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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021
TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?
Diverso, transmorfo: o sexo que não é
Diverse, transmorph: the sex that is not
Diverso, transmorfo: el sexo que no es
Diverse, transmorphe : le sexe qui n'est pas
Eduardo de São Thiago Martins
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / dr.eduardostmartins@gmail.com
RESUMO
O artigo discute os efeitos metapsicológicos da proposta de Zupančič (ontologia negativa do sexual) e os político-epistemológicos do manifesto de Preciado (por uma psicanálise mutante) na interpretação dos conceitos de eu, sexualidade infantil e diferença sexual, e suas implicações diretas no método e na ética da psicanálise.
Palavras-chave: sexual, gênero, eu, ética da psicanálise, política
ABSTRACT
The paper discusses the metapsychological effects of Zupančič's proposal (negative ontology of the sexual) and the political-epistemological effects of Preciado's manifesto (for a mutant psychoanalysis) in the interpretation of the concepts of ego, infantile sexuality and sexual difference, and their direct implications in the method and in the ethics of psychoanalysis.
Keywords: sexual, gender, ego, ethics of psychoanalysis, politics
RESUMEN
El artículo discute los efectos metapsicológicos de la propuesta de Zupančič (ontología negativa del sexual) y los efectos político-epistemológicos del manifiesto de Preciado (para un psicoanálisis mutante) en la interpretación de los conceptos de yo, sexualidad infantil y diferencia sexual, y sus implicaciones directas en el método y en la ética del psicoanálisis.
Palabras clave: sexual, género, yo, ética del psicoanálisis, política
RÉSUMÉ
L'article discute des effets métapsychologiques de la proposition de Zupančič (d'une ontologie négative du sexuel) et des effets politiques et épistémologiques du manifeste de Preciado (pour une psychanalyse mutante) dans l'interprétation des concepts du je, de la sexualité infantile et de la différence sexuelle, et leurs implications directes dans la méthode et dans l'éthique de la psychanalyse.
Mots-clés : sexuel, genre, je, éthique de la psychanalyse, politique
Desejo de todo o coração uma mutação da psicanálise, a emergência de uma psicanálise mutante...
(Paul B. Preciado)
Sexo é um assunto central, um absoluto - não um tema entre outros"
(Caetano Veloso)
Há o que fazer com o que nos escapa? A pergunta lançada pelo Jornal de Psicanálise - O que fazemos com o sexual? - não nos traz apenas uma excelente questão, mas sobretudo a questão em excelência que, além de fundar o campo científico da psicanálise, é o combustível que mantém acesa a chama epistemofílica (e epistemológica) a cada sessão. "O que faço com 'isso' que me dá?", diz o analisando, ao que se segue o exuberante desfile da palavra (linguagem), que tenta dar contorno, unidade, valor, substância e algum sentido a isso que, no mesmo ato em que é dito como algo que é, deixa de ser. O sexual não é.
O poder da palavra está no verbo em metamorfose, transformado pelos mais criativos recursos linguísticos e por um corpo metaverbal que ao falar, dança. É a esse campo que recorremos na tentativa de compor algo que signifique isso: o que somos, o que vivemos, o que fazemos, o que esperam de nós. Mas não se trata aqui de uma significação que geraria um poder de conhecimento, que domesticaria o estrangeiro e solucionaria o enigma; ao contrário, trata-se de uma significação-renúncia, que faz do grito do desejo infantil (desejo de ser) uma demanda (desejo significado) potencialmente capaz de alguma ação no mundo (Lacan, 1957-1958/1999). Portanto, buscamos uma significação que é constitutivamente falha, já que palavra e falta se engendram mutuamente, de modo a não haver última-palavra no mundo que realize absolutamente, com um significado único, o desejo (de sentido de ser).
"Que merda!", exclamou uma grata criança de 3 anos, na intenção de elogiar um presente que acabara de receber pelo seu aniversário. É ao se deparar com a palavra do/no outro (o Outro do outro) - que o infans precocemente se esforça a dominar e logo passa a imitar - que se dá a barragem fundante do sujeito. Ponto de falha na lei orgânica da natureza (lei natural), que ilumina o mundo do sujeito com a chama epistemofílica (co-naissance:1 wo es war, soll ich werden),2 ampliando e limitando, paradoxalmente, sua existência. Não se trata, portanto, de um dualismo entre positivo e negativo; um constitui o outro (ser/não), falha que as formações do inconsciente (cujos ingredientes - compromisso, fetiche, lucidez, alucinação etc. - variam com a receita) tentariam driblar, sexualmente.
Num trabalho recente, associei a noção freudiana de umbigo do sonho (ponto insondável da cadeia associativa de significantes, permanentemente aberta ao infindável trabalho interpretativo) ao âmbito do trau mático, explorando assim o potencial criativo-constitutivo deste último (Martins, 2020a). Para tal, trabalhei com a ideia de Slavoj Žižek, de que o traumático se engendra no justo ponto em que vacila nossa crença de que poderíamos abarcar o absoluto com nosso limitado psiquismo. Quando em excesso - não um excesso substancial, algo que transbordaria um suposto espaço de continência, mas um excesso de não palavra - dor psíquica. Nesse viés, podemos pensar que o sexual seria traumático (não necessariamente patogênico) não por aquilo que é, mas por insistir em não ser. Contudo, como veremos adiante, a não palavra não se reduz ao irrepresentável, nem ao não representado, podendo se relacionar também a um excesso de ser, cristalização do eu que bloqueia o significante em seu poder de palavra, gerando outra ordem de não-representação, vazio do sujeito.
Pietra se sente cansada em sua melancolia. Invariavelmente, a despeito de seus esforços, cai num vazio quando se dá conta de que a vida é pura ilusão, que nenhum objeto ao seu redor é realmente seu, e que as coisas só fazem sentido ou têm algum significado se ela mesma as significar. Tudo é nada, porque nada é tudo. Nos primeiros anos de análise, submergia em drogas que lhe provessem de uma sensação anestesiada de completude, mas o vazio era ainda mais horroroso ao final do efeito. Passou então a se inundar em outros excessos, como videogame e doces, até que optou por "plantar árvores que dessem frutos, ao invés de só incendiar florestas". Mergulhou no trabalho, em vastas pesquisas cada vez mais desafiadoras, que exigiam dela que fosse cada vez mais fundo para tentar "entrar total mente naquele mundo". O problema, porém, são sempre os outros, que vêm com suas demandas. Pietra se irrita quando é interrompida por qualquer convite para ir passear. Cada interrupção é vivida como um rasgo na rocha da caverna, por onde entra um excesso de luz que desmascara as coisas que "ficam nítidas demais, como realmente são". Ao mesmo tempo, sente que os convites são sua salvação, para que não "afunde 'eternamente'". De tempos em tempos, joga tudo pelos ares, muda de país, começa um novo trabalho, em explosões que revelam o vazio e, momentaneamente, renovam sua esperança em encontrar a solução definitiva para a fresta do desejo. Rocha melancólica, sente orbitar sua própria história, oscilando entre os efeitos expansivos e retrativos do vão do trauma existencial, do qual pressente ter tomado consciência cedo demais. "Não vou dar conta de Pietra sozinha", teria dito sua mãe ao se separar do pai, antes de enviá-la para fora - barra constitutiva da não palavra, excesso de ser resistente ao equívoco, que vez ou outra relança Pietra ao vazio sideral.
Mas a associação entre o umbigo do sonho freudiano e a falha constitutiva do sujeito é uma leitura que só se faz possível à luz de teorias pós-freudianas. Apesar do interesse de Freud pela negativa, sua atenção esteve sempre voltada a um suposto ponto originário. Para ele, o ponto insondável da cadeia associativa não é uma falta em si, mas uma falha (impossibilidade) de tradução (recalque), deixando um não representado inconsciente que pressiona por representação (Drang). Em "Moisés e o monoteísmo" (1939/2018), volta a citar o autor de "O homem da areia", conto trabalhado por ele em "O infamiliar" (1919/2019), no seguinte contexto:
E.T.A. Hoffmann costumava remeter as inúmeras figuras que se colocavam à sua disposição para suas criações literárias às imagens e impressões colhidas durante uma viagem de várias semanas em cadeira de posta, quando ele ainda não passava de um bebê de peito. O que as crianças de dois anos viveram sem compreender, elas nunca lembrarão fora dos sonhos. (Freud, 1939, citado por Pontalis & Mango, 2013, p. 94)
Para Freud, até mesmo a enigmática noção de Urverdrängung (recalque originário) remete a uma origem (Ur), a um primitivo, a uma espécie de não inscrição originária da cadeia associativa. Não inscrição que, se um dia fosse acessada por técnicas mais avançadas que as de seu tempo, poderia vir a se inscrever (ficção científica). Freud trabalha com traços, com marcas mnêmicas, com o retorno do que deveria permanecer oculto, com pares de opostos. Um inconsciente que não sabe que sabe, ao qual Žižek irá acrescentar uma dobra de negativo: o inconsciente envolve "não saber que sabemos (... que não sabemos)" (citado por Zupančič, 2017, p. 16). Um duplo sinal negativo que, de acordo com a matemática, reforça a noção freudiana de que o sistema inconsciente não comporta o negativo: (-) × (-) = (+).
No livro What is sex?, Alenka Zupančič (2017) defende a ideia de que a sexualidade humana seria
o ponto no qual a impossibilidade (negatividade ontológica) da relação sexual aparece como tal e "se registra" na realidade como parte dela. Se registra no modo singular descoberto por Freud como aquele do inconsciente. ... A sexualidade não é problemática para animais porque eles não sabem que ela é de fato problemática. O que distingue o animal humano é que ele sabe (que não sabe). (2017, p. 16)
Não saber que sabemos que não sabemos: a falha que nos separa da natureza. Não simplesmente no sentido de sermos uma exceção a ela, tampouco no sentido de que a natureza é, de saída, sempre cultural; mas numa concepção em que a cultura seria engendrada no/pelo exato locus do interdito, da falta, que constitui a linguagem que engendra a Natureza tal como nós a podemos perceber (Zupančič, 2017). Trata-se, então, de uma negatividade ontológica, de uma impossibilidade do in natura, de um impedimento da palavra completa, que seria a morte da linguagem (realização do desejo de ser-natural, objeto exclusivo do desejo da Mãe natureza). Só há linguagem (sexual condição humana) onde não existe a relação.
O que não é sexo
Seria errado dizer que o significante do sexual está faltando; o sexual não é uma espécie de objeto extradiscursivo ao qual falta um significante; mas é uma consequência direta da falta de um significante, ou seja, do vão com o qual emerge a ordem significante. (Zupančič, 2017, p. 42)
Assim como a psicopatologia de Pietra parece surgir de sua demasiada proximidade com o vazio da existência (dessubjetivação pelo excesso de ser que resiste ao Sexual, impondo-se pela palavra "não dou conta do que ela é"), e assim como podemos pensar o sistema inconsciente freudiano como efeito positivo da dupla negatividade que funda o humano, talvez possamos afirmar, sobre a sexualidade humana, que todo e qualquer comportamento sexual observável (eu) é uma tentativa-falha de portamento do sexual que, de fato, nunca equivale ipsis litteris ao fenômeno. Nessa perspectiva, a sexualidade humana tal como a conhecemos (esta que pode ser dita, interpretada e classificada pela ciência em categorias de normatividade e patologia - sexualidade política) estará sempre atravessada por um além da sexualidade que a constitui como perpetuamente parcial, disruptiva e enigmática.
Mulheres e crianças não existiam, como corpos políticos, até o início do século XIX. Seus corpos eram tidos por versões inferiores ou primitivas do único corpo politicamente significante: o masculino. Após a Revolução Industrial, as transformações nos jogos de interesses econômicos e os avanços das técnicas e do conhecimento médicos fundaram a pediatria (para lidar com a alta taxa de mortalidade infantil) e a obstetrícia/ginecologia (para cuidar dos úteros e ovários) como especialidades (do homem).
É nesse cenário que Freud incita a ação de passar a palavra do erotismo a esses corpos, ao propor que o sintoma histérico é um gozo convertido, e que a criança é um ser de prazeres sexuais. E mais: que o homem também pode ser histérico, e que a sexualidade infantil, sempre perversa e polimorfa, perdura na sexualidade adulta, mobilizando não apenas o sintoma, mas o sonho, e todo o trabalho da cultura - dos hábitos mais triviais da vida cotidiana (normal) aos maiores feitos da humanidade (arte, religião, ciência etc.).
Laplanche (2015) chamará de sexuel (sexual em francês) a sexualidade instintual, natural, hormonal, procriativa, para a qual o bicho homem amadurece tardiamente; de modo que quando o sexuel aponta, encontra o terreno já ocupado pelo Sexual (sexual em alemão): da pulsão, infantil (mas não inato), não relacionado ao objeto, que busca a satisfação (Zupančič, 2017), deslocando a procriação do terreno da lei natural ao da lei do desejo, o que a torna um acidente da natureza, a ser dominado. Assim, a sexualidade que pode ser dita perverso-polimorfa (inscrita na ordem simbólica, e dialética à moral e à ética) é revelação-falha de um negativo Sexual que, se pudesse ser, seria talvez melhor dito como diverso, transmorfo.
Se a noção de sexualidade infantil - como algo de muitas formas (polimorfo), primitivo, perverso - conduz o homem a ações controladoras (colonizadoras, educativas) que buscam instalar barragens para o dominar e assim garantir alguma previsibilidade binária ao que é humano, o que fazemos com o sexual a partir da noção de que seria a própria barragem da natureza que instaura a diversificação e o transmorfismo na/da natureza tal como a percebemos?3 O que seria das flores se toda flor fosse flor?
"Nem toda mulher tem xereca"
"Nem toda mulher tem xereca" vem sendo a formulação construída (em análise) por Viola, como suporte para a ambiguidade de gênero. Ter uma xereca (ideia que se agarrava ao significante "mulher") representa seu aprisionamento entre as grades da vulnerabilidade do sexo feminino, constantemente sujeito à violação e ao abuso do corpo-próprio na praça pública. Em casa, vivia sob o risco de ser invadida pela paranoia da mãe e/ou pelo obsceno do pai (sexo, drogas e "bolsominices").
"É estranho ter um buraco no meio das pernas, por onde qualquer homem pode entrar quando bem entender. Parece falha no corpo." Na adolescência, vestir-se como os garotos a defendia da angústia da diferença dos sexos, tanto entre os meninos quanto entre as meninas, isolando-a num território único e especial. Não era alvo do desejo masculino, nem da inveja competitiva das meninas. Quando muito angustiada, recorria ao uso da cueca e ao tubo de desodorante, que criava volume entre suas pernas e a ajudava a alucinar o preenchimento da falha. Em seus sonhos de angústia, a figura do homem perseguidor era recorrente, e em seu sintoma, o horror frente à ideia da morte/loucura era obsessivamente paralisante. No decorrer da análise, a expressão sintomática se transferiu à composição artística (literatura, música, pintura), em autorretratos distorcidos e autoficções poéticas que ela me enviava, me ajudando a (não) enxergar com ela a angústia frente ao que sempre escaparia à palavra e à figurabilidade.
A instalação obrigatória do setting virtual durante a pandemia parece ter acalmado a angústia suscitada pela presença do corpo do analista, permitindo que Viola me transferisse à condição de "amiga confiden te", bem menos ameaçadora do que o "homem barbado" que habitava seu sonho. Ela escolheu falar por telefone, sem imagem, o que permitiu que eu interpretasse, après-coup, o uso corriqueiro do divã (desde as primeiras sessões) como toca protetora. Num segundo momento, após alguns meses de interrupção da análise, decidiu se sentar. Frente a frente, foi aos poucos me exibindo um corpo assumidamente ambíguo, mais tolerante ao conflito, em constante transformação.
Não preciso ficar me definindo como mulher, porque me sinto mulher. Mas não aquela mulher, ou essa. Uma mulher que pode tanto se vestir de piranha, quanto de moleque; que sabe que é, mas não sabe "o que é" ser mulher. No Dia da Mulher, a Rita Lee postou "Feliz dia da xereca... não viemos da costela de um macho". Minha irmã repostou, e eu comentei: "Mas nem toda mulher tem xereca!".
Recentemente, o perseguidor ganhou um superpoder de se metamorfosear na figura de quem ele tocasse, podendo se tornar até... ela mesma. Como saber onde estaria (wo es war) e quem seria (soll ich werden)? Em contrapartida, não encontrou mais uma mulher-perseguida, mas uma adversária com o superpoder da invisibilidade, cujo único percalço era o medo, sua criptonita. O medo formatava novamente o corpo da mulher-xereca, deixando-a novamente vulnerável.
Não, nem toda mulher tem xereca, "nem toda brasileira é bunda". Se o homem que diz sou não é, porque quem é mesmo é não sou, as questões de gênero mostram-se plataforma profícua para questionarmos a posição ética do psicanalista frente ao sujeito (ao sexual), e para revisitarmos, epistemologicamente, nosso edifício teórico - o que fazemos com ele?
Pobre criatura4
Conta-se que Juno (Hera) e Júpiter (Zeus) discutiam sobre qual seria o melhor gozo, o do homem ou o da mulher. Juno defendia que era o do homem; Júpiter, que era o da mulher. Para sanar a dúvida, chamam Tirésias, que já havia passado sete anos vivendo como uma mulher ("o contrário do homem"), num castigo recebido por ter matado duas serpentes que acasalavam (intervenção na "lei natural"). Tirésias responde que das dez partes de prazer que possuímos, a mulher goza com nove. Juno perde a discussão e cega Tirésias, que ganha de Júpiter o dom da profecia; palavra final masculina. "Diz-se que a filha de Saturno (Juno) se terá ofendido para lá do que seria justo e de modo desproporcional à matéria" ao condenar Tirésias à noite eterna (Ovídio, 2017, p. 185). Do que Juno estaria reclamando se goza com nove das dez partes do prazer, se lhe estaria faltando apenas uma?
O fato é que Juno é privada justamente da única parte que vem ditando as regras, parte privilegiada e detentora de todo o poder político. "Não entendo esses transexuais", disse uma paciente, executiva, na casa dos 30 anos. "Se eles soubessem o sofrimento que é ser mulher..."
A dissimetria política dos gêneros vem sendo força motriz dos mais diversos tipos de reações sociais contra a hegemonia do regime patriarcal-colonial, opressor de tudo aquilo que não coincide com a essência eurocêntrica do homem, num conflito que obriga os indivíduos a se afirmarem (positivarem) em identidades sociais. Logo, é a tensão gerada pelas marcas da diferença e da igualdade (não só entre os sexos, mas entre os seres) que organiza a escala do poder político da sociedade. E é essa mesma tensão, essa ambiguidade, que (des)organiza o pobre coitado chamado de eu.
Saber-se homem ou mulher não necessariamente equivale a pensar-se homem ou mulher. A capacidade interrogativa dessa condição, até então tida como um dado natural ou divino, cresce à medida que uma série de mudanças socioculturais dá outro status ao indivíduo a partir da Era Moderna (séculos XVI a XVIII). Com o enfraquecimento dos valores teológicos frente à força da razão iluminista (Descartes, Newton etc.), e culminando com os ideais revolucionários de igualdade e liberdade, o individualismo ganha força e o indivíduo passa a ser servo de si mesmo, investindo cada vez mais na incessante batalha entre a singularidade e a coletividade, condensada no paradoxo daquilo que chamamos de identidade - qualidade de idêntico (a si mesmo). A noção de eu ganha, portanto, novos valores e contornos.
Pedro Salem (2004), num estudo histórico sobre o tédio, associa diretamente o "nascimento" desse sentimento ao novo status do indivíduo, que se permite, cada vez mais, ser o principal objeto de seus próprios questionamentos, duvidando de seus propósitos, de seus desejos, tornando-se ditador ativo da própria existência (e, muitas vezes, perdendo-se nela). Aquele que enterrava seus mortos, que construía tumbas, lendas e cerimônias para sagrar seus pares, passa também a exumar cadáveres para investigar-se por dentro, numa tentativa de dissecar as leis e os interiores de sua natureza.
Jean Paul Richter é tido como um dos primeiros românticos alemães a descrever um encontro com esse eu moderno.5 Ele escreve:
Certa manhã, ainda bem criança, eu me encontrava na soleira de casa e olhava à esquerda, na direção do açougue, quando subitamente, feito um relâmpago, o céu me enviou esta ideia: eu sou um eu, a qual, desde esse momento, não me deixou mais. Meu eu vira-se a si mesmo pela primeira vez e para sempre. (citado por Pontalis & Mango, 2013, p. 91)
A solidão antropocêntrica de um eu de carne seria a última mensagem vinda dos céus, lançando o eu a uma autopercepção que ultrapassa a mera noção de si, sendo experimentada com inquietude inesgotável, quase como ameaça. Não por acaso, o nascimento do eu moderno passa a ser fortemente acompanhado pela presença do duplo nas produções artísticas do século seguinte (século XIX).6 Podemos pensar que o assombro do indivíduo, encarando o eu como um outro (duplo) de si, tenha servido como um interessante destino para o inevitável tédio do individualismo.
Ao discutir com Fliess sobre a bissexualidade humana, Freud discorda de sua interpretação do sinistrismo (em que o corpo seria dividido em duas metades, sendo o lado esquerdo correspondente ao sexo oposto ao do indivíduo). Para Freud, feminino e masculino se misturam em todas as partes do corpo e a bissexualidade seria a grande responsável pela tendência ao recalcamento. Cada indivíduo, para dizer-se homem ou mulher, recalcaria, então, o outro sexo. O duplo, portanto, organizado como um eu-outro (que é e não é eu), poderia ser pensado como uma espécie de condensação personificada (concepção limitada em seu binarismo sistemático), representante orgânico de um isso recalcado, propulsor de abjeções sociais (e no setting, de resistências contratransferenciais prescritivo-colonizadoras, manifestas geralmente pela personificação excessiva do analista) (Martins, 2020b).
"O Eu é a parte do Id modificada pela influência direta do mundo externo" (Freud, 1923/2011, p. 31), é "sobretudo corporal[,] projeção de uma superfície" (p. 32) e essencialmente melancólico. Em "O eu e o id" (1923/2011), Freud retoma seus estudos sobre a melancolia - onde elabora que o objeto, outrora investido e agora perdido, seria novamente estabelecido no eu (via identificação) - para formular a ideia de que o eu seria, portanto, um precipitado de identificações, contendo a história dos investimentos sexuais do sujeito. Se Pedro Salem associa a história do eu moderno à história do tédio, Judith Butler utiliza a concepção freudiana do eu para dizer de uma "melancolia do gênero" (2014, p. 91). Talvez possamos ampliar essa ideia para uma melancolia da identidade.
Um psicanalista não pode concordar com a distinção sociológica popularmente corrente de que uma pessoa nasce com seu gênero biológico ao qual a sociedade - ambiente geral, pais, educação, meios de comunicação - acrescenta um sexo socialmente definido, masculino ou feminino. A psicanálise não pode fazer tal distinção. A pessoa é formada através de sua sexualidade, que não pode ser "associada" a ele ou a ela. (Mitchell, 1988, p. 29)
O sujeito da psicanálise não equivale ao indivíduo e tampouco ao eu, sendo definido por "um Isso psíquico, irreconhecido e inconsciente, em cuja superfície se acha o Eu" (Freud, 1923/2011, p. 30). A superfície do eu, para Freud (e depois também para Lacan, em "O estádio do espelho como formador da função do eu" [1949/1998]), é desenhada pelo sistema perceptivo-projetivo. Freud dá especial atenção às percepções auditivas, desenhando um eu com um "boné auditivo", por onde a palavra do mundo (Outro), carregada pela pulsão, pode ser escutada em toda sua potência constitutiva. O eu, antes de ser eu, é escutado (designado) como Outro do outro. Um boné, que abre margem para autores como Laplanche e Butler privilegiarem uma mudança do vetor identificatório, de uma identificação com para uma identificação por.
Desde as últimas décadas do século XX, Butler vem propondo a ideia de uma inevitável qualidade performática inerente ao ato político que é ser (seja lá o que se diz ser) perante a cultura. A teoria da performatividade, porém, não deve ser reduzida à ideia de que o gênero é uma construção inteiramente sociocultural (o que a manteria presa à dicotomia natureza/cultura). Trata-se da noção de que as "práticas sociossimbólicas de diferentes discursos e seus antagonismos criam as próprias 'essências', ou fenômenos, que elas mesmas regulam" (Zupančič, 2017, p. 40). Não que o gesto performático crie uma nova realidade imediatamente, como num ato solene; trata-se de um processo de repetições e reiterações, através do qual as construções sociossimbólicas acabam se naturalizando e chegam ao: "É assim, sempre foi assim... natural". O natural, então, seria um precipitado de discursos.
Laplanche elege a noção de designação como termo capital para definir um gênero. "A designação é um conjunto complexo de atos que se prolongam na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno" (2015, p. 166). Desse modo, o autor, ao dizer de uma designação contínua, um bombardeio de mensagens com poder de prescrição, se aproxima da teoria da performatividade de Butler, exceto por um ponto: o sexual.
Sinto-me tentado aqui a lançar mão do esquema do que eu chamei de teoria da sedução generalizada. A teoria da sedução generalizada parte da ideia das mensagens do outro. Nestas mensagens, há um código ou uma onda transmissora, isto é, uma linguagem de base, que é uma linguagem Pcs-Cs. Em outros termos, eu nunca disse - penso nunca ter dito - que há mensagens inconscientes dos pais. Ao contrário, acredito que existem mensagens Pcs-Cs e que o Ics parental é como o "ruído" - no sentido da teoria da comunicação - que vem interferir e comprometer a mensagem Pcs-Cs. ... É, pois, o sexuado e principalmente o Sexual dos pais que vêm provocar ruído na designação. (2014, p. 168)
Para Laplanche, a anatomia que é um destino seria a "anatomia popular e, além disso, perceptiva e puramente ilusória" (2015, p. 170), não a científica, que tem de lidar cotidianamente com o que é chamado, pelo vocabulário médico, de "variações anatômicas" (que pressupõem uma norma). Porém, tanto uma quanto outra estão sujeitas à percepção que, por sua vez, está sujeita ao regime presença/ausência (que Laplanche aponta como "diferença do sexo", no singular). Um tipo de "jogo dos sete erros" que é função do eu; função de significação, comparativa, um eu continuísta que visa organizar um tipo específico de angústia (unheimlich) através de identificações que procuram constantemente por traços de familiaridade para tentar escapar daquilo que escapa ao repertório imaginário. Contra o golpe da perplexidade, da perda e da transitoriedade, o eu empreende uma frustrante busca pela previsibilidade, pela durabilidade e pela reversibilidade como condições de "ser humano" (Arendt, 2016). Uma dominação do natural que, paradoxalmente, acaba por conduzi-lo ao que chamaremos adiante de compulsão à naturalização.
Retomando, o sujeito humano
não é uma entidade com identidade, mas um ser criado da fissura de uma separação radical. A identidade que parece ser a do sujeito é, de fato, uma miragem que surge quando o sujeito forma uma imagem de si através da identificação da percepção dos outros sobre si. (Mitchell, 1988, p. 32)
Frente a esse sujeito, o eu é de fato um tédio, "uma pobre criatura submetida a uma tripla servidão, que sofre com a ameaça de três perigos: do mundo exterior, da libido do Id e do rigor do Super-Eu" (Freud, 1923/2011, p. 70). Ou ainda: linguagem, sexual e política.
Assim posto, vemos que toda e qualquer identidade atribuída ao eu (ou a elas, eles e afins) é política (Mouffe, 2005), e está sujeita ao processo de significação, constitutivamente falho, que discutimos no início. Também a isso está exposto, constantemente, todo o edifício psicanalítico (método, teoria e ética).
A psicanálise não existe
Quando Paul B. Preciado (2020) convida a psicanálise a se deitar num divã político, ele lhe oferece a chama epistemológica do sexual, e o milagre do novo que só a ação pode promover (Arendt, 2016).7
Quando falo de uma nova epistemologia, não estou me referindo apenas à transformação das práticas técnico-científicas, mas a um processo de ampliação radical do horizonte democrático para reconhecer como sujeito político qualquer corpo vivo sem que a atribuição sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade para este reconhecimento social e político. É a violência epistêmica do paradigma da diferença sexual e do regime patriarcal-colonial que está sendo desafiada pelos movimentos feministas, antirracistas, intersexuais, trans e handi-queer, exigindo o reconhecimento como corpos vivos por direito próprio daqueles que têm sido rotulados como politicamente subordinados. (Preciado, 2020)
O ato de Preciado8 nos convoca a uma discussão ética. Ao se apresentar como sujeito não binário, nos conduz à radicalidade do método psicanalítico, nos obriga a interrogar os jogos de poder inevitavelmente imiscuídos em qualquer situação clínica ou formulação teórica, e nos oferece a chance de movimentar nossas primazias, rever, redimensionar, e se for preciso, renomear nossos conceitos.
O binarismo de gênero, tão discutido na atualidade, não se refere a um suposto dualismo homem-mulher, que deveria atingir algum ponto de equilíbrio e harmonia na sociedade. O sistema binário é o sistema de numeração natural de computadores digitais que operam com representações baseadas em zero e um (ausência/presença - de sinal elétrico). É o que permite que os computadores sejam pré-formatados para obedecer aos nossos comandos, fornecer as respostas que lhes demandamos, e para terem o mais alto grau possível de previsibilidade, reversibilidade e durabilidade. Portanto, a discussão sobre o binarismo do gênero é, acima de tudo, sobre os controles (políticos) que a noção de gênero (dentre outras) exerce sobre o sujeito.
Uma revisão de paradigma do conceito de diferença sexual acaba por elevar o conceito para além da diferença do(s) sexo(s). Não se trata de achatar, mas, ao contrário, de ampliar (sexualizar) a diferença para além do sistema binário, para além da noção de identidade ou de essencialismo de gênero (a verdadeira mulher, o verdadeiro homem), marcando o caráter político de qualquer paradigma e revelando o potencial diverso transmorfo do sujeito, a favor da mais radical diferença sexual. É essa a potência do sexual quando concebido pela ontologia do negativo: divergir (ao invés de convergir para algo manipulável) e transmorfar (para além da forma positivista). Prova disso: uma janela aberta para a magnitude das construções socioculturais da humanidade, invenções e releituras. Mas até que ponto é possível reler ou inventar? Onde mora o limite? Quanto há de natural no limite concebido à capacidade do psiquismo?
Conceber que o sujeito se constitui na/pela falta - que já vimos não ser um defeito a ser preenchido, nem um ponto originário a ser descoberto, estando mais para uma língua de fogo que mantém a transformação do que existe em movimento - não é o mesmo que o considerar uma massa amorfa, insípida e inodora. Apesar de diversa, transmorfa e intangível, a labareda não é ilimitada. Haveria, então, uma verdade essencial do sujeito? Onde estaria? Será que nas marcas traumáticas do inconsciente, transmitidas de geração em geração pelos ruídos designativos, que agarram o significante e o bloqueiam em seu poder de palavra (positivação do sexual que limita o sujeito e o impele a adoe-Ser)?
Ora, se a palavra é capaz de alimentar, mobilizar afetos, dilatar vasos sanguíneos, seduzir e curar, sabemos o estrago que uma fixação pode fazer. Pois, se não há palavra no mundo capaz de trazer a derradeira significação sem que traga consigo também a morte, não haverá gênero, cor, diagnóstico ou comportamento que signifique (sintetize) um sujeito sem trazer consigo a violência patológica da dessubjetivação (morte do sujeito).
Se compreendemos até agora que a sexualidade é política e que o sexual (da designação laplancheana) age como ruído do inconsciente social-parental, a ideia ordinária de essência, tal como a concebemos corriqueiramente (essência positiva, verdade essencial do eu), só pode ser enquanto construção (sempre política) naturalizada pela via da repetição. Nesse ponto, a noção freudiana de compulsão à repetição, em diálogo com Butler e Laplanche, permite que concebamos o essencialismo como resultante de uma compulsão à naturalização (da palavra; significação orgânica, organizadora): função do eu.
Portanto, se quiséssemos tratar de uma verdade essencial do sujeito, não haveria outra via senão a de um essencialismo negativo. Sim, há limite. Limite do que podemos vir a saber da natureza, que é diferente de construir saberes sobre a natureza. Para que a civilização se mova (no sentido que for), há um não saber epistemológico a ser preservado como fonte (não originária) da pulsão. Marca irrepresentável da experiência sexual, sempre-ainda -não-palavra, que abre o campo do desejo ao "só deverei ser onde isso foi" (wo es war, soll ich werden). O sexual, portanto, nunca ocupa a cadeira da falha na linguagem; não é o pré-verbal, nem o primitivo, nem equivale ou se opõe a qualquer máxima transcendência superevoluída da espécie. O sexual coincide com essa falha, "é a impossibilidade de completar significado, e não um significado que estaria incompleto, instável" (Copjec, citada por Zupančič, 2017, p. 43). Então, quando a partir dos desdobramentos teóricos e da transa dialética com outros campos do (não) saber, podemos pensar conflito e desenvolvimento intricados pelo viés de uma ontologia negativa, damos um passo além em relação à epistemologia da psicanálise, e também à episteme política, lato sensu.
Chantal Mouffe (2005), cientista política inspirada pelo sexual, irá propor um "modelo agonístico (desportivo) de Democracia", que eleva o inimigo à condição de adversário, e que enxerga no conflito o maior potencial de desenvolvimento democrático. Potencial que só pode ser enfraquecido (quando não extirpado) por ideais como consenso popular, união da nação, ou bem comum; ideais que só podem conduzir a regimes autoritários ou, em última instância, totalitários. Pensadora do paradoxo democrático, entende que a democracia cria o paradoxo porque sua realização seria sua própria desintegração.
Compreender a natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática como a realização de perfeita harmonia ou transparência. O caráter democrático de uma sociedade só pode ser dado na hipótese em que nenhum ator social limitado possa atribuir-se a representação da totalidade ou pretenda ter controle absoluto sobre a sua fundação. (2005, p. 19)
A noção de pluralismo de valores, tal qual a proposta não binária de Preciado, não visa aplacar o conflito ou eliminar o poder. Ao contrário, reconhece a dimensão inerradicável do antagonismo. Mouffe defende como político "o antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais" (2005, p. 20). Para ela, a política (conjunto de práticas, discursos e instituições que buscam uma certa organização) será sempre atravessada pelo político, logo, sempre conflitiva. O lugar vazio (lugar do negativo) deve continuar aberto, e o guardião desse lugar é o político, que assegura alguma base ético-política que sustente a lealdade democrática às instituições, provendo "um terreno em que as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e o antagonismo transformado em agonismo"9 (2005, p. 21).
Onde se daria, então, o enrosco metodológico do Freud explica, uma vez que é pressuposto do método psicanalítico que só podemos escutar do poder da palavra do sonhador o que seu sonho significa - sabendo que o sonhador será sempre imprevisível e antagônico no discurso não binário sobre si? Seria também a compulsão à naturalização o grande enrosco que tende o nosso campo a uma espécie de melancolia teórico-institucional? Ora, aquele que nos propôs tal pressuposto era, assim como todos nós, um ser-político. Homem, pai de muitos filhos, médico; apesar de cientista inquieto, se encantava com os desenvolvimentos do bebê e da civilização, e sonhava um mundo pacífico, amigável e unificado (solucionado), que o decepcionou fortemente. Uma vez desiludido pela realidade da guerra e da morte, confirmou o primitivo no cerne do homem civilizado (não em seu passado), podendo este emergir quando menos se espera (Freud, 1915/2010a). Apesar disso, de coabitarem no fundador da psicanálise a ideia de um desenvolvimento apesar do conflito e de um conflito apesar do desenvolvimento, e apesar da ambiguidade teórica admiravelmente sustentada pela obra freudiana, nós, leitores, inevitavelmente atravessados pela política e pela inescapável compulsão à naturalização (pulsão de morte?), estaremos sempre tentados a ler, entender e dizer: "É isso! Matou!".
A psicanálise não existe. Por não ser, e por se saber política sempre que for, é sexual. Agora... O que fazemos com o sexual...?
"Todos os meus sonhos buscam o jeito de usarmos nossa anomalia para criar um novo modo coletivo de ser" (Caetano Veloso, citado por Leal, 2020).
Referências
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Recebido em: 23/3/2021
Aceito em: 24/3/2021
1 Co-nascimento (em jogo de palavra com connaissance, do francês, conhecimento).
2 Controversa formulação freudiana em "A dissecção da personalidade psíquica" (Freud, 1933/2010b), cujas diferentes traduções promovem importantes debates acerca da ética em psicanálise. Mais adiante no texto, a tradução ("onde era isso, devo advir") aparecerá reformulada, em roupagens lacanianas, como "só deverei ser onde isso foi".
3 "[E]u gostaria apenas de enfatizar que devíamos manter a psicanálise separada da biologia, assim como a mantivemos separada da anatomia e da fisiologia" (Freud, em carta a Carl Müller-Braunschweig, 1935, citado por Mitchell, 1988, p. 28).
4 Esta parte do texto se baseia no material desenvolvido para o curso "Ambiguidades do sexual: sexuação e complexo de Édipo", ministrado pelo autor em parceria com Luís Carlos Menezes, na ocasião do XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Belo Horizonte, junho de 2019.
5 Jean Paul Richter foi quem apresentou o primeiro texto literário de E.T.A. Hoffmann, seu contemporâneo, citado anteriormente.
6 A palavra Der Doppelgänger (o duplo que vaga) aparece pela primeira vez no romance Siebenkäs (1796, do mesmo Jean Paul Richter) e permeia todo o romantismo dos séculos XVIII e XIX, passando por Hoffmann ("Der Sandmann", 1815), Mary Shelley (Frankenstein, 1818), Dostoiévski (O duplo, 1866), Robert Louis Stevenson (Jekyll and Hyde, 1896), Tchaikovsky (O lago dos cisnes, 1877), Schubert ("Der Doppelgänger", 1828), Caspar David Friedrich (Paisagem noturna com dois homens, 1830) etc.
7 Ao conceituar e distinguir trabalho, obra e ação, Hannah Arendt privilegia a última em sua obra A condição humana" (1958/2016). Através da ação, o humano viveria um segundo nascimento (nascimento político), potencialmente milagroso pela possibilidade do novo.
8 Uma comunicação chamada "Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas", em novembro de 2019, perante a Escola da Causa Freudiana, Paris.
9 Antagonismo e agonismo, como qualidades, dependem sempre do sentido do movimento. Nesse caso, trata-se do movimento democrático, tal como a autora o apresenta.