion
O aspecto erógeno de Eros
Imaginemos um sonho relatado em análise: o sonhador está em fuga, corre no contrafluxo, foge não sabe de quê. Encontra uma mulher que parece se insinuar, o que lhe produz desconfiança. Durante a fuga, rápida e vigorosa, observa a beleza da chuva se esparramando sobre o solo. Partimos da ideia de que podemos supor que as associações do sonhador remeteram à origem, à reprodução e à morte. E que a mulher insinuante foi associada à figura materna.
Muitos anos de análise responderiam pela figurabilidade e pelo grau de simbolização presente na sessão do sonho. Imaginemos agora que o traço "desconfiança" não fosse inusual no caso, tendo-se apresentado em relação a muitos pares do sonhador ao longo de seu processo analítico.
Como um convite a um devaneio, imaginemos que o sonhador se chama Bentinho e que fragmentos do livro Dom Casmurro constituíram parte do relatado em análise. Haveria, nesses relatos, uma certeza pouco convincente: teria Capitu cometido a traição? Três hipóteses surgiram ao analista-leitor: (1) não, a desconfiança seria fruto da paranoia de Bentinho; (2) sim, Capitu e Ezequiel deixaram Bentinho preso a uma convicção não confirmada, o que configuraria um duplo trauma, sendo o do desmentido possivelmente maior que o da traição; e (3) sim, mas a "culpa" seria do próprio Bentinho, tal como no refrão "Te perdoo. Por te trair", na canção de Chico Buarque. Seus ciúmes levaram à traição da esposa e do amigo. Bom, não vamos resolver aqui o mistério que deixa tão viva a obra centenária de Machado de Assis...
No entanto, podemos dizer que o relato de Bentinho não teria soado exatamente como uma dúvida ao analista-leitor. Bentinho parecia não se questionar sobre a veracidade da traição. Convencido, coletava pistas para prová-la, mas eram pistas que deixavam o analista-leitor em dúvida, não eram indícios suficientemente bons para provar a infidelidade de Capitu. A força da obra machadiana encontra-se justamente nesse fio tênue, fronteira entre a "imaginação de Bentinho" e a "realidade externa". A traição de Capitu teria sido um delírio de Bentinho? Ou ele foi vítima nessa trama?
A psicanalista Silvia Bleichmar nos ajuda a propor uma leitura interessante do caso-livro, já que, para a autora, a veracidade da realidade psíquica viria acompanhada de esta ser forjada com base em uma realidade externa.
Se seguirmos o pensamento de Bleichmar, a desconfiança de Bentinho, traço insistente que, na obra machadiana, repete-se como compulsão no pensamento do personagem, forneceria pistas de um trauma, ou seja, operaria como um indício, uma espécie de pegada (huella) produzida por uma experiência traumática. Silvia Bleichmar, dessa forma, atribuiu um foco especial ao caráter indiciário de determinados traços psíquicos e, com base nesta ideia, põe-nos para refletir sobre a dificuldade do trabalho analítico com esse tipo de inscrições psíquicas.
Mais que isso, lemos em Bleichmar que a sexualidade inconsciente da mãe (ou de quem exerce função materna) seria a origem das inscrições traumáticas dos primeiros tempos de vida. Essas primeiras inscrições podem permanecer como indícios de um excesso, um "a mais", no sentido do que está além do autoconservativo, o sexual, caso não passem por transcrições. Assim, a criança iria atrás do leite, mas encontraria o além-do-leite, encontraria o sexual. Desta maneira, uma das faces de Eros em Silvia Bleichmar seria o erótico, mais precisamente a erogenização da criança com base na pulsação materna, expressão usada pela autora para fazer referência à sexualidade inconsciente da mãe. Note-se que tais marcas seriam impressas no psiquismo da criança como consequência dos cuidados infantis, muitos dos quais são cuidados corporais.
A ênfase da autora na sexualidade parental alinha-se ao pensamento laplanchiano sobre a pulsão ter sua origem no outro, com base na implantação de mensagens enigmáticas. Tal como nesse autor, são as fantasias parentais inconscientes, ativadas na relação de parentalidade - uma relação com a particularidade de ter uma carga especial de presença corporal -, que produzem esse "a mais" na relação com a criança. No entanto, de acordo com Moraes (2019), para Bleichmar, as inscrições no psiquismo da criança, cuja origem é o inconsciente parental, passam por desqualificação no ato de inscrição e já entram como excitação; neste sentido, já se configurariam como pulsionais, são marcas excitantes, pulsantes, que agitam o sujeito desde sua inscrição, como vemos no primeiro capítulo de A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito (1994), texto em que a própria Silvia Bleichmar posiciona os signos de percepção em um momento anterior às mensagens enigmáticas laplanchianas.2
Laplanche parece ter compreendido esse fenômeno de forma distinta, já que a pulsão se constituiria somente como resto no processo de tradução das mensagens enigmáticas na ocorrência do recalque originário. Carvalho (2019) defende a ideia de que as mensagens enigmáticas inicialmente seriam silenciosas, compreensão que entende ser a mais coerente com o todo da obra de Laplanche.
Em Bleichmar, muito deve acontecer para que as marcas excitantes ou pulsantes possam finalmente ser recalcadas, é preciso que antes se tornem autoerotismo infantil e que também passem por algum tipo de contrainvestimento do outro. Recalca-se justamente a excitação que se configurou como autoerotismo infantil e que foi, posteriormente, contrainvestido no processo de recalque originário.
Bleichmar teve como inspiração, para o desenvolvimento de suas ideias sobre a inscrição de marcas que agitam o incipiente psiquismo infantil, o modelo da Carta 52 de Freud a Fliess, motivo pelo qual nomeou essas primeiras inscrições de signos de percepção, tal como na tradução para o espanhol, diretamente do alemão, das Obras completas realizada pela Amorrortu.3
Lembremos que Freud apresenta um breve modelo de inscrições e transcrições psíquicas na famosa carta. Assim como Freud, Bleichmar entende que o que se inscreve no psiquismo poderá passar por uma série de transcrições. No entanto, diferentemente dele, a não transcrição não implica recalque. As marcas que ficam sem transcrição ou com transcrições muito precárias, no modelo da psicanalista argentina, permanecem, necessariamente, sem recalque, pois o recalque demanda que existam transcrições, como mencionamos anteriormente. Tais marcas, se não transcritas, são inconscientes no sentido qualitativo do termo, mas não o são no sentido recalcado. Para Bleichmar, portanto, há inscrições que permanecem com caráter indiciário no psiquismo. Como a passagem do tempo não tem relação com o estatuto das inscrições psíquicas, um adulto pode carregar marcas que permaneceram como signos de percepção, com seu caráter indiciário, mesmo que tenham sido inscritas nos primeiros tempos ou em outro momento de sua vida, já que quaisquer marcas advindas de situações traumáticas podem manter a característica de traço indiciário, não chegando a se ligar a representações-coisa ou representações-palavra, ou seja, não passando por transcrições.
É nesse sentido que Eros exclusivamente não dá conta do fenômeno em questão. Marcas pulsantes desligadas buscam constantemente descarga e operam no "aquém do princípio do prazer" (Bleichmar, 1994, p. 35). Assim, o desligamento de Thanatos precisa entrar em cena para compreendermos tais traços. Razão pela qual Silvia Bleichmar, acompanhando Laplanche, nomeia esse movimento "pulsão sexual de morte". Isso não significa que toda pulsão sexual seja mortífera. Conforme mencionado anteriormente, as marcas pulsantes que chegam ao processo de recalque originário vão, a partir do recalque, atuar sob o princípio de prazer; podemos, neste caso, chamá-las de pulsão sexual de vida.
Importante apontar o fato de que a autora menciona a necessidade do outro para a inscrição do pulsional e isso não significa que o biológico não tenha sido levado em conta em seu pensamento. Não cabe aqui nos estender sobre essa questão, apenas desejamos indicar que o caminho escolhido pela autora é coerente com a sua forma de entender o humano, como um ser inserido em uma sociedade, sendo um dos papéis mais relevantes do outro justamente a produção desse excesso humanizante, que tem como uma de suas principais características demandar trabalho ao psiquismo, fazendo-o tornar-se cada vez mais complexo.
É nesse sentido que o traço que aqui denominamos "desconfiança" no caso-livro se apresentaria tal como os signos de percepção de Bleichmar. Mas vamos continuar com nosso exercício de devaneio sobre a vida de Bentinho, inspirados não apenas pelo livro de Machado de Assis, mas também por situações clínicas. Imaginemos, agora, que a desconfiança de Bentinho se manifestasse não apenas em relação a Capitu ou a Ezequiel, mas se estendesse à intenção do outro, fosse esse outro um colega de trabalho ou um familiar, em especial, sua mãe. E que, ao longo de sua análise, Bentinho tivesse relatado situações com ações dúbias da mãe, que foram sentidas como perturbadoras por ele, como se ele tivesse se sentido sexualmente convocado nessa relação em alguns momentos de sua história pregressa. Nada que se configurasse de fato como abuso sexual. Ou seja, imaginemos que Bentinho tenha relatado movimentos sutis da mãe e que, tal como no livro, tivesse colhido pistas para exibir na análise, como se desejasse mostrar o caráter de sua mãe ao analista-leitor.
Mais que isso, imaginemos ainda que Bentinho tivesse se demonstrado muito sensível aos movimentos do outro, como se possuísse uma espécie de radar capaz de escutar o inconsciente, que sua leitura sobre a intenção do outro caminhasse nesse sentido. E que não se desse conta de que o que escutava com seu radar era inconsciente no outro. Tivesse sido este o caso, Bentinho teria desfilado inúmeros relatos com tonalidade persecutória que soariam paranoicos ao analista-leitor. Continuemos com nosso exercício de criação, imaginemos agora que, ao longo de seus anos de análise, esse tipo de relato tenha se tornado cada vez mais escasso à medida que uma maior capacidade de simbolização foi surgindo, a ponto de Bentinho ter relatado o citado sonho depois de muitos anos de análise. Assim, o que antes aparecia como algo cru teria começado a surgir com algum disfarce. Neste caso, algo teria se movimentado ao longo da análise, já que, se há disfarce, podemos levantar a hipótese de que um processo de recalque teria ao menos se iniciado. Talvez Bentinho tivesse outra sorte se tivesse sido analisado... Sorte nossa, leitores, que não foi!
Vale ainda mencionar que, para Bleichmar, a incidência do recalque originário posiciona o sujeito em potencialidade neurótica. Talvez possamos dizer que o paciente-personagem Bentinho fosse um sujeito que funcionasse muito bem socialmente até seus ciúmes terem dado sinais mais evidentes. O que implicaria, seguindo o pensamento da autora, algum recalque para que Bentinho pudesse funcionar com alguma normalidade. Sugerimos, no entanto, que algo havia ficado como não recalcado e que, possivelmente, a relação com Capitu teria trazido à tona traços indiciários. Assim, para a autora, o recalque incide isoladamente sobre cada bloco pulsional, o que fala do aspecto parcial dessa modalidade de Eros.
O aspecto amoroso de Eros
Silvia Bleichmar falava sobre a existência de uma dupla função materna, conforme podemos ler em A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito (1994). Ou seja, a mãe sexualiza sua cria (palavra usada por Bleichmar) e, ao mesmo tempo, fornece as condições para a construção de vias colaterais, por meio de seu narcisismo transvazante, para a circulação da energia que ela mesma inoculou.
O parágrafo anterior condensa algumas das ideias da autora, buscaremos explicá-lo passo a passo. Assim, Silvia Bleichmar entendia que a mãe possibilita também a inscrição de outra qualidade de marcas na criança além das marcas excitantes. Essas marcas seriam inscritas conforme se dá o contato reconfortante, atencioso, carinhoso com a criança. Na relação mãe-bebê, são marcas que se produzem pela capacidade de holding materno, com base em uma mãe castrada que consegue frear seus próprios impulsos, uma mãe que se deixa tomar por seu bebê como um seio, para que ele possa criar a ilusão de que o seio é parte dele, uma mãe que provê a inscrição de vias colaterais:
O holding winnicottiano pode ser entendido ... como aquela capacidade representacional da mãe que oferece vias de ligação colateral para que a facilitação que instala a alucinação primitiva - alucinação de indício, não de satisfação de necessidades -, não deixe a criança entregue à pulsão de morte, nessa compulsão de repetição que definimos como "mais aquém do princípio do prazer". (Bleichmar, 1994, p. 40)
Como vemos, a autora recorreu a Winnicott para apreciar a inscrição dessa modalidade de marcas, que se relacionam a Eros por outra via, ao ressaltar a linguagem amorosa nos cuidados do bebê. O amor, nesse contexto, possui como característica relacionar-se a um objeto total.
Para tanto, é preciso que a mãe seja capaz de ver seu filho como um todo, como um ser que poderá vir a ser algo na vida, ou seja, é preciso que essa mãe seja capaz de "sonhar" seu filho, que seja capaz de ver algo nele que ele ainda não é e que jamais virá a ser. Tal ensonhamento viria, assim, carregado do narcisismo da mãe, seria um transbordamento de seu narcisismo. É neste sentido que a autora nomeia esse movimento "narcisismo transvazante da mãe", afirmando até mesmo que tais inscrições teriam sua origem no narcisismo materno.
Em nossa compreensão, haveria a suposição de um feminino como qualidade nessas formulações. Falamos em feminino como qualidade no sentido de um atributo tradicionalmente relacionado, na história da psicanálise, à mulher, mas que entendemos não seria necessariamente algo exclusivo do gênero, dado que se trata de algo que depende da história de cada sujeito.
Lembremos que, em Freud, o filho entra na equação simbólica fezes - dinheiro - presente - bebê - pênis (Lima, 1996, pp. 19-20). Para Freud, o desejo da mulher de ter um filho se configuraria como forma de reparação de uma ferida resultante de seu narcisismo secundário, aquele que se organiza a partir da descoberta das diferenças anatômicas (Moraes & Coelho Jr., 2010; Bleichmar, 1994, p. 17). Bleichmar parece acompanhar Freud no que toca a isto em um caso específico, o emblemático caso Daniel, que abordaremos mais à frente e que nos ajudará na compreensão do pensamento da autora.
Por enquanto, cabe mencionar que, no caso Daniel, a psicanalista compreendeu que o narcisismo transvazante da mãe estava obstaculizado. Para a mãe de Daniel, tornar-se mãe era algo vivido com muito conflito, de tal maneira, que talvez tenha sido sentido mais como uma perda do que como um ganho.
Se pensarmos tomando como base as reflexões acima, ou seja, com a maternidade (ou a parentalidade) sendo experienciada como ganho ou como perda, podemos compreender o fenômeno do narcisismo transvazante para além da relação paradigmática mãe-bebê, o que, em determinadas circunstâncias, é essencial, como nas situações em que a mãe está ausente por alguma razão, o que não implica, necessariamente, que não exista alguém exercendo função materna. No entanto, nem sempre essa pessoa é uma mulher. Nem por isso essa criança não será transvazada de narcisismo parental.
Como observamos, a origem dessas marcas é o narcisismo do outro. Portanto, seu destino na criança será seu próprio narcisismo. Desta maneira, origem e destino das marcas excitantes e das marcas apaziguadoras (Moraes, 2019) são da mesma forma distintos. Para Bleichmar, as últimas vão formar um entramado de base com o qual o narcisismo da criança poderá se compor e constituirá um sustentáculo para a posterior formação do Ego. Trata-se de uma bela imagem proposta por Bleichmar: uma rede de marcas colaterais se inscreve na relação da criança com seus cuidadores, marcas que formam uma trama, e esta trama será o sustentáculo para o desenvolvimento do Ego.
Tenhamos em mente que a inspiração da autora, nesse caso, é o modelo apresentado por Freud no "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1950). Ela expõe a imagem do modelo freudiano, no livro A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito, antecedida da seguinte frase:
No momento da amamentação, a mãe, provida de um ego, capaz de investir narcisisticamente o bebê e não apenas de propiciar a introdução de quantidades sexuais pontuais, não ligadas, acariciará as mãozinhas, sustentará a cabeça com delicadeza, acomodará as pernas da cria, gerando a partir disto vias colaterais de ligação da Qn que ingressa. (Bleichmar, 1994, p. 27)
Vemos assim que a mãe opera uma dupla comutação ao exercer a dupla função materna. Primeiro, comuta o autoconservativo em sexual. No modelo paradigmático da amamentação, comuta a busca por alimento (autoconservativo) em busca por uma intensidade vivenciada no encontro com o seio, ou seja, em sexualidade. E, em segundo lugar, a mãe comuta as quantidades sexuais que buscam descarga sob o "aquém do princípio de prazer" em princípio de prazer, ao criar meios de ligação para essa energia.
Tal compreensão é o que lhe permite relatar o caso Daniel em seu livro A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito (1994). Daniel tinha pouco mais de 1 mês de idade no primeiro atendimento. Ele era um bebê que não dormia, inquieto, nada o acalmava. Daniel permanecia agitado durante a amamentação, mamava de forma desesperada e permanecia inquieto durante as trocas de fraldas e o banho. Não existiam perturbações orgânicas que justificassem a agitação do menino.
Silvia Bleichmar quis ver a dupla mãe-bebê novamente no mesmo dia do primeiro atendimento e pediu que a mãe não o amamentasse antes da sessão. Durante a sessão, acompanhou a mamada e percebeu que a mãe tinha dificuldades para segurar e envolver seu filho. Vendo isso, a psicanalista questionou sobre como ela se sentia segurando o bebê, após o que a mãe começou a falar sobre suas experiências como filha, mãe, esposa etc. Bleichmar apontou o fato de que Daniel não estava bem encaixado, tomando cuidado para não desautorizar a mãe. A analista disse, ainda, que Daniel precisava se agarrar ao seio e que a mãe, naquele momento, era apenas um seio quentinho e carinhoso que deixava Daniel cheio. A mãe começou timidamente a fazer carinho na cabeça de Daniel. A psicanalista, então, afirma: "Eu mesma tinha a sensação de estar assistindo a algo inaugural; uma envoltura narcisizante capturava-nos a todos" (Bleichmar, 1994, p. 14).Para a autora, seu paciente era o bebê Daniel, apesar de as sessões terem versado, sobretudo, sobre questões da mãe e, em alguns casos, do pai, que eventualmente entrou nos atendimentos. O menino foi se acalmando já nos primeiros encontros, dormindo mais e permitindo que banhos e trocas de fralda acontecessem. As mamadas se tornaram mais satisfatórias para ambos.
Bleichmar também sugeriu o uso de chupeta, visando oferecer ao bebê algo com que ele pudesse se satisfazer, pois Bleichmar percebia que havia um remanescente excitatório após as mamadas. A agitação de Daniel era fruto da inscrição da pulsação materna, inconsciente, que, no caso, vinha desacompanhada de vias colaterais de circulação. Assim, as intervenções da psicanalista foram no sentido de permitir que o narcisismo transvazante da mãe pudesse emergir.
O amor como circulação entre o par mãe-bebê
O terceiro aspecto de Eros em Bleichmar é derivado dos dois primeiros e se alinha, sobretudo, ao segundo, uma vez que o amor se estabelece com base na relação entre objetos totais. No entanto, diferentemente do segundo aspecto, não se trata apenas da capacidade amorosa da mãe, mas algo que enlaça sujeitos; neste sentido, é possível afirmar que se trata de um amor que circula na relação intersubjetiva. A citação abaixo visa apresentar as palavras da própria autora em uma longa frase na qual aborda os três aspectos de Eros que estamos destacando no artigo:
Que via de resolução tem então esta fonte inesgotável de excitações que constitui a pulsão, uma vez que se inscreveu como lugar erógeno-representacional (fantasmático)? Suponhamos um adulto que realiza os cuidados precoces, introduzindo pelas zonas de intercâmbio uma excitação que virá a ser fonte da pulsão; ao mesmo tempo a partir deste mesmo adulto - que não só alimenta, limpa, toca pontualmente, mas que também faz carícias, fala, acolhe - geram-se vias de investimento para outras zonas, para outros pontos do corpo, vias colaterais pelas quais se produz uma circulação de quantidades e uma detenção do fluir irrefreável, abrindo possibilidades de derivação simbólica e de complexização do aparelho, o que evita que a libido fique à mercê sempre dos mesmos modos de descarga. Estes pré-requisitos são, [sic] porém insuficientes, já que só em um segundo tempo, através do recalque originário e da fundação do ego sobre a base da identificação, se estabelecerá uma diferenciação tópica e um contra-investimento fixando definitivamente no inconsciente estes modos primários de satisfação (por outra parte, o inconsciente será fundado por este movimento mesmo). Como vemos não é suficiente exclusivamente a ação excitante e ligadora do adulto [grifo nosso]; é necessário, também, que este narcisismo ligador, que esta visão do outro como totalidade, esteja atravessada por uma proposta da cultura em que a cria seja impelida a aceitar certas renúncias pulsionais que abrem vias de sublimação. O recalque que a mãe exerce - recalque, neste caso, no sentido social do termo: impor por meio de uma certa violentação do outro um limite a sua liberdade -, ao propor à cria que deixe de chupar o dedo, que não faça xixi sem antes avisar, que deixe de se tocar, enfim tudo aquilo que promove as renúncias pulsionais primárias, exercido sob a forma dos enunciados, submetidos por sua vez a uma organização significante discursiva, só pode ser aceito sob a base do amor que circula entre ambos [grifo nosso]. (Bleichmar, 2005, p. 312)
Nesse terceiro aspecto de Eros, o amor existe como afeto na criança, uma criança que já possui um ego em algum grau reflexivo em nossa compreensão. Mais uma vez a autora parece ter recorrido a Freud para obter a evolução de seu próprio pensamento, uma vez que o foco é posto no amor que a criança sente pelos pais, pela mãe, e no medo da perda do amor materno.
Antes de explanarmos a frase anterior, faz-se necessária uma retomada muitíssimo breve sobre o conceito de recalque originário tal como compreendido por Bleichmar. Para ela, o recalque originário seria um processo passível de ser observado em crianças, relacionando-se assim ao histórico vivencial destas, não se tratando, portanto, de um momento mítico, como em Freud. Segundo a autora, a criança faria renúncias pulsionais nesse processo antes de o recalque de fato se estabelecer, entendendo-se que seu estabelecimento se dá quando uma tópica psíquica é formada, o inconsciente.
Para a autora, como podemos ler em sua citação anterior, é preciso um duplo movimento para que essa renúncia possa ocorrer. Por um lado, faz-se necessária uma pautação social impondo certos limites à liberdade da criança. Por outro lado, o amor entra como o meio condutor nesse processo.
Lembremos agora que Freud relacionou o recalque com movimentos amorosos ao trabalhar a sexualidade feminina em "A dissolução do complexo de Édipo" (1924/1976). Como resumem Moraes e Coelho Jr. (2010), para Freud, "A menina ... já entraria castrada no complexo de Édipo, e o que provocaria a instauração de seu superego seria a angústia advinda da perda do amor parental" (p. 792). Dessa forma, compreendemos que Bleichmar, nesse caso, pode novamente ter-se inspirado em Freud ao argumentar que a renúncia pulsional da criança ocorre por amor à mãe e pelo medo de perder seu amor: "Neste primeiro tempo, a renúncia estará marcada pelo amor ao semelhante, e assim como 'se come pelo amor de mamãe', renuncia-se ao seio, ao bico, às fezes, 'por temor a perder o amor de mamãe'" (Bleichmar, 1994, p. 182). Ao acompanharmos alguns de seus casos clínicos, podemos observar elementos que se alinham a uma compreensão coerente com a ideia de uma circulação amorosa nesse processo. Destacamos aqui o caso Martin, trabalhado pela autora em Nas origens do sujeito psíquico: do mito à história (Bleichmar, 1993).
Martin tinha quase 3 anos quando Bleichmar começou o atendimento e tinha um irmão mais velho, de 5. Quando Martin nasceu, a avó materna mudou-se para o México (a psicanalista morou no México por dez anos) para ajudar na sua criação e foi embora quando ele tinha quase 1 ano e meio. Nessa época, Martin já falava algumas palavras, mas ele não apenas parou de desenvolver a fala, como regrediu e parou de falar, voltando a usar chupeta e mamadeira depois que a avó foi embora. A autora entendeu que existiam movimentos pulsionais, já que ele usava chupeta e repetia alguns rituais evacuativos, o que foi visto como um bom prognóstico, apesar de Martin parecer não se importar com ninguém a sua volta. Ou seja, havia autoerotismo, e isso significava que marcas excitantes haviam sido inscritas.
Houve uma sessão em que a psicanalista estabeleceu uma proibição. Martin ia colocar um objeto metálico em uma tomada, ato que gerou a proibição. Martin, então, começou a bater em outro objeto do consultório, e Bleichmar reagiu dizendo "Não, Martin" repetidas vezes, envolveu-o em seus braços "suavemente, mas com firmeza" e o tirou de perto do objeto (Bleichmar, 1993, p. 137), o que deixou o menino bravo. A psicanalista, então, expressou em palavras o afeto do jovem paciente, dizendo-lhe que ele estava bravo porque ela não o tinha deixado fazer o que queria. No livro, a autora prossegue com o relato, apontando as repercussões da cena descrita, notadamente o início do processo de recalque originário.
Mesmo não se tratando de circulação amorosa entre a criança e seus pais, cabe uma reflexão sobre a qualidade da resposta da analista na sessão. A contenção corporal, a proibição calcada em uma situação de cuidado, a preocupação em nomear o afeto de Martin soam-nos alinhados a uma compreensão de Eros como amor. Amor que aparece narcisicamente no próprio Martin, quando, pouco tempo depois, formulou a primeira frase completa para sua mãe. Tratava-se da pergunta "Viste-me, mamãe?" (Bleichmar, 1993, p. 139). Martin desejava ser visto por alguém em especial, alguém com quem se importava, desejava ser visto por sua mãe.
Referências
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Recebido em: 31/10/2019
Aceito em: 5/12/2019
1 Este trabalho deriva-se da dissertação de mestrado de Gisele Senne de Moraes, sob orientação do prof. dr. Nelson Ernesto Coelho Junior, cujo título é Do recalque originário aos signos de percepção: contribuições de Silvia Bleichmar à psicanálise, pesquisa realizada com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) entre março de 2018 e julho de 2019 e que prossegue, em doutorado, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) desde agosto de 2019.
2 Para maiores esclarecimentos, sugerimos a leitura do Capítulo 6 de Moraes (2019).
3 Agradecemos ao colega doutorando Fabio Brinholli por mencionar a tradução para o espanhol da Carta 52 de Freud a Fliess presente em Obras completas Sigmund Freud, da Amorrortu.