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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021
AULA INAUGURAL
Passagens1
Passages
Pasajes
Passages
Vera Regina J. R. M. Fonseca
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / veraregina.fonseca@gmail.com
RESUMO
No texto, a autora se propõe a descrever o que considera os elementos centrais à prática analítica, aqueles que serão desenvolvidos durante a formação e ao longo da vida profissional: a captação do inconsciente do analisando, por meio da "antena", e a construção do que é devolvido para aquele, a linguagem. Os vários níveis de funcionamento mental do paciente e de intervenção do analista são ilustrados com exemplos clínicos. Assim, pretende-se abordar o ajuste necessário para captar as experiências somato-afetivas não elaboradas presentes no discurso, no brincar e no silêncio. Depois de comentar o conceito de continência, contido no binômio antena-linguagem, a autora traz algumas considerações pessoais sobre o tema do título, finalizando com o elemento de aventura incluído nas passagens da vida (e na formação), e na própria morte.
Palavras-chave: formação psicanalítica, inconsciente, continência
ABSTRACT
The author aims to describe what she considers the central elements to the analytical practice that should be developed during the training and throughout the analyst's professional life: the capture of the analysand's unconscious, through a kind of "antenna", and the construction of what is returned to him, the language. Various levels of mental functioning and interventions are illustrated with clinical examples, aiming at revealing the necessary adjustments to capture primitive somatic-affective experiences present in the analysand's discourse, in playing and in silence. After commenting on the concept of containment, included in the binomial antenna-language, the author brings some personal considerations on the theme of thetitle, ending with the element of adventure present in passages both in life (and in training) and death itself.
Keywords: psychoanalytic training, unconscious, containment
RESUMEN
En el texto, la autora describe los elementos que considera centrales en la práctica analítica, que se desarrollarán durante la formación y a lo largo de la vida profesional: la captura del inconsciente del analizado a través de la "antena" y la construcción de lo que se le devuelve, el lenguaje. Ilustra los diversos niveles de funcionamiento mental e intervención del analista con ejemplos clínicos. Intenta abordar el ajuste necesario para plasmar las experiencias somato-afectivas no elaboradas presentes en el discurso, en el juego y en el silencio. Tras comentar el concepto de continencia presente en el binomio antena-lenguaje, la autora aporta consideraciones personales sobre el tema del título y finaliza con el elemento de la aventura existente en los pasajes de la vida (incluso en la formación) y en la propia muerte.
Palabras clave: formación psicoanalítica, inconsciente, continencia
RÉSUMÉ
Dans le texte, l'auteur propose de décrire ce qu'elle considère comme les éléments centraux de la pratique analytique, ceux qui seront développés au cours de la formation et tout au long de la vie professionnelle : la capture de l'inconscient de l'analysant, à travers « l'antenne », et la construction de ce qui lui est interprété, le langage. Les différents niveaux de fonctionnement mental du patient et l'intervention de l'analyste sont illustrés par des exemples cliniques, visant à révéler les ajustements nécessaires pour capturer les expériences somato-affectives non élaborées présentes dans le discours, dans le jeu et dans le silence. Après avoir commenté le concept de continence, contenu dans le binôme antenne-langage, l'auteur apporte quelques réflexions personnelles sur le thème du titre, se terminant par l'élément d'aventure inclus dans les passages de la vie (et de la formation psychanalytique), et dans la mort elle-même.
Mots clés : formation psychanalytique, inconscient, continence
1) Introdução
Logo na abertura de Jiro dreams of sushi,2 o protagonista conta como sonhava com os sabores de sushi e acordava com a mente fervilhando de ideias. E Jiro continua: "Assim que você escolhe sua ocupação, é preciso mergulhar em seu trabalho, apaixonar-se pela profissão... Você deve dedicar a vida a aprimorar sua técnica" (Gelb, 2012).
Para um psicanalista, este mandado também vale. Mas como cumpri-lo, quando o trabalho a que nos propomos não depende apenas de senso de responsabilidade? Por outro lado, apenas ir tocando o barco é inviável, já que o automático, o confortável e o cômodo não são os melhores caminhos na psicanálise. Não se trata de procurar o difícil, mas desconfiar do muito fácil.
As passagens são marcadas por uma luta entre dois perigos: muita teoria, como apoio contra a escuridão, e uma apreensão demasiado impregnada pelo senso comum, para garantir a espontaneidade. Esta não é indesejável, mas se exercida como um fim único, leva a um simulacro de conversa social. A teoria também não é uma inimiga, mas floresce quando é aceita como um modelo.
Os seguintes pontos teóricos ancoram minha escuta: o inconsciente, a presença de três tipos diversos (mas não excludentes) de ansiedade (aniquilação, persecutória, depressiva), o modelo de um espaço mental organizado pela presença de objetos internos, a questão crucial de tolerar as emoções ou evacuá-las e o conceito enganosamente simples de continente-contido.
A escuta vai se separando do senso comum e se impregnando tanto pela própria teoria quanto pelo convívio com as experiências clínicas. Um bom tempo passará até haver um casamento íntimo entre o que se estudou, o que se viveu e o que a tela particular da formação vai compondo.
Sabemos todos que a formação é uma construção, passa pela prática e análise pessoal, por quem você é e pelo estudo - mas estas últimas instâncias trazem uma armadilha: a de ser só você mesma ou a de ser uma figura de livro. Ou ainda a de dar interpretações muito sagazes, muito certeiras, sem incorporar a necessidade de ir ajustando o foco e a fala, para se aproximar de verdade do paciente ("O").
Acredito que a base da formação seja a crença entranhada no inconsciente, nosso, do outro... e não há melhor modo de cultivar e potencializar tal crença que a análise do analista.
2) A antena e a linguagem
A antena
Para mim, a antena do analista seria uma parabólica, cuja construção é crucial para o trabalho. Digo construção, e não funcionamento. As antenas às vezes ficam cheias de folhas ou detritos trazidos pelo vento e pela chuva, portanto não funcionam desimpedidas o tempo todo. O diâmetro da antena é um elemento importante que dá a amplitude da captação - no seu centro, há um processador que irá decodificar os sinais para depois enviá-los para a central de edição e publicação. Esse processo necessariamente leva certo tempo - o sinal será captado, e esperamos que possa ser guardado, transformado até ser reemitido.
Talvez uma metáfora melhor fosse uma antena como um órgão e não um objeto - um órgão irrigado pelo sangue, coberto por membranas, como todos os nossos órgãos, que se nutre de oxigênio e se vasculariza, aprimorando sua função de detecção, contenção, digestão e emissão.
A linguagem
A edição implica um acervo e um julgamento pessoal e intransferível, mas não impermeável, como podemos ver quando lemos um artigo clínico e nos sentimos alimentados com palavras: vários devem se lembrar, por exemplo, da intervenção de Ogden, quando um paciente lhe disse que queria interromper a análise: "Tenho uma responsabilidade tanto para com você, a pessoa com quem estou falando, quanto para com você, a pessoa que originalmente veio me ver, e que, sem saber, estava pedindo minha ajuda" (2004, p. 873).
A linguagem tem uma ligação visceral com a antena, e flui da linguagem interna por meio da qual conversamos conosco e com nossos objetos até a linguagem que será lançada para o paciente. Dou exemplos:
a) Era a primeira sessão depois das férias, presencial; o menino chega de olhos vermelhos, senta-se de costas para mim, porque não queria vir. Passa pela minha cabeça tudo que eu poderia falar ou calar; algumas são fórmulas gastas. Enquanto sofria minha ansiedade e tristeza pela rejeição, fui pensando em qual elemento se destacava, o que minha antena, livre das folhas e entulho, podia me apontar. A expressão de humilhação era disfarçada pela indignação e desprezo do menino. Até que disse, tentando uma síntese: "Você está mesmo muito cansado de ser criança!". Ele não responde, mas traz uma enxurrada de revolta frente às pessoas idiotas que querem ser crianças a vida toda!
b) Uma paciente muito bem-sucedida em sua vida profissional, mas que sempre dá jeito de falar de tudo menos de seu mundo interno, começa a sessão bem cedo de manhã, dizendo: "A semana foi pesada até agora... na segunda-feira um gerente me ligou precisando de ajuda para lidar com um problema: o marido de uma funcionária se suicidou...". A palavra "suicídio" tem uma qualidade de faca cortando o espaço virtual, este estranho campo: a fantasia de suicídio e tragédia subjacente a sua crônica performance de excelência... e minha intervenção se resumiu a juntar o fato (suicídio) com a emoção (desamparo sufocado).
Mas há situações em que a antena tem que se fiar mais em sua essência de órgão receptivo, e a linguagem precisa esperar até tomar alguma forma, enquanto conversamos em silêncio com nossos objetos internos. Em geral isso ocorre quando os elementos corporais se fazem mais presentes.
Quando um paciente não sabe falar na análise, às vezes é porque ele precisa comunicar estados ou experiências iniciais vividas quando não sabia como expressar em palavras o que estava vivenciando... as primeiras experiências são corporais. ... É por isso que quando estou presente, tão completamente quanto possível, em uma sessão analítica, eu escuto não apenas meus afetos contratransferenciais, mas também as manifestações corporais e fantasias corporais que os acompanham.2 (Quinodoz, 2003, p. 1480)
c) Trago mais um exemplo: Roberto tem 20 anos e está em análise há dois anos. É extremamente fechado, quase não fala; desde pequeno apresenta crises epiléticas. Sua aparência lembra a de um menino de rua, apesar de os pais terem recursos.
Foi adotado com 30 dias de vida. Teve sérios problemas de aprendizado; a mãe relata que ele sempre foi quieto, nunca pediu nada e nunca reclamou. No passado foi ridicularizado por colegas e os agrediu. Tem um irmão mais velho, também adotado, mas com sucesso na vida profissional.
Sempre eu tenho que começar a sessão com alguma pergunta para ir criando a possibilidade de trocas. Nesse dia, uma tarde chuvosa e fria, vendo sua camiseta fina, questiono se ele não tem frio, ao que responde que não com a cabeça. Depois de alguns minutos, pergunto:
- Onde você gostaria de estar?
- (Sorri) Na academia.
Começo a indagar com mais detalhe o que faz na academia e vou imaginando o efeito calmante que a musculação deve lhe proporcionar, ao contar números e contrair a musculatura.
- Em que você pensa quando faz os exercícios?
- Só no treino mesmo.
- Fica branco na sua cabeça?
Ele confirma. Então imagino sua segunda pele muscular e lhe digo:
- Lembra o que lhe desenhei há uns dias atrás...
- Uma armadura. Ele completa.
Tudo o que falo a seguir, até o fim, é dito lentamente e em voz baixa, como se eu contasse a história de um bebê distante:
- É, uma proteção que embrulha você e o deixa calmo, como a mãe que segura bem forte o filho e canta para ele relaxar e dormir.
Ele sorri, mas nada fala.
Surge em mim uma forte lembrança da sensação de ter uma criança nos braços...
- Você ficava no colo da mãe quando pequeno?
- Sim.
- Quando era pequeno você tinha talvez o colo da mãe, mas agora tem que se segurar sozinho, deixando os músculos bem fortes e duros.
Ele vai ficando sério...
Recordo-me de ele ter me trazido uma vez seus brinquedos para eu ver e me refiro a esse episódio.
- Eu pude imaginar você brincando com eles... você menino... agora acha que tudo tem que ficar branco na sua cabeça e que você tem que cuidar sozinho do que sente.
Ele fica mais sério e se retesa a ponto de eu temer que tenha uma crise, ou um ataque de fúria; seus vasos ficam muito visíveis nos braços contraídos. Penso também que o que vivo é como uma observação de bebês em que não há nenhuma palavra para nos guiar. Fico imaginando tudo que ele sente, sensações sem nome; ele vai retesando todo o corpo até soltar algo como um grito abafado.
- O que foi isto, foi um susto?
Ele diz que sim.
Então senti uma enorme necessidade de acalmá-lo, de diminuir sua tensão horrível.
- Parece que você precisa de um colo relaxante para se sentir amar rado e seguro...
Estou intensamente focada nele, mas tenho ainda medo de que ele tenha uma crise. Depois de um bom tempo, pergunto:
- Você quer ouvir uma música? (Era um jogo que fazíamos: cada um escolhia uma música e ouvíamos juntos.)
Ele me olha como se acordasse e responde que sim. Coloco "Für Alina", de Arvo Pärt, uma música melancólica e solene, de que gosto bastante. Mas logo a acho insuportável, com muitos silêncios e pausas.
Ponho outra: "Continuum", de Gabriela Montero. Como diz o nome, é uma peça com um dedilhar fluido do piano.
Ele ouve e parece se acalmar... encosta a cabeça na poltrona. Ao terminar, lhe digo que a música se chama "Continuum", aquilo que continua como um rio.
Este está longe de ser um ideal de intervenção, mas acho que exemplifica a travessia que empreendemos com o paciente para tentar levar a experiência corporal para uma área de compartilhamento, comunicação e transformação.
3) A continência
As passagens implicam, assim, o desenvolvimento da capacidade de tolerar o que se sente (e, na sessão, o que o paciente nos faz sentir).
"Conter" implica numa atividade e um processo que permite a formação do pensamento e da sua transformação em palavras; o que é oposto ao uso banalizado e restrito de conter e receber meramente como receptividade passiva. (IPA, s.d., p. 71)
Uma criança muito contida brinca de produzir slime por meses a fio, e, aos poucos, traz associações enquanto manipula seu produto. Ela também está passando pela ponte que leva das matérias do corpo, vividas quase à sua revelia, a uma manipulação criativa das massas ainda informes, mas enriquecidas pelas sensações. Assim, as passagens implicam mudança de nível, que podem se interpenetrar: do básico corporal para a música, do corpo para a massa, do corpo/da emoção para a palavra.
Sem esquecer as passagens da experiência que, na formação, temos com o paciente, com a pessoa do supervisor, com as ideias dos que nos antecederam, até a palavra escrita dos relatórios.
E a passagem/estrada construída a dois, com cada paciente e enfrentando vários obstáculos, para abrir caminhos entre o corpo e a mente e ampliar sua paisagem psíquica.
Por fim, há passagens misteriosas, urdidas ao longo do tempo nos recessos do inconsciente: uma adolescente ficou em análise comigo por vários anos, um trabalho marcado por intensa turbulência. Há alguns meses, já completamente adulta, ela me procurou e tivemos uma conversa à distância. Apesar de muito diferente de nossa relação no passado, essa conversa não mudou minha sensação desagradável daquela época. Até que, várias semanas depois, sonhei com ela. No sonho, fotos dela se misturavam a minhas fotos de juventude; em seguida eu guardo numa caixinha alguns retalhos de tecidos que seriam dela, e cujo padrão me parece agradável, havendo cuidado para a tampa não amassar os tecidos. Ao acordar, havia magicamente se evaporado o ressentimento frente à paciente, que passou a ser lembrada com algo próximo ao carinho.
Atender é diferente de ser psicanalista e ser psicanalista é um privilégio, pois sua ocupação é, ao mesmo tempo, busca de transformação para o paciente e para você mesmo, um canal de passagens.
4) Final
As passagens podem ser ilustradas por uma espiral, que não necessariamente sobe no sentido de maior conhecimento concreto, mas para que a antena e a linguagem tenham a parceria mais apurada. Elas podem ser lentas - e em geral o são -, como passam as caravanas no deserto, e algum dia chegam.
Recusar as passagens seria uma forma de negar a necessidade de tais transformações?
A vida é a caravana: depois do medo frente à certeza da morte, vamos aos poucos incorporando e aceitando esse fato, até podermos nos deter e pensar sobre isso.
Fico imaginando se tudo que vivi, em vez de ser registrado como uma série de fotos distintas, vai criando um gramado, uma cena contínua, um mundo feito de terrenos, onde as experiências que tivemos se interpenetram, desde as tardes de vento agitando as árvores, as luzes e sombras que as folhas filtram do sol, os inúmeros momentos da minha infância até hoje, formando um tecido de várias camadas, em que as passagens desaparecem e resultam num tecido final, que um dia terminará de se desenrolar.
Muito se falou, nas aulas inaugurais, sobre a aventura da formação.
Trarei então mais uma versão de aventura, extraída do livro Peter Pan e Wendy:
Restava apenas um pedacinho da rocha fora da água, que logo ficaria inteiramente submersa. Discretos raios de luz tocavam as águas. Aqui e ali se ouvia o som mais harmonioso - e ao mesmo tempo o mais melancólico - do mundo: sereias cantando para a lua.
Apesar de Peter não ser como os outros meninos, ele estava com medo. Um calafrio passou por seu corpo, como o tremor que o vento produz na água do mar. No entanto, no mar, uma ondulação segue outra, infinitamente. Peter, por sua vez, sentiu apenas uma, misto de tremor e onda. No instante seguinte, já estava novamente em pé sobre a rocha, com o mesmo sorriso no rosto e um tambor batendo dentro de seu peito. O tambor dizia:
- Morrer deve ser a maior das aventuras.
(Barrie, 1911/2018, p. 124)
Referências
Barrie, J. M. (2018). Peter Pan & Wendy (G. Naldi, Trad.). Mojo. (Trabalho original publicado em 1911) [ Links ]
Gelb, D. (Diretor). (2012). Jiro dreams of sushi [Documentário]. Preferred Content. [ Links ]
IPA. (s.d.). Continência: continente-contido. In Dicionário enciclopédico inter-regional de psicanálise da IPA. https://bit.ly/3mJYZMD [ Links ]
Ogden, T. H. (2004). This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. The International Journal of Psychoanalysis, 85(4),857-877. [ Links ]
Quinodoz, D. (2003). Words that touch. The International Journal of Psychoanalysis, 84(6),1469-1485. [ Links ]
Recebido em: 16/3/2021
Aceito em: 16/3/2021
1 Texto da Aula Inaugural proferida no Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) no dia 27 de fevereiro de 2021.
2 Documentário de 2012 dirigido por David Gelb sobre Jiro, dono de um dos melhores restaurantes de sushi de Tóquio.
3 Tradução livre da autora.