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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dic. 2020

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Diferenças

 

Differences

 

Diferencias

 

Différences

 

 

Luiz Moreno Guimarães Reino

Doutor pelo IP-USP e membro filiado do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / luizmorenog@gmail.com

 

 


RESUMO

Esta apresentação - não apresentada, por causa da irrupção da atual pandemia - pretende resgatar a inquietação que está na origem da teoria dos campos: a de que as distintas escolas de psicanálise talvez possuam uma função terapêutica comum. Para isso, esboça um estudo sobre a noção de diferença.

Palavras-chave: diferença, teoria dos campos, teoria freudiana


ABSTRACT

This presentation - not presented, due to the outbreak of the current pandemic - aims to rescue the suspicion that is at the origin of the Multiple Fields Theory: that the different schools of psychoanalysis may have a common therapeutic function. For that, it outlines a study on the notion of difference.

Keywords: difference, Multiple Fields Theory, Freudian theory


RESUMEN

Esta presentación, no presentada debido al brote de la pandemia actual, tiene la intención de rescatar la inquietud que es el origen de la Teoría de los Campos: que las diferentes escuelas de psicoanálisis pueden tener una función terapéutica común. Para eso, delinea un estudio sobre la noción de diferencia.

Palabras clave: diferencia, Teoría de los Campos, teoría freudiana


RÉSUMÉ

Cet exposé - dont l'exposition est empêchée par la pandémie actuelle - compte récupérer la préoccupation qui est à l'origine de la Théorie des Champs: celle selon laquelle les différentes écoles de psychanalyse peuvent avoir une fonction thérapeutique en commun. Pour cela, on élabore une étude sur la notion de différence.

Mot-clés: différence, Théorie des Champs, théorie freudienne


 

 

Tem um dito os ratos:
não importa de que raça seja o cão,
desde que espante os gatos.

(Fabio Herrmann)

A comissão organizadora deste evento, da qual eu faço parte, se reuniu sem mim e cometeu a imprudência de me chamar para falar hoje. E, no convite, fez uma sugestão: que tal trazer um estímulo sobre o que é psicanálise do ponto de vista da teoria dos campos, associando com o tema central da plenária (Inquietações)? Aceitei sem hesitar. Menos por ser alguém que estuda a obra do Fabio, e mais por sentir que ao rearranjar os termos do convite eu me aproximava de uma zona perigosa e atraente: qual é a inquietação central que a teoria dos campos traz para a psicanálise?

Vamos lá. Preparei algumas breves anotações. Meu tempo é curto, isso, porém, não necessariamente subtrai a potência, pelo contrário, tende a aumentá-la. Rubem Alves dizia que um artigo de duas páginas pode comunicar mais do que um livro de trezentas, que uma metáfora transmite mais do que todas as explicações.1 Cem páginas argumentativas desativam uma bomba, mas basta um aforismo para confeccioná-la. Pus-me a escrever, e o que saiu foram três fragmentos levemente conectados entre si.

 

Dois livrinhos

O livro O que é psicanálise, de Fabio Herrmann, foi publicado inicialmente na Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense em 1983. Um ano depois, a mesma coleção publicou, com o mesmo título, uma outra versão escrita por Oscar Cesarotto e Márcio Peter de Souza Leite. Os dois livrinhos são instrutivos e saborosos, o do Fabio apresenta a psicanálise por meio da teoria dos campos, e o do Oscar e do Márcio pela psicanálise lacaniana.

O editor Caio Graco Prado escreveu na contracapa: "Este é o primeiro caso em que se trata de um mesmo tema, numa segunda visão, nesta Coleção Primeiros Passos" (Cesarotto & Leite, 1984, p. 1). O primeiro caso, salvo engano, tornou-se também o único; não há duas ou mais publicações com o mesmo título, por exemplo, O que é semiótica ou O que é filosofia, malgrado essas áreas possuírem similarmente suas expressivas segmentações. Quando soube disso, logo me veio um pensamento: Tinha de ser a psicanálise! Sempre a inaugurar uma divisão e a marcar suas diferenças internas. Seguindo essa toada, cada escola seria conduzida a escrever o seu livrinho, o que tornaria impossível o verbete "Psicanálise", caso se fizesse uma enciclopédia composta com base na Coleção Primeiros Passos, o que já se cogitou.

Entendam-me bem, não é algo particular dos autores, e sim próprio do movimento psicanalítico: na primeira oportunidade, nós, psicanalistas, sublinhamos e apresentamos as nossas distinções (por exemplo, o contraste entre kleinianos e lacanianos, entre freudianos e bionianos etc.). É isso mesmo: parece haver uma tendência no movimento psicanalítico que é marcar as diferenças internas, presente sobretudo naquilo que ficou conhecido como "período das escolas", ainda tão forte. O que conduz ao paradoxo de que o traço comum a toda escola é justamente seu ímpeto a se discriminar.

Primeira inquietação: tendemos a nos diferenciar; sabemos, entretanto, que é diferença? Talvez o desafio crucial - aquele que é posto por nossa história - não seja cada escola escrever o seu livro O que é psicanálise, aumentando a distância entre elas, expandindo as zonas de incomunicabilidade. Mas talvez seja - ao modo de um lapso, chiste ou sonho - esquecermos de nos diferenciar e nos reunirmos para escrever o livrinho O que é diferença. Em vez de diferenciados, "distraídos venceremos" (Leminski, 2013, p. 173).

 

Diferença na obra de Freud

Leio Freud atento às palavras não conceitualizadas. Até porque considero que a psicanálise ressurge mais facilmente nelas do que nos próprios conceitos. Por exemplo, as palavras orgulho, morte, paixão, destino, assim como inúmeras outras, habitam uma zona indeterminada: por um lado, estão fora do que foi estabelecido posteriormente como vocabulário técnico e, por outro, não se colam de imediato ao senso comum. São termos empregados tal como um escritor os utilizaria, isto é, trazendo uma nuance difícil de discernir, ainda que passível de ser reconhecida. São as palavras literárias de Freud.

Folheei uma série de textos seus de olho na palavra diferença. Eis o que encontrei. Tudo ainda está em estado bruto de composição, é um work in progress tal como os comediantes traduzem: work, trabalho, in progress, malfeito.

Indo direto ao ponto, existem no mínimo três formas de pensar a diferença na teoria freudiana.

Há a diferença onírica, que aparece na Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2006a). Jamais analise em massa, e sim em detalhes, propõe o autor. Em vez de pedir associações sobre o sonho como um todo, solicite com foco nas pequenas partes. O que esse sonho te recorda? costuma ser respondido com um sonoro Nada; agora O que esse poste encurvado te lembra? foi respondido com Engraçado, me lembra um ponto de interrogação. No primeiro caso, a pergunta fica no vazio; no segundo, fica o vazio da pergunta, o que movimenta as associações. É com base nos pormenores que pode surgir o duplo sentido, ou o rébus. O detalhe, de certa forma, pode ser definido como aquilo que produz diferença, ao operar a saída da massa vaga em direção ao sentido.

Há também a diferença narcísica, tal como consta na expressão narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1918/2006b; 1921/2011b; 1930/2010). É impressionante como algo ínfimo - um sotaque, um adereço, o cheiro da comida - pode diferenciar povos inteiros. O ponto central aqui é que certa aversão, antipatia ou intolerância (Freud nomeia de diversas formas) se apega aos pormenores para poder se expressar. "Não sabemos", escreve (Freud, 1921/2011b, p. 57), "por que uma suscetibilidade tão grande envolveria justamente esses detalhes de diferenciação", só que de fato os espinhos se evidenciam nessas minúcias. Tal como o sonho se vale do resto diurno, a hostilidade se apega à pequena diferença.

E há, por fim, a diferença sexual, a mais lacônica de todas, presente no artigo Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925/2011a). O enfim reconhecimento de que existe um outro sexo provoca uma "terrível tempestade de afetos" (Freud, 1925/2011a, p. 290). Isso porque o órgão sexual feminino não é percebido como um, e sim como a ausência de um outro órgão. A diferença aí é fonte de angústia.

Retomando e resumindo: a diferença onírica é o entrecruzamento das representações, que possibilita a interpretação; a diferença narcísica é o congelamento numa representação, que autoriza a hostilidade; e a diferença sexual é a ausência da representação, que desencadeia uma crise.

 

E se...

Segunda inquietação: trago para o debate algo que está nos primórdios da teoria dos campos, um simples E se...

E se a eficácia terapêutica da psicanálise não se revelasse nas diferenças, mas estivesse em um traço geral, em um common ground? E se tivéssemos um mesmo miolo - desconhecido e atuante - a percorrer as mais distintas psicanálises, e a ser talvez fonte de psicanálises futuras?

Convém pouco, neste momento, expor o solo comum que Fabio depurou, e como com base nisso recrio a psicanálise. Vale, no entanto, destacar que para a teoria dos campos é menos importante o que os autores consagrados dizem do que o caminho que torna possível dizer o que dizem, menos crucial a teoria produzida do que o meio pelo qual se pode chegar a construir uma. A esse caminho(ὁδός), deu o nome de método (µ έθ-οδος).

Para o início deste debate, fiquemos apenas com essa sensação fundante: e se, ao invés de exaltar nossas diferenças, olhássemos para o núcleo de similaridade; e, se soubéssemos nomeá-lo, reconhecê-lo, fertilizá-lo, que efeitos isso teria sobre nós?

Talvez nossas diferenças narcísicas simplesmente perdessem o sentido, e mostrassem ser o que são: "Dois carecas brigando por um pente" (Borges, 1999, p. 560). Talvez com base em um solo comum pensaríamos nas nossas diferenças oníricas: nas ênfases de cada escola, vistas pelo prisma do método e sem o apelo de adesão. Por último, talvez enfrentaríamos a nossa diferença sexual: para qual ausência primordial, para qual crise da representação, nos conduz o método da psicanálise?

 

Referências

Borges, J. L. (1999). Juan López e John Ward. In J. L. Borges. Obras completas de Jorge Luis Borges (Vol. III). Globo.         [ Links ]

Cesarotto, O. & Leite, M. P. S. (1984). O que é psicanálise. Brasiliense.         [ Links ]

Freud, S. (2006a). La interpretación de los sueños. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vols. 4-5, pp. 3-747). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (2006b). El tabú de la virginidad. In S. Freud, Obras completas (Vol. 11, pp. 185-204) Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1918)        [ Links ]

Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 13-122). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (2011a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 16, pp. 283-299). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1925)        [ Links ]

Freud, S. (2011b). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (Vol. 15, pp. 13-113). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Herrmann, F. (1983). O que é psicanálise. Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: o método da psicanálise. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2019) Anotando a China: viagem psicanalítica ao Oriente. Edição crítica de F. Sofio. Unifesp.         [ Links ]

Leminski, P. (2013). Toda poesia. Companhia das Letras.         [ Links ]

Reino, L. M. G. & Endo, P. (2011). Três versões do narcisismo das pequenas diferenças em Freud. Trivium, 3(2),16-27.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/6/2020
Aceito em: 17/10/2020

 

 

1 Comunicação verbal, junho de 2012.

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