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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022
HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO
Do Fort-Da ao Fortnite: hiperconectividade e exaustão1
From Fort-Da to Fortnite: hyperconnectivity and exhaustion
Del Fort-Da al Fortnite: hiperconectividad y agotamiento
Du Fort-Da ao Fortnite : hyperconnectivité et épuisement
Bernardo Tanis
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da qual foi presidente (2017-2020). Doutor pelo Núcleo de Psicanálise PUC-SP. São Paulo / bernardo.tanis@gmail.com
RESUMO
Este trabalho investiga aspectos do impacto das transformações socioculturais na produção de subjetividades. Dispõe-se a enfocar olhar reflexivo em torno da revolução digital e da sua aguda hiperconexão que levam ao estabelecimento de uma particular relação espaçotemporal. O foco deste trabalho é tomar dois modos de jogo colocados no eixo temporal de 1920 a 2021 que permitiram alguma indagação sobre certas diferenças a respeito do que pode ser um jogo ou um brincar estruturante - Fort-Da, analisado por Freud em Além do princípio do prazer -, e um jogo lúdico da nossa era digital - o Fortnite. A análise aborda a singularidade de cada uma dessas duas experiência lúdicas e contribui para elucidar certa confusão, reinante no meio psicanalítico, entre a constituição do sujeito psíquico e a subjetividade historicamente determinada, bem como alude sinteticamente aos modos de entrelaçamento.
Palavras-chave: subjetividade contemporânea, brincar, simbolização, Fort-Da
ABSTRACT
This paper investigates the impact of sociocultural transformations in the production of subjectivities. It focus a reflexive look around the digital revolution and its acute hyperconnection that lead to the establishment of a particular space-time relationship. The focus of this work takes two game modes placed on the temporal axis from 1920 to 2021 and allowed some inquiry into certain differences between them. The structurating play Fort-Da analyzed by Freud in Beyond the Pleasure Principle and a ludic game of our digital age Fortnite. It addresses the uniqueness of each of these two playful experiences and also contributes to elucidate a certain confusion prevailing in the psychoanalytic environment between the constitution of the psychic subject and historically determined subjectivity, and synthetically alludes to the intertwining modes.
Keywords: contemporary subjectivity, play, symbolization, Fort-Da
RESUMEN
Este trabajo foca una mirada reflexiva en torno a la revolución digital y su aguda hiperconexión que llevan al establecimiento de una particular subjetividad e relación espacio-temporal. El enfoque de este trabajo toma dos modos de juego colocados en el eje temporal de 1920 a 2021 y permite indagar ciertas diferencias entre lo que puede ser un juego, el juego estructurante Fort-Da analizado por Freud en Más allá del principio del placer y un juego lúdico de nuestra era digital Fortnite. Aborda la singularidad de cada una de estas dos experiencias lúdicas y contribuye también a dilucidar cierta confusión imperante en el ambiente psicoanalítico entre la constitución del sujeto psíquico y la subjetividad históricamente determinada, y alude sintéticamente a los modos entrelazados.
Palabras clave: subjetividad contemporánea, juego, simbolización, Fort-Da
RÉSUMÉ
Ce travail étudie les aspects de l'impact des transformations socioculturelles sur la production des subjectivités. Elle souhaite porter un regard réflexif autour de la révolution numérique et de son hyperconnexion aiguë qui conduisent à l'établissement d'une relation spatio-temporelle particulière. L'objet de ce travail est de prendre deux modes de jeu placés sur l'axe temporel de 1920 à 2021 qui ont permis de s'interroger sur certaines différences quant à ce que peut être un jeu structurant - Fort-Da, analysé par Freud dans Au-delà du principe de jeu plaisir - et un jeu amusant de notre ère numérique - Fortnite. L'analyse aborde la singularité de chacune de ces deux expériences ludiques et contribue à élucider une certaine confusion, prévalant dans l'environnement psychanalytique, entre la constitution du sujet psychique et la subjectivité historiquement déterminée, ainsi qu'à faire allusion synthétiquement aux modes d'entrelacement.
Mots-clés: subjectivité contemporaine, jeu, symbolisation, Fort-Da
Gostaria de agradecer à comissão editorial do Jornal de Psicanálise o convite para participar deste instigante número: "Hiperconectividade e Exaustão". O convite foi feito após uma apresentação que realizei na Associação Psicanalítica Argentina (APA). A mesa-redonda da qual participei com este trabalho levava como título "Del Fort-Da al Fortnite". Tratava-se, à época (setembro de 2021), de uma atividade organizada pela Diretoria Científica daquela instituição vinculada ao eixo de pesquisa Atualização e Contexto. Estava em pauta para esse grupo a investigação, em vários cenários clínicos, sobre o impacto das transformações socioculturais na produção de subjetividades. Essa proposta coincide, em parte, com a carta-convite para este número do Jornal de Psicanálise, quando se dispõe a enfocar olhar reflexivo em torno da revolução digital e da sua aguda hiperconexão que levam ao estabelecimento de uma particular relação espaçotemporal. Diz a carta-convite a este número:
Os tempos, assim como as formas de presença, ganham características capazes de despertar transformações na forma de viver e de sofrer que merecem ser pensadas. No ritmo frenético de um mundo que interpreta como liberdade a autocoerção por performance o narcisismo é sobre-exigido, e os sofrimentos narcísicos merecem ser considerados no entrecruzamento do psíquico com o histórico-social.
Tive a oportunidade de escrever sobre esse tema em alguns trabalhos publicados (Tanis, 2009, 2014), e este exercício se inscreve nessa trilha.
Introdução
Este trabalho tem como foco a análise de dois modos de jogo colocados no eixo temporal de 1920 a 2021 que permitiram alguma indagação sobre certas diferenças entre o que pode ser um jogo ou um brincar estruturante e um jogo lúdico posterior a um tempo originário, no qual já estamos em face de um sujeito constituído. Também se espera que contribua para elucidar certa confusão, reinante no meio psicanalítico, entre as ideias de sujeito e subjetividade, já que essas questões estão intimamente entrelaçadas ao que esses jogos poderiam gerar no campo do sujeito e da subjetividade histórica.
O primeiro é o Fort-Da, observado por Freud (1920/2010) e analisado em Além do princípio do prazer, concebido como paradigma de uma primeira articulação significante, que determina uma tentativa de elaboração da emergência de uma repetição desagradável que afeta o infans. Embora conhecido, cabe retomar o jogo do Fort-Da tal como foi descrito por Freud, como uma brincadeira que consistia na desaparição e no surgimento de determinado objeto. Em uma oportunidade, Freud repara que a criança atirava o objeto sobre a borda de sua cama segurando-o pelo cordão, de modo que o carretel desaparecesse junto à emissão de um expressivo som o-o-ó (interpretado por Freud e familiares como fort, correspondente a "ir embora" em alemão). Posteriormente, puxava o objeto, e quando este aparecia, emitia um da (ressignificado por "ali", "retorno").
Freud interpreta o jogo Fort-Da como uma encenação das partidas e dos retornos da mãe do seu neto, ausência-presença, passagem/elaboração de atividade-passividade. Embora a ida/saída da mãe fosse desprazerosa, o jogo aparece como uma conquista cultural/simbólica. A insatisfação pulsional pode ser contornada por meio de uma função simbolizante do jogo que abre novas perspectivas, uma apropriação subjetiva da vivência de insatisfação, o nascimento de um sujeito.
O segundo, Fortnite, é um jogo eletrônico multijogadores online revelado originalmente em 2011. Na versão Fortnite Battle Royale, até cem jogadores lutam em espaços cada vez menores para serem a última pessoa ou o último time vencedor. Manifesta uma modalidade de jogo vinculado às novas tecnologias, à virtualidade. Sugere-se aos leitores informar-se e experimentar o jogo Fortnite, pois terão mais elementos para acompanhar esta breve reflexão.
Questionava a proposta do encontro na American Psychological Association (APA) se o exercício habitual de uma ou outra modalidade de jogo poderiam determinar diferentes configurações psíquicas. No dispositivo que constitui o jogo virtual, trata-se de uma nova configuração ou da colocação, em cena, de uma fantasia? Indaga-se também sobre o efeito do mundo digital, do ciberespaço, sobre as adições que poderiam provocar e sobre o modo pelo qual esses jogos expressam - ao mesmo tempo que constituem - aspectos da subjetividade do nosso tempo, impactando o regime pulsional. Convidam-nos a falar e pensar sobre as diferenças em relação às brincadeiras infantis mais tradicionais, à capacidade simbolizadora ou não dessas brincadeiras, e aludem aos efeitos que essas brincadeiras podem ter na constituição do sujeito.
Não é função de analistas e pesquisadores julgar, mas compreender as instigantes e surpreendentes tramas pelas quais essa nova cultura nos afeta e, de alguma forma, como reconhecemos esses efeitos em nosso cotidiano e na clínica.
Sobre o jogo e o brincar
O brincar, junto do sonhar, é um dos dois processos fundamentais que promovem a capacidade de representação/simbolização/criatividade. Criatividade não só no sentido artístico, mas também no sentido de criar a si.
Green (2012/2017, p. 69-122) e Roussillon (2012/2019, p. 241-266) nos mostram claramente que temos dois modelos sustentando a transformação da matéria bruta da experiência e suas inscrições: o modelo do sonho e o modelo do jogo. Por muito tempo, a psicanálise privilegiou o primeiro, matriz fundamental cuja origem data do Projeto, e com base na obra Interpretação do sonhos, Freud (1901) dá sustentação à primeira tópica freudiana. Esse modelo sofre profundas alterações na segunda tópica, quando a pulsão de morte e o traumático entram em cena e se alarga a concepção do sonho como espaço de elaboração/ligação possível do traumático.
Autores como Bion, assim como outros analistas contemporâneos, inspirados nas ideias em torno da identificação projetiva, do fenômeno de rêverie e da origem do pensamento, enfatizam o modelo do sonho como campo transformativo. O sonho também serve de modelo privilegiado para a sessão analítica.
De outra perspectiva, também aberta por Freud a partir da sua análise do jogo do Fort-Da no contexto de Além do princípio do prazer, Freud inaugura, e com grande estilo, um segundo modelo que terá em Winnicott um de seus expoentes mais criativos: nele, o brincar, o fazer e o ato não mais serão concebidos como acting in ou acting out, nem como ataque ao pensamento, mas como modalidades alternativas de transformação, simbolização e criação. Quando falamos em criação, nós o fazemos da perspectiva de processos de engendramento do sujeito subjetivo.
Quais seriam as condições de tempo e espaço para o jogo efetivar sua capacidade simbolizante? Quando e em que contexto poderá se tornar um simples passatempo, e em que circunstâncias uma experiência alienante é aditiva? É possível, como sabemos, diferenciar modalidades de brincar e os diferentes contextos em que ocorrem. A diferença entre jogar (game) e brincar (play) é decisiva. Sem criar uma barreira intransponível entre os dois, o brincar alude a algo mais solto e menos regrado, privilegia a imaginação; o brincar ocupa, como assinala Winnicott (1971), o espaço-tempo da transicionalidade, que envolve um modo bastante particular da presença do outro.
Além da inspiração freudiana que ele mesmo havia evocado, o jogo em várias ocasiões, foi claramente em resposta a Melanie Klein que Winnicott elaborou sua teoria do brincar. Sabe-se que foi Klein (1926/1981, 1930/1996) quem elevou o jogo ao status de associação livre, o que lhe permitiu, de modo brilhante, inaugurar e desenvolver a psicanálise com crianças. A técnica do jogo foi a solução encontrada para superar as dificuldades inerentes à análise infantil, concebendo-o como um modo de expressão das fantasias inconscientes da criança.
Herdeira dessa tradição, a abordagem de Winnicott foi elaborada distanciando-se dela em três aspectos: a prioridade dada à experiência sobre a interpretação; os efeitos dessa prioridade na teoria da análise em geral; e, por fim, o tom luminoso que o jogo (na versão do brincar) dá à sua teoria.
O tom winnicottiano (1971) na abordagem do brincar desenvolveu-se como uma reação a certo pessimismo kleiniano, como Hinshelwood (1989) coloca eloquentemente. Diz ele que, para Klein, brincar "não é divertido": "O jogo ... tem um aspecto desesperado e na verdade uma forma de defesa: expulsão ou projeção. Esse recurso do jogo é bastante sombrio e pessimista. ... É para aliviar esses estados internos perseguidos" (Hinshelwood, 1989, p. 14).
Continuemos nossa resenha com o modelo conhecido por jogo da espátula, origem do paradigma winnicottiano. Em A observação de bebês em uma situação estabelecida, Winnicott (1941/1993) relata que recebia o bebê com sua mãe. Colocava uma espátula na mesa e aguardava o gesto da criança. Nessas observações com várias crianças, constatou a manifestação de um período de hesitação, no qual, apesar de mostrar interesse, o bebê não se precipitava na sua direção nem a pegava. Posteriormente, se não houvesse interferência materna ou de Winnicott, a hesitação era superada. O bebê, então, apropriava-se da espátula e realizava algum tipo de jogo com ela. Segundo Winnicott, a experiência completa dava ao bebê o que ele denominou de lição de objeto. Havia ocorrido uma experiência que o tinha transformado.
Muito resumidamente, segundo Winnicott, o bebê havia tido a oportunidade de criar o mundo e a si. No rico texto, fala-nos de bebês com inibições em face de um olhar materno superegoico e de outros casos em que o fluir da experiência é inibido.
Destacamos muito esquematicamente alguns modelos, que evidentemente merecem aprofundamento.
a. O modelo do Fort-Da como uma experiência que representa (simboliza) o efeito de uma ausência, contempla a repetição, o incômodo e também manifesta um certo grau de agressividade. Para Lacan, essa ausência ganha o sentido de um corte, uma noção ampla da castração que faz ao nascimento do sujeito:
Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio - a borda do berço -, isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tenha senão o jogo do salto. Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha ... é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura. (Lacan, 1964/1998, p. 63)
b. O jogo, que segundo a leitura kleiniana, obedece a uma lógica de fantasias inconscientes e que contemplam principalmente aspectos projetivos.
c. O modelo winnicottiano, que coloca o brincar (o playing) no contexto transicional e intersubjetivo. O outro, aqui, ganha um papel de extrema relevância. Por fim, teríamos os conjuntos de regras, que também permitem a manifestação de aspectos estruturais de organização psíquica e são tão comuns em latência (se é que esta ainda existe, mas este é um assunto para futuros debates).
Se o Fort-Da emerge como jogo estruturante do sujeito dando lugar à emergência da simbolização como transformação da experiência bruta e seu mal-estar; e se o jogo da espátula também possui, de outra perspectiva, função estruturante como possibilidade de nascimento do sujeito a partir do gesto espontâneo perante o outro; outros jogos, mesmo não digitais teriam outras características, pois se dariam em um tempo posterior não apenas cronologicamente, mas também estruturalmente, no que se refere à instauração dos processos de simbolização. Assim, falando do Fortnite, já estamos perante um sujeito capaz de jogar
Agora podemos avançar nas perguntas que nos fazemos sobre o Fortnite, relativas a que tipo de jogo é esse e a que efeitos poderia produzir, ou melhor, quais efeitos reconhecemos em nossas clínicas.
Segue uma descrição bastante esclarecedora:
Os jogos eletrônicos propõem uma relação particular com os usuários. Sinais manipuláveis que respondem interativamente sob a força de um programa. Conjunto de ações possíveis, e conjunto de signos que podem ser desfrutados e transformados, assim como signos que não podem ser transformados que condicionam os deslocamentos dos signos móveis. ... tal orientação é provocada de modo provocativo e estético ao sujeito com quem interagem. (Lima, 2011, p. 13)
Antes de pensar no que o jogo produz, é interessante avaliar como condição estrutural do jogo que aquele que joga não se separa de seus determinantes subjetivos ao fazê-lo. A experiência de jogo sempre será declinada de acordo com a história do sujeito que interage com ele. Estão em jogo suas preferências, se ele é mais ou menos metódico, seu nível de competição, de agressividade e, inicialmente, suas chances de sucesso/fracasso. A autoestima, os ideais, a tolerância à frustração, a persistência etc. Em outras palavras, o lugar que o jogo ocupa no campo imaginário e dos ideais.
Há aqui um processo entre duas inteligências: a humana (o jogador e o programador) e a da máquina. Na medida em que é uma interação envolvendo um sujeito, aquele que joga, e alguma coisa híbrida que não sabemos exatamente o que é, mas que podemos chamar de A (algoritmo), podemos avançar com nossas perguntas: quem ou o que é A? O que A espera de mim? O que eu espero de A? O que é e de que ordem pulsional é aquilo que A mobiliza? Posso interagir, divertir-me, ter prazer e funcionar dentro do registro do princípio do prazer, ou em que condições A me domina e fico compulsivamente apegado, viciado, algo para além do princípio do prazer?
Com isso, temos um primeiro olhar da perspectiva do sujeito que joga. Interroguemos sobre o que podemos dizer de A.
1. A tem suas regras, suas exigências, premia a velocidade, a percepção, não nos dá muito tempo para pensar, temos que perceber e apertar o botão; se não o fizermos rapidamente, dependendo da fase em que estamos, A nos elimina. Fim de jogo. Essa urgência de resposta pode ser pensada em relação aos três tempos destacados por Lacan:
Caso tenhamos:
a. o tempo para ver;
b. o tempo para compreender;
c. o tempo de conclusão.
Vemos que A compacta, reduz o tempo de compreensão ao mínimo possível, até se tornar quase um reflexo condicionado. Isso sem dúvida há de ter algum efeito na condição do pensar no automatismo reflexo das repostas, na ansiedade gerada pelo próprio jogo que pode entrar em ressonância com a estrutura do sujeito.
2. Na primeira transmissão da guerra do Golfo, surgia a cnn. A ideia de streaming, narrativa e imagens da guerra já era anunciada como se fosse um videogame. Perdia-se qualquer dimensão reflexiva e narrativa. A ação prevalece sobre o pensamento; busca-se produzir impacto e capturar o olhar do espectador. Assim como hoje, nas redes sociais, já que tempo de atenção é monetizado. Questiona-se o que oferecer para capturar a atenção, captura que só pode se instaurar se ativar o registro pulsional.
3. Então, que lógica A nos propõe? Matar ou ser morto. Claro que essa afirmação não se refere a todos os jogos, mas àqueles que os meninos, pelo menos no Brasil, chamam de jogos de tiro. Sem dúvida, durante o jogo, essa lógica prevalece, mas é possível perguntar-se: quando jogamos xadrez, tênis etc., essa lógica também não estaria em jogo? Se a resposta for sim, o que seria diferente? Podemos falar sobre isso, aventar algumas hipóteses: o viciante, o infinito... A máquina nunca se cansa (caso seja boa), está sempre lá. O jogador recebe reforços que condicionam o seu querer mais, se joga sozinho, e não numa plataforma de grupo: "Não tenho que prestar contas a ninguém do meu sucesso ou fracasso". Por que tantos jogam hiperconectados até a exaustão (pensemos em Hiperconectividade e Exaustão, título da convocatória do Jornal)? Aqui encontramos a dimensão compulsiva; o que procuro, o que me captura? Por que eu quero mais e mais? Por que não consigo parar?
4. Algumas hipótese vinculam essa captura à subjetividade pós-moderna, ao enfraquecimento do sujeito como narrador, sujeito passivo diante de um cenário constituído. O jogo não cria uma imagem, mas, sim, manipula as que recebe... A pulsão não teria freios... Esses efeitos teriam a capacidade de moldar subjetividades? Até que ponto? Ou ainda mais: poderiam afetar o próprio regime pulsional do sujeito?
Aqui, com base na experiência clínica, pode-se afirmar que o que acontece ou não acontece é resultado dessa interação, daquela entre o sujeito constituído e A. Ambos habitam uma cultura digital, um contexto socioeconômico, e o sujeito é produto de uma instância familiar com certas características; tudo o que sabemos sobre a constituição do sujeito, e é isso o que você encontrará em A.
Lembro-me dos filmes de espionagem a que assistia na minha adolescência, abundantes no contexto da Guerra Fria. Era sempre preciso seduzir e cativar um agente inimigo, e seus pontos fracos eram muito bem estudados para ver onde entrar. Certamente sabemos que os programadores, os experts em marketing, como na publicidade de fake news, captam os elementos subjetivos que estimulam a atenção, o desejo, a compulsão. Uma questão interessante: recentemente, o governo chinês resolveu colocar limites nas empresas de tecnologia, decisão complexa num contexto autoritário, mas a lógica dos games não seria também a lógica de uma dominação, mas direcionada a uma captura dos sujeitos e sua modelização? Teoria conspiratória ou maximização de lucros?
Tudo isso nos leva a outro dos eixos propostos.
Todos lidamos com o efeito, no psiquismo, das profundas transformações ocorridas desde o período entre o final do século passado e as duas primeiras décadas do atual. Isso afeta tanto o psicanalista quanto o filósofo, o sociólogo, as artes em geral, o educador e os agentes econômicos bem como as formas pelas quais as sociedades organizam a produção de bens materiais e representações, transformando narrativas, experiências temporais e laços sociais. São tantos os autores que abordam essas questões que teríamos de citar dezenas de pensadores, filósofos, antropólogos, cientistas sociais. Mas foi Foucault quem indagou com mais propriedade a questão central. Disse que seu objetivo não era analisar o fenômeno do poder ou os fundamentos de tal análise: "meu objetivo era criar uma história das diferentes maneiras pelas quais os seres humanos se tornam sujeitos" (citado por Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 231). Podemos pensar os efeitos de subjetivação produzidos por esse contexto.
1. A apresentação faz uma pergunta interessante sobre o contraste entre a criança que é agente e aquela que está sendo tocada pelo dispositivo A? Que margem de liberdade tem a criança, seria ela aprisionada pelo desejo do Outro (A)? Depois, dei risada ao perceber, no decorrer da escrita, que chamei o algoritmo de A maiúsculo (Notação Grande Outro, na conceituação de Lacan). Claro que as teorias sobre o mundo neoliberal e sobre a ideologia do consumo e da submissão estão presentes aqui, e imaginamos um mundo distópico povoado por robôs, humanos submetidos a máquinas - já que nosso ponto fraco seria o desejo compulsivo de vencer, e pela queda eles estariam nos oferecendo algum grau de ilusão.
2. Todos nós nos surpreendemos com bebês que ainda não adquiriram a linguagem verbal, mas que já usam o indicador para trocar as páginas do celular ou do iPad. Uma experiência de "poder" incrível. Sem mencionar sua tristeza e frustração em contato com objetos analógicos que não respondem a esse comando.
Alguns estudos, como a coletânea de Baptista e Jerusalinsky (2017), falam-nos sobre a intoxicação tecnológica na era digital e suas consequências, como distúrbios de atenção e ansiedade, na medida em que não toleram a espera. Isso é claramente confirmado na clínica. Busca-se a satisfação imediata, o caminho da intermediação, do pensamento elaborativo; como dissemos acima, este é reduzido, tendendo a zero. Alguns nos dizem que esses jogos são uma espécie de chupeta eletrônica. Será que esses jogos têm a capacidade de crias vias colaterais à descarga, como diria Freud no Projeto? Será possível criar processos secundários por meio desses jogos, ou apenas estaria em jogo um certo gozo? Aqui, talvez seja interessante retomar o sujeito -A (algoritmo). Agora que apontamos minimamente algumas características do jogo digital como geradas por A, podemos observar que, para certos jovens, o elemento sedutor e de gozo que esses jogos oferecem poderá ser menos capturador e viciante que para outros. Abre-se aqui uma interessante linha de pesquisa. Será que jovens com uma maior instabilidade narcísica, um desequilíbrio maior em torno dos ideias, um certo vazio, estarão mais propensos a serem adictos? Devemos tomar cuidado para não patologizar o interesse, e, sim, compreender o modo de aproximação e intensidade. Na experiência clínica e na discussão de casos de jovens adultos em supervisão que fazem uma combinação de uso de drogas com esse tipo de jogo madrugada dentro, constata-se que eles preferem esse modo de entrega e diversão a outro tipo de convívio com amigos, apresentando, no dia seguinte, dificuldades de se envolver com suas tarefas, seja trabalho, seja estudo. Trata-se de algo para refletir.
Antes de encerrar estes breves comentários, cabe uma discussão referente a certas distensões entre sujeito e subjetividade. Bleichmar (2004), importante analista e pensadora argentina, alerta para os limites e excessos do conceito de subjetividade.
A subjetividade é atravessada pelos modos históricos de representação com os quais cada sociedade determina o que considera para a formação de sujeitos adequados para se desdobrar nela. Isso é bastante consensual para a maioria dos autores que desde Foucault desenvolveram e popularizaram essas análises. Como o filósofo Han (2015), tão citado hoje, que fala do efeitos psíquicos em torno do que chama sociedade do cansaço e sociedade da transparência. Para quem, como expresso na carta-convite deste número, a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar de Foucault, mas a do desempenho. No entanto, mantém a ideia foucaultiana de subjetividade historicamente determinada.
Bleichmar (2004), contudo, sem questionar esse elemento histórico, pergunta se esses processos, por estarem vinculados a uma lógica da identidade, ofereceriam resistência ao Inconsciente. Assim - e essa ideia é extremamente importante -, a subjetividade não pode se referir ao funcionamento psíquico em sua totalidade.
A autora questiona: podemos discriminar certos modos de funcionamento do inconsciente, processos primários, sexualidade, pulsões, que permanecem sob as leis de constituição do funcionamento psíquico, e o que seria compartilhado, apesar da diversidade cultural?
Haveria alguma invariante, uma universalidade para o que é a constituição do funcionamento e a constituição do aparelho psíquico diante das formas como vemos emergir as subjetividades contemporâneas? Ou estaríamos questionando não a universalidade do sujeito, mas a universalidade de certos processos descritos desde Freud que fazem a dinâmica de funcionamento e estruturação do psiquismo?
Para tornar isso mais concreto, será que o Fort-Da, como jogo estruturante fundador da simbolização, ou a experiência da espátula winnicottiana, seriam ressignificados na nossa era digital? Nesse caso, falaríamos numa nova constituição do sujeito, não apenas dos ideais de uma época. Um tema para continuar trabalhando: como a subjetividade afeta ou modela esses processos nucleares da dinâmica psíquica e da constituição do sujeito?
Ora, se deixarmos de lado os casos em que a palavra "sujeito" tem um significado próximo ao de objeto (como em "o assunto desta exposição"), nosso sentimento linguístico nos diz que "sujeito" designa o ser próprio de um agente de representação ou vontade.
Para Roussillon:
No que me diz respeito, parece-me que o conceito de sujeito, tomado em particular no sentido do processo de subjetivação, ou seja, do processo que propus chamar de apropriação subjetiva (extraído da fórmula de Freud de 1932, Wo es war soll ich verden), ganhou seu lugar na terminologia psicanalítica e pode ser usada sem o risco de ficar atolado na metafísica. O conceito de intersubjetividade me parece, portanto, que pode ser usado sempre que se referir a uma concepção "psicanalítica" do sujeito, ou seja, uma concepção que integra a existência de uma dimensão inconsciente da subjetividade que passa pela questão da pulsão e sexual. (2011, p. 160)
Com o Fortnite e o paradigma que representa, estamos diante de uma experiência subjetiva diferente e complexa. Articulam-se o jogo, o jogador e o A (algoritmo) que modela o mundo e o espaço subjetivo construído com o gozo/o prazer na experiência de jogar. O jogo pode promover aguçamento perceptivo, intuição, raciocínio abstrato e questionamentos entre o objetivo e o subjetivo, mas também alienação e adição.
Esse novo jogar quebra a tradição, introduz uma mudança por vezes desconcertante, um modo de perceber, pensar e agir que pode levar a diferentes experiências subjetivas que afetam a representação e os discursos sobre a produção da subjetividade com os quais o sujeito se defronta. Como no filme Ela (Her), de 2013 em que Theodore, um escritor solitário, desenvolve uma relação amorosa especial com o novo A (algoritmo). Surpreendentemente, ele acaba se apaixonando pela voz desse show, uma entidade intuitiva e sensível chamada Samantha, um novo tipo de intersubjetividade...
Referências
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Recebido em: 3/3/2022
Aceito em: 5/3/2022
1 Elaboração da apresentação na mesa-redonda "Del Fort-Da al Fortnite", promovida pela Diretoria Científica da Associação Psicanalítica Argentina em setembro de 2021.