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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dic. 2020
TEMAS LIVRES
Ciúme, o inferno do amante ferido: Bruno, Otelo, Dimítri1
Jealousy, the injured love's hell: Bruno, Othello, Dmitry
Celos, el infierno del amante herido: Bruno, Otelo, Dimitri
Jalousie, l'enfer de l'amant blessé : Bruno, Othello, Dimitri
Eva Maria Migliavacca
Analista didata na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / evamigliavacca@gmail.com
RESUMO
Neste trabalho focalizo um componente do amor, o sentimento do ciúme, que é uma experiência de contato com o mundo que se constitui muito cedo na vida e na história do indivíduo. Para tanto, uso cenas da análise de um menino de 8 anos, Bruno, e discuto alguns aspectos dos personagens Otelo, de Shakespeare, e Dimítri de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. O material clínico, assim como os exemplos extraídos da literatura são apresentados com o intuito de ilustrar e refletir a respeito de algumas das nuanças desse sentimento perturbador. Ao fim, apresento breve associação com o complexo de Édipo.
Palavras-chave: ciúme, clínica, Otelo, Os irmãos Karamázov, complexo de Édipo
ABSTRACT
In this work I focus on a component of love, the feeling of jealousy, which the individual experiences very early in life when coming in contact with the external world. For this, I make use of analysis sessions with an 8-year-old boy and discuss aspects of the characters Othello in Shakespeare's play and Dmitry from Dostoyevsky's The brothers Karamazov. The clinical material, together with the examples extracted from the literature, is presented in order to illustrate and reflect on some nuances of this disturbing feeling. To conclude, I establish a brief association with the Oedipus' complex.
Keywords: jealousy, analysis, Othello, The brothers Karamazov, Oedipus complex
RESUMEN
En este trabajo me centro en un componente del amor, el sentimiento de los celos, que es una experiencia de contacto con el mundo que se forma muy temprano en la vida e historia del individuo. Para ello, utilizo material de análisis de un niño de 8 años, y analizo algunos aspectos de los personajes Otelo, de Shakespeare, y Dimitri de Los hermanos Karamazov, de Dostoievski. El material clínico, así como los ejemplos extraídos de la literatura se presentan con el objetivo de ilustrar y reflexionar sobre algunos matices de este inquietante sentimiento. Para concluir, establezco una breve asociación con el complejo de Edipo.
Palabras-clave: celos, análisis, Otelo, Los hermanos Karamazov, complejo de Edipo
RÉSUMÉ
Dans ce travail, je me concentre sur une composante de l'amour, le sentiment de jalousie, qui est une expérience de contact avec le monde qui se forme très tôt dans la vie et l'histoire de l'individu. À cette fin, j'utilise des scènes de l'analyse d'un garçon de huit ans, Bruno, et je discute quelques aspects des personnages d'Othello, de Shakespeare, et Dimitri des Frères Karamazov, de Dostoïevski. Le matériel clinique ainsi que les exemples extraits de la littérature sont présentés afin d'illustrer et de réfléchir sur certaines nuances de ce sentiment dérangeant. Pour conclure, j'établis une brève association avec le complexe d'Œdipe.
Mots-clés: jalousie, analyse, Othello, Frères Karamazov, complexe d'Œdipe
Neste trabalho pretendo focalizar um componente do amor, o sentimento do ciúme, que é uma experiência de contato com o mundo que se constitui muito cedo na vida e na história do indivíduo. Tanto o material clínico como os exemplos extraídos da literatura serão apresentados com o intuito de ilustrar e refletir sobre algumas das nuanças desse sentimento perturbador.
Bruno
Bruno, 8 anos, relata, com evidente prazer, atrocidades às quais sonha submeter o namorado da mãe: enterrá-lo até o pescoço no meio do deserto do Saara com um copo de água diante de seus olhos; amarrar com uma corda os pés do rival nu e balançá-lo do lado externo do prédio cravado de adagas ao longo da parede; furar-lhe os olhos e aprisioná-lo num quarto cheio de serpentes; esfolá-lo vivo; e outras cenas desse calibre.
Bruno hostiliza abertamente o intruso, xinga-o, chora e esperneia quando o casal sai, fica à janela do apartamento gritando pela mãe quando eles se dirigem para o carro do namorado, reclama e cospe, atira pequenos objetos que passam pela abençoada rede de proteção.
A mãe ocupa um lugar único na vida e na mente de Bruno. Ele não a ataca; ela está acima e preservada de qualquer pensamento ofensivo. É o objeto de seu amor e, como tal, sagrado. O rival que o ameaça, porém, está sujeito a penas comparáveis, ou até piores, às que Dante infligiu aos danados. Há alguns meses, a vinda daquele homem à casa de Bruno interrompeu um idílio de quase três anos entre mãe e filho, inclusive - suprema injúria - despejando o menino da cama materna, onde ele dormia desde a separação dos pais. O lugar do filho passa a ser outro, mudança essa complicada ainda mais por uma mãe ambivalente e titubeante.
Atormentado, o menino só sossega quando a mãe fica ao alcance de seus olhos. Telefona-lhe várias vezes ao dia, sempre querendo saber onde ela está e o que faz. Ela é quem fornece essa informação, mas ele mesmo conta-me o quanto "fica na cola" dela, como diz. Entretanto, quando estão a sós, é "um doce de menino", diz a mãe. Ela informa que nesses momentos ele muda completamente, "parece outra criança". Era assim também antes do namoro. A mãe se apresenta perplexa com as reações do filho e diz que não entende o que está acontecendo.
O menino sente-se desesperado pelo medo de perder o amor da mãe, como já perdera o do pai. Este era uma pessoa ausente e pouco confiável em suas promessas. Constituiu outra família e morava em outro estado; sua participação limitava-se ao provimento de boas condições materiais para Bruno e sua mãe. Não consegui entrevistá-lo, mas fiquei com a impressão de que ele pagava bem para não ser amolado com solicitações de outra ordem.
Mais à frente, Bruno volta suas baterias contra mim. Muitas vezes fica possesso quando vê um paciente do horário anterior ao seu saindo da minha sala, em especial se for do sexo masculino, mas não só. Entra batendo a porta, atira-se no chão, espalha seu corpo pela sala. Raramente chegou a atirar objetos em mim, ato esse que enfrentei com firmeza, fazendo-o ver os limites para a análise continuar; trata, porém, o material de sua caixa com violência. Sente-se acossado por fantasias de encontros sexuais que eu teria com outros analisandos. Seus ataques verbais são diretos: "O que aquela besta estava fazendo aqui?"; "Vou enfiar uma porrada na cara desse cara"; "Você atrasou hoje. Ficou mais tempo com ele fazendo o quê?"; "Vocês estavam se agarrando, é?". Curiosamente, com certa frequência tais explosões viram fumaça em poucos minutos; outras vezes, elas se prolongam por um bom tempo da sessão.
Algumas vezes consegui dizer-lhe algo relacionado à dor e ao ódio pelo sentimento de exclusão que sofre; às vezes ele se acalma, em outras a raiva recrudesce. O tom mudou depois que pude vê-lo como um menino muito ciumento e possessivo, sim, mas acima de tudo como uma criança desesperada para ser percebida e acalmada em relação a seus medos, pois sozinha não conseguia. A sessão na qual pude dizer-lhe isso foi a primeira em que Bruno chorou de modo muito sentido e comovente, abrindo caminho para expressar dor e tristeza pela infância interferida pelos desencontros e dificuldades dos pais, somados a suas carências íntimas. Isso levou tempo, porém, e aconteceu em um momento mais adiante da sua análise, com muitas idas e vindas. Foi um trabalho repleto de nuanças e conflitos (como em geral costumam ser as análises), do qual extraio aqui este pequeno recorte, a dor provocada pelo sentimento do ciúme.
Há exemplos na literatura que permitem pensar esse sentimento, muito mais complexo do que parece sua primeira descrição.
Otelo
Um dos mais notórios personagens literários considerados ciumentos é o Mouro de Veneza, o Otelo, de Shakespeare. Shakespeare desenha o personagem de tal modo que se pode extrair da peça uma descrição clara de um caráter. Otelo é general. Ele é capaz de planejar e tomar decisões, capaz de avaliar os perigos na guerra e de encaminhar ações adequadas para enfrentá-los; organiza e realiza estratégias que o conduzem à vitória, qualidades essas importantes para liderar em campo de batalha. Ele tem sucesso, torna-se um valorizado comandante de soldados e inspira segurança à cidade. Os governantes apelam para ele quando a cidade precisa de proteção. Além disso, Otelo conquista uma mulher desejável, casa-se com ela, sente-se orgulhoso e honrado por tê-la conquistado. Seu sentimento é o de um homem feliz no casamento, amado e amando, reconhecido pelos pares e pelo povo como alguém de valor, general hábil e valente. Sua mulher é sua maior prenda, fiel e à espera; ele não tem motivos para desconfiar dela. Otelo parte para as guerras, certo da mútua confiança entre ele e Desdêmona, sua esposa.
Otelo tem qualidades que correspondem àquelas encontradas na vida animal em geral. Qualquer animal na montanha, floresta ou savana, necessita da capacidade de avaliar o ambiente, cheirar os perigos, observar, perceber e agir, caso contrário torna-se vítima de um predador, ou perde a caça que o alimenta. Da mesma forma, conquista uma fêmea sobressaindo-se diante de seus adversários, muitas vezes em lutas de morte. Tais competências, óbvias até, são necessárias à sobrevivência e valorizadas pelo grupo, uma vez que seu uso em certas circunstâncias proporciona benefícios para todos. A par disso, o animal humano pode desenvolver excelentes condições intelectuais e tornar-se um cientista ou pesquisador de destaque, ou um empresário bem-sucedido, ocupar cargos importantes, conquistas essas que são bem-vistas e apreciadas pela comunidade humana, que delas também se beneficia.
Quando se trata, porém, da vida afetivo-emocional, tudo muda de figura. O campo mental é muito mais escorregadio. As condições intelectuais e habilidades adaptativas nem sempre encontram equivalência na organização das emoções, desejos, carências, sentimentos, autoconfiança, autoestima, anseios afetivos de toda ordem. Dependendo das condições emocionais do indivíduo, podem-se estimular fantasias e interpretações imaginativas que alteram toda sua relação com seu meio.
Otelo será espicaçado por Iago, seu rival e inimigo oculto, que o admira e odeia atrozmente. Iago consegue influenciar o espírito do Mouro de modo a conduzir a trama a um desfecho fatal do qual não escapará sequer aquele que destila o veneno. São a posição de Otelo e sua própria pessoa os alvos do ódio e da inveja de Iago. Como subalterno, a Iago cabe aceitar as determinações do comandante, mas, dotado de um espírito ressentido, inconformista e ambicioso, está disposto a tudo para arruinar Otelo. (Não incluirei aqui o papel de Brabâncio, pai de Desdêmona, que influencia o rumo da trama. Ou o de Emília, sua criada, que tem igual importância.)
Iago é um personagem admiravelmente bem construído, almejado por grandes atores. Persegue seu objetivo com pertinácia. Planeja, arquiteta, sabe que joga tudo: "ou venço ou será minha ruína", mas não esmorece. Inocula um pensamento envenenado no espírito de Otelo e assiste a sua perda sem piedade. Ataca pelos flancos: lança em seu espírito a dúvida a respeito da fidelidade de Desdêmona. Da dúvida nasce o ciúme, um de seus inúmeros filhos. A partir do ponto em que a semente germina, Otelo encaminha-se sem remissão para o desastre. Ele não questiona. Algo dentro dele acorda e o aguilhoa de tal modo que ele se reduz àquele ponto. Seus pensamentos e ações concentram-se no que, para ele, é absolutamente intolerável, ser traído pela mulher amada.
É notável a facilidade com que aquele general acredita nas insinuações de Iago. Este o tange, como ele mesmo diz, com seu poder de persuasão, "como se conduz um burro pelo nariz". Otelo tão somente reage de acordo com o que Iago induz em seu espírito. Deixa-se levar como uma criança ingênua ou inocente, confiante e sem resistências. E todas aquelas qualidades que fizeram dele uma figura proeminente em Veneza? Ficaram inutilizadas? A certo momento diz a Iago: "Deves ser honesto...", talvez um vislumbre da armadilha em que estava preso. No entanto, ele se deixa tanger pelo traidor até o final: mata Desdêmona. Como bem lembrado por Lings (2004), ele mesmo declara no fim que não era afeito ao ciúme, mas que quando foi colocado no caminho, perdeu-se. Talvez esse seja o momento mais trágico da peça, aquele em que Otelo percebe a si mesmo e se reconhece. E, assim que descobre o enorme equívoco que cometeu, suicida-se. Ciúme? Credulidade? Ambos e muito mais? Sentimentos nunca são puros, mas complexos, mesclados, mesmo que um ou outro predomine.
Há uma página em Os irmãos Karamázov, grandioso romance de Dostoiévski, que vale a pena reproduzir:
Ciúme. "Otelo não é ciumento, é crédulo", observou Púchkin2, e só essa observação já é uma prova da profundidade incomum do nosso grande poeta. Otelo estava simplesmente com a alma em frangalhos e com toda sua visão de mundo turvada porque "morrera seu ideal". Mas Otelo não ficaria se escondendo, espionando, com olhares furtivos, ele é crédulo. Ao contrário, precisava ser açulado, incitado, atiçado com esforços extraordinários, para que só assim se apercebesse da traição. Não é assim o verdadeiro ciumento. É até impossível imaginar toda a desonra e decadência moral a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem quaisquer remorsos. E note-se que nem todos são propriamente almas torpes e sórdidas. Ao contrário, de coração elevado, de amor puro, cheios de abnegação, podem ao mesmo tempo esconder-se debaixo de mesas, subornar diaristas torpes, e acomodar-se à mais indecente sordidez da espionagem e da escuta atrás das portas. Otelo não poderia se conformar com a traição por nada neste mundo - deixar de perdoar não deixaria, mas se conformar, não - embora fosse de alma pacata e pura como a alma de uma criança. Não é o mesmo que acontece com o verdadeiro ciumento: é difícil imaginar a que esse ou aquele ciumento pode acomodar-se e conformar-se e o que pode perdoar! Os ciumentos são os primeiros a perdoar, e isso todas as mulheres sabem. O ciumento pode e é capaz de perdoar depressa demais (claro, após uma terrível cena inicial), por exemplo, uma traição já quase provada, os abraços e beijos já presenciados por ele mesmo, se, por exemplo, puder, ao mesmo tempo, asseverar-se, de alguma maneira, de que isso aconteceu "pela última vez", e que a partir desse momento seu rival desaparecerá, irá para o fim do mundo ou ele mesmo a levará para algum lugar em que esse terrível rival não voltará a aparecer. É claro que a conciliação acontecerá apenas por uma hora, porque mesmo que o rival tenha realmente desaparecido, amanhã mesmo ele inventará outro, um novo, e voltará a ter ciúmes. Poder-se-ia pensar: que amor é esse que precisa ser tão vigiado e de que vale um amor que precisa ser tão intensamente vigiado? Pois é isso que nunca irá compreender o verdadeiro ciumento; não obstante, palavra, entre eles aparecem pessoas até de coração elevado. (Dostoiévski, 2008, p. 508)
Dimítri
Dimítri Karamázov, uma das figuras centrais do romance de Dostoiévski, apaixonado por Grúchenhka, não suporta bem a ausência da amada. Quando não a tem ao pé de si, sofre o inferno de pensamentos repletos de temores de que ela o abandone e una-se a outro homem. Mais ainda por ter ela uma história passada, mais ainda por ser ele um homem com pouco a oferecer além de seu amor, mais ainda por estar ele em uma posição duvidosa e, acima de tudo, por ter em seu próprio pai o rival detestado. No entanto, em momento algum Dimítri ofende a jovem, nem sequer em seus pensamentos. Ele a quer como sua mulher e isso é tudo o que importa. Grúchenhka lhe estava destinada, mas o preço a ser pago seria alto, como de fato o foi.
Dostoiévski é grande mestre em compor caracteres inesquecíveis. Seus personagens nos absorvem como num vórtice. Apaixonados, complexos, contraditórios, envolventes, violentos, sensuais, a nenhum se fica indiferente; mesmo um tipo repugnante como Fiódor Karamázov, pai de Dimítri, cheio de desejos pela jovem mulher, resulta ser tão bem composto que se o retém na lembrança.
Dimítri, dotado de uma sensualidade apaixonada, expressão da violência de seu caráter, rende-se ao amor por Grúchenhka sem fazer qualquer exigência. Ele declara seu amor sem pejo. Como acontece com Bruno e sua mãe, basta-lhe a presença dela. Todos os pensamentos terríficos de traição e perda se esfumaçam no mesmo instante em que a tem ao alcance dos olhos e da voz. Seu objeto de amor é perfeitamente reconstituído sem mácula no momento em que a vê e lhe fala. Com ela e por ela, Dimítri se sente um homem melhor, nobre e forte, capaz de tolerar grandes dores. Não pode, contudo, imaginar-se sequer apartado dela - isto é além do suportável e ele preferiria até morrer.
Diferente de Otelo, Dimítri não é estimulado por um Iago. Seus pensamentos são seu motor. Todas as conclusões a que chega a respeito de Grúchenhka, assim como suas ações, decorrem de raciocínios que faz em seu íntimo. Mesmo quando pensa alto diante de outra pessoa, fala só para si mesmo. Arma os fios de uma trama de caráter inteiramente subjetivo. Não percebe o efeito que causa nos outros com quem cruza em sua busca. Seu amor, quase uma obsessão, invade seu íntimo e permeia qualquer percepção do mundo exterior. Ele existe em função da amada que procura.
Continuo a citação de Dostoiévski,
Também é digno de nota que, estando essas mesmas pessoas de corações elevados em algum cubículo, escutando atrás da porta e espionando, ainda que com "seus corações elevados", compreendam claramente toda a desonra em que caíram voluntariamente, mesmo assim nunca sentem remorso, ao menos enquanto se encontram nesse cubículo. Quando Mítia via Grúchenhka, desaparecia-lhe o ciúme, e num instante ele se tornava crédulo e nobre, chegava até a se desprezar por nutrir maus sentimentos. Isso, porém, significava apenas que em seu amor por essa mulher havia algo bem mais elevado do que ele mesmo supunha e não só paixão, não só as "curvas do corpo" de que ele falara a Aliócha. Não obstante, mal Grúchenhka desaparecia, Mítia voltava a suspeitar que ela estivesse praticando todas as baixezas e artimanhas da traição. E aí não sentia nenhum remorso. Pois bem, o ciúme voltava a ferver nele. (Dostoiévski, 2008, pp. 508-509)
No entanto, Dimítri não é voraz nem em seu amor nem em seu ciúme. Na trama trágica em que se envolve, comete um equívoco ao supor que sua amada ia ao encontro do pai dele, Fiódor. Conhece o pai odioso que tem, sabe do desejo dele pela jovem. Sabe também que o pai pode oferecer bens que ele não possui. Acredita que ela irá ao encontro dele e fica de tocaia, mesmo oprimido por um sentimento de horror e indecência por rivalizar com o pai por causa da mulher, como bem destaca Frank (2007). Ele descobre que estava errado: Grúchenhka jamais fora ao encontro de seu pai. Desencadeia-se um desastre do qual Dimítri não se dará conta a não ser quando já estiver preso em sua rede. Ataca um servo da casa, fere-o acidentalmente, foge. Cego por seus temores e certezas, não considera o quanto seu comportamento o compromete. Volta à casa da moça, manchado de um sangue que será sua ruína, sem se dar conta. Tudo o que ele quer é encontrá-la. Interpela uma criada, sem perceber o horror que provoca, e descobre o destino da jovem.
Grúchenhka havia sido seduzida por um oficial polonês quando adolescente. Enquanto Dimítri supõe que ela irá se encontrar com Fiódor, na verdade ela foi ao encontro do oficial por quem acreditava estar apaixonada e a quem reputava uma nobreza que não existia. De qualquer modo, ao saber disso, Dimítri decide renunciar a realizar seu amor por ela, em nome da felicidade que acredita que ela terá com o oficial. Vai ao encontro dos dois, cheio de nobres propósitos, disposto a tudo para que ela seja feliz. A mudança e o encontro amoroso definitivo entre ambos se darão por conta da enorme decepção que a moça sofrerá e de seu reconhecimento e entrega a Dimítri.
Dimítri é capaz de renunciar ao desejo que o abrasa, colocar-se de lado, suportar a exclusão e dispor-se a contemplar e aceitar o relacionamento amoroso de um casal que supõe feliz, sofrendo todo o impacto causado pela intangibilidade do ser amado. Em nenhum momento, ocorreu-lhe sequer a sombra da ideia de matar Grúchenhka. Seu amor por ela o enobrece e engrandece. Não lhe importa tanto sua posse quanto vê-la feliz.
Dostoiévski chega a essas profundidades e a essas sutilezas. Como Shakespeare, ele é um grande leitor da alma humana - que o psicanalista se presume competente para investigar e conhecer, temerária tarefa essa.
Confluências e paralelos
Há muitas variações de expressões de ciúme. Suas múltiplas facetas se expressam nas também múltiplas reações que estão ligadas às características de personalidade de quem o experimenta. Conforme a citação de Dostoiévski, para Púchkin o verdadeiro ciumento é capaz de destruir aquele que ameaça a posse do ser amado, mas não ataca a este último. A ideia de perder o ser amado é acompanhada do temor de não sobreviver. Essa é uma visão interessante, que o drama de Dimítri ilustra bem. Certo de que sua amada não o quer, Dimítri planeja o próprio suicídio, do qual desiste ao receber a declaração de amor de Grúchenhka. Por outro lado, se a relação é de forte dependência, a destruição do ser de quem se depende resulta em autodestruição, como em Otelo: logo após matar Desdêmona e de seu grande erro ser desvelado, ele se mata. Em contrapartida, a preservação de si mesmo depende de afastar do caminho tudo e todos que interferem na relação com o ser amado, daí o desvio do ódio para o corpo estranho, para o rival invasor. Em Bruno esse movimento é bem nítido. O que talvez o ciumento não perceba é o quanto revela de si mesmo em suas atitudes e reações, sejam elas quais forem.
Shakespeare concentra e desenvolve nitidamente a trama de Otelo e Iago, é ela o fio condutor do drama. O ciúme de Otelo decorre da confiança ingênua que deposita em Iago, ele fica completamente cego. O ciúme parece ser um subproduto de sua credulidade e confiança. Sua incapacidade de perceber a inveja e o ódio latentes no comportamento e nas palavras de Iago é notável. Não deixa de admirar tal ausência de malícia e discernimento em um general com habilidade estratégica suficiente para comandar um exército e vencer batalhas. Otelo é uma figura a ser lastimada mais do que admirada. Seu problema não está realmente relacionado com amor ou com o amor de Desdêmona. Seu drama maior é ser traído em sua confiança e acreditar plenamente em Iago. A enormidade de seu desastre e as consequências de sua credulidade conferem-lhe destaque, mas sua grandeza fica obscurecida pela ausência de discernimento e de capacidade crítica. Ele morre sem qualquer reparação.
Dostoiévski não explora a credulidade em Dimítri. A situação é outra, o personagem é de complexidade diferente da de Otelo e ele está envolvido em situações muito mais intrincadas. Dimítri é todo paixão, impulsividade, ele é generoso, por vezes cruel, mas ainda assim, uma grande alma. Ele não cai na armadilha de outrem, mas naquela que ele mesmo arma, sem se dar conta. Age tendo em mente tão somente o encontro com sua amada, não percebendo a sucessão implacável de ações secundárias passíveis de interpretações equivocadas, que o levará ao tribunal e à condenação, erroneamente acusado de matar o próprio pai. Ele será salvo no fim, mas em meio a grande sofrimento.
E Bruno está na vida real, incerta, imprevisível e fora de controle todo o tempo. Nele, a sensação de ausência de qualquer garantia é presença contínua e incontornável. Bruno não é produto da mente de um gênio da escrita, mas um ser com vida própria. Suas reações estão além das palavras escritas. Ele é todo mobilidade, não se repete integralmente, vive um contínuo esforço para sair da dor que o atormenta, sofre pela impotência em influenciar os acontecimentos de modo decisivo, percebe-se pequeno e cheio de anseios com os quais convive diariamente, sem saciá-los. Nele, vemos a intensa e dolorosa resistência em aceitar a realidade que se impõe e enquadra seu romance com a mãe. Ele reage de acordo com seus recursos de criança de 8 anos, ou seja, restrito na prática e sem limites na imaginação. Menino de amplos recursos mentais, consegue dar vazão de modo muito claro a seus sentimentos e emoções, o que virá a contribuir para a elaboração da dor e da perda e para o usufruto dos ganhos. A intrusão de um terceiro na vida de Bruno mobilizou nele reações opostas, dependendo da situação: de um lado, fica transtornado com a visão e o reconhecimento da importância do namorado da mãe; de outro lado, é uma criança dócil e amável quando está a sós com ela. O ciúme fica adormecido na ausência do rival odiado. Isso virá a se repetir na relação comigo, ainda que com mais nuanças.
Ao que parece, Bruno se aproxima mais de Mítia do que do Mouro, que é manipulável e sugestionável. Diferente de Bruno e de Dimítri, Otelo não se reconcilia com o ser amado quando diante dele. A presença de Desdêmona não tem o efeito de levar Otelo a recuperar o amor e a confiança; prevalecem o ódio, o ressentimento e a desconfiança, que conduz o drama a seu desfecho devastador. Talvez, representação de carência de uma condição mental que possibilitaria uma investigação da realidade com recursos próprios, em vez de agir dominado por emoções, sem pensar.
Entretanto, por mais que os personagens literários nos toquem, Bruno é mais comovente, pois vulnerável e com frequência indefeso diante da realidade em contínua transformação.
O ciúme vem associado ao desejo e à fantasia de posse do objeto. O ser amado pertence ao amante e este último é cioso daquilo que considera seu. A realidade impõe limites a tal anseio. Quando ela não pode ser negada, sobrevêm o ódio e a vingança, cuja força nunca deveria ser minimizada. O conto "Venha ver o pôr do sol", de Lygia Fagundes Telles (2004), também ilustra essa dinâmica. Nele, o amante rejeitado conduz a mulher até um final aterrorizante, abandonando-a viva e trancada dentro de uma cripta em um remoto cemitério em ruínas. No horror da masmorra, ela poderá vislumbrar o prometido pôr do sol por uma estreita fresta da parede. Assim como em Otelo, nesse conto é o próprio ser amado que é destruído.
Édipo e complexo de Édipo
Freud inclui o ciúme como um dos componentes do complexo de Édipo, desde o início. É, portanto, um sentimento presente em uma configuração de relacionamento triangular. A criança se coloca na relação com os pais como sendo a parte ameaçada de sofrer pelo amor não correspondido. O desejo de posse e o sentimento ciumento para com a parte do casal que é seu alvo amoroso, assim como a hostilidade para com a outra parte, em geral podem ser facilmente identificados. A criança define tão bem seu objeto de amor quanto o alvo de sua rivalidade. Ela costuma ser expressiva e reage com atos e palavras que a revelam. Klein (1945/1996) aceita a descrição de Freud, mas ela vai para a pré-história dessa história. Ela destaca o ciúme como emergindo nos insights da posição depressiva, isto é, a partir da percepção de objeto total já nos primeiros meses de vida. A criança percebe a mãe como um ser separado dela, um ser com vida própria e autônoma em relação a seus desejos e, em consequência, capaz de estabelecer relações afetivas com outras pessoas que não ela. A mãe não é mais percebida como uma projeção ou uma criação mental sua, mas como alguém que existe por si mesma. Tal mudança, portentosa, estende-se para o mundo, visto agora como o mundo do não eu. A criança mesma sofre a angústia de ficar excluída dessas relações e aí emergem o ciúme e o desejo de posse. As consequências psicológicas, as reações de defesa e os recursos usados para evadir-se da dor são variados e dependem das condições de cada um.
É da psicanálise, portanto, mas também do senso comum, o reconhecimento de que o ciúme se constitui em um relacionamento triangular. Um par pode estar em razoável harmonia até que alguém mais se torna significativo e de algum modo participante no relacionamento de forma diferente de sua anterior posição. Isto quer dizer que a presença objetiva do terceiro, ainda que de longa data, passa a ser motivo de conflitos a partir do momento em que adquire um significado novo para os envolvidos. Deixa de ser apenas uma figura objetivamente percebida, mas fica investida de significados subjetivos. O terceiro - que é qualquer das três pontas do triângulo - passa a ser visto como tendo desejos, anseios, como quem reivindica amor e cuidados. Com isso, torna-se uma interferência que quebra ou pelo menos modifica o laço em que o par estava envolvido. Instala-se o medo de perder o amor do ser amado, de quem depende o equilíbrio interno, o sentido de valor da própria existência, a constituição de uma boa autoestima.
Essa dinâmica costuma ser pensada pelo modelo da relação mãe-bebê, que virá a constituir um triângulo com a pessoa do pai. Ainda que se pense acima de tudo no bebê como aquele que descobre e vive o temor de exclusão, é evidente, como assinalei anteriormente, que qualquer um dos três é o terceiro. "Bebê" é muito mais um estado mental do que a pessoa mesma de uma criança. Por isso mesmo, modelo de uma configuração de relacionamento que se estende vida afora. Não é incomum encontrar casamentos abalados pelo nascimento de um filho - e isso por dificuldades dos pais.
Complexo de Édipo está muito além da descrição mais imediata de desejo de posse do objeto amado e exclusão do rival, ou dos sentimentos ambivalentes em relação aos pais. Implica um longo processo de discriminação e conhecimento, de ampliação de percepção e consciência de si. Freud extrai e concebe o modelo desse complexo da tradição trágica grega. Sófocles (1961) fez uma exposição do Édipo até hoje insuperável e os psicanalistas ainda não esgotaram as possibilidades de exame da tragédia Édipo rei. Entretanto, o ciúme tem parco lugar, se é que tem algum, nessas tragédias. Sófocles não se ocupa desse sentimento. Nem sequer ele é considerado em referências mais antigas da narrativa do drama do personagem, como na Odisseia de Homero, por exemplo. Sentimentos de posse, medo da perda do amor do objeto amado, desejos de exclusividade, rivalidade com o terceiro, dores da exclusão, ameaça de ser abandonado - isso e outros aspectos mais são componentes do drama edípico descritos pelos psicanalistas a partir da experiência clínica. Emoções ou sentimentos que possam ser descritos com esses nomes não se encontram nas tragédias de Sófocles. Nelas está apenas o cerne do complexo, ou seja, os equívocos que conduzem a deslocamentos para lugares que não são aqueles que efetivamente caberiam ao indivíduo. O personagem Édipo encarna o homem que ocupa o lugar de outrem, por intermédio de suas ações e sem ter consciência disso. O âmago do trágico está em descobrir os desvios de caminho e suas consequências funestas, que impõem a necessidade de responsabilizar-se pelos próprios atos. A dor edípica decorre do desvelar da cegueira, decorre da consciência e do reconhecimento do rumo dado à própria vida. A tragédia grega inspira, mas é apenas no complexo central como descrito pela psicanálise que se nomeiam as emoções contraditórias que o definem como tal. Ou seja, ciúme como um componente do complexo de Édipo, assim como o complexo in toto, são acréscimos feitos pela psicanálise, a partir de insights de psicanalistas.
Para encerrar
Ciúme é um componente do amor. Falar de ciúme é sempre falar de amor - ainda que esse aspecto tenha ficado excluído diretamente deste texto. Relacionamentos amorosos são complexos, contraditórios, alvo de investigação psicanalítica, sim, mas, muito antes da psicanálise, cantados por poetas de calibre variado. O que se busca e o que se encontra na relação de amor? Ternura, prazer, respeito, posse, desejo, sexo, exclusividade, concordância, fantasias de plenitude, medo de abandono, dor do menosprezo, incerteza, parceria, afeição, companhia, compreensão, amizade, tantas outras necessidades ou anseios - a que de fato respondem? O enigma do que é o amor permanece. Responde-se de inúmeras formas e, não duvido, os melhores poemas têm como centro esse sentimento no qual o ciúme está incluído em diversas gradações, mas sempre presente.
Há um belo comentário sobre O banquete, diálogo de Platão a respeito do amor, que transcrevo a seguir:
A saudade dos amantes leva-os a não quererem separar-se um do outro, nem sequer por breve tempo. Mas os seres humanos que passam a vida juntos desta maneira não nos podem dizer o que realmente querem um do outro. Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma coisa diferente o que a alma de cada um quer, uma coisa que ela não pode exprimir e que só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma de sua vida. A plenitude exterior que se restaura por meio da união das duas metades físicas que se completam uma à outra não passa do reflexo grotesco daquela inefável harmonia e plenitude espiritual que o poeta nos desvenda aqui como a verdadeira meta do eros. (Jaeger, 1986, p. 504)
Referências
Dostoiévski, F. (2008). Os irmãos Karamázov (P. Bezerra, Trad., 2 Vols.). Editora 34. [ Links ]
Frank, J. (2007). Dostoiévski: o manto do profeta (1871-1881) (G. G. Souza, Trad., Vol. 5). Edusp. [ Links ]
Jaeger, W. (1986). Paideia: a formação do homem grego (A. M. Parreira, Trad.). Martins Fontes. [ Links ]
Klein, M. (1996). O complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos: 1921-1945 (A. Cardoso, Trad., pp. 413-464). Imago. (Trabalho original publicado em 1945) [ Links ]
Lings, M. (2004). A arte sagrada de Shakespeare: o mistério do homem e da obra (M. S. Azevedo, Trad.). Polar. [ Links ]
Milton, J. (2015). Paraíso perdido (D. Jonas, Trad.). Editora 34. [ Links ]
Shakespeare, W. (1995). Otelo, o Mouro de Veneza. In W. Shakespeare, Obra completa (O. Mendes, Trad., Vol. 1, pp. 703-787). Nova Aguilar. [ Links ]
Sófocles. (1961). Édipo rei. In Aristófanes, Ésquilo, Eurípides & Sófocles, Teatro grego (J. Bruna, Trad., pp. 43-90). Cultrix. [ Links ]
Telles, L. F. (2004). Venha ver o pôr do sol. In L. F. Telles, Meus contos preferidos (pp. 26-35). Rocco. [ Links ]
Recebido em: 4/11/2020
Aceito em: 13/12/2020
1 Título extraído de J. Milton, Paradise lost: "Jealousy, the injured lover's hell" (Book 5, v. 450, 1674/2015).
2 Nessa passagem, Dostoiévski comenta o artigo de um estudioso de literatura russa, G. Uspiênski, sobre Púchkin. Esse artigo, por sua vez, refere-se a ensaios de Púchkin sobre peças de Shakespeare, de quem o poeta russo era fã. Tais ensaios só existem em russo. Minha gratidão ao Dr. Homero Freitas de Andrade, professor de Língua e Literatura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (fflch-usp), pelo esclarecimento.