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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dic. 2020

 

TEMAS LIVRES

 

Sonho e corpo no manejo clínico de casos difíceis: leitura winnicottiana

 

Dream and body in the clinical management of difficult cases: winnicottian reading

 

Sueño y cuerpo en el manejo clínico de casos difíciles: lectura winnicottiana

 

Rêve et corps dans la prise en charge clinique des cas difficiles: une lecture winnicottienne

 

 

Maria Regina CoccoI; Rosa Maria TostaII

IPsicanalista com especialização em crianças e adolescentes pelo Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo (CAISM), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, filiada à Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. São Paulo / reginacocco@yahoo.com.br
IIDoutora em Psicologia Clínica, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, membro do Espaço Potencial Winnicott (EPW) do Instituto Sedes Sapientiae-sp, membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi e do Laboratório de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (IPUSP, PUC-SP, LIPSIC). São Paulo / rosamariarmt@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva expor a compreensão teórico-clínica da elaboração imaginativa das funções corporais na formação do corpo e do sonho. Sua contribuição traz luzes sobre o manejo clínico no atendimento a pacientes cujas dificuldades e organizações defensivas têm características próprias de quadros clínicos tais como psicose, falso si-mesmo, borderline, entre outros. A ilustração traz fragmentos de dois casos clínicos e discute-os em sua interseção com o trabalho psíquico da elaboração imaginativa. No primeiro caso, revela-se um corpo agônico numa cisão do tipo esquizofrênico; no segundo, há uma vivência de falso si-mesmo (self), com manifestações de transtornos psicossomáticos, às quais subjaz a agonia de despedaçamento. Nesse tipo de situações clínicas, tornam-se necessários o manejo clínico da regressão à dependência e o uso analítico do sonho regressivo na constituição da unidade psicossomática e na retomada do amadurecimento.

Palavras-chave: sonho, corpo, clínica psicanalítica, manejo, Winnicott


ABSTRACT

This work aims to expose the theoretical-clinical understanding of the imaginative elaboration of bodily functions in the formation of the body and the dream. His contribution sheds light on clinical management in the care of patients whose difficulties and defensive organizations have their own characteristics of clinical conditions, such as psychosis, false self, borderline, among others. The illustration contains fragments of two clinical cases and discusses them at their intersection with the psychic work of imaginative elaboration. In the first case, an agonized body is revealed in a schizophrenic split; in the second, there is an experience of false self (self), with manifestations of psychosomatic disorders, to which the shattering agony underlies. In these types of clinical situations, clinical management of regression to dependence and the analytical use of regressive dreams are necessary in the constitution of the psychosomatic unit and in the resumption of maturation.

Keywords: dream, body, psychoanalytic clinic, management, Winnicott


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo exponer la comprensión teórico-clínica de la elaboración imaginativa de funciones corporales en la formación del cuerpo y el sueño. Su aporte arroja luz sobre el manejo clínico en el cuidado de pacientes cuyas dificultades y organizaciones defensivas tienen características propias de las condiciones clínicas, como psicosis, falso self, borderline, entre otras. La ilustración contiene fragmentos de dos casos clínicos y los discute en su intersección con el trabajo psíquico de elaboración imaginativa. En el primer caso, un cuerpo agonizante se revela en una escisión esquizofrénica; en el segundo, hay una experiencia de falso yo (yo), con manifestaciones de trastornos psicosomáticos, a los que subyace la devastadora agonía. En este tipo de situaciones clínicas, el manejo clínico de la regresión a la dependencia y el uso analítico de los sueños regresivos son necesarios en la constitución de la unidad psicosomática y en la reanudación de la maduración.

Palabras clave: sueño, cuerpo, clínica psicoanalítica, gestión, Winnicott


RÉSUMÉ

Ce travail vise à exposer la compréhension théorico-clinique de l'élaboration imaginative des fonctions corporelles dans la formation du corps et du rêve. Sa contribution met en lumière la gestion clinique dans la prise en charge des patients dont les difficultés et les organisations défensives ont leurs propres caractéristiques de conditions cliniques, telles que la psychose, le faux soi, le borderline, entre autres. L'illustration contient des fragments de deux cas cliniques et les discute à leur intersection avec le travail psychique d'élaboration imaginative. Dans le premier cas, un corps agonisé se révèle dans une scission schizophrénique; dans le second, il y a une expérience de faux soi (soi), avec des manifestations de troubles psychosomatiques, à laquelle sous-tend l'agonie fracassante. Dans ces types de situations cliniques, la prise en charge clinique de la régression vers la dépendance et l'utilisation analytique des rêves régressifs est nécessaire dans la constitution de l'unité psychosomatique et dans la reprise de la maturation.

Mots-clés: rêve, corps, clinique psychanalytique, management, Winnicott


 

 

Donald Woods Winnicott, tendo partido da teoria de Sigmund Freud e Melanie Klein, introduziu um elemento diferenciador fundamental na psicanálise que foi o papel do ambiente para o desenvolvimento psíquico do ser humano. Com sua teoria, fundamentada no amadurecimento humano, propõe que o bebê, ao nascer, ainda não dispõe dos sentidos de tempo e espaço, não sabe de si, de seu corpo, nem do mundo; todos esses sentidos serão ou não construídos no processo de amadurecimento. Mais ainda, presume que a força egoica do bebê está estritamente relacionada à função ambiental.

Winnicott (1986/1999b) propõe a existência de uma criatividade primária no ser humano, cuja "origem é a tendência geneticamente determinada do indivíduo para estar e permanecer vivo e para se relacionar com os objetos que lhe surgem no caminho durante os momentos de obter algo" (p. 26). A realização dessa tendência depende, todavia, necessariamente da ambiência materna. Tosta (2019) ressalta que vários estudiosos da teoria winnicottiana referem a frase de Winnicott quando este afirmou que "o bebê não existe", um turning point do autor, que "estaria querendo indicar que o bebê não existe por si só, sem a presença de um ser humano devotado a ele, frequentemente a mãe. E a mãe, por sua vez, não existe sem o bebê" (p. 289).

A base da saúde encontra-se na articulação entre a criatividade primária individual e uma ambiência materna suficientemente boa. Esta relação é sintetizada no trabalho de elaboração imaginativa que o bebê (indivíduo) realiza nas primeiras e principais tarefas do desenvolvimento, quais sejam, a integração no tempo e no espaço, o alojamento da psique no corpo, o início do contato com os objetos e a constituição do si-mesmo primário (self).

A contribuição do presente trabalho prende-se também à compreensão da psicopatologia oriunda do fracasso da ambiência materna no favorecimento dessas primeiras tarefas e de suas consequências na constituição do corpo, da personalidade e do sonho, tal como discutiremos ao longo do texto. Com isso, traz luzes sobre o manejo clínico no atendimento a pacientes cujas dificuldades têm sua origem nas fases iniciais da constituição da personalidade e cujas organizações defensivas apresentam características próprias de quadros abarcados na área da cisão e da dissociação, tais como psicose, falso si-mesmo, borderline, entre outros.

 

Elaboração imaginativa das funções corporais

Nos primórdios, diz Winnicott (1958/2000): "a palavra psique ... significa elaboração imaginária (imaginativa) dos elementos, sentimentos e funções somáticas, ou seja, da vitalidade física" (p. 333). Assim, um dos sentidos que ele dá ao termo é o da própria elaboração imaginativa. Em texto posterior, o autor conceitua a psique como um resultado da elaboração imaginativa: "o corpo é essencial para a psique, que depende do funcionamento cerebral e que surge como uma organização da elaboração imaginativa do funcionamento corporal" (Winnicott, 1988/1990, p. 144).

Além das funções somáticas, a elaboração imaginativa ocupa-se com os relacionamentos tanto dentro do corpo quanto com ele e com os relacionamentos mantidos com o mundo externo. Para o bebê, isso significa, segundo Laurentiis (2016), de um lado, "descobrir seu corpo, criar suas partes, suas funções, atribuindo sentido imaginativo a tudo que diz respeito ao soma" (p. 17) e, de outro, "fazer gestos espontâneos, tocar, criar o mundo, relacionando-se ilusoriamente com ele, atribuindo sentido também ao ambiente" (p. 17). Por meio do gesto excitado e espontâneo do bebê, emerge a expectativa de encontrar algo em algum lugar, mas ele ainda não sabe o que esperar. Ao fazer um movimento, o bebê toca o ambiente, descobre-o. Ao encontrar o objeto, sem ainda saber que ele estava lá para ser encontrado, o bebê vive a onipotência, a ilusão de tê-lo criado, o objeto se torna subjetivo e o gesto pleno de sentido.

Ao encontrar-se com o objeto subjetivo, o bebê faz uma identificação primária com o objeto: ele torna-se o objeto, ele é o seio. Como o termo "seio", na proposta winnicottiana, inclui toda a técnica da maternagem, isto significa que o bebê torna-se idêntico aos cuidados que ele recebe: ele é o cuidado; conforme Dias (2012), "pela repetição regular da experiência, ele irá incorporando esses cuidados ambientais como parte do si-mesmo" (p. 210). A adaptação da mãe assume então a importância qualitativa de que tenha um seio que é de maneira que o bebê também possa ser.

Nesse início, tudo é experienciado no corpo, por meio do corpo, e está sendo personalizado pela elaboração imaginativa. O bebê conta com os objetos, mas o uso que faz deles ainda se acha unido ao funcionamento corporal. Winnicott (1989/1994a) diz: "em verdade, não se pode imaginar que um objeto possa ter significado para um bebê, a menos que assim se ache unido. Esta é outra maneira de enunciar que o ego se baseia em um ego corporal" (p. 46). A importância da ambiência materna está em deixar um objeto real exatamente onde e quando o bebê está alucinando um objeto, "de maneira que, na realidade, a criança fica com a ilusão de que o mundo pode ser criado e de que o que é criado é o mundo" (Winnicott, 1989/1994a, p. 44).

A elaboração imaginativa seguirá o padrão da função fisiológica dominante nas fases do desenvolvimento. Por exemplo, na elaboração imaginativa da função alimentar, garantida pelo provisionamento do cuidado materno, conforme Naffah Neto:

na medida em que o bebê ainda vive disperso no tempo e no espaço, tendo uma identidade totalmente evanescente, que se desloca por várias formas, ele será, em diferentes momentos: a pura urgência instintiva, o seio que abocanha e o leite que engole. Essa identificação primária com o objeto possibilitará, como parte do processo da elaboração imaginativa, que o bebê possa vir a incorporar as suas propriedades; assim uma mãe suportiva servirá de padrão para que, mais adiante, isso venha a se tornar uma função psíquica e que a criança seja capaz, ela própria, de dar continência à complexidade do seu universo emocional. (2011, p. 45)

As funções psíquicas de incorporação, evacuação, introjeção e projeção emergem posteriormente, também apoiadas em funções fisiológicas, tendo como modelos a ingestão e a defecação. Winnicott (1988/1990) distingue incorporação de introjeção, enquanto a incorporação de objetos é um processo espontâneo e uma expressão natural do crescimento, a introjeção de bons objetos implica uma idealização mágica de objetos internalizados. Neste sentido, Naffah Neto explicita que a evacuação e a projeção seguem igualmente tal processo. Na evacuação, o indivíduo evacua os restos daquilo que foi incorporado e que não têm utilidade psíquica para ele, enquanto na projeção, em função de uma dor psíquica insuportável produzida por objetos internos persecutórios, o indivíduo projeta esses objetos para magicamente livrar-se deles.

A elaboração imaginativa seguirá o padrão da função fisiológica dominante nas fases do desenvolvimento. O bebê chega à fase da transicionalidade, raiz do simbolismo. Os fenômenos transicionais dão origem a uma área intermediária, a chamada área do viver. Em se tratando da primeiríssima infância, o que se torna real é ainda a alucinação. Winnicott entende que aqui se

dá início à capacidade que o bebê tem de utilizar símbolos ... o objeto transicional é o primeiro símbolo. Aqui o símbolo é, ao mesmo tempo, tanto a alucinação quanto uma parte objetivamente percebida da realidade externa (1989/1994a, p. 44)

Na chamada fase do uso do objeto, em que este é constantemente atacado, será pela sobrevivência dele que o bebê pode chegar ao reconhecimento de que existem fenômenos que se acham fora de seu próprio controle. Gradualmente, a realidade externa pode ser criada, a criança chega à ideia de uma membrana limitadora que lhe permite conceber a oposição entre o mundo externo e o interno, entre o eu e o não eu, cujos conteúdos são, em parte, precisamente as experiências instintuais imaginativamente elaboradas. Agora povoado pelas fantasias, o mundo interno exige uma forma mais complexa de elaboração imaginativa. A possibilidade de recalcar essas fantasias, eliminando-as da consciência, instaura o inconsciente recalcado.

À medida que se constitui uma organização pessoal da realidade psíquica, a tarefa da elaboração imaginativa se especializa no estabelecimento de inter-relacionamentos baseados em mecanismos de projeção e introjeção, ainda que ligados mais estritamente ao afeto do que ao instinto. No período do complexo edipiano, a elaboração imaginativa atuará na formação da identidade sexual por meio da elaboração da fase fálica (na conquista da genitalidade) e pelo advento das identificações secundárias com o pai, a mãe e outras figuras importantes na educação da criança (Naffah Neto, 2007).

Em caso do fracasso ambiental, instauram-se as mais importantes distorções no curso do desenvolvimento. A teoria winnicottiana relaciona o fracasso ambiental às diversas questões clínicas encontradas nos quadros clínicos da esquizofrenia, psicose, borderline, falso si-mesmo, entre outros.

A elaboração imaginativa acompanhará o indivíduo, no decorrer de sua vida, nas mais diversas formas de mudanças corporais e de experiências relacionais, marcadas pela adolescência, a adultez, a gravidez, a menopausa e andropausa, até a velhice, além de transformações e experiências acidentais que possam acontecer em seu viver. Analogamente, os sonhos poderão expressar essas mesmas mudanças.

 

Elaboração imaginativa e o sonho

O sonho tem suas raízes na elaboração imaginativa das funções corporais. O sonho pode ser pensado como uma função ou um expoente da elaboração imaginativa, pelo qual as experiências do si-mesmo são integradas e historizadas ao longo do amadurecimento e no decorrer da vida do indivíduo. No curso natural do desenvolvimento, o sonho pode ser entendido como uma experiência psicossomática total realizada no tempo e no espaço, iniciada no encontro e na relação com o ambiente, vivenciada na área do brincar e pessoalizada imaginativamente (Cocco, 2017).

Nos sonhos relativos às fases iniciais encontram-se os chamados sonhos regressivos. Na literatura psicanalítica, o aspecto regressivo do sonho está ligado à natureza primitiva da fonte indutora de ansiedade no conteúdo do sonho manifesto. "No sonho regressivo, descrito por Winnicott, a fonte indutora é da ordem da agonia impensável e sua característica principal no manejo é a necessidade da regressão à dependência" (Cocco, 2017, p. 76).

No sonho regressivo é preciso considerar, segundo Naffah Neto (2018), que o inconsciente característico desse paciente não é, de modo algum, o inconsciente recalcado dos neuróticos. Distintamente, não se trata de fantasias recalcadas, mas de marcas corporais sem qualquer conteúdo imagético, dado que o indivíduo não pôde atingir o estado de consciência que pudesse abarcar as memórias primitivas. Essas experiências arcaicas, desprovidas das coordenadas de tempo e de espaço, permanecem como espectros amorfos, testemunhas de que algo extremamente traumático aconteceu e deixou marcas.

Pondé (2018), em seu estudo sobre o medo na obra winnicottiana, assinala que entre os vários desdobramentos ocasionados por eventos traumáticos nas fases de identificação estão o medo da loucura (medo do colapso), da morte, do vazio, da desintegração e da manifestação sindrômica do pânico. Este é um ponto fundamental no uso analítico dos sonhos regressivos, uma vez que eles operam exatamente no acesso e na elaboração desses medos arcaicos, na tentativa de ressignificação e integração das experiências primitivas traumatizantes na história de vida do paciente.

Na clínica há uma grande variedade de situações que poderão ser expressas em sonhos, mas, quando relativas às fases iniciais do desenvolvimento, o norteamento do uso analítico do sonho e do manejo das necessidades e dificuldades do paciente será ditado pelo reconhecimento das principais tarefas da elaboração imaginativa das funções corporais a serviço da integração e constituição do indivíduo, assim como das tarefas que foram interrompidas, das que estão em andamento e da preparação do terreno para as tarefas de fases posteriores.

 

Manejo clínico de sonhos

Como ilustração do manejo clínico do sonho regressivo sobre o corpo, trazemos dois fragmentos clínicos. O primeiro, a seguir, é descrito por Winnicott (1958/2000) no texto Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. Este texto trata dos riscos envolvidos no trauma de nascimento e no manejo da regressão à dependência no tratamento de uma paciente, com 28 anos de idade, que sofria de uma esquizofrenia com traços paranoides.

Dias antes do parto, a paciente havia sofrido intrusões devido a um grave choque sofrido pela mãe e em função do parto que se complicou por uma placenta prévia que não foi descoberta com antecedência. A intrusão vivenciada resultou em um intenso sentimento de insegurança e a intolerável experiência de sofrer o efeito de algo sem ter a mínima ideia de quando ou se este terminará.

Em uma sessão, logo após a leitura que fizera do livro de Otto Rank, que trata do nascimento, a paciente relatou um sonho que, em si próprio, foi uma reação à intrusão dessa leitura. No sonho ela estava sob um monte de cascalho, todo seu corpo estava intensamente sensível. A pela toda queimada, se alguém retirasse o cascalho na tentativa de curá-la, a situação tornar-se-ia insustentável. "Os sentimentos eram comparáveis aos que sentira quando tentara o suicídio. Era o horror de simplesmente ter um corpo e uma mente que não aguenta mais" (Winnicott, 1958/2000, p. 267). Mas alguém apareceu e derramou um óleo sobre o cascalho. O óleo atravessou o cascalho cobrindo sua pele, e ela foi deixada ali por três semanas. Ao final desse período, o cascalho já podia ser removido sem que ela sofresse dor, e sua pele estava quase inteiramente saudável. Ainda havia uma pequena região ferida entre os seus seios, mas a dor era suportável.

Com a observação de que esse sonho tem um grau menor de distorção, pois a paciente é psicótica, Winnicott (1958/2000) assinala que a pessoa que compreendeu e verteu o óleo sobre a paciente foi o analista, indicando-se aí o grau de confiança adquirido no manejo com que o tratamento foi conduzido.

No caso dessa paciente, como vimos, em época imediatamente anterior ao nascimento houve um despertar precoce para a consciência. Nessa situação é preciso compreender, segundo Winnicott (1958/2000), que é "em relação à linha de fronteira entre as fases de reação intolerável que o intelecto começa a funcionar como algo distinto da psique" (p. 274, itálico no original). O intelecto inicia-se, todavia, com um desenvolvimento patológico, desvinculado do corpo e de suas funções, dos sentimentos, impulsos e sensações do ego total. Em proteção à psique, o intelecto passa a colecionar e/ou catalogar as intrusões às quais foi necessário reagir, guardando-as detalhada e sequencialmente até que o continuar a ser seja restabelecido. Para a paciente, não ficou o registro da experiência do nascimento, o que ficou foi apenas o trauma. Segundo Winnicott (1986/1999b), "o bebê foi submetido a um sofrimento mental, e é exatamente este sofrimento mental que o esquizofrênico leva consigo como uma memória e uma ameaça, e que faz do suicídio uma razoável alternativa para a vida" (p. 37).

O conteúdo onírico do sonho expressa a agonia da paciente, subjacente aos efeitos resultantes da falha ambiental: o quadro do estado paranoide, a vulnerabilidade e a inexperiência essencial, contra os quais ela havia tentado defender-se obstinadamente. Já a comunicação onírica clama para que o analista não se apresse em remover o cascalho (as defesas) inadvertidamente. O manejo implicou a sustentação da situação no tempo próprio da paciente.

O segundo exemplo clínico que trazemos consiste em um fragmento da análise de Tereza, 32 anos, casada, profissional da área financeira (dados fictícios), atendida em consultório. A paciente, magra, alta e bem trajada, trazia queixas de dores insuportáveis em seu corpo, que dizia serem causadas por fibromialgia. Quando chegou para análise, já havia dois anos que fazia tratamento medicamentoso e participava de grupo de apoio realizado num hospital público de referência em São Paulo. Seu discurso, embora pontual e objetivo, era por vezes embargado por carga emocional, que se expressava na face avermelhada, nos olhos marejados e na voz trêmula.

Aos poucos, com base nos relatos sobre a relação com sua mãe, foi-se delineando um falso si-mesmo (self) que subsistia à sua dinâmica afetivo-emocional. A relação era marcada por controle e exigências maternas, aos quais se submetia temendo as constantes ameaças de abandono. Esse abandono ganhava contorno nas lembranças da infância a respeito dos medos sentidos diante dos desmaios que sua mãe sofria quando a família frequentava restaurantes ou outros lugares públicos. Na onipotência infantil, os desmaios maternos mobilizavam nela uma angústia desorganizadora, e esta foi associada ao seu constrangimento quando ela mesma desmaiara no altar em seu casamento.

Os dois primeiros anos da análise foram marcados por várias idas de Tereza ao pronto-socorro devido a dores insuportáveis em seu corpo. Nesse período, deixou o atendimento no hospital público e iniciou um tratamento acompanhado por um neurologista, um ortopedista e um fisioterapeuta. Nessa época, a análise também foi marcada pelos relatos de seu constante esforço na manutenção do peso. Aos poucos, Tereza foi detalhando o procedimento diário que fazia com a alimentação. Antes de qualquer ingestão, fosse de líquido ou de alimento sólido, subia na balança e se pesava. Depois que comia ou bebia, mesmo que fosse uma fruta ou um copo de água, pesava-se novamente. Aguardava de 30 a 40 minutos e voltava a se pesar, e caso não tivesse voltado ao peso original fazia uso de diurético ou de um jejum intermitente até que o peso retornasse ao anterior à ingestão do alimento.

A questão do corpo foi assumindo uma posição central nas sessões, graças a relatos das conversas que Tereza mantivera com sua mãe, no decurso da análise, levando-nos a revisitar sua tenra infância. Nessas conversas, ficava claro que sua mãe fora "muito prática e sem melado afetivo", como se autodenominava, nos cuidados para com Tereza ainda bebê. A mãe cumpria fielmente um planejamento e horários que estabelecia para o banho e a amamentação. Em sua praticidade, dizia que não chegou amamentá-la no peito, preferiu secar o leite e introduzir a mamadeira logo no primeiro mês. Para não acostumar a bebê no colo quase não segurava Tereza em seus braços. Na amamentação, deixava a bebê deitada no berço e/ou no carrinho e ajeitava a mamadeira com almofadas para que ficasse na posição adequada para que ela mamasse. A mãe conta-lhe, com certo orgulho, que com 2 meses de vida ela já segurava sozinha a mamadeira.

As falhas ambientais no amadurecimento de Tereza pareciam originar-se já nesses primeiros meses de vida. Sua mãe cuidava do corpo do bebê como se nele não existisse uma pessoinha em desenvolvimento. A falha no atendimento às suas necessidades, devido a rígidos horários externos e outros procedimentos adotados pela mãe, impediu que a paciente pudesse vir a constituir e habitar o próprio corpo. Possivelmente, Tereza precisou amadurecer precocemente e desenvolver um eu que cuidasse de si mesma, para defender-se das intrusões ambientais e das próprias urgências instintuais. As dores insuportáveis pareciam denunciar a falha ambiental já no início do processo de personalização, e, por sua vez, a tendência ao amadurecimento clamava por uma integração psicossomática.

No final do terceiro ano, em sessão, Tereza relata um sonho angustiante que tivera na noite anterior: uma menina pequena estava deitada sobre um lençol, e, sem saber como isso aconteceu, as partes de seu corpo começaram a se desligar. Os braços iam para um lado, a cabeça para outro, o tronco ia para longe, e não conseguia ver para onde tinham ido as pernas. Acordou angustiada e assustada com o pesadelo. Acreditava que ela mesma fosse a menina do sonho. Em suas associações, o sonho dizia de seus medos com a deformação de seu corpo, motivo pelo qual não queria engravidar, pois temia que seu corpo não voltasse ao normal. Da mesma forma, associou o sonho ao medo que a fazia controlar excessivamente seu peso; o medo não era com o peso em si, mas com a possibilidade da deformação do corpo.

Em termos winnicottianos, possivelmente a deformação corporal reflete uma deformação do si-mesmo (self). Ao estudar o processo de personalização em pacientes com artrite reumatoide, Tosta afirma que "deformar-se implica perder a forma humana, e essa deformidade poderia ser vista em seu duplo aspecto de enrijecimento protetor e de expressão de ansiedades e medos de endurecimento total" (2001, p. 207).

A comunicação onírica do sonho de Tereza aponta para o trabalho da elaboração imaginativa sobre as condições em que seu corpo subsistia desde a tenra infância. Lembremos que, segundo a teoria winnicottiana, quando a mãe não consegue segurar, sustentar suficientemente bem o bebê, este se desmancha em pedaços. O sonho expressa a agonia impensável da qual Tereza vinha se defendendo ao longo da vida, mascarada pelos medos, desmaios e dores insuportáveis. A agonia impensável tinha a ver com o processo de despersonalização relativa à perda da associação entre psique e soma.

A análise de Tereza exigiu um manejo clínico especializado na sustentação da regressão à dependência e no uso analítico do sonho regressivo, tal como preconizado pela clínica winnicottiana dos chamados "casos difíceis". O ponto fundamental desse manejo, segundo o autor, é que "a agonia primitiva não pode cair no passado, a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente de agora" (Winnicott, 1989/1994b, p. 73). Na clínica, diz Winnicott (1960/1983): "É esta integração do ego que me interessa [... ] a capacidade crescente do paciente de reunir tudo dentro da área de sua onipotência pessoal, incluindo até os verdadeiros traumas" (p. 154).

O sonho de Tereza procedeu das experiências vivenciadas na regressão à dependência realizada no setting analítico, o que lhe possibilitou acessar experiências primitivas de sua história de vida. Somada a isto, esteve a ajuda das massagens fisioterápicas, que pareciam dar concretude e contorno ao seu corpo. Winnicott (1989/1994c) salienta o papel que a fisioterapia, em associação ao trabalho do psicoterapeuta, pode ter quando, no início do desenvolvimento, houve "baixo grau de reconhecimento das necessidades corporais" (p. 431).

O sonho regressivo trazido por Tereza tornou-se emblemático do start da sua constituição e amadurecimento. As dores físicas gradualmente diminuíram, a ponto de não mais interferirem em sua rotina, e uma nova dinâmica foi se constituindo pouco a pouco. Nos quatro anos seguintes da análise, ela teve ganhos substanciais, vindo a engravidar por duas vezes, gerando duas filhas. Dois anos após o nascimento da segunda filha, a análise foi finalizada.

 

Conclusão

O corpo, na leitura winnicottiana, é um corpo vivo, que emerge das relações consigo e com o ambiente, muito distante de uma imagem mental relativamente estática. No manejo clínico dos dois fragmentos de casos apresentados, em função do fracasso ambiental nas fases iniciais do desenvolvimento, salienta-se a compreensão do trabalho da elaboração imaginativa, expresso nos sonhos, na tentativa de integrar uma comunicação psicossomática. No primeiro caso clínico, por se tratar de um quadro de esquizofrenia, tem-se um corpo que se encontra em estado agônico, por uma cisão física e mental, levando a uma desesperança de teor suicida. Já, no segundo, trata-se de um caso de falso self, com sérias questões psicossomáticas, em que as dores insuportáveis no corpo denunciam a agonia do despedaçamento.

Importa ainda assinalar que a função dos sonhos regressivos relatados nos dois casos clínicos, com base na teoria de Winnicott, é exatamente o resgate do continuar a ser e a estar vivo, da integração das funções corporais e de uma comunicação psicossomática consigo mesmo e com o outro. Eles pertencem à área das necessidades do ego e revelam necessidades psíquicas fundamentais; daí, a demanda por um manejo clínico que disponibilize uma ambiência suficiente para a emergência da regressão às fases de origem do fracasso ocorrido, a fim de retomar as realizações das tarefas do amadurecimento.

 

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Recebido em: 25/10/2020
Aceito em: 29/11/2020

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