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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo ene./jun. 2020
INTERFACE COM A CULTURA
Prevenção do suicídio Mal-estar na civilização e suicídio1
Luciana Estefno SaddiI; Carlos CaisII; Roosevelt Moisés Smeke CassorlaIII; Leda Beolchi SpessotoIV
IMembro efetivo e Diretora de cultura e comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / São Paulo
IIPsiquiatra, professor-colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, com mestrado e doutorado na temática da prevenção do suicídio / Campinas
IIIMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPcampinas) / Campinas
IVPsiquiatra, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenadora de seminários sobre suicídio no Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / São Paulo
Apresentação
Luciana - Bom dia a todos, fui uma das organizadoras desta mesa, Leda Beolchi Spessoto tem um grupo de estudos sobre suicídio e tinha interesse em uma conversa com a comunidade sobre essa questão, de sua solicitação surgiu o interesse de outras diretorias da Sociedade que organizaram a mesa: Diretoria de Cultura e Comunidade, Diretoria Científica, Diretoria Regional, Diretoria de Atendimento à Comunidade e Revista Brasileira de Psicanálise. Nos unimos, as diretoras e a editora da Revista, para fazer uma mesa bem interessante e que possamos ir das questões macro para as questões micro, voltar para clínica e sair da clínica e que possamos, também, pensar o suicídio sem preconceito, o que talvez seja algo um pouco mais libertador para quem está na clínica e quem está à frente dessas questões. Vamos começar com Carlos Cais.
Luciana Estefno Saddi
Prevenção do suicídio: Das estratégias públicas à prática clínica
Carlos - É um prazer estar aqui com vocês, sábado de manhã. Farei um voo panorâmico e um apanhado epidemiológico em termos de mundo e Brasil para termos uma concepção da dimensão e do direcionamento dos fatos que acontecem em comportamentos suicidas. A Organização Mundial da Saúde (oms) compila trienalmente o número de suicídios em 170 países, esses dados foram divulgados no dia 9/9/2019, um dia antes do dia Mundial de Prevenção de Suicídio, e referem-se ao ano de 2016, o último dado global que temos.
Aproximadamente 800.000 pessoas falecem por suicídio anualmente e temos uma expectativa (porque tentativa de suicídio é uma notificação mais complicada no Brasil, obrigatória desde 2011, mas os dados são menos fidedignos) de que, aproximadamente 20 vezes mais pessoas tentam suicídio. Temos uma média global de 10.6 por 100.000 habitantes/ano. O que quer dizer que se São Paulo tem 10 milhões habitantes, o esperado é em torno de 1.000 mortes por suicídio/ano. O uso de taxas é uma maneira de comparar tempos diferentes e populações de tamanhos diferentes.
Uma questão importante na relação homens/mulheres com essa discussão do que está acontecendo de direcionamento de gênero, a diferença em cada país, a proporção de gêneros, diferente em de cada cultura, dá um pouco o tom de especificidades, de prevenção, a relação homem/mulher global é de 1,8, um pouco menos do que o dobro de homens se matam em relação a mulheres.
Quando eu era estudante de medicina era comum ouvir que suicídio é um fenômeno de países ricos, isso não é verdade, em termos absolutos, sabemos que isso é uma falácia, 78% dos suicídios ocorrem em países de renda baixa ou média. Em algumas faixas etárias o suicídio é muito importante como causa de morte do total de causas de morte, então, se pegarmos essa faixa que é de adolescentes e adultos jovens, de 15 a 29 anos, o suicídio é a segunda causa de morte, isso envolve todas as causas de morte: doenças infecciosas, câncer etc. Nessa faixa etária a primeira causa de morte é acidente de trânsito e a segunda já é suicídio. A imprensa tem uma tendência de ter uma posição um pouco alarmista e, às vezes, boas notícias escapam. O suicídio está caindo no mundo de maneira bem significativa, temos entre 2000 e 2016 uma diminuição de 18% das taxas de suicídio. Essa diminuição se deu mais fortemente entre 2000 e 2012, aí tivemos uma clara inversão da tendência, agora vem diminuindo, mais gradualmente.
O que isso significa em termo de impacto numérico
A oms, em 2000-2002, estimava uma média de um milhão e meio de suicídios em 2020 e, hoje, estamos com 800 mil, quase a metade do que era estimado nos consensos de especialistas, isso significa que são 700 mil suicídios a menos por ano, é mais do guerra da Síria inteira, por ano. É uma importante inversão da tendência e há um porquê dessa inversão, eu não estaria sendo apropriado se falasse que temos uma evidência científica dessa inversão, como o suicídio é um fenômeno complexo, envolve uma combinação de diversos fatores, questões psicodinâmicas, médicas, não só psiquiátricas, médicas de um ponto de vista geral, ambientais, sociocultu-rais, filosóficas... Há um arcabouço por trás do suicídio. É muito difícil fazer relação de causa/efeito do ponto de vista científico, mas há uma clara associação temporal com o início do estabelecimento de estratégias nacionais de prevenção de suicídio.
Nas décadas de 1980 e 1990 já se forma um escopo de literatura do que devemos fazer para prevenir suicídio, do ponto de vista macro e, também, do micro. Em 2000 os países começam as estratégias e isso se reflete nesses números. É possível que seja só uma coincidência? É possível, mas, pessoalmente, acho pouco provável, alguns países como a China tiveram reduções da ordem de quase 50% após o estabelecimento das estratégias.
Há algumas recomendações que devem ser particularizadas para cada cultura, para cada local, mas elas têm sido, na nossa impressão, responsáveis por essa virada nos números de suicídio, uma virada muito importante em termos de saúde pública. Infelizmente, no mesmo período, as taxas brasileiras subiram 26,5%, estamos na contramão do mundo e acelerando na contramão. Mas ainda estamos numa posição relativamente confortável, o número exato do Brasil no último boletim do Ministério da Saúde, de 2016, é 6.1. Não estamos fazendo a lição de casa, o Brasil não tem uma estratégia para a prevenção de suicídio, tem boas iniciativas pontuais que fazem a diferença, estamos vivendo uma agora, mas não há algo nacional organizado e estruturado o que, provavelmente, faria muita diferença.
Ainda estamos abaixo da média mundial, não somos mais um país de baixas taxas de suicídio, nos encontramos na categoria de moderado/baixo. Estamos com índices entre 4 e 4.5.
Uma questão que talvez encubra uma preocupação do poder público com o suicídio é porque temos duas outras epidemias que incidem, também, em populações jovens, nossos números de homicídios e de acidentes de trânsito. Mas não deixa de ser uma desculpa esfarrapada, pois não estão sendo feitos grandes atos de política pública nessas duas questões.
Vou apresentar essas estratégias que, provavelmente, fizeram que esses números diminuíssem. Essas estratégias dizem muito a respeito da clínica, há um claro imbricamento entre o que é macro e o que é micro.
Recomendações para prevenção do suicídio who/19
1. Promover suporte e reabilitação para as pessoas com o comportamento suicida.
Aqui eu não falo só da tentativa de suicídio, chamamos de tentativa se suicídio todo o espectro, do cinza claro ao cinza escuro que vai desde ideação suicida, plano, tentativa, suicídio. São, epidemiologicamente, pessoas com características diferentes, mas há um imbricamento claro nesse caminho. Então, temo que focar a atenção, tanto do ponto de vista macro quanto do clínico, em indivíduos que já incorreram em comportamentos suicidas, isso está em qualquer estratégia de prevenção de suicídio, porque eles têm um risco maior de letalidade por suicídio.
2. Auxiliar a mídia como notificar suicídios.
Os primeiros contatos que tive com trabalhos do efeito Wherter convenceram-me, parcialmente, e quando me aprofundei nisso, pude ter mais clareza de sua importância. O efeito Wherter é outra maneira de falar de modelos de identificação, que passam não só por modelos parentais, mas por outros modelos, principalmente, na fase da adolescência.
E já se tem todo um norteamento de como se falar de suicídio, nós estimulamos que se fale de suicídio. Falar de suicídio é absolutamente importante, mas há uma maneira de noticiar o suicídio que é benéfica, que pode levar pessoas em sofrimento importante a procurarem ajuda e há uma maneira que é maléfica, principalmente, para as pessoas que estão no fio da navalha.
3. Diagnóstico precoce e tratamento correto dos transtornos mentais, situações de dor crônica e situações emocionais agudas pungentes.
Isso é interessante e entrou recentemente, e é tão óbvio para nós, na clínica, mas entrou como estratégia pública, macro, mundial, situações de dor crônica e situações emocionais agudas pungentes, que é o que chamamos de crise suicida, aquela situação em que não, necessariamente, está incorrendo uma agudização de algo crônico, é uma série de conjunções específicas que vêm à tona em um determinado momento, é o que chamamos de centros de crise
4. Identificar e reduzir a disponibilidade e o acesso aos meios parece cometer
suicídio (por exemplo, armas de fogo, pesticidas, medicamentos).
Essa é considerada a mais central das estratégias, o principal método no mundo é o enforcamento. Nos Estados Unidos, por exemplo, as armas de fogo têm uma importância maior do que para nós. Na China rural, era muito importante restringir pesticidas, mas cada local tem algo a se restringir. Os países anglo-saxões, como Inglaterra e Estados Unidos, tinham um método comum de suicídio, um remédio que todos nós temos em casa, o Brasil ainda tem a versão antiga, infelizmente. O remédio tinha um frasco líquido e outro de comprimidos de maneira que quando a tampa é aberta, dá para engolir o frasco inteiro. O que foi feito? Se trocou a forma de apresentação por blisters, aqueles difíceis de abrir, e que para abrir uma quantidade letal se demoraria, aproximadamente, 90 segundos, e isso trouxe uma redução importante de suicídios por esse método. As pessoas dizem que eles vão se matar por outro método, mas não há uma substituição equivalente, isso reduziu o número de suicídios. Isso diz respeito a uma parte das pessoas que falecem por suicídio. Nós, técnicos, podemos dizer que o suicídio nos jovens é um ato impulsivo, e se a pessoa tiver 90 segundos a mais, o desfecho pode mudar. Pessoas em sofrimento psíquico que têm um histórico de impulsividade fazem nosso alerta redobrar.
Quando falamos em diminuir acessibilidade, às vezes, as coisas passam batidas. O Hospital da Clínicas da Unicamp tem uma tradição de prevenção de suicídio muito importante, iniciada pelo Prof. Roosevelt, que está aqui, que montou uma geração de pessoas interessadas no tema, ele tem grandes méritos, um deles é motivar as pessoas.
O hc é um hospital que tem um grande vão no meio, ocorreram quatro mortes de pacientes que saltaram no vão. Três estavam em quadros clínicos, em que há confusão mental e persecutoriedade, por exemplo, hiper tireotoxicose, quando a tireoide está no limite, quadros como lúpus, em que a pessoa teve que usar corticoide e ficou confusa, não eram quadros psiquiátricos, eram pacientes das enfermarias clínicas. Ninguém tinha tido uma simples ideia de pôr uma rede lá embaixo, décadas se passaram até que puseram uma rede que foi testada e funcionou. Parece algo muito distante da realidade e, às vezes, não é. Na clínica isso é importante, eu já tive parcerias com psicanalistas em que o psicanalista me alertou que o indivíduo tinha posse de um meio letal, e isso não tinha aparecido no setting da consulta clínica e, então, pude tomar uma série de cuidados para evitar o acesso.
5. Intervenções escolares (baseadas na melhor evidência).
Entrou recentemente, mas ainda é feito de modo muito amadorístico, o que preocupa. Um colega me ligou dizendo que a filha dele foi estimulada a fazer pesquisa na Internet, jogar suicídio, prevenção de suicídio e a professora iria discutir. Isso não é prevenção de suicídio, intervenção escolar. Isso é horror, a Internet é o humano na sua face verdadeira; o perverso, o generoso, tudo está lá. Tem literatura mostrando a intervenção escolar com bons resultados, neutros e ruins.
Quando se fala em intervenção escolar estamos baseados na evidência científica, isto é, não é qualquer intervenção escolar.
6. Aumentar o conhecimento, através da educação pública, sobre doença mental e o seu reconhecimento precoce.
7. Incentivar a pesquisa na prevenção do suicídio, encorajar a coleta de dados
das causas de suicídio.
8. Prover treinamento para as equipes de saúde e indivíduos chave.
9. Promover o suporte para familiares, amigos e pessoas próximas de indivíduos que faleceram por suicídio.
No Brasil, alguns grupos trabalham com pessoas enlutadas, familiares e amigos que perderam entes queridos por suicídio. É uma questão muito pungente, na clínica vemos a ambivalência dos sentimentos, uma mãe falando do suicídio do filho e das implicações na vida dela. Dessa forma, está se dando um olhar mais importante para isso
10. Aumentar a atenção entre profissionais de saúde para suas próprias atitudes e tabus em relação à prevenção do suicídio e às doenças mentais.
Atitude é um conceito que envolve três subcategorias: comportamento, crenças e sentimentos.
Em qualquer área que atuemos, pode ser em informação, nos afetos ou diretamente nos comportamentos, podemos modificar uma atitude. Ter atitudes adequadas em relação ao indivíduo que está em sofrimento e com a possibilidade de comportamento suicida.
Só o conceito de atitude já mostra como isso é multifatorial. Ninguém dá conta de prevenção de suicídio, nem nós, psiquiatras, nem os psicanalistas, nem os cognitivistas, nem os comportamentais... É algo que salta aos olhos na clínica de quem lida com pessoas com risco de suicídio no dia-a-dia. Precisamos de redes, podemos ter nossas preferências, nossas afinidades de parcerias, não há nenhum problema ter identidade, o que é até importante, mas ninguém dá conta sozinho, e nem deve.
O que justifica, eticamente, estarmos aqui falando de prevenção de suicídio? O que dá o sentido de estarmos num sábado de manhã pensando,
do ponto de vista da clínica e do ponto de vista de prevenção pública, em interferir na decisão autônoma de um indivíduo de determinar quando que a vida dele vale a pena ser continuada ou não, vale pena uma justificativa ética para isso.
É óbvio que o suicídio é uma combinação de métodos, tenho uma grande antipatia quando vejo manchetes do tipo "Perdeu o emprego, e se matou", "Rompeu a relação amorosa, e se matou", "Estava com depressão, e se matou". Existem fatores desencadeantes agudos, mas o suicídio é sempre um arcabouço, como um avião que cai não apenas por um fator, mas por uma combinação de diversos fatores.
Estamos falando de um estado mental alterado. O cognitivismo fala muito da coisa dicotômica, binária, maniqueísta: fracasso/sucesso, fardo ou um bem para as pessoas. Falam muito de uma modificação da estrutura do pensamento, falam de estreitamento de repertório, o que quer dizer que em outras situações de crise o indivíduo usou repertórios que naquele momento não consegue mais lançar mão, repertórios que ele já teve.
A tradição psicanalítica fala de uma série de fantasias, nós funcionamos num modo de imortalidade, não que essas fantasias apareçam no momento, no palco antes de um suicídio, elas estão intensificadas.
Certa vez, um militar contou que estava com uma mocinha no parapeito de um prédio e ela pediu para chamar o namorado, ele, como negociador, sabia que se atende um primeiro pedido para se estabelecer vínculo e começar uma empatia, quando o namorado estava chegando com o carro, ela pulou. Então, ele descobriu que existe a questão da fantasia de vingança.
Na clínica vemos a fantasia de reencontro, as reações de aniversário... Eu sempre tinha que internar uma paciente no aniversário da perda do pai, pois ela entrava em alto risco de suicídio.
Todas as tradições tangenciam estados mentais alterados, a psiquiatria entra falando de um vulnerabilizador quase que necessário, a fala da psiquiatria é que o transtorno mental é algo que ara o terreno para que o suicídio aconteça. Sem o que chamamos de transtorno mental o suicídio seria um fenômeno bem mais raro.
A maioria dos psiquiatras que trabalham com suicídio acredita que uma parte dos suicídios não tem a ver com transtorno mental, mas que na maioria das vezes que acontece o transtorno mental está presente.
Vou apresentar uma metáfora para aprofundar a discussão, eu gosto muito do Edwin S. Schneidman que não tem ideias revolucionárias, mas tem a capacidade de compilar vários conhecimentos e transformar um conhecimento complexo em algo que é mais fácil de ser reproduzido.
Schneidman tem o conceito da dor psíquica insuportável, que não é diferente, radicalmente, do conceito da angústia insuportável que os psicanalistas trabalham. Não é a mesma coisa, principalmente, dentro do arcabouço formativo da coisa, mas numa metáfora, é válido.
Na foto acima do 11 de setembro, pessoas saltavam do andar 200, essas pessoas queriam morrer? Por que elas saltam para a morte? Porque é simplesmente insuportável morrer queimado, a morte vem como algo inexorável, para te tirar de uma dor insuportável. Não é morte no conceito de finitude, é, simplesmente, uma saída da dor.
Essa metáfora de Schneidman, sobre o suicídio, é uma combinação de fatores que leva a uma dor psíquica insuportável, vale para tanto para a dor física como para a psíquica. Todos nós temos um potencial para atingir um nível de dor psíquica insuportável
O que faz alguém atingir uma dor insuportável é diverso para cada um de nós.
Agora falaremos em atitudes.
Na Bélgica, Holanda e Luxemburgo têm, desde 1980, a lei da eutanásia, que é dignidade humana. Se você está padecendo de qualquer sofrimento que todo o arcabouço de saúde, não só o médico e psicólogo, não consegue mitigar e não há possibilidade de terminar, o Estado belga fornece os meios para que o indivíduo se mate com dignidade.
Essa lei foi utilizada inicialmente para doenças terminais. Em meados dos anos 1990 se perguntaram, nós damos conta de todo o sofrimento psíquico? Nós que somos clínicos, pensem na clínica de vocês. Minha resposta é não, e no pensamento desses países, também não. E por que esses indivíduos não têm o mesmo direito? Então, se estabelece a mesma questão para eles, com sutileza, pessoas deprimidas ou com sintomas depressivos, é como se usassem óculos escuros para olhar o presente, o passado e o futuro. Então, esses países, tentam fazer algo para decidir se esse indivíduo está tomando uma decisão no momento agudizado, em que o estado mental dele está alterado, ou não. Se a conclusão for não, mesmo padecendo de transtornos mentais o estado vai auxiliar esse indivíduo a morrer, que em geral morrem junto à família e amigos, uma grande diferença de concepção.
O Estado toma a decisão para ajudar essas pessoas que têm transtornos mentais crônicos, eles apreendem que num dia estão de uma maneira e no outro estão olhando de forma diferente, e é por isso que prevenimos suicídio. De 100 pessoas com transtornos depressivos recorrentes, personalidade borderline que pedem ajuda, o Estado belga aceita o pedido em metade dos casos. Mas para ajudar a maioria dessas pessoas que estão em comportamento suicida, em que temos potência para aliviar seu sofrimento, precisamos ter uma ampliação das noções do direito de suicídio. Porque, assim, ficamos numa posição mais horizontal com quem está falando do sofrimento. Quanto mais apto o profissional estiver para aceitar e escutar o outro, dentro de uma situação de respeitar a autonomia e respeitar sua impotência, melhor ele é para lidar com pessoas com risco de suicídio. E escolher isso não é para as pessoas que não temos capacidade de mitigar o sofrimento, mas para lidar melhor com todos os casos.
A ideia de trabalhar nossas atitudes, principalmente, em direito ao suicídio nos torna mais aptos a lidar com todos os casos, mesmo com a maioria absoluta, nós temos algo a fazer. Apresentei uma visão panorâmica do que tem sido feito e discutido.
Luciana - Eu queria contar para vocês que, durante o mês de setembro, as diretorias que organizaram esta mesa tiveram programações voltadas para a questão da prevenção ao suicídio. A Diretoria de Atendimento à Comunidade organizou uma Oficina Clínica sobre suicídio a partir do trabalho realizado no Centro de Atendimento Psicanalítico e a Diretoria Científica ofereceu duas Discussões Clínicas, uma com o tema dessa mesa e outra, com o tema luto pelo suicídio. Digo isso para enfatizar a preocupação da SBPSP com os problemas que vivemos. Passo a palavra para o Roosevelt.
Carlos Cais
Suicídio: Fatores inconscientes e aspectos socioculturais
Roosevelt - É um prazer estar aqui, aqui é minha casa, não me sinto convidado, sou um participante. Prazer de estar com um dos meus mais brilhantes colegas, Carlos Cais, e minha amiga Leda. Eu, também, darei uma pincelada geral porque imagino que o mais importante será nossa conversa posterior, o debate, em que ouviremos as experiências dos presentes.
Na semana passada, na Folha de S. Paulo, na página de esportes, encontrei o relato de uma situação ocorrida no Irã, uma moça que, para poder assistir a um jogo de futebol, se vestiu de homem, pois é proibido às mulheres irem ao estádio. Certamente, muitas devem fazer isso, só que ela teve o azar de ser descoberta, e foi presa. Ia ser processada e punida. Não só prisão, também vergonha, opróbrio, tudo aquilo que existe numa sociedade fanática. Ela se matou, pôs fogo nas vestes. Ela, provavelmente, imaginou tudo aquilo que iria passar - um sofrimento mental insuportável - e optou por tirar a própria vida.
Imaginem um torturado... Essa moça já estava sendo torturada - impedida de manifestar-se. A polícia política poderia ser o próximo algoz. O torturador faz tudo que é possível para, por meio da dor física e mental, obter informações. Muitas vezes os torturadores nem estão interessados nas informações, mas têm que atuar o seu lado sádico sentindo prazer com o sofrimento do outro. Vocês lembram das fotos daquela prisão de Abu Ghraib, no Iraque? Somos muito frágeis emocionalmente, presas fáceis de grupos fanáticos, e é incrível como pessoas supostamente normais se tornam altamente destrutivas.
Imagino o torturado, seu corpo e mente não aguentam mais e o que ele mais quer é acabar com essa dor. O fracasso do torturador ocorre quando o torturado se mata. Dessa forma se vinga do torturador. Um bom torturador tem que manter a pessoa viva. Se surgir uma oportunidade o torturado se mata. Não é o caso do Vladimir Herzog, ele não se matou, ele foi morto. Inventaram seu suicídio face ao repúdio da sociedade. Como já vimos, a pessoa não está buscando a morte. Ela está buscando escapar de um sofrimento insuportável. Como psicanalistas sabemos que a morte não é representada, simbolizada.
Se vocês começarem a pensar na sua própria morte, deixando de lado ideias religiosas, imaginando o fim, perceberão que a ideia de não existir é insuportável, enlouquecedora. Logo desviamos o pensamento para outra coisa. A humanidade não consegue conviver com a não existência e criou a fantasia de que existe algo após a morte. Não temos como prova-la nem refutá-la. Esse algo foi a origem das crenças e religiões, desde os povos primitivos até as religiões mais estruturadas. Elas nos consolam pela vida na Terra, vista também, como uma espécie de inferno, o Vale das Lágrimas. Daqui vamos para um outro mundo, o Paraíso.
Em nossos pacientes em análise descobrimos que o Paraíso é o lugar onde não há desejos, necessidades, ou se existirem, serão satisfeitos imediatamente. É o que Freud chama de Nirvana, um lugar sem necessidades em que estamos em uma paz total e permanente. Concordo com Woody Allen quando disse que não quer ascender ao Paraíso, quando morrer. Preferirá o Inferno, onde estarão seus melhores amigos...
Essa fantasia é muito próxima do que imaginamos que o bebê sente na sua mamada em um objeto bom ou quando vivia dentro do útero. Ele recusa a percepção do vazio que é substituída por um fetiche, uma experiência que remonta ao que é vivido antes ou depois do vazio, como a mamada idealizada. Este é o Paraíso. Mitologicamente se diz que, com a morte, voltamos à mãe Terra, voltamos ao encontro com Deus, a algo transcendental. A morte como um parto ao contrário.
Imaginem outra pessoa que está sofrendo por desejo próprio, um terrorista islâmico que vai se transformar num homem-bomba. Ele sabe que vai morrer. Penso que antes de se matar, levando junto os infiéis, ele rezou na mesquita, despediu-se de seus entes queridos, houve uma série de rituais. Antes de morrer estará em um estado de beatitude sentindo-se um santo herói. Imagino sua expressão, em êxtase, certo que estará indo para o Paraíso. No Islamismo existem vários paraísos, mas o herói vai para o dos profetas que é mais sofisticado. Ali há 72 virgens e tudo o que é necessário para viver em um estado permanente de satisfação, diferente do que ocorre na Terra. Mas, o terrorista também está se vingando da sociedade falha e corrupta, a sociedade ocidental. Acredita, sinceramente, que está fazendo o bem ao eliminar pessoas malvadas. Lembremos que estas crenças não são diferentes das que os cristãos tinham na época das Cruzadas, quando iam matar os infiéis - justamente os islâmicos - que dominavam Jerusalém. Muitos cristãos também eram suicidas, eles se sujeitavam aos martírios para encontrar Deus no outro mundo. Podemos imaginá-los sendo comidos pelos leões mantendo sua expressão angelical, beatífica, certos que estavam indo para um mundo melhor. Santo Agostinho proibiu os cristãos de se matarem. O suicídio seria um instrumento do diabo. Não fosse essa reação não tería-mos mais cristãos vivos. Defrontamo-nos, portanto, com torturas que são bem-vindas. Não podemos excluir a hipótese de um sofrimento erotizado.
Lembremos dos suicídios coletivos. O mais famoso é o do grupo de Jim Jones que ocorreu na Guiana, mas prefiro falar sobre uma seita, Heaven's Gate. Acreditavam que nós, seres humanos, somos descendentes de um grupo extraterrestre que veio à Terra e deixou as sementes. Esse grupo esperava que evoluíssemos espiritualmente e, em determinado momento, eles voltariam para levar as pessoas mais evoluídas, isto é, os membros da seita. Isso ocorreria em 1997 quando passasse o cometa Hale-Bopp. Os membros da seita teriam que matar-se para alcançar a nave que viria atrás do cometa. Isso não aconteceu em países subdesenvolvidos, aconteceu na Suíça, no Canadá, na Holanda e em outros países. A seita estava espalhada pelo mundo. Essas pessoas se mataram no mesmo horário. Curioso é que tinham que levar dinheiro e cartões de crédito para usar no outro mundo.
Nos túmulos dos antigos egípcios existiam mapas e alimentos que ajudariam o morto a vencer as várias etapas de sua caminhada. Isso revela fantasias inconscientes que todos temos dentro de nós. Conseguimos identificar algumas delas quando temos pacientes no divã que tentaram suicídio ou que têm ideias suicidas.
25% das pessoas já pensaram seriamente em suicídio, ou tentaram, principalmente na juventude. Eu duvido que qualquer um de vocês não tenha pensado em suicídio alguma vez na vida. E aqueles que não pensaram, estão pensando agora que estamos falando do assunto...
Conhecem Tom Sawyer, do famoso livro de Mark Twain (2017/1876)? O menino desaparece e é dado como afogado. Era um menino rebelde e pouco querido. Assiste, escondido, a sua cerimônia fúnebre. Todos o elogiam, como era maravilhoso. etc. Todos nós temos a fantasia de que após a nossa morte veremos nossos familiares e conhecidos, principalmente aqueles que nos rejeitaram, arrependidos de não nos terem compreendido. Chamamos esta situação Síndrome de Tom Sawyer. Ela é universal. Quando eu era criança fugi de casa para ver se alguém percebia. Como ninguém notou eu tive que voltar. Estamos falando do ressentimento e da vingança, sentimentos humanos.
Agora, imaginem um paciente melancólico, ele está no divã mostrando que não vale a pena viver. Ele quase não fala, está perseguido. Freud nos mostra que está possuído pelo objeto interno sádico que o convence que nada vai dar certo, que deve morrer. De repente percebemos que começa a desagregar. O contato se torna difícil, não só para o psicanalista, mas para o psiquiatra, para a assistente social. E, num determinado momento ele fica tranquilo, com uma expressão de paz, de sossego. Ficamos aliviados. Está distante, "em outro mundo", silencioso. Quando perguntamos responde: "Estou bem". Mas, contratransferencialmente, após o alívio inicial, começamos a ficar aterrorizados. A tranquilidade, a beatitude, a expressão angelical, indicam que ela já tomou a decisão. O suicídio. Ele se sente perseguido, mas aquela expressão não é de quem está sofrendo. É de alguém que vai encontrar Deus. Estamos em área de defesas maníacas. Para evitar o ato, nesse momento teremos que "fazer algo" para além da psicanálise estrita. Não teremos tempo para conversar sobre isso.
Em área de misticismo, quando encontramos pessoas que parece terem contato com o transcendental, com o além, temos dificuldade em saber se a pessoa é mística ou psicótica. Isso depende da época, da cultura. Será mística em algumas e psicótica em outras. Suspeitamos que muitos fanáticos, místicos, que existem pelo mundo, seriam considerados psicóticos. Estamos em uma área que merece estudos. Santa Teresa de Ávila, mística, escreve uma frase famosa "Vivo sem viver em mim... morro porque não morro, vivo no Senhor". Ela já vive nesse mundo transcendental.
Há pacientes que se matam depois de fazer um vínculo simbiótico com o objeto. São pessoas frágeis e traumatizadas que se sentem, constantemente, ameaçadas de aniquilamento. Vivem em um mundo sentido como torturador e conseguem, de alguma forma, diminuir essa ansiedade ligando-se a um objeto vivenciado como protetor. Trata-se de uma relação narcísica. Imaginam o objeto como seu prolongamento, um escudo contra o trauma. O paciente borderline faz isso, tem uma sensibilidade imensa à separação. A ansiedade de aniquilamento se impõe em forma terrível. A fantasia suicida tenta livrá-lo da dor e também se vinga do objeto que, supostamente, o abandonou. Ou como reencontro com figuras perdidas. Quando investigamos essas fantasias em crianças verificamos que elas queriam encontrar alguém próximo que morreu, como a mãe, avó etc.
Os comportamentos suicidas mais comuns nos consultórios de psicanálise são encontrados em pacientes com configurações narcísicas e borderline, em que a pessoa não suporta a perda do objeto, ou quando o objeto é intrusivo.
Durkheim, o sociólogo que publicou o livro O Suicídio, em 1897, classificou o suicídio em três grupos: egoísta, altruísta e anômico.
O altruísta faz uma greve de fome, por exemplo, em protesto político. Os bonzos budistas colocavam fogo às vestes durante a guerra do Vietnã. Em Uganda, os velhos se matavam para deixar comida para as crianças.
Os suicídios anômicos ocorrem quando se perdem os referenciais numa sociedade em rápida transformação. Não existem figuras apropriadas para identificação, há uma mudança de valores muito grande e a pessoa sente-se perdida e confusa. Há certa equivalência com a tortura. É como chegar em um país que você não conhece a língua e os costumes, você fica perdido, e se sente ameaçado por todos. Isso acontece nos grupos indígenas do mundo todo. Aqui no Brasil, entre os índios Guarani Cayowas existe uma endemia de suicídios desde a década de 1980. O índice atual é de 89 por 100.000 habitantes, é maior do que o país com maiores taxas. As terras foram invadidas, perderam-se os referenciais culturais e religiosos. Viciam-se em álcool e drogas. Prostituem-se. Esses suicídios anômicos nos lembram os suicídios dos adolescentes na nossa cultura.
O único grupo, no mundo todo, em que as taxas de suicídio têm aumentado, e no Brasil também, é o dos jovens. Os adolescentes estão, cada vez mais, com condutas autodestrutivas, porque se sentem mais perdidos, não há figuras de identificação nem dispositivos de apoio, situações em que a pessoa sinta-se existente. Nos sentimos existentes a partir do olhar do outro. Por que os antigos preferiam a morte ao exílio ? Porque no exílio você não existe, você deixa de ser visto. Para poderem sentir-se vivos os adolescentes podem buscar escudos protetores, como o fanatismo. Existe um líder que trará a salvação, alguém que tem todas as respostas que nos suprirão e preencherão.
Nos grupos criminosos, comuns em nosso meio, um adolescente que não tem a menor perspectiva de vida, torna-se alguém quando entra numa mílicia, em um grupo de traficantes etc. Para ser alguém ele vai correr riscos de morte. Portanto, também existe um componente suicida.
Outros grupos, que estão na moda, são os grupos políticos. Aparece um guru que vai nos salvar e ele tem certezas sobre o que é bom e o que é ruim. Eu sou bom, pertenço ao grupo idealizado. Estou salvo. Os outros são os maus. Precisamos eliminá-los. Jim Jones funcionava assim, Hitler, Stalin e tantos outros, muitos atuais, também. Ao pertencer ao grupo idealizado eu estou no Paraíso. Há grupos fanáticos ideológicos, religiosos, científicos, psicanalíticos...
Outra maneira de abafar o sentimento de não existência é o uso de álcool, de drogas, que por sua vez predispõem a acidentes de automóvel e overdoses.
Fanatismo e suicídio estão relacionados porque nós suicidamos a nossa condição humana, tornamo-nos robôs, dirigidos por outros e desejamos ser dirigidos por outros. Isso nos abre campo para uma série de outros comportamentos que os psicanalistas chamam de suicídios inconscientes. Desde uma anorexia nervosa até somatizações, falta de cuidados com a própria saúde, perversidades e perversões, em que o suicídio não é cometido concretamente, mas é um suicídio social ou da mente.
Finalizo lembrando que, quando ampliamos o conceito, vamos descobrir que o suicídio não é o problema, é apenas o ponto final de um sofrimento social, mental, cultural e físico, e temos de lidar com esse sofrimento para evitar que o suicídio ocorra. Não sei se é necessário insistir no trabalho com o suicídio nas escolas. Temos que trabalhar com o sofrimento mental e social. Temos que trabalhar com o menino que sente atração sexual por outro menino e está desesperado, culpado, e mostrar para ele que isso faz parte da vida e acolhê-lo. Temos que compreender o bullying, as relações familiares, os traumas escolares etc.
Podemos entrar na escola com o tema suicídio quando todos assistem uma série, como a de Hannah Baker. Podemos conversar durante o mês de prevenção do suicídio, ou se ocorre um ato suicida entre os alunos. Temos que tomar todos os cuidados necessários para que não sejamos iatrogêni-cos. Não é qualquer pessoa que tem condições de abordar um tema tão complexo.
De qualquer maneira, é muito importante que um evento dramático faça com que pensemos na vida e na morte e que ele nos sirva para abordarmos o sofrimento humano como um todo.
Luciana - José Manoel Bertolocci é um grande especialista no tema, foi diretor responsável por suicídio na oms por 20 anos na Suíça e, recentemente, voltou para a Faculdade de Medicina de Botucatu. Há mais ou menos dois anos conversamos sobre quais eram os resultados dos programas de avaliação sobre prevenção de suicídio. Ele me disse que alguns programas falharam, pois, tinham aumentado os índices de suicídio, e que o mais bem avaliado era o programa inglês que trabalhava com jovens na escola, para eles aprenderem a entender, a pôr em palavras, a comunicar afetos e pensamentos. Então, eles precisavam entender seus afetos, nomeá-los e, depois, comunicar de forma inteligível para o outro; esse é também o trabalho que nós psicanalistas fazemos com os pacientes. É muito importante construir programas de prevenção, mas de uma forma que o tiro não saia pela culatra. Os programas de prevenção estão centrados na valorização da vida. Passo a palavra para a Leda.
Roosevelt Moisés Smeke Cassorla
Evitar o suicídio: Uma tarefa de Sísifo
Leda - É um grande prazer que tenha acontecido este Encontro, sou muito grata à Luciana e à toda diretoria que acolheu a ideia, aos colegas que estão aqui hoje. É uma honra estar ao lado do Cassorla, uma referência em estudos sobre suicídio. Outra pessoa que tenho a honra de ter aqui presente é a Maria Luiza Dias. Ela tem uma obra importante, Suicídio: os testemunhos do adeus, que foi seu mestrado e se transformou em um livro de referência no tema. É uma honra ter todos vocês interessados em debater um assunto tão difícil.
Pensando que essa mesa foi marcada dentro do Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio, quero lembrar que o amarelo foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde, por ser uma cor cheia de energia, vida, luz, criatividade, muito do que precisamos quando lidamos com questões que estão no outro polo, questões que tem a ver com morte.
Eu trouxe uma proposta de não tomar o caminho do suicídio como uma tarefa semelhante à de Sísifo. Para situar minha ideia vou primeiro falar sobre o mito de Sísifo. De maneira semelhante a Prometeu, Sísifo encarnava, na mitologia grega, a astúcia e a sabedoria do homem frente aos desígnios divinos.
Por que que estou usando essa figura mitológica? A lenda mais conhecida conta que Sísifo aprisionou Thanatos, a morte, quando veio buscá-lo e assim impediu por algum tempo que os homens morressem. Quando Thanatos foi libertada por interferência de Ares, Sísifo foi condenado a descer aos infernos, mas ordenou à esposa Mérope que não enterrasse seu corpo nem realizasse os sacrifícios rituais.
Passado algum tempo pediu permissão a Hades para regressar à terra e punir a mulher pela omissão, porém não voltou ao mundo dos mortos. Sua audácia, entretanto, provocou o castigo de Zeus que o condenou a empurrar eternamente ladeira acima, uma pedra que rolava de novo ao atingir o topo da colina. Sua punição mostra uma concepção grega do inferno como local onde se realizam trabalhos infrutíferos.
A partir das representações do mito trago agora uma questão: atribuir sentido à vida seria uma tarefa eterna como a de Sísifo? Seríamos, todos nós, Sísifos?
Pensei numa proposta sobre as pedras que temos que carregar e vou pedir para vocês anotarem no verso do pedaço de papel pedra que receberam duas coisas: o que faz a pedra ficar pesada e o que dá força para vocês empurrarem e rolarem a pedra. Lembrando que a pedra de cada um é única, não é para compartilhar. Anotem e guardem para posterior reflexão.
Albert Camus, escritor, filósofo, prêmio Nobel de Literatura, faz um paralelo entre o mito de Sísifo e o sentido da vida e nos deixa um livro importante com considerações filosóficas sobre o suicídio.
A filosofia do absurdo, de Camus, diz que o absurdo provém do paradoxo da busca individual por sentido, cada um de nós tentando dar um sentido para a vida. Precisamos de coisas que deem sentido à nossa vida e à falta de sentido provido pelo universo. O universo em si, puramente, não está destinado a dar sentido às nossas vidas.
Como seres humanos que buscam um significado para a vida em um mundo sem sentido, três caminhos são apontados.
1. Suicídio: Camus interpreta como uma ilusão de liberdade que não resolve o absurdo.
2. Religião e espiritualidade: atribuem um sentido à vida ou a uma possível vida após a morte.
3. Aceitação do absurdo: a própria luta rumo ao topo basta para preencher o coração de um homem.
Camus termina o livro dizendo que é preciso imaginar Sísifo feliz, movendo sua pedra em sua própria luta, pois esse esforço também dá sentido à sua vida.
Ainda buscando apoio na mitologia grega para pensar sobre as questões da vida e da morte, falarei agora de Thanatos como uma representação da morte e de Eros, deus do amor, lembrando que Eros e Thanatos são inseparáveis.
O mito conta que certo dia Eros estava descansando em uma caverna e adormeceu por ação de Hipnos, deus do sono, irmão gêmeo de Thanatos (o sono e a morte são muito próximos, até mesmo na nossa concepção inconsciente, onde o sono eterno é a morte). Ao acordar foi recolher suas flechas que haviam se espalhado pelo chão e sem perceber apanhou algumas que pertenciam a Thanatos, que também dormia ali na caverna. Desde então, até mesmo Eros pode ser portador de flechas mortais. Vínculos amorosos podem trazer também dores mortais.
No desenvolvimento normal o amor modifica a crueldade. Os impulsos de amor e destruição, vida e morte, estão fusionados e, ao longo da existência do indivíduo, vão mostrar suas forças de atuação.
Em circunstâncias externas ou internas que levem ao predomínio de um desses impulsos, no caso das forças tanáticas, mortais, veremos a destruição de vínculos com elementos que dão sentido à vida e esta não mais se sustenta.
O trabalho de Sísifo é então contínuo na busca de Eros e de sentido para existência.
Aqui fiz um paralelo entre o coro na tragédia grega e o analista diante do paciente.
Na representação da tragédia grega o coro, que fica atrás falando, observa sem esperança enquanto o herói segue seu destino trágico. O coro não vê possibilidade de modificação do destino.
O analista também observa, mas espera que com a sua compreensão possa, talvez, modificar o processo.
Isso pode ocorrer ou não, e mesmo o sucesso de uma intervenção não garante que novos desafios não se apresentem.
O analista expectante traz o gesto amoroso que sustenta um fio de esperança para o par.
Aqui eu gostaria de chamar a atenção para algum vínculo vivo que vocês possam perceber, presente no contato.
É possível que mesmo diante do indivíduo suicida algum vínculo vitalizado, ainda que frágil, seja percebido por quem tem oportunidade de estar em contato com a pessoa nessas circunstâncias. Eu poderia dar inúmeros exemplos, mas acredito que cada um de vocês vai se deparar, ou já se deparou, com esse tipo de situação.
É um fiapo de esperança, mas se formos sensíveis, às vezes, conseguimos detectar. Esse registro traz a esperança de ampliação dessa vitalidade se o suicida for ouvido e a outra mente, no caso do analista, puder tolerar sem contestar ou tentar minimizar seu sofrimento. É a pior coisa quando se está sofrendo ouvir alguém dizer: não é nada, calma, tudo isso vai passar. Você sente-se absolutamente incompreendido, você está num sofrimento atroz e a outra pessoa fala que não é nada, é uma facada no coração.
Penso que esse momento de vislumbre é como a flor que nasce na rua, na poesia do Drummond. Ela pega uma fresta no asfalto e nasce.
A flor e a náusea
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
E lentamente passo a mão nessa forma insegura...
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(Drummond de Andrade, 2007, pp. 27-28)
Nesse sentido, a entrevista com o paciente suicida é muito mais do que uma coleta de dados. É importante coletarmos dados, fatores de riscos, predisponentes, gatilhos e fatores protetores também, mas além da avaliação a entrevista guarda importância por sua função continente que procura dar um significado para agressão que está ocorrendo com a pessoa, a ponto de tirar sua vida, abandonar o outro, não anulando, mas buscando entender o sentido daquele gesto.
É também neste contato que não apenas uma lista de fatores protetores ou de risco são levantados e se verifica o potencial do paciente para se vincular tanto com o terapeuta como com seus próprios conteúdos mentais, independente da violência que acompanha o ato suicida. Lembro a situação com uma paciente adolescente que tinha tentado o suicídio na escola e de lá veio direto para o meu consultório. Quando abri a porta para recebê-la pela primeira vez ela estava com os pais, vi o seu rosto e parecia que ela já estava morta. Eu a convidei para entrar antes de ouvir os pais. Depois de um tempo, foi me chamando a atenção que ela começou a levantar o rosto e lançar pequenos olhares para mim e o tom de voz ganhou um pouco mais de corpo para conseguir dizer mais alguma coisa, então, ela começava a fazer o vínculo com o próprio sofrimento dela e fazer pequenas expansões (o que fez, o que sentia, pensamentos que surgiam aparentemente desconexos etc.) e compartilhava comigo esperando compreensão. Esses momentos são semelhantes à uma flor que nasce no asfalto.
Jorge Ballesteros Casas1 quando fala sobre entrevista com o paciente suicida, diz que o suicida busca aniquilar sua realidade psíquica, mas pode coexistir um potencial para criar vínculos, pequenos que sejam e quem está na frente dele é o vínculo possível daquele momento, além dos vínculos com o próprio pensamento.
Na relação diádica ao poder dar sentido às motivações inconscientes do paciente se gera a possibilidade de transformar esse dito vínculo em um vínculo de conhecimento K (knowledge). Na prática, tenho visto que quando se consegue com o paciente suicida momentos desse tipo, o risco suicida diminui, guardando entre eles uma relação inversamente proporcional. O vínculo K quando se associa a Eros, unifica, sintetiza e neutraliza. (Ballesteros Casas, 2011, p. 569)
Ele faz um contraponto com a pulsão de morte que quebra os vínculos, anula o vínculo, destrói qualquer significado.
Vamos pensar um pouco mais agora usando uma visão macroscópica e olhando para o fenômeno do aumento de casos de suicídio, principalmente, em jovens. O Carlos Cais em sua fala inicial hoje já trouxe os números das estatísticas. Eu fui criticada em um trabalho, pois disseram que minhas estatísticas estavam desatualizadas porque eram de 2016, mas é o que temos no momento.
Além das características do desenvolvimento de cada indivíduo e de seu grupo familiar, vale destacar como a cultura contemporânea tem características que modificaram a forma de vinculação das pessoas. No congresso da FEPAL em Lima no ano passado, além dos países latino-americanos também tinha gente da Europa e América do Norte falando do aumento de suicídio nessa faixa etária. O que está acontecendo com a cultura, com os jovens, com nosso universo? Não vamos pensar a questão só do ponto de vista individual, como o Carlos salientou.
Trago alguns aspectos para reflexão sobre esses jovens, nascidos na era digital onde vemos a coexistência de vínculos, em larga escala, com uma fragilidade desses mesmos vínculos. Por exemplo, ele diz tenho 5.000 seguidores, tenho 10.000 amigos na internet. Como ter 10.000 vínculos e ser íntimo e próximo ao mesmo tempo? Então, é de outra natureza o amigo do FaceBook, o seguidor no Instagram etc. São numerosos vínculos, mas muito frágeis. Outro aspecto problemático: o uso das ferramentas mais ágeis de comunicação para fins de ataques sádicos. Se antes eu queria sadicar meu coleguinha, isso morria na esquina, agora não, explode na rede. E se mudar de escola, vai levando tudo que aconteceu, o bullying fica imenso.
E também temos uma diluição e transformação dos elementos contensores do grupo social mais amplo. Na fala da Luciana, do Cassorla e do Carlos percebemos a importância dos outros recursos sociais que possam dar uma contenção às demandas do indivíduo.
O que está contribuindo para o aumento de suicídio entre os jovens ao redor do mundo pede uma resposta bem complexa. Lanço indagações para nos ajudar a pensar. O que conseguimos apreender como características comuns para as experiências de vida dessa nova geração? Dentre estas características o que poderia exacerbar a ação da impulsividade intolerante que tanto aparece nas tentativas de suicídio? Os jovens hoje em dia não toleram nada, tudo tem que ser muito rápido. Então, como Carlos destacou, 90 segundos a mais para abrir a embalagem modificada do remédio faz diferença na decisão de ingerir ou não os comprimidos letais.
E onde está a contraparte reflexiva, contensora, transformadora? Por exemplo, um ideal da escola que oferece informática, tecnologia e você vê desaparecer aulas de música, as fanfarras, a poesia, o esporte. Jogar vídeo game, não é mais a mesma coisa. No esporte tem um juiz, um amigo de verdade, um rival de verdade com suas vicissitudes.
Por que Sísifo não consegue encontrar sentido para vida com o trabalho que realiza? Não podemos mais imaginar Sísifo feliz em sua eterna luta?
O que está acontecendo com o jovem? Ele também tem a pedra dele para rolar.
Há exigências exageradas e inatingíveis ao outro e a si próprio? Às vezes, vira um desfile de sucesso na Internet "Tenho que ser mais e mais, e, seu não for, eu me mato", tenho ouvido muitos relatos assim.
Falta a disponibilidade e proximidade de outra mente contensora e moduladora?
Pensando junto com Baumann, importante filósofo, que trouxe o conceito das relações líquidas e da modernidade líquida quando ele fala na metáfora das mudanças constantes que um líquido pode sofrer, sem conservar sua forma por muito tempo, dando uma ideia do estado temporário e frágil das relações sociais atualmente e dos laços humanos.
Podemos nos movimentar sem sair do lugar, o tempo líquido permite o instantâneo e o temporário. Nas relações líquidas os vínculos podem rompidos com muita facilidade e há um grande isolamento. Estou com todos e não estou com ninguém.
Os laços da sociedade estão em rede, as conexões podem ser desfeitas conforme a vontade do indivíduo, que cansa e termina o namoro ou a amizade apenas deletando o outro. Isso torna, em contrapartida, os relacionamentos reais muito significantes, porque são os contensores que nos sobram.
Como transformações dessa área digital, poderiamos pensar em um modelo de funcionamento mental influenciado pelas experiências na virtu-alidade e reflexos disso em reações mais impulsivas e intolerantes que se exacerbam nesses jovens suicidas.
A imersão na comunidade global, e ao mesmo tempo, o isolamento dentro de casa e dentro das grandes cidades. Eu cresci numa cidade que era um ovinho, todo mundo se conhecia, brincávamos na rua, todo mundo tinha uma história, uma filiação e uma responsabilidade perante ela. Hoje em dia, você não sabe quem é o seu vizinho.
Tem uma exacerbação de demandas narcisicas de triunfo e negação das perdas, tem que ser um parâmetro de um sucesso imaginário, narcísico, sem tolerância à frustração e menor capacidade de considerar a própria responsabilidade pelos eventos, anulando as consequências de causa e efeito.
Na contramão disso, temos a menina da Suécia, Greta Thunberg, que começou o movimento pelo clima e está agitando os jovens no mundo inteiro por uma causa comum. Ela tomou para si fazer algo por aquilo que não acha certo. Contraparte interessante das comunicações em massa que cria possibilidades de movimentos de grande alcance social.
Então, Sísifo contemporâneo em seu interminável trabalho precisa construir derivações possíveis para a impulsividade, a destrutividade, para o narcisismo etc. Tarefa imensa, mas não impossível.
Será que a psicanálise pode nos ajudar?
• Construir narrativas que tentem dar sentido para aquilo que vivemos.
• Fortalecer capacidade reflexiva, valorizar a contenção que uma mente propicia à outra mente.
• A observação reflexiva da contínua construção dos mitos modernos, (porque a nossa mente cria constantemente novos mitos, não foram só os gregos ou outros povos antigos que fizeram isto)
• Podemos viver o mito da força maior do que temos, de sermos infalíveis etc., e propostas de onipotência não distinguindo desejo de realidade.
Parece que temos muito a aproveitar da psicanálise...
A propósito dos desafios e das ferramentas arcaicas ou modernas de que dispomos para a tarefa de Sísifo que nos cabe, me parece que um poema possa nos ajudar a considerar a força da nossa criatividade.
A pedra
O distraído, nela tropeçou,
o bruto a usou como projétil,
o empreendedor, usando-a construiu,
o campônio, cansado da lida,
dela fez assento.
Para os meninos foi brinquedo,
Drummond a poetizou,
Davi matou Golias...
Por fim;
o artista concebeu a mais bela escultura.
Em todos os casos,
a diferença não era a pedra.
Mas o homem.
(Pereira Apon, 1999)
Se me volto agora para a mobilização que o gesto suicida pode gerar, penso que se faz necessária uma reflexão e novamente algumas perguntas talvez permitam melhor aproximação não só do outro, mas cada um de si próprio também.
• Como ajudar?
• Consegue ouvir sem criticar?
• Consegue ouvir sem aconselhar?
• Consegue ouvir sem se desesperar apesar de sofrer?
• Consegue se perceber com empatia pelo suicida?
• Consegue perceber seus sentimentos frente ao suicida?
• Consegue evitar descarregar sua ansiedade no suicida?
• Consegue falar das suas limitações e ao mesmo tempo do que tem para oferecer ao suicida?
• Consegue buscar ajuda?
• Consegue seguir buscando alternativas para ajuda?
• Consegue dar alguma contribuição mesmo que pequena?
• Como ajudar os sobreviventes?
• Consegue não criticar a família?
• Consegue não criticar os profissionais envolvidos?
• Consegue se pôr no lugar da vítima ou dos enlutados?
• Consegue ouvir e acolher as falas ou o silêncio doloroso?
• Consegue acolher os sentimentos violentos que são despertados?
• Consegue não se precipitar até que algum pensamento possa começar a se organizar?
Em tempos de grandes aspirações talvez valha lembrar o valor de cada pequeno gesto.
Você está sendo muito importante se puder tolerar a fragilidade da vida e das tentativas de reconstrução somadas à violência posta em cena pelo suicídio.
Ao ajudar cuide-se também.
Perceba seus limites e peça ajuda, até mesmo para você, quando julgar necessário.
A tarefa é infinita.
Que Sísifo nos inspire na força que precisamos ter para a vida, para nós próprios. Que nos inspire a flor que nascer do encontro desse Setembro Amarelo aqui.
Encerro com a música de Bach que há trezentos anos ajuda os seres humanos a iluminarem seus caminhos.2
Leda Beolchi Spessoto
Debate
Maria Luiza Dias - Leda, que bom ver você tão viva e tão sensível à essa escuta das pessoas que querem morrer. Na minha clínica e na minha vida pessoal eu tenho ido muito ao encontro de tudo isso que você falou. Acho que sofremos preconceito quando falamos dos problemas da Internet, da tecnologia, pois parece que falamos em desfavor desse mecanicismo, sabemos que o WhatsApp é maravilhoso, uso o dia inteiro, não tenho nada contra a Internet, mas tenho contra a falta de presença humana. Você nos mostrou a importância da continência e da presença humana, todos os nossos importantes psicanalistas, a linha winnicottiana com a ideia de holding, não é só mãe-bebê, a sociedade também tem que oferecer sustentação. Tenho estado muito aflita, pois tenho ouvido muitos casos, penso que quando atualizarmos essa estatística será horrível, vai doer até nos ouvidos. Os jovens estão caindo dos prédios, se fala que os jovens têm funcionado de uma maneira imediatista na sociedade atual. Fica difícil ouvir de Gilberto Safra que é difícil ter esperança, porque se você está só no seu presente e seu mundo é tudo ou nada, se você precisa do corpo perfeito, nunca vi tantas meninas com essa ideia do corpo, vão viajar, não comem, e não são as ano-réticas que estão lá no hc, são as pessoas comuns. E, além disso, a bebida.
Vou contar uma cena, uma menina bebeu, vomitou numa festa, a outra escorregou no vômito, sujou o short, conseguem localizar a mãe que responde que está cuidando de um bebê e pede para que ela venha de Uber. Vemos que essa meninada vai e vem de Uber, não sabemos nem se tem alguém esperando. Muita demanda para pouca contenção.
Muito boa essa mesa, com esse tema tão atual e preocupante, a flor no asfalto... Achei interessante você falar sobre os profissionais, não adianta procurar o culpado no pai, ele é de uma família boa, comum, mas precisamos pensar esses padrões sociais que vivemos hoje em dia. Ouvi um menino dizer "Esses professores pensam que somos robôs". Tem mais matéria do que cabe no tempo para estudar, eles dizem que se sentem insuficientes "Tudo que faço é sempre pouco.". É o adulto que chega em casa e só vê o filho no fim de semana. Tenho sentido muito a falta da presença humana, como se só precisássemos dela quando se fosse bebê, e será que teremos nos bebês? Porque hoje o Ipad está grudado no carrinho. Adulto também precisa de presença humana.
Conheci Cassorla em 1989, na época do meu mestrado. Quero agradecê-lo, pois, quando comecei no assunto, ele me apresentou o texto "Suicídio nas sociedades tribais".
E quero responder a pergunta do Carlos sobre o que prenderia uma pessoa neste mundo, acho que é a responsabilidade inter-relacional, o indivíduo nunca está isolado, quando ele morre, morre um monte de gente e de experiências ao redor, é muito duro trabalhar com famílias enlutadas que perderam um membro por suicídio. Sabemos que quando é um idoso, que hoje chegam aos 103 anos, já consolei aluna chorando porque tinha perdido o avô de 102 anos, perder filho é um luto terrível, mas por suicídio é muito pior. Guardo a frase do Rubem Alves, que fez o prefácio do livro que o Cassorla organizou, Do suicídio - estudos brasileiros, que diz "Diante da morte só resta ouvir os sons que aquela pessoa que morreu está emanando". Se alguém quiser morrer do meu lado, eu seguro o pé, da minha janela não se atira. Acho que temos que pensar em questões maiores, que é como recebemos as pessoas nesse nosso mundo.
Clara - Sou enfermeira de formação, pela Unicamp, faço enfermagem para fazer saúde mental, assisti a muitas aulas do Prof. Roosevelt, ele fez minha carta de apresentação para Residência, na época. Nós, enquanto sociedade, somos malsucedidos, estamos nos reproduzindo socialmente de uma maneira muito esquisita, nosso modo de produção valoriza muito sucesso, prazer rápido, hedonismo, e o que divirjo sobre a perspectiva que a Leda falou, a capacidade de considerar a própria responsabilidade está invertida, é um peso individual. Então, se não dá certo, será um fracassado, você que não soube enxergar as oportunidades, e oportunidade é um jogo de sorte/azar. Tenho um primo que diz para os filhos "Você tem que chegar e passar o cavalo selado, porque é uma vez só, se você não passar o cavalo vai embora". Há 19 anos sou professora da Escola de Enfermagem da usp, no departamento de saúde coletiva que olha como os diferentes grupos sociais adoecem e morrem. Nesse tempo, tenho estado muito atenta o quanto tem sido cada vez mais precoce os estudantes demonstrarem grandes ansiedade, usar medicações, jovens de 18 ou 19 anos.
Tem uma questão que é maior preocupação nossa, de como estamos nos reproduzindo, o que estamos fazendo? Quais os valores contemporâneos? Isso tem me preocupado bastante ao lidar com os jovens na perspectiva do sofrimento que o Prof. Roosevelt falou. Felizmente, na minha unidade não teve nenhum caso de tentativa de suicídio, mas na universidade, há menos de um mês, um menino de 21 anos se matou dentro da Faculdade de Farmácia, ele ingeriu um monte de medicação, a colega chegou e ele disse: "Eu me arrependi, me ajuda". Mas não deu tempo...
Existe uma exigência muito grande, no histórico escolar cada um tem sua pontuação na turma, isso é uma crueldade. Tenho feito oficinas para discussões com eles, como é ser jovem na contemporaneidade, fazemos leituras, discutimos textos teóricos, na última oficina pedimos sugestões do que eles querem que a universidade faça. Também olhamos no Facebook desgastes e fortalecimentos deles, durante os quatro anos. Tudo que era desgaste associado ao estilo de aula, cobranças, notas; e tudo que tinha de fortalecimento era fora da universidade, fora da sala de aula. E o que eles pediram na última oficina foi fazer formação política com eles, no sentido da pólis, então, fizemos uma disciplina optativa nos moldes de oficina para discutir essas questões. Felizmente não chegamos a essa questão do suicídio, mas tem um sofrimento enorme que temos que lidar na raiz, se não fica tudo neles, por que eles vão muito para a Internet, o acontece para se isolarem tanto, por que as mães trabalham tantas horas por dia? Porque, às vezes, têm que sustentar a casa, não é para desculpabilizar nem para desresponsabilizar, mas para enxergarmos de forma um pouco mais ampla e não culpabilizar individualmente acho que é essa a questão.
Heloisa Ditolvo - Sou psicanalista aqui da casa e existe um grupo que vem fazendo o acompanhamento com orientadores educacionais e diretores das Etecs. As Etecs nos chamaram justamente pelo número de tentativas ou suicídios que vêm ocorrendo e aumentando. Desde o início do ano passado que acompanhamos esse grupo e estudando esse tema. Carlos falou que as intervenções escolares são amadorísticas, então, todo o processo de cuidado passa por um processo de saúde pública, de intervenções públicas que, na atual conjuntura, estão muito atrapalhadas, com poucas perspectivas. Voltando para os movimentos setoriais das escolas, o que observamos é que quando acontece o suicídio de um aluno, a escola se mobiliza, então chama os pais, os profissionais, há palestras, o tema é posto, mas ainda tem um movimento de deixar para lá passado esse primeiro impacto. Porque é um tema difícil, só que a estatística vem aumentando. Eu gostaria de saber se existe algum projeto, um pouco mais organizado e estruturado, que possamos promover ou divulgar. O Bandeirantes é uma escola que pegou um grupo de alunos em que os alunos se disponibilizam para os colegas, com uma supervisão para dar um acesso às angústias ou à possibilidade de comunicar os sentimentos, uma vez que toda essa geração está muito isolada, às vezes, até de si mesmo.
Carlos Cais - Minha colega Luciana adiantou um pouco sobre essa conversa com Bertolocci que gerenciou muitas estratégias de prevenção de suicídio, até mesmo em escolas. O que temos como mais efetivo é primeiro ajudar adolescentes e pré-adolescentes a verbalizarem sentimentos, o que é muito próximo da clínica de todos nós. Uma questão muito importante dentro do âmbito escolar é a sensação de pertencimento, não só em ambiente escolar, é uma necessidade humana, pertencer. Prof. Roosevelt disse, com muita propriedade, que na ausência de pertencimento, o pertencimento pode ser algo perverso. A escola deve ter um olhar especial nas situações em que alunos estejam desinseridos, porque essa costuma ser uma representação de muito sofrimento. Quando aquele individuo não consegue pertencer a nenhum grupo da escola. Às vezes, tem toda uma questão de não se inserir nos grupos mais populares, mas ele se insere nos feios, sujos e malvados, então ele tem sua tribo. Mas quando o não pertencimento é muito radical, a escola tem que estar muito atenta a isso. O bullying tem sido trabalhado, não é um fenômeno novo, pois faz parte do humano, o ser humano tem a perversidade de sempre, o que foi posto com propriedade é o potencial expansivo, vejo a Internet apenas como uma ferramenta, uma possibilidade, como toda ferramenta aparece o bom e o mal do humano, é ele que dá o tom. Nessa questão da impulsividade, que faz parte dos adolescentes, o bullying é muito rápido e não tem volta. O namorado que expõe a namorada na Internet, às vezes, se arrepende, foi um ato de raiva, impulsivo. Nós sempre fizemos maldades como adolescentes, sofremos e fizemos bullying, mas hoje a questão é que há uma especificidade devido à tecnologia. Uma das recomendações é orientar e definir regras muito claras nas escolas de qual é o arcabouço punitivo. Existem, também, os gatekeepers, pessoas naturalmente mais acolhedoras, pode ser a tia da cantina, não precisa ser a professora. É importante localizar em cada instituição quem são essas pessoas, precisamos da entrada de um mundo adulto que possa receber notícias de sofrimento psíquico que não chegam na diretoria ou no professor, sem pôr um caminhão nas costas do sujeito, se não ele fugirá disso. Trabalhar com esse adolescente, orientá-lo, sem responsabilizá-lo pelo sofrimento de outro, se nós não damos conta, imaginem eles.
Muitas coisas boas têm sido feitas, acho que fui um pouco infeliz em usar o termo amadorístico, tanto não é porque entrou como uma estratégia. Com o adolescente temos que entrar, como Roosevelt disse, falando de vida, podemos falar de suicídio, mas falando de vida, o chamado tem que ser para o Eros, não para o Thanatos. Os dois estão em todos os lugares e essas são as diretrizes básicas que têm sido postas em prática, e não é muito fora do que vivenciamos na clínica.
Roosevelt - O suicídio, a rebeldia e o sofrimento do adolescente sempre existiram quando consultamos historiadores. Existe um texto da Grécia Antiga em que o autor se queixa que os adolescentes "de hoje" são desobedientes, preguiçosos, não respeitam os mais velhos, etc. Idêntico ao que ocorre hoje e sempre.
Completando o que Carlos disse: o efeito Werther é derivado da obra de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther, publicada no final do século XIX, quando ocorreu uma epidemia de suicídios pelo mundo inteiro, porque os jovens se identificavam com o personagem. Na psiquiatria e na epide-miologia se fala efeito Werther quando acontecem suicídios sequenciais por identificação. Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de la Mancha mostra o risco da leitura, que enlouqueceria as pessoas. Minha mãe, quando eu era adolescente, me proibia de ler. Ela achava que eu ficaria esquisito, e ela tinha razão [risos] porque eu lia muito. No início a televisão era considerada instrumento do diabo, as crianças não podiam assistir, pois ela faria que ficássemos loucos, perversos. Hoje é a Internet, é claro que tudo, como Carlos falou, tem dois lados, é muito importante que haja regulação. A Internet permite que façamos prevenção de suicídio, podemos falar da vida e da morte. Também nos livros, nos programas de televisão.
Sinto uma pena imensa dos pais, das gerações anteriores, que se sentem perdidos. Os sistemas de referência são confusos, não se sabe mais o que é certo ou errado. Nós, que fomos criados de forma rígida, queremos que nossos filhos não sofram o que nós sofremos e corremos o risco de cair no outro extremo. Além disso, não há tempo para os filhos porque tem que se "vencer na vida", ou simplesmente sobreviver. Há muitos estudos sobre esses aspectos da sociedade. Um dos pioneiros foi Christopher Lasch que escreveu o livro A cultura do narcisismo. Todos nós precisamos, por vezes desesperadamente, ser vistos. Se lanço um texto ou uma foto na Internet e apenas 100 pessoas curtiram, eu sou um fracasso. São mudanças sociais. Temos que investigar e aprender a lidar com isso. Mas, não devemos exagerar, pois logo ocorrem reações. Por vezes também extremadas, mas que dialeticamente se influenciam. Lembremos da jovem sueca que vem juntando milhões de pessoas para protestar em função das mudanças climáticas. Temos grupos contra a tortura, a anistia internacional, movimentos pela preservação ambiental e tantos outros. Existe sempre a vida e a morte. Temos que fortalecer a vida, lutar contra a morte.
Quando uma escola, que tem como maior objetivo ganhar dinheiro e fazer os alunos passarem no vestibular, se defronta com o suicídio de um aluno, o que fazer? Não se sabe que é necessário investir nas emoções, no autoconhecimento e na humanização e, quando se sabe, não se sabe como. Aulinhas de teatro ou música não são suficientes. Como reinvestir nas relações humanas? Os próprios jovens sentem necessidade disso. Antigamente as religiões nos ajudavam. Eu pertenci a um grupo socialista sionista, eu não era absolutamente religioso, mas me sentia pertencente. Quando senti que o grupo podia ser fanático, saí. O suicídio de estudantes é um problema sério no mundo todo, no Japão, na Alemanha, também na época do vestibular. Nas universidades, Harvard, Cambridge, etc., e também na Unicamp, onde trabalhamos. Ali temos um serviço de atenção ao estudante, onde lidamos constantemente com riscos suicidas, principalmente na área da saúde. Essas universidades exigem muito. Mas, não é raro identificar em seus alunos uma estrutura perfeccionista, um superego sádico, que potencializa as demandas ambientais. Essas estruturas facilitam o estudo para vestibulares difíceis. Quando eu fiz o curso médico vivi situações que hoje considero sádicas. Eu, obviamente, também era muito exigente. Melhorei um pouco graças à psicanálise. Há sempre uma interação entre o individual e o social que temos que levar em conta.
Quando uma pessoa nos procura e mostra seu sofrimento, ela está pedindo ajuda. Abre-se um imenso campo de possibilidades. Nosso maior problema são as pessoas que não chegam a nós, pessoas que têm uma dificuldade imensa de procurar ou participar de grupos, como os de igreja, escolas, esportes. A identificação precoce dessas pessoas pode ocorrer quando elas chegam ao sistema de saúde com somatizações, ansiedade ou outros sintomas. Ou apresentam problemas sociais. Faz falta em nossa sociedade a rapidez de atendimento. Quando vivenciamos sofrimento mental temos que encontrar alguém que nos acolha agora. Não adianta marcar uma consulta com um psiquiatra, psicólogo ou instituição que vai atender daqui a quatro ou seis meses. Esse é também um componente suicida da sociedade e podemos ampliar essa constatação para as demais áreas, em que aspectos sociais tanáticos se manifestam intensamente.
Leda - Eu queria ir a um ponto que a Clara citou. Há muitos anos eu dei aula na Santa Casa e minha experiência de trabalho junto à enfermagem foi muito importante. A enfermagem toca questões que o professor ou o médico acabam não abarcando e a enfermagem tinha um contato mais próximo e humanizado o que ajudava bastante os alunos encontrarem seu espaço como gente. Como disse o Cassorla, às vezes você começa a faculdade com 18 anos e não tem condições de assimilar o impacto de muitas experiências que se vive ali. Achei fantástico o que você falou sobre oficinas de alunos, porque se cada um de nós consegue uma ação que seja no seu entorno e que introduza essa capacidade de contenção, de reflexão, no campo em que estivermos inseridos, mesmo que seja um trabalho de formi-guinha é importante.
Mercedes Sosa falou numa apresentação que respeitava muito os homens importantes, mas que o imprescindível para ela era o homem comum e seus pequenos gestos. Numa sociedade de grandiosidade os pequenos gestos importam. Por exemplo: uma aluna numa praça em Tiradentes, escrevia poesias numa máquina de escrever antiga e dava para as pessoas que passavam e elas se emocionavam, as pessoas têm um espaço carente. E vocês vejam o que vão fazer com a pedra de vocês (referência a Sísifo) e com a pedra alheia se acharem que têm forças.
Tais - Sou psicóloga, atendo num hospital público na periferia de São Paulo, no Pronto-Socorro, pacientes que chegam por tentativa de suicídio. Gostaria que falasse da diferença das tentativas e dos suicídios
Gisele Groeninga - Sou psicanalista e faço parte do Instituto Brasileiro de Direito de Família, queria agradecer muitíssimo a vocês regarem a vida com essa mesa de hoje e gostaria de perguntar por que não falarmos em pessoas em risco de suicídio em vez de pacientes suicidas? Acho importante para não taxar logo de cara de paciente suicida. Existe alguma estatística que correlacione pessoas que, por estarem em processos judiciais, tentam suicídio? Essa semana tive dois pedidos de pré-adolescentes que estão passando por processo de guarda, a família toda envolvida em litígios, um sofrimento enorme, interminável e ameaçaram se matar. Isso foi o que me mobilizou para vir assistir esta palestra hoje. E se fala muito pouco no Brasil em direito ao suicídio.
Charles - Sou psicólogo, trabalho com população em situação de rua, com consultório na rua e o que me chama a atenção hoje, principalmente, é que não se fala sobre questões de políticas sociais, que sabemos que repercutem diretamente na sociedade.
Estamos diante da ausência total de políticas sociais, ataque à ciência. Eu também sou doutorando na puc de São Paulo e estamos sofrendo pela ausência de bolsas, as agências de fomento não tem mais financiamento hoje e isso traz um sofrimento enorme para as pessoas que dependem das bolsas para suas pesquisas. E falando da população em situação de rua temos a ausência total de políticas voltadas para essas pessoas, que vivem em situação de extrema pobreza, que sequer acessam a unidade básica de saúde e que não se fala nisso. Eu vivo diariamente com pessoas que trazem o suicídio como uma forma de dirimir sofrimento que estão passando, eles têm apenas a droga. Os vínculos familiares são totalmente rompidos, fragilizados e nós ficamos em nossos consultórios esperando os pacientes chegarem, qual o nosso papel diante disso? De todas essas questões políticas, um governo atual totalmente misógino, racista e que vem repercutindo diretamente da sociedade, haja vista a população em situação de rua crescendo diariamente, vemos isso nas nossas ruas ao sair de casa.
E ataque total à nossa ciência, ao pensamento crítico também com a ausência de financiamento às pesquisas.
Cristiane - Sou psicanalista pelo Sedes e sou psicóloga judiciária. Faço perícias no Fórum em situações de litígio e é muito comum adolescentes e crianças trazerem que não são vistas diante desse litígio. No judiciário quando você expõe alguma coisa pra esses pais, eles sentem-se muito ameaçados, porque a briga ali é sobre a ilusão de quem tem razão e a criança fica um fantasma, desaparecida. Não sei se é uma estatística, eu coordeno um grupo sobre o estudo do suicídio com psicólogos, formados há dez anos, essa é uma questão que nós trazemos bastante, o papel de quem está atendendo, quanto a essa formação sobre estar atento a saúde mental. Ultimamente tenho atendido no consultório pacientes jovens que tentaram suicídio, predominantemente enforcamento e por conta da alienação parental, eles usam o termo, não tiveram atendimento na infância. E eles acreditam que o motivo e a dor foi por conta dos pais estarem um falando mal do outro e não foram acolhidos. Eu não tenho número, mas no meu dia a dia tanto da clínica quanto do Judiciário isso é presente nas nossas discussões, de como não se tem esse olhar, assistente social, psicólogo, é algo que passa. Infelizmente as crianças e os adolescentes ficam invisíveis. Parabéns por esta mesa, obrigada por esta manhã.
Carlos Cais - Começando com a questão da tentativa de suicídio, sou um pouco esquemático, cacoete de professor, e simplifico um pouco a realidade, mas sem mapas, não andamos. A tentativa de suicídio tem três componentes: um desejo de morte; morte, não nesse conceito de finitude, mas de estancar o sofrimento; uma tentativa de mudar o ambiente e as relações, temos uma certa ojeriza ao termo manipulação e um pedido de socorro. Quanto tem desses três componentes em cada tentativa de suicídio é muito distinto, então, o que tentamos fazer, metodologicamente, é separar um pouco tentativas de mais intencionalidade, com maior letalidade. Há um imbricamento entre as tentativas de suicídio e é diferente em cada uma delas. Fazer a dissecação da tentativa de suicídio é muito importante até para ter uma inferência de qual risco de suicídio aquele indivíduo está correndo. Mas é uma janela de oportunidades, isso é o mais importante, principalmente porque nessa pirâmide dessas pessoas que têm comportamento suicida, muitas vezes aparece pelo sistema de saúde onde você está e prontos-socorros funcionam todos em correria, mas é uma grande janela de oportunidades para que, rapidamente, essa pessoa seja acolhida.
Não usamos o termo paciente suicida. Tem dois equívocos nesse termo, suicida dá impressão de que a pessoa sempre será um suicida, não é isso, a pessoa está em risco em determinado momento e pode e pode não estar em outro. No mestrado entrevistei um oficial que tinha dado dois tiros embaixo do queixo, em tese é uma tentativa de alta intencionalidade, método violento etc., algum tempo depois cruzei com ele no hc, não o reconheci imediatamente, e ele agradeceu não só a mim, mas a toda a instituição, e disse que estava vivendo uma vida plena, ele tinha passado por aquele momento de transformação. Acho fundamental falar em direito de suicídio, para algumas pessoas é uma saída racional, faz sentido, mas de jeito nenhum esquecer a mensagem principal em que a maior parte dessas situações que nos defrontamos, estamos falando de sofrimento que permitem uma vida plena.
As questões sociais estão totalmente imbricadas, achei importante citar o Camus e ele é o inverso da história, estamos em um momento de muito fanatismo de direita, e de esquerda também. O livro O mito de Sífiso é leitura obrigatória para todos que se deparam com o risco de suicídio. Em sua época, Camus foi quase um exilado porque ele saiu um pouco do que era esperado a um comportamento de esquerda, ele foi um dos primeiros a denunciar as perversões do stalinismo e o Sartre, que devia ter uma inveja do brilhantismo do Camus, aproveitou isso para rotulá-lo de direitista conservador e, assim, ele ficou muito à margem da comunidade por muitos anos e só foi ressucitado décadas depois. Então, o fanatismo existe em todos os espectros e ele paira em todos os tempos. Tenho uma enorme antipatia pelo Sartre pelo o que ele fez com o Camus. Estamos vivendo de novo tempos polarizados, isso é do humano, parece que vamos para períodos de mais bom senso, períodos de polarização. Eu sou um otimista, espero passar por esses períodos que estão nos dois espectros, parece que as pessoas romperam as barreiras do diálogo e das pontes, e isso é muito ruim. Agradeço o prof. Roosevelt, sua generosidade sempre foi muito marcante, fui seu aluno e, depois, ele sempre foi presente nas atividades e cursos que eu realizava e sua presença fazia a diferença, os alunos pediam que eu convidasse, diziam que ele falava da vida. E ele continua falando da vida com muita propriedade.
Leda - Tenho grande satisfação que esse encontro tenha permitido várias trocas, uma alegria ter o Roosevelt com sua capacidade de ouvir, dialogar, se aprofundar. Espero que haja reverberações para todos vocês e ideias que cada um de vocês possam desenvolver como multiplicador de trabalho na área, buscando ampliar o que for possível, buscando ajuda e diálogo. Se temos críticas à política atual (mas, a anterior não era nenhuma maravilha) é bom termos essas críticas para saber o que conseguimos fazer e ajudar nas situações dramáticas apontadas aqui, tanto no nível micro, como no nível macro também. Ter metas e tentativas de empurrar a pedra é importante. Sísifo não para, o trabalho é contínuo. Espero que vocês mantenham a energia para isso.
Roosevelt - Eu queria recomendar o livro Suicidio - fatores inconscientes e aspectos socioculturais, que, por acaso, eu sou o autor. É um livro de divulgação, a base é psicanalítica, mas pode ser lido por todos. Respondendo sua questão,Tais, como Carlos adiantou, são dois grupos diferentes que se interpenetram. Os suicidas, geralmente são homens, dois a três homens para cada mulher, dependendo do país, com exceção da China, único país do mundo onde as mulheres se matam mais do que os homens. Entre os que tentam suicídio há de três a quatro mulheres para cada homem. Intencionalidade e letalidade são diferentes. Estudei na minha tese de doutoramento as jovens que tentam suicídio, está publicado para quem quiser ter acesso. O número dessas jovens é muito grande, elas têm características que se assemelham ao borderline, só que o borderline é o adolescente em que as defesas se rigidificaram. O apaixonamento se confunde com uma relação simbiótica em que se projeta no outro o objeto idealizado, o príncipe encantado, um deus. Diz-se que essa paixão é uma "doença". A cura da paixão ocorre com o casamento. Essa brincadeira é profunda, porque a paixão tem que transformar-se em amor, amor que respeita a alteridade. Na melhor das hipóteses. Essas meninas e rapazes - depois os diferenciarei - envolvem-se em uma relação simbiótica intensa. Todos os adolescente passam por isso, mas estes não introjetaram objetos suficientemente bons que lhes permitissem lidar com frustrações traumáticas. Normalmente quando uma adolescente perde seu namorado, muitas vezes para a melhor amiga, fica frustrada, sofre, chora, quer morrer, mas a vida continua e o luto é elaborado. Mas, algumas delas, mais vulneráveis e sensíveis, sofrem de tal forma que parece que estão em vias de aniquilamento. Não é só com namorados, pode ser briga com os pais ou na escola, pode ser bullying. Havia uma idealização à qual se segue uma desidealização brusca e perseguição. Em seguida ocorre o ato suicida que, por ser geralmente impulsivo, não tem muita gravidade médica. Mas, às vezes, a pessoa morre, como que "por engano". Essas moças têm uma tendência a simbiotizar-se também a drogas, a parceiros psicopatas.
A questão de Gisele me faz lembrar entrevistas com mulheres criminosas, por exemplo mulas do tráfico de drogas. Elas viviam relações simbióticas com os criminosos com características psicopáticas. As psicólogas que atendem esses homens correm o risco de apaixonar-se por eles. Às vezes acabam assassinadas.
Essas moças, que buscam simbioses, também se envolvem com religiões, seitas e ideologias fanáticas. As tentativas ocorrem 20 a 30 vezes mais do que o suicídio exitoso. Elas precisam desesperadamente de objetos continentes que lhes permitam desenvolver mente própria para poder dessimbiotizar-se.
Por que mais mulheres se os homens também fazem relações simbióticas? Aqui temos uma pista potente para compreender fatores da violência contra a mulher, incluindo os feminicídios. O homem frustrado, quando se dá conta que a mulher tem vida própria, agride e mata. A mulher tenta suicídio. Imagino que se fizermos um estudo epidemiológico veríamos que as tentativas de suicídio das mulheres teriam uma curva parecida com a violência masculina. Isso não significa que mulheres não matem e que homens não tentem suicídio.
O Carlos falou sobre o direito ao suicídio. Nós sabemos que Freud pediu para seu médico que o ajudasse a morrer e ele o fez. Penso que é um direito do paciente, após uma avaliação cuidadosa. Os judeus de Massada optaram pelo suicídio coletivo. Preferiram a morte a ser escravos dos romanos, a verem as mulheres violentadas. É um suicídio compreensível. O suicídio dos membros da seita de Jim Jones faz menos sentido. Estavam sujeitos ao fanatismo de um indivíduo que fez a cabeça dos seguidores. Estes eram, em geral, afro-americanos muito pobres, marginalizados - como as populações de rua - que encontraram um líder que os fazia sentirem-se vivos.
Vou terminar aproveitando a questão do Charles. Será que há interesse da sociedade em que pessoas pobres e de rua continuem vivas? Que negros, índios, homossexuais, continuem vivos? Gente miserável que só dá trabalho, gente "suja", alcoólatras, doentes mentais. Que continuem vivos? Será que inconscientemente não haveria um interesse em eugenia, uma limpeza étnica? Os nazistas fizeram isso manifestamente, na China e em muitos lugares isso também ocorreu. Stalin fez isso, exilou populações inteiras, outras foram para a Sibéria, matou milhões de pessoas. A história do Brasil tem mais de 500 anos. Será que quando libertaram os escravos, eles queriam que continuassem vivos? Porque os libertaram e os jogaram na rua, sem nada. As estatísticas de suicídio de negros e escravos são terríveis, eles se matavam como moscas. Somente os donos dos escravos não gostavam do suicídio, porque perdiam dinheiro. Mas se fossem velhos ou meio malucos o que, evidentemente, eram, pois viviam num ambiente traumático, pouco importava. Temos que ir mais fundo. Estamos frente a um componente suicida da sociedade. Não há interesse em ter políticas públicas para essa gente. Para que gastar dinheiro em saúde, educação? É bom ter um exército de reserva de desempregados. Pouco importa se pessoas morrem. São opiniões pessoais. Certamente há estudiosos com maior capacidade para tentar compreender esses fatos. Temos que ver as coisas de vários pontos de vista.
Estou muito grato por ter participado desta atividade com os queridos colegas e me sinto agraciado por suas palavras carinhosas.
Referências
Ballesteros Casas, J. (2011). La entrevista al paciente suicida. Revista de la Sociedad Colombiana de Psicoanálisis, 29(4),533-577. [ Links ]
Cassorla, R. M. S. (Org.) (1991). Do suicídio - estudos brasileiros. Campinas: Papirus. [ Links ]
Drummond de Andrade, C. (2007). A flor e a náusea. In C. Drummond de Andrade, A rosa do povo (pp. 27-28). Record. [ Links ]
Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de esperanças em declínio. Imago. (Trabalho original publicado em 1979) [ Links ]
Pereira Apon, A. (1999). A pedra. In A. Pereira, Essência. Edição do autor. [ Links ]
Twain, M. (2017). As aventuras de Tom Sawyer (M. S. Guimarães, Trad.). Autêntica.(Trabalho original publicado em 1876) [ Links ]
Edição e trancrição Mireille Bellelis
1 Palestra realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em 21/9/2019, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hC-wU_z59Vc&feature=youtu.be.
2 Psicanalista colombiano.
3 Ária da quarta corda de J. S. Bach. Versão vocal do Trio Amadeus. https:youtu.be/u65srr0VBJM.