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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021

 

TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?

 

Fronteiras da sexualidade: olhares sobre identificações

 

Frontiers of sexuality: looks at identifications

 

Fronteras de la sexualidad: visiones sobre identificaciones

 

Frontières de la sexualité : points de vue sur les identifications

 

 

Jurenice Picado Alvares

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro de enlace Cowap junto à International Psychoanalytical Association (IPA) na SBPSP. Membro fundador e atual presidente do Núcleo de Psicanálise de Santos e Região (NPSR). Santos / jurenice@uol.com.br

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é refletir sobre as diversidades sexuais e as configurações familiares presentes no mundo contemporâneo e na clínica psicanalítica atual, enfatizando a necessidade da desconstrução da lógica binária e da despatologização. A autora ressalta a importância da alteridade como uma função ética, considerando a singularidade do ser humano e a tolerância ao diferente. Transita brevemente pelo pensamento de alguns autores e utiliza flashes ilustrativos cinematográfico, literário e clínico.

Palavras-chave: subjetividade, gênero, sexo, diversidades sexuais, configurações familiares


ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on sexual diversity and family configurations present in the contemporary world and the current psychoanalytic clinic, emphasizing the need to deconstruct binary logic and depathologization. The author emphasizes the importance of otherness as an ethical function, considering the uniqueness of the human being and the tolerance to the different. She transits briefly through the thoughts of some authors and uses cinematographic, literary and clinical illustrative flashes.

Keywords: subjectivity, gender, sex, sexual diversities, family settings


RESUMEN

El propósito de este artículo es reflexionar sobre la diversidad sexual y las configuraciones familiares presentes en el mundo contemporáneo y en la clínica psicoanalítica actual, enfatizando la necesidad de deconstruir la lógica binaria y despatologizar. La autora destaca la importancia de la alteridad como función ética, considerando la singularidad del ser humano y la tolerancia a los diferentes. Transita brevemente por el pensamiento de algunos autores y utiliza flashes ilustrativos cinematográfico, literario y clínico.

Palabras clave: subjetividad, género, sexo, diversidades sexuales, configuraciones familiares


RÉSUMÉ

La proposition de cet article est de réfléchir sur les diversités sexuelles et les configurations familiales présentes au monde contemporain et dans la clinique psychanalytique actuelle, en remarquant le besoin de la déconstruction de la logique binaire et de la dépathologisation. L'auteure remarque l'importance de l'altérité comme une fonction étique et considère la singularité de l'être humain et la tolérance au différent. Marche légèrement aux pensées de quelques auteurs et utilise des flashs illustrés cinématographiques, littéraires et clinique.

Mots-clés : subjectivité, gendre, sexe, diversités sexuelles, configurations familiales


 

 

Atualmente, constatamos o surgimento de inúmeros textos sobre sexualidade, o que impõe desafios à psicanálise, dada a diversidade de manifestações sexuais que observamos no mundo contemporâneo.  Pensando sobre isso e considerando que a sexualidade é múltipla, que não cabe só em duas possibilidades previamente definidas, masculino/feminino, verificamos a importância da desconstrução da lógica binária e,  também, da despatologização diante das novas configurações familiares, parentalidades e possibilidade de reprodução assistida.

Freud atravessou o momento da sua época, criou sua teoria, seus conceitos, e hoje atravessamos o nosso momento e verificamos a necessidade de pensarmos os conceitos evitando que sejam redutores e/ou totalizantes para adotarmos um pensamento reflexivo, conforme nos orienta Morin (2011), ao discorrer sobre o pensamento complexo, e, assim, gerarmos mais indagações, evitando respostas definitivas e fechadas, ou prescritas e, se possível, não dogmáticas.

Expressões da sexualidade que eram ocultadas hoje reivindicam um lugar no contexto social. Freud deu voz às histéricas, ouviu suas expressões da sexualidade para compreendê-las, e precisamos ouvir a demanda atual. Seria fonte de injustiça não considerar a singularidade do ser humano.

Assim como Freud dialogava com as várias ciências, penso que devemos interagir com as outras formas do conhecimento, que por sua vez também dialogam com a psicanálise na busca por explicação da diferença sexual no conceito de gênero como representações e construções sociais.

Temos a literatura, as artes, a poesia.  Citei o filósofo Edgar Morin, acrescento: Judith Butler (1990/2015), filósofa que trata o gênero como performativo, produzido pelos modos discursivos e culturais, práticas reguladoras como atribuições de gênero que produzem o sexo; Teresa de Lauretis (1987), escritora e historiadora, a qual diz que, assim como a sexualidade, o gênero não é propriedade de corpos, nem algo que existe a priori nos seres humanos, mas um conjunto de efeitos produzidos nos corpos, comportamentos e relações sociais por meio do desdobramento tecnológico-político; e também Paul B. Preciado (2017), filósofo e escritor, para quem não há sexos, mas usos dos corpos que são divididos entre os proibidos e aqueles considerados naturais. Ressalta o aspecto político e acentua que a sexualidade é singular, móvel, difusa e múltipla.

Como ilustração ao tema, utilizarei breves flashes de situações apresentadas na literatura e na sétima arte, que têm expressado um conhecimento menos comprometido com as normatizações, as patologizações e as mais variadas prescrições sociais. Inseri uma situação clínica apresentada por Bleichmar (2006) para evidenciar observações importantes a serem feitas no atendimento ao paciente transexual.

Lembremos que em  nossos consultórios trabalhamos com conflitos psíquicos e os relacionamos ao contexto cultural, observando o analisando como um outro, recebendo-o em sua singularidade, com respeito, tolerância ao diferente. Com alteridade, uma função ética.

Joyce McDougall (1997) diz que a busca de amor e satisfação erótica produz múltiplos conflitos psíquicos, que surgem como resultado do choque entre o mundo interno de pulsões de vida e de morte e as forças repressoras do mundo externo e interno, e que por conta desses conflitos a sexualidade humana é inerentemente traumática e força o ser humano a um eterno questionamento e a uma busca de soluções.

Gérard Bonnet (1999) já dizia que algumas formas de prática sexual parecem estranhas quando analisadas à distância, porém podem ajudar a converter ideias preconcebidas, desencadeando novos avanços. Concordo com Bonnet sobre a necessidade de converter ideias preconcebidas. Não podemos esquecer que desde os primórdios da civilização o preconceito caminha lado a lado com a sexualidade, e possivelmente por isso assumiu-se durante anos que a sexualidade corresponderia, por natureza, a uma lógica binária, sem considerar que a identidade de gênero poderia não corresponder ao sexo biológico.

Freud (1910/1976b) nos diz que a função da psicanálise não é solucionar as questões de ordem sexual, e sim desvendar quais os mecanismos psíquicos que resultaram na eleição do objeto e traçar o caminho que vai desses mecanismos às disposições originais instintuais. Freud (1900/1976a) aponta para o fato de que tanto a masculinidade como a feminilidade estão presentes na disposição biológica inata dos seres humanos em formas e graus diferentes, influenciando assim a eleição objetal.

É necessário distinguir entre o feminino, a sexualidade feminina e a feminilidade nas mulheres, da mesma forma que entre o masculino, a sexualidade masculina e a masculinidade nos homens.

Fiorini (2015) diz que o masculino e o feminino fazem parte de uma lógica binária determinada pela cultura. A sexualidade masculina e feminina está implicada no campo do desejo e da pulsão. A masculinidade e feminilidade são referências a normas, códigos que se expressam em identificações chamadas masculinas ou femininas. Para pensarmos essas categorias, a mesma autora completa dizendo que temos que levar em conta as relações de consonância e de confrontação que dificultam definir e categorizar identificações e processos de subjetivação.

A sexualidade em Freud (1905/1976c) não tem relação direta e exclusiva com a genitalidade. Nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", ele enfatiza que a sexualidade infantil,  que perdura pela vida, é múltipla, polimorfa; seu objetivo é contingente e os fins podem ser os mais variados e não necessariamente ligados ao genital nem ao reprodutivo.

Um dos fatores fundamentais na  designação do gênero do futuro bebê seriam as identificações parentais, identificações transgeracionais, conscientes e inconscientes. De que gênero desejam os pais que sua criança nasça? Essas identificações permeiam tanto a expectativa de um bebê quanto a sua gestação. Teríamos que pensar nas repercussões dessas identificações alienantes sobre o psiquismo do bebê. Essas identificações pertencem ao inconsciente vincular e emergem no ambiente vincular da criança.

Nesse ponto, é importante ressaltar que a identificação de gênero não deve ser confundida com a orientação sexual. Por exemplo: uma mulher trans pode ter qualquer orientação sexual, pode ser homossexual, heterossexual, bissexual, assexual etc.

A identificação de gênero está mais ligada às questões de construção da subjetividade e as eleições de parceiros serão expressão da orientação do desejo ou orientação sexual.

Fiorini (2016) chama atenção para a importante diferenciação que deve ser feita entre "eu sou" e "eu desejo", embora possa haver superposições, e acrescenta que "eu sou" remete ao plano das identificações (por exemplo, transexualidade), enquanto "eu desejo" reporta ao desejo (por exemplo, homossexualidade).

Em sua compreensão, as homossexualidades (no plural, porque são várias, e eu acrescentaria as transexualidades, heterossexualidades etc.) "podem responder a mecanismos neuróticos, perversos ou psicóticos o que pode conduzir a diferentes processos de subjetivação" (Fiorini, 2016, p. 7).

Freud (1905/1976c) também nos diz que a orientação sexual é moldada pelas experiências do início da infância, não chega ao ser humano pelo instinto de reprodução e não é inata. 

Laplanche diz que "nada permite afirmar que o sexo biológico seja intimamente percebido, assimilado e vivido de algum modo pelo sujeito nos primeiros meses" (2015, pp. 165-166). Ele usa o termo "designação" para definir o gênero, seria "o primado do outro no processo" (2015, p. 166). Como exemplo, Laplanche cita a designação do primeiro nome, do parentesco, entre outras, e completa que o significado é amplo: "A designação é um conjunto complexo de atos que se prolongam na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno" (2015, p. 166), seria o pequeno grupo próximo da criança: os pais, avós, irmãos, tios etc., e é esse pequeno grupo que insere a criança no social, embora tenha sido "no 'social' que se inseriu a designação, ainda que seja apenas no famoso registro inicial junto às estruturas institucionais de determinada sociedade" (2015, p. 167).

Essa comunicação, que também circula pela linguagem do corpo, através dos cuidados corporais, veicula mensagens da ordem do enigmático, passíveis de tradução para o acesso ao simbólico. Dessa forma, o gênero é designado mas enigmático (até por volta dos 15 meses), enquanto o sexo vem fixar, decifrar o gênero (no decorrer do segundo ano). Falamos da trama das identificações que constitui o eu.

Muitas pessoas que buscam por sua identidade conservam algo que lhes é próprio por já estar na sua história, por exemplo o primeiro nome, que dá origem a um novo. Conforme Tesone (2009), trata-se da primeira inscrição simbólica. Exemplo: Paul B. Preciado, um homem trans que conservou o "B." de "Beatriz". Algumas vezes conservam a mesma letra inicial ou o mesmo número de letras, possivelmente para não borrar a sua história e sim compreendê-la.

Concluindo, a sexualidade começa a se organizar desde o nascimento e adquire sua estrutura final na adolescência, momento de reorganização psíquica, das pulsões e do ego; de ressignificações das relações com objetos externos e internos relativos às figuras primárias e ao próprio self infantil; momento de necessidade de criar uma nova identidade, a consciência de ser um no mundo, separado e distinto dos outros.

 

Alguns flashes ilustrativos

Introduzo um diálogo de uma cena do filme Carol, dirigido por Todd  Haynes (2015), baseado no livro The price of salt, de Patricia Highsmith (1952), que conta a história de um envolvimento amoroso, nos anos 1950, entre duas mulheres.

Uma delas, ao se perceber envolvida,  pergunta ao namorado se ele já se apaixonou por um homem. Ele responde que não, mas que já ouviu que existe "gente assim". Ela diz que não está falando de "gente assim", mas de duas pessoas que se apaixonam uma pela outra. Ele responde que sempre há uma razão para isso, no fundo.

Este diálogo traz uma questão importante que, reitero, é a singularidade, a vida particular de cada pessoa, em que o essencial da sexualidade humana está na dimensão inconsciente ("no fundo", conforme diz o rapaz), não tem formas fixas nem predeterminadas, é psíquica, ligada à constituição da subjetividade e determina comportamentos específicos.

Butler (1990/2015) diz que gênero não é o que somos, mas o que fazemos, é performativo e em função disso o corpo é designado como masculino ou feminino. Por ser algo performativo, de certa forma, é o outro, funcionando como uma imagem, que confere a identificação de gênero.

Selecionei situações que constam do livro A garota dinamarquesa, do escritor norte-americano David Ebershoff (2016), e do filme homônimo (Hooper, 2015), para observarmos o desvelamento e as implicações das identificações.

Esse romance conta a história da primeira transgênero, mulher trans, a se submeter à cirurgia de redesignação sexual, assumindo o nome de Lili Elbe. Uma história baseada nos diários e correspondências de Lili, editados em 1933 por Niels Hoyer, após a sua morte em 1931, e que foi adaptada para o cinema com o mesmo título, estabelecendo um diálogo entre a ficção cinematográfica e a literária.

Nessa direção, Alvares diz tratar-se "de uma cinebiografia de Lili Elbe que, embora baseada em fatos reais, não deixa de ser uma construção sobre a trajetória da vida profissional e pessoal do pintor dinamarquês Einar Mogens Wegener" (2017, p. 185), também   pelo fato de que suas identificações são produto de uma história que vai desenvolvendo sentidos com a possibilidade de serem ressignificados e reconstruídos.

Importante lembrar que Einar/Lili recriava em suas telas sempre as mesmas paisagens, eram cenas da sua terra natal, a paisagem do pântano com árvores entre os fiordes dinamarqueses, que fazia parte da sua infância. Podemos pensar que ao insistir na pintura dessa paisagem Einar mergulha no seu próprio pântano interior, talvez como uma tentativa de se reencontrar com o feminino que, possivelmente, ficou reprimido ao longo dos anos, precisando ser ressignificado.

Falo de reencontro considerando seu testemunho de que ao se reconhecer como mulher não quis mais pintar, dizendo: "Eu quero me tornar uma mulher, não uma pintora" (Ebershoff, 2016).

Ebershoff também escreve: "Einar Wegener nasceu num pântano. Foi uma menininha nascida como menino num pântano" (2016, p. 228).

Outra situação é quando ele se encanta com a leveza dos tules que vestem as bailarinas - um movimento feminino em uma época em que a tolerância social em relação a questões de gênero era muito menor. Ou quando substitui a modelo, posando para o quadro que sua esposa está pintando, e observa com admiração e encantamento o movimento feminino da perna alongada, do tecido e do vestido que é colocado sobre ele, e as meias de seda que precisou usar.

A possibilidade de ressignificação e de reconstrução ganha força quando Einar, travestido de Lili, nega o convite feito por um homem homossexual para uma relação amorosa. Lili não tinha desejos por homens de libido homossexual e nem estava em busca de um par homossexual. O que nos leva a supor que havia predominantemente uma libido heterossexual, o que é confirmado em sua história pessoal. Lili desenvolveu uma relação heterossexual e desejou gerar um filho.

A psicanálise, interessada na construção da subjetividade, olhou para o corpo além do seu revestimento corporal, isto é, o corpo além do concreto e a palavra se apresentando como a via régia que dá conta da insistência pulsional, que nos estimula frequentemente. (Alvares, 2017, p. 188)

No filme, Lili pede para ir ao jardim e conta o sonho que teve naquela noite, o qual considera o sonho mais lindo da sua vida. "Eu era um bebê nos braços de minha mãe. Ela olhava para mim e me chamava de Lili" (Alvares, 2017, p. 195). Pensando no sonho como realização do desejo, que encena as vicissitudes da sexualidade infantil, podemos considerar que, possivelmente, essa cena revela a sua percepção sobre a coincidência dos seus desejos e os desejos advindos de sua mãe por conceber Lili e não Einar. Talvez lhe tenha faltado a experiência de narcisismo primário e de ser visto por sua mãe (a função espelho), muito antes das questões sexuais.

As interpretações sobre as diversidades sexuais podem variar em meio às diversas teorias psicanalíticas.

A sexualidade humana conheceu modificações significativas com os avanços da tecnologia, da medicina, notadamente a endocrinologia, e com cirurgias que propiciam transformações corporais impensadas há muito pouco tempo, e que fazem com que possa haver consonância entre o sexo anatômico e o gênero autopercebido.

 

Uma situação clínica

Bleichmar (2006) nos apresenta o atendimento do paciente transexual Agustín/Gabriela, com quem fez uma série de entrevistas.

Aos 3 anos, Agustín estava convencido de que era uma menina em um corpo de menino e decidiu que ninguém mais veria seu pênis, nem o pediatra. Tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova. Era notavelmente inteligente. Não se integrava ao grupo dos meninos do colégio. O bom vínculo era com as meninas.

Chegou ao consultório aos 13 anos, com intensa angústia, para uma avaliação diagnóstica com o objetivo de iniciar a terapia hormonal feminilizante. Queixava-se do seu corpo, cada vez estava mais estranho devido às alterações hormonais da puberdade: tamanho das mãos, dos pés, suas pernas, seu rosto, o pomo de adão na garganta...

Agustín estava em psicoterapia há algum tempo, com um profissional da sua cidade, que levava o trabalho com muita sensibilidade e o ajudou a encontrar um espaço de elaboração da situação que vivia.

Bleichmar conta que em nenhum momento Agustín utilizou de mecanismos delirantes ou de desmentido da percepção, tinha consciência da sua anatomia. Ele usava o gênero masculino para referir-se a si mesmo e, quando a analista perguntou sobre isso, respondeu, naturalmente, que falava assim há tempos, e em relação à mudança de nome queria que seus pais escolhessem, pois sentia como um segundo nascimento.

Ao verificar se estava presente a "síndrome do espelho" perguntando-lhe o que acontecia quando se olhava no espelho, obteve a seguinte resposta: "Vejo a mim mesmo, nem homem nem mulher, sim a mim... porém não me gosto" (Bleichmar, 2006, p. 119).

Não havia sinais de síndrome do espelho e sim o desencanto narcisista por conta da sua própria imagem. Sua maior preocupação era com a beleza, o impacto que o seu corpo pudesse ter em sua vida amorosa. Havia um componente histérico. E, ao terminar o processo das entrevistas, a analista conversou sobre isso, orientando que deveria continuar o trabalho terapêutico, não só para se assumir plenamente, como também para evitar os riscos de um narcisismo que poderia levar a uma busca da perfeição do corpo, o que poderia trazer intensos sofrimentos em sua vida. Gabriela continuou a psicoterapia e aumentou o número de sessões.

Nesse caso, havia aspectos fecundos na criança e nos pais que evitaram a desestruturação psíquica, em função do descompasso do que acontecia com o mundo interno e externo.

Para Bleichmar, a transexualidade era

efeito de vicissitudes da infância nos quais houveram traumatismos precoces com intensos sentimentos de solidão que levaram @ paciente a constituir uma identificação no limite mesmo do ego com o objeto mãe, como um modo de proteger-se de um déficit profundo na constituição das identificações primárias. (2006, p. 151)

 

Considerações

Na transexualidade, a questão está relacionada com a construção da identidade de gênero, com a constituição da subjetividade, e a solução é a partir do próprio corpo (Bonnet, 1999), resultando na necessidade de adaptar o corpo ao gênero que sente como próprio (Fiorini, 2016).

Bonnet afirma que a oposição e a complementariedade entre a solução homossexual e a transexual tornam-se mais instrutivas quando ultrapassamos o plano da realidade do corpo ou do órgão genital, para nos colocarmos no terreno do jogo social ou do imaginário; é lá que veremos, de fato, manifestarem-se os efeitos da sexualidade pulsional, pois é daí que deve partir a solução para compreender as diferenças sexuais.

De acordo com Fiorini (2016), no processo identificatório, a diferença de gênero e a diferença sexual, num sentido simbólico, além da sua orientação sexual, estão inscritas no psiquismo dos pais e podem ser conflitivas. A autora diz que é necessário pensar as diferenças de uma forma transedípica, observando que é evidente que a estrutura edípica clássica pode favorecer o processo identificatório e desejante, porém "restringir-se a pai e mãe, ainda no sentido simbólico, num triângulo essencial (numa estrutura microfamiliar), empobrece a possibilidade de pensar nestas configurações"  (Fiorini, 2016, p. 8).

Assim, é necessário pensar as diferenças de uma forma transedípica, um conceito de édipo ampliado, transcultural, transgeracional e transfamiliar. O que leva as identificações e itinerários do desejo a se sustentarem nos discursos e conceitos imperantes na cultura e nas gerações anteriores, além do socius, pois as identificações se enraízam nos discursos vigentes e de gerações anteriores e também vão além das pessoas que formam o núcleo familiar.

Nessa direção, não podemos considerar o conceito edípico como o único dispositivo de subjetivação. Penso que esse reconhecimento colabora para que a psicanálise não seja uma técnica normatizadora e patologizante.

 

Palavras finais

Para conversar sobre o tema da sexualidade é necessário ressaltar a importância de irmos além da lógica binária e da despatologização, tentando criar um terreno fértil para semearmos atualizações e desenvolvermos novos pensamentos, reforçando a necessidade contemporânea de uma psicanálise aberta e porosa, pois o psiquismo é um organismo vivo que está em movimento por toda a vida.

A sexualidade infantil não vem do corpo, ela chega por um processo de tradução que a criança faz, de natureza fantasística. Entretanto, isso não expressa que a sexualidade ocorra fora do corpo, pois o corpo está enredado na sua formação. O nascimento da sexualidade implica constantemente o corpo da criança, revelando a ela a erogeneidade dele através dos gestos do adulto durante os cuidados, a alimentação etc., que se misturam às mensagens enigmáticas dos adultos as quais são fantasias que chegam através das mensagens pré-conscientes/conscientes da sua própria sexualidade (o adulto não sabe o que implanta de sexual na criança). Trata-se de uma linguagem de base que pode sofrer interferência do inconsciente parental, isto é, a sexualidade infantil dos pais, que pode surgir como um ruído na atribuição de gênero.

As mensagens suprarreferidas são implantadas tanto pela dimensão erótica da fantasia como pela dimensão sensual que vem do corpo. Assim, a teoria sexual é indissociável de uma referência de comunicação que desempenha um papel importante na relação entre a criança e o adulto.

Portanto, a sexualidade humana transcende ao biológico, é pulsional, um conceito de fronteira entre o corpo e o psíquico.

Finalizo com as duas primeiras estrofes do poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "As contradições do corpo".

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta

Meu corpo, não meu agente,
Meu envelope selado,
Meu revólver de assustar,
Tornou-se meu carcereiro,
Me sabe mais que me sei. (2015, p. 11)

 

Referências

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Recebido em: 26/2/2021
Aceito em: 22/4/2021

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