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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022
EDITORIAL
Hiperconectividade e exaustão
Berta Hoffmann Azevedo
Editora / bertaazevedo@hotmail.com
Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; a era da sabedoria,
a era da tolice; a época da crença, a época da incredulidade;
a estação da Luz, a estação das Trevas; a primavera da esperança,
o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós,
tínhamos nada diante de nós; íamos todos direto para o Céu,
íamos todos para o lado oposto
(Charles Dickens)
A memorável abertura do livro de Dickens nos conduz aos efeitos de uma transformação que merece o nome de revolução. No caso desse livro, escrito em 1859, era a Revolução Francesa o pano de fundo para seus personagens. Transportemos a abertura de seu livro Um conto de duas cidades para nosso contexto: a revolução digital.
O sociólogo Daniel Bell (1973) afirma que a nova revolução é comparável à Revolução Industrial, cujo impacto transforma os sistemas de produção e revoluciona padrões culturais de comunicação e socialização.
A psicanálise, ainda que busque não se deixar arrastar pela corrente hegemônica sem reflexão, não se pode imaginar alheia a seus devires. Foi o que as exigências da pandemia desnudaram em seu seio. Analistas do mundo inteiro, dos mais simpáticos até os mais contrários ao uso da tecnologia, renderam-se às trocas analíticas por meio delas. Aventuraram-se na experiência antes mesmo que esse formato pudesse ter espaço para ser pensado na maior parte dos institutos de transmissão de psicanálise, por onde os relatos prévios dessa prática circulavam mais nos corredores que nas salas destinadas aos seminários oficiais. Viveram na pele, alguns pela primeira vez, as facilidades e inconveniências da vida hiperconectada. Escutaram e experimentaram telas, algoritmos, softwares, processamentos digitais de sua própria presença e da presença digital de seus pacientes. Viveram assim os efeitos da chamada "Era da Informação" (Bell, 1973), "sociedade do cansaço" e do "desempenho" (Han, 2010/2021), que já estavam em curso para serem reconhecidos, mas agora ganhavam volume ainda mais audível. Sob a égide do cansaço, o mal-estar do mundo hiperconectado se intensificou e trouxe para primeiro plano o excesso de positividade, a desconcertante transparência, a enxurrada de informação e a sobre-exigência narcísica.
Como alerta Han, o excesso de positividade modifica radicalmente a estrutura e a economia da atenção. A multitarefa é uma técnica de sobrevivência na vida selvagem, que exige divisão da atenção, sobrecarregando-nos de múltiplas atividades, o que prejudica o aprofundamento contemplativo. Não sobra tempo para que "o pássaro onírico choque o ovo da experiência" (Benjamin, citado por Han, 2010/2021, p. 33). As consequências para o par associação livre e atenção flutuante nessa atmosfera antiexperiência contemplativa podem ser acompanhadas na clínica.
Quando recortamos a proposição de uma sociedade do desempenho como útil para ser pensada numa publicação de psicanálise, é com o intuito de que isso nos ajude a formar uma escuta capaz de considerar uma lógica na qual podem estar imersos analista e paciente, contribuindo assim para evidenciar o caldo cultural gerador de sofrimento. Diferentemente da sociedade disciplinar, analisada por Foucault, aqui não nos referimos a sujeitos da obediência, mas a sujeitos que vivem sob o imperativo do desempenho e da produção: sujeito empresário de si mesmo, animal lavorans explorador de si, agressor e vítima ao mesmo tempo. O Jornal de Psicanálise, afinal, busca precisamente isso: pensar a formação psicanalítica diante dos desafios contemporâneos e contribuir com ela por meio de seus aportes.
Na linha do que já abordávamos nos números "O que fazemos com o sexual?" e "A potência da diferença", e retomando, de certo modo, a questão trazida por Freud em "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (1908/1996), entendemos que a psicanálise não se pode furtar à reflexão sobre as formas de padecimento psíquico da sua era e refletir sobre si mesma diante disso. Foi pensando nas relações possíveis entre a chamada revolução digital e o fenômeno da exaustão observado na clínica e na vida cotidiana, e com a intenção de refletir sobre "o melhor e o pior dos tempos", o tempo em que vivemos, e evitar que um parêntese seja fechado sem que do experimento se retirem as consequências de elaboração, que surgiu o presente número do Jornal de Psicanálise.
Abrimos esta edição com a agudeza do poema visual enviado por Arnaldo Antunes em resposta ao nosso convite. A poética se mantém com a crônica e a música que figuram na seção "Conexões". A primeira, de Natalia Timerman, a segunda, de Felipe Lacerda. Em sintonia com a proposta temática, a música pode ser também acessada com o dispositivo qr code, oferecendo ao leitor a experiência de múltiplos estímulos sensoriais permitida pela tecnologia.
Além dos artigos temáticos, nas seções "Diálogos" e "Associação dos Membros Filiados" também podemos ver refletidos os efeitos da superestimulação e da quase ilimitada disponibilidade em ser acessado a qualquer momento, característicos de nosso tempo, e acompanhar as expressões de subjetividade e sofrimento associadas a esses fenômenos sem perder de vista a formação psicanalítica exigida para responder à altura a esses desafios. Em "Diálogos", Pedro Colli sublinha, além disso, o surgimento de novas figuras de poder, e tem seu artigo comentado pelos psicanalistas Jô Gondar e Leopold Nosek. Cristiane Mota Takata, na seção Associação dos Membros Filiados, investiga os possíveis efeitos dos recursos digitais no processo de formação psicanalítica e também alternativas para organizar um novo modo de coexistência com esses elementos. É anexada, além disso, uma pesquisa realizada com os membros filiados do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes acerca da experiência de formação no formato virtual. Essa formação psicanalítica mediada pelo virtual, a propósito, já vem acontecendo no ILAP nos últimos anos e é apresentada no artigo "Virtualidade e psicanálise: novas sendas para o encontro humano?", de Helena Ardaiz Surreaux.
Na seção "História da Psicanálise" republicamos o artigo "Conflito de gerações, emergente de novas ideias", de César Ottalagano, Gecel Szterling e Fajga Szterling, que já em 1973 aborda o risco de olharmos apenas para o que sabemos de antemão interpretar com nossas teorias e impedirmos o surgimento de novas ideias ou o reconhecimento de fenômenos que forçariam a outros pensamentos. A presença clínica de pessoas das chamadas geração Y (os millennials) e Z (os nativos digitais) acrescenta ao costumeiro confronto de gerações os efeitos dessa revolução que marca as últimas décadas. Do encontro entre estrangeiros e nativos, quando este não se reduz a demonizações, podem surgir formulações criativas. Na mesma aposta da fertilidade na aproximação dos diferentes tempos, publicamos, ainda nessa seção, uma tradução inédita do artigo de Felix Deutsch sobre sua vivência clínica com a famosa paciente freudiana consagrada como "Dora". Contamos, além disso, com os artigos da seção "Temas livres" que completam o número com reflexões na direção da clínica, cultura e metapsicologia.
Esperamos que o leitor encontre, nas páginas que se seguem, oportunidade de ver trabalhar o pensamento psicanalítico quando está genuinamente conectado com inquietantes questões.
Referências
Bell, D. (1973). The coming of post-industrial society. Basic Books. [ Links ]
Freud, S. (1996). Moral sexual "civilizada" e doença nervosa moderna. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9). Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]
Han, B.-C. (2021). Sociedade do cansaço. Vozes. (Trabalho original publicado em 2010) [ Links ]