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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022
HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO
Inquietantes movimentos na psicanálise1
Disquieting movements in psychoanalysis
Movimientos inquietantes en psicoanálisis
Des mouvements inquiétants en psychanalyse
Selma Terezinha Oliveira Fernandes Jorge
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e docente do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Presidente Prudente / fejor3@hotmail.com
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo refletir brevemente sobre o percurso da psicanálise, desde sua chegada no Brasil até os dias atuais. Questões sobre a prática e a formação surgem enunciadas sobre os princípios que norteiam o pensamento psicanalítico. Nesse contexto, o tema não se esgota e oferece pauta para um diálogo permanente sobre o ofício da psicanálise em sua extensão ético-estética: direito ao exercício de ser em comunhão com o outro numa sociedade de afetos e efeitos.
Palavras-chave: história, psicanálise, Freud, higienismo, formação
ABSTRACT
This work aims to briefly reflect on the path of psychoanalysis, from its arrival in Brazil to the present day. Questions about practice and training arise from the principles that guide psychoanalytic thinking. In this context, the theme is not exhausted and offers a guide for a permanent dialogue about the profession of psychoanalysis in its ethical-aesthetic extension: the right to exercise being in communion with the other in a society of affections and effects.
Keywords: history, psychoanalysis, Freud, hygienism, training
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo reflexionar brevemente sobre el camino del psicoanálisis, desde su llegada a Brasil hasta la actualidad. Las preguntas sobre la práctica y la formación surgen de los principios que guían el pensamiento psicoanalítico. En este contexto, el tema no se agota y ofrece una guía para un diálogo permanente sobre la profesión del psicoanálisis en su extensión ético-estética: el derecho a ejercer el estar en comunión con el otro en una sociedad de afectos y efectos.
Palabras clave: historia, psicoanálisis, Freud, higienismo, formación
RÉSUMÉ
Ce travail vise à réfléchir brièvement sur le parcours de la psychanalyse, depuis son arrivée au Brésil jusqu'à nos jours. Les questions sur la pratique et la formation découlent des principes qui guident la pensée psychanalytique. Dans ce contexte, le thème n'est pas épuisé et offre un guide pour un dialogue permanent sur le métier de psychanalyste dans son prolongement éthico-esthétique : le droit d'exercer en communion avec l'autre dans une société d'affections et d'effets.
Mots clés : histoire, psychanalyse, Freud, hygiénisme, formation
O propósito deste breve trabalho é reunir os princípios da psicanálise e enunciá-los, por assim dizer, dogmaticamente - da maneira mais concisa e nos termos mais inequívocos. Sua intenção, naturalmente, não é compelir à crença ou despertar convicção. ... Os ensinamentos da psicanálise baseiam-se em um número incalculável de observações e experiências, e somente alguém que tenha repetido essas observações em si próprio e em outras pessoas acha-se em posição de chegar a um julgamento próprio sobre ela. (Freud, 1938-1940/1996a, p. 157)
Introdução
Quando estive, em janeiro de 2019, em Belo Horizonte para uma reunião do Conselho Profissional, como representante da SBPSP, deparei com algumas inquietações: o surgimento de formações psicanalíticas diversas e as iniciativas para profissionalizar nossa prática podem ser refletidas como expressão para o mal-estar contemporâneo ou apenas contextualiza a ideia de a psicanálise ser uma ciência de fronteira? A fronteira que separa o indivíduo do grupo é, ao mesmo tempo, espaço de intercâmbios, aprendizados e desenvolvimento, porém, na transmissão da civilização, a retórica pode ser utilizada para o assentamento de poder e governança, sob a dimensão de ideias libertadoras determinando caminhos de um indivíduo e um grupo. A reflexão dos fenômenos socioculturais e políticos que circundam a psicanálise desde os primórdios, no que diz respeito a sua chegada no Brasil, caminha na esteira de pensar não soluções, mas qual história estamos escrevendo.
Passado pouco mais de um ano desse encontro, as inquietações permanecem e atualizam-se em um cenário em que a prática psicanalítica e a formação dos membros filiados em suas Sociedades são atingidas por uma pandemia que parece interrompê-las, ao mesmo tempo em que as introduz em uma discussão em torno dos princípios éticos que as norteiam. Debruçados sobre um cenário emergencial, grupos psicanalíticos diversos apoiam-se em recursos tecnológicos e promovem encontros que agregam os pares interessados em examinar e discutir a prática psicanalítica no modelo virtual.
Seguindo a linha do tempo, em janeiro do presente ano, no solo em que se apoiavam as discussões sobre o atendimento virtual em tempos de pandemia, abre-se uma fenda patrocinada pelos auspícios de empresas privadas interessadas na mercantilização da formação em psicanálise: é aprovado o primeiro curso a distância de graduação em Psicanálise.
Se o modelo inserido na relação analista-analisando contém uma teoria, as filiações teóricas nas quais estamos imersos só podem fazer sentido se conduzirem o analista a uma vida subjetiva integrada ao modo de pensar a psicanálise na prática clínica e na vida. É preciso conquistar uma psicanálise encarnada, em que o objeto teórico fala através da fala do analista, mas fala diante de um encontro vivo, sensível que toca e inspira associações diante de uma rede transferencial↔contratransferencial. Psicanálise não é uma prática do saber, mas da busca pelo conhecimento com base em uma trama inconsciente.
Essa matéria se complexifica diante do cenário digital.
Há muito sabemos que analistas vem-se empenhando em estudar a aplicabilidade do atendimento online diante do impacto da globalização na vida dos pacientes. No entanto, o caráter emergencial da pandemia caiu como um véu sobre a clínica contemporânea: era necessário pausar e ouvir o desassossego do corpo que chora apavorado diante de sua vulnerabilidade. Nessa condição, o real busca seu par simbólico, e a função psicanalítica da personalidade esforça-se por permanecer atenta ao estranho sujeito do inconsciente.
Há uma pedra no meio do caminho?
Suponho ser necessário refletir o interesse pela homogeneização do comportamento subjacente às práticas políticas, a qual faz do retorno do recalcado a pedra no meio do caminho. A violência simbólica a que é submetido conduz o sujeito a um sentimento ambíguo, destacado pela sua estranha atração por um mundo hegemônico, colonizado pela tecnologia e pela ilusão narcísica da onipotência sobre o espaço-tempo. Tudo para já é administrado por pílulas em um mundo colonizado pelo desejo, sem considerar o ser humano necessitado do outro.
Qual é a história?
No final do século XIX, mais precisamente no ano de 1898, as ideias de Freud, ainda nascentes, chegam ao Brasil num período em que seu pensamento encontrava grande rejeição pelo grupo de médicos vienenses. Juliano Moreira, professor catedrático na Faculdade de Medicina de Salvador, cita Freud em algumas de suas conferências. Nessa passagem secular, o saber médico, pelas mãos de neurologistas e psiquiatras, apropria-se de suas investigações no âmbito científico suscitando diversas vertentes.
As primeiras referências à psicanálise no Brasil estão inseridas num contexto sociopolítico em que a nação e a nacionalidade se punham a postos - com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889 - para enfrentar as complexas mudanças sociais que repercutiam após o movimento abolicionista marcar para sempre o 13 de maio de 1888 em nossa história. Quando, em 1920, Franco da Rocha lança a obra A doutrina pansexualista de Freud, o Brasil atravessava uma crise no processo de modernização, com agravos das condições sanitárias (Sevcenko, 1992). As tensões sociais desencadeadas pela libertação de escravos e pela chegada de imigrantes europeus, que começam a se deslocar dos centros em guerra, levaram o regime político a utilizar-se de um discurso nacionalista como medida preventiva. Nessa mesma esteira, a ciência médica no país busca, na regulação e organização do sujeito social, uma saída para as questões sanitárias: era preciso assegurar a população por meio de medidas civilizatórias. A medicina se incumbia de tornar a ciência meio para esse pleito. A miscigenação era vista como risco (Rocha, 1983) para o que seria o campo das paixões e dos instintos. Neste sentido, segundo Porto-Carrero, o discurso psicanalítico, sob a tutela da psiquiatria, do final do século XIX e o início do século XX, pôde apresentar-se como saída para um projeto educativo e civilizatório do povo brasileiro, difundindo-se como estratégia para tratamento de uma classe débil e impotente, que ofereceria riscos à aristocracia vigente (Porto-Carrero, 1933). O combate ao "mal-estar social" passa a ser enunciado por uma pedagogia aristocrática que visava domar as pulsões: educar e aperfeiçoar os instintos. Neste reducionismo e estreitamento do pensamento freudiano é possível refletir sobre a distorção e o uso sociopolítico da psicanálise numa dimensão contrária à abolição do sujeito psíquico.
Porto-Carrero2 argumenta:
Dada a profunda influência da sexualidade na formação e operação da psyche infantil, não é justo que a educação se furte ao lado sexual da vida e repila, simplesmente, como immoraes, as manifestações e os conhecimentos sexuais. Urge fazer a educação sexual. (1929, pp. 58-59)
A educação científica com a utilização da psicanálise, para Porto-Carrero, surgia como uma proposta para a educação das raças primitivas, elas precisavam ser civilizadas.
Em 1882, quando Machado de Assis evoca em "O alienista" (1882/1979) um projeto para a derrocada da (in)sanidade, a ficção se apropria do discurso político em prol de um sanitarismo psíquico?
Nesse ponto, permito-me uma breve digressão: a análise do comportamento humano no campo do egoísmo e das vaidades prenunciava o itinerário da psicanálise pelos becos obscuros nos dias de hoje? Nesse texto literário, as medidas preventivas adotadas pelo personagem Bacamarte para garantir um sujeito são em uma procriação sã apontava para uma ideologia que afastava o homem de sua natureza. A razão será o objetivo da sanidade; já da insanidade, sua derrocada. Os limites da razão, do poder, do cientificismo cederão diante da complexa dimensão do sujeito psíquico?
Se a dialética machadiana torna-se interlocutora para refletirmos a psicanálise numa fronteira móvel, ela denuncia a insuficiência do campo discursivo diante desse ofício? "A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática" (Machado de Assis, 1882/1979, p. 288).
Ora, se Bacamarte, com base em suas elucubrações em busca de um método coadunado à moral e aos bons costumes, procurava defender a sanidade de todos, pergunto-me: a qual Bacamarte estamos expostos? Àqueles que defendem a teoria e a prática em si mesmos, eliminando a experiência vincular, análise pessoal, supervisão, seminários teórico-clínicos em grupos de discussões, com início, meio e fim?
Desde o final do século XIX, as políticas higienistas de saúde pública tiveram dois componentes: um, progressista, humanista e racional, visava a melhorar a saúde das populações pelo rastreamento e tratamento das grandes doenças orgânicas; o outro, francamente reacionário, oculto e mortífero, desembocará no eugenismo, isto é, numa ideologia de eliminação da raça ruim, dita doente, em prol da boa, dita saudável. (Roudinesco, 2005, p. 31)
Nesse contexto em que a psicanálise nasce e, como disciplina leiga e racional, desponta no cenário médico, causa turbulências e oferece ao indivíduo seu lugar por natureza: a fronteira entre o consciente e o inconsciente, o espaço da escuta e da fala, expressão para um inconsciente que não se curva à política de vigilância e a normas de higienização.
Mas, se, por um lado, esse contexto inscreve historicamente a psicanálise como ciência que oferece ao cidadão sua nascença psíquica, por outro, quais as implicações que surgem diante da conquista de sua subjetividade?
Passado um século, a discussão sobre a crise sanitária de outrora parece se atualizar: somos plateia para milhões de óbitos. Medidas de contenção parecem elevar a sanidade ao teatro do impossível. Precisamos nos manter isolados! A ciência, a postos, busca o saneamento do novo coronavírus, sars-cov2, identificado em Wuhan, na China, no dia 31 de dezembro de 2019. Desde então, os casos notificados convertem-se, em grande número, em morte. Aturdidos pela expressividade violenta do vírus, psicanalistas recolhem-se em suas casas e reúnem suas impressões e vivências para discutir, em grupos, o método e a prática psicanalítica diante da fragilidade e da impotência num momento pandêmico.
A consideração do setting psicanalítico como espaço-tempo da dupla analista-analisando, mediado pela técnica e salvaguardado pela personalidade do analista, sofre um enquadre virtual com as atividades online na clínica e no processo formativo. Neste cenário, considerado reflexivo e transitório, a morte e vida biológicas ocupam o primeiro plano e expõem a necessidade da busca - por meio do método psicanalítico - pela sobrevivência do sujeito psíquico.
História do movimento psicanalítico
Desde que a IPA, em 1910, foi criada durante o Congresso Internacional de Nuremberg, na Alemanha, a psicanálise assenta sua prática sobre o pensamento freudiano no que responde à necessária abertura para a compreensão do sujeito psíquico em sua natureza. A dialética entre Inconsciente↔Consciente e suas manifestações surgirão no interior do setting e terá a personalidade do analista como seu guardião. No entanto, em 1914, em seu artigo "A história do movimento psicanalítico", Freud expõe dificuldades inerentes a uma ciência que, ao se inclinar sobre a atividade mental inconsciente, abordará inevitavelmente dois fenômenos na prática clínica e, penso eu, institucional: transferência e resistência. O autor destaca ao final:3
Os homens são fortes enquanto representam uma ideia forte; se enfraquecem quando se opõem a ela. A psicanálise sobreviverá a essa perda e a compensará com a conquista de novos partidários. Para concluir, quero expressar o desejo de que a sorte proporcione um caminho de elevação muito agradável a todos aqueles que acharam a estada no submundo da psicanálise desagradável demais para seu gosto. E possamos nós, os que ficamos, desenvolver até o fim, sem atropelos, nosso trabalho nas profundezas.
(Freud, 1914/1996b, grifos meus, p. 73)
Em 1920 é criado o International Journal of Psychoanalysis, que passa a ser espaço de divulgação das ideias psicanalíticas, ao mesmo tempo em que expande sua doutrina para outros continentes. Essa abertura, com desdobramentos também no âmbito político, cultural, religioso e estético, será denominada freudismo. Uma plateia de leigos tornar-se-á pioneira em outros espaços.4
Diante dessa crescente abertura, a psicanálise apareceria, pouco a pouco, como uma ferramenta para pensar os destinos do ser humano diante da crueldade que surgia no pós-guerra. Paradoxalmente, porém, era também utilizada como discurso para assentar os excluídos. Jargões como "histérica", "sádico", "masoquista" e "perverso" revelavam o uso de uma nova "nosografia".
A partir da década de 1930, a International Psychoanalytical Association (IPA), ao se dar conta da dimensão intercontinental e dos novos pensamentos psicanalíticos vigentes entre os psicanalistas, passa a reunir a pesquisa, a publicação, a divulgação e a condução da formação de psicanalistas ao redor do mundo. Essas ideias normativas tinham o intento de preservar não somente o setting, mas consolidar os pensamentos psicanalíticos novos que começaram a despontar também no discurso de leigos praticantes5 e estudiosos da psicanálise, como Klein (Policlínica de Berlim, 1920), entre tantos. O ofício da psicanálise passa a ser acompanhado por uma instituição internacional que toma como princípio a análise pessoal, a supervisão e o vasto campo teórico-clínico.6
No Brasil, embora vários precursores, na maioria, médicos, tenham propagado publicações de Freud, foi o pioneiro Durval Bellergade Marcondes quem deu início à clínica psicanalítica no país, em 1924, conduzindo junto com Franco da Rocha a abertura da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.7
Em 1967, nasce a Febrapsi como Associação Brasileira de Psicanálise (abp) agregando inicialmente três Sociedades de Psicanálise no país (São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre). Atualmente reúne cerca de 2.300 membros em vários estados e no Distrito Federal, em 18 federadas e 5 núcleos psicanalíticos. Suas ações estão voltadas para a criação de um intercâmbio entre seus membros, propiciando expansão e oxigenação do pensamento psicanalítico em diferentes estados e regiões. No entanto, na atualidade, essas ações somam-se à necessidade de manter-se vigilante quanto aos rumos e à prática difundida por diferentes grupos que não têm clareza da complexidade da formação e da prática da psicanálise.
Do mal-estar na psicanálise
Em "O ofício do psicanalista (formação vs regulamentação)", Maria Ida Fontenelle e Vania Otero denunciam:
No segundo semestre de 2000, nós, de algumas instituições psicanalíticas de todo o Brasil, começamos a receber, por mala-direta e na porta de cinemas e teatros, alguns prospectos de "Formação psicanalítica" oferecida pela Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira (spob), com a promessa de profissionalização ao término do curso. Ao mesmo tempo, estava sendo criado o Conselho de Psicanálise Clínica. (p. 45)
No mesmo período, o deputado Éber Silva, do Rio de Janeiro, também pastor da Igreja Batista, apresentou um projeto de lei no Congresso Nacional que visava a regulamentar o exercício da psicanálise no Brasil, com o apoio da spob e da bancada evangélica. Ao final, foi movida uma ação e o Ministério Público deu um parecer favorável ao fechamento da spob.
Esses fatos marcam a criação do Movimento Articulação. Nessa época, sob iniciativa da abp/Febrapsi em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia (cfp), acontece a primeira reunião do Movimento no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. O jornal Folha de S.Paulo8 divulga a reunião e os interesses da abp, na época sob a presidência do psicanalista Wilson Amendoeira, com o título "Objetivo é controlar expansão de cursos rápidos para psicanalistas". A reportagem de Sérgio Duran e André Singer anuncia:
A abp discute hoje, em um encontro no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, com representantes de cerca de 20 instituições ligadas ao exercício da psicanálise, uma forma de regulamentar a profissão no país. A proposta do presidente da abp, Wilson Amendoeira, é criar um conselho de auto-regulamentação de psicanalistas, como o conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação), dos publicitários.
O Conselho Profissional instituído pela Febrapsi, desde então, vem acompanhando os diferentes projetos de lei que seguem para a cas no Parlamento. A atenção preventiva do Conselho Profissional junto ao Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas9 Brasileiras aos que seguem para o relator demanda um trabalho hercúleo junto aos parlamentares. Atualmente persiste um projeto de redação do senador Telmário Mota (ptb/rr) em trâmite pelo Senado:
Projeto n. 101/2018, cuja ementa busca regulamentar a profissão do psicanalista dispondo que o exercício do psicanalista é livre em todo o território nacional (Borges, 2018).
Quanto a essas primeiras ações, Roudinesco pensa junto:
Como fenômeno planetário, a seita de hoje é, porém, também o equivalente desse outro terrorismo, muito mais criminoso, que caracteriza o Estado meliante (ou o Estado charlatão) em sua relação com o Estado-nação ou o estado de direito: a fonte mais irredutível do terror absoluto, diz Jacques Derrida, aquela que, por definição, verifica-se a mais vulnerável diante da pior ameaça, seria aquela que provém de "dentro", dessa zona em que o pior de "fora" habita "em mim". Sob esse aspecto, a grande seita dos evangélicos, oriunda das igrejas protestantes tradicionais, e que estabeleceu a missão de organizar o Armagedon (a batalha final entre o bem e o mal), despertando os cristãos de seu adormecimento, é certamente uma das mais poderosas do planeta: conta com quinhentos milhões de adeptos distribuídos pelo mundo, e mais particularmente nos eua e na América Latina. No Brasil, os evangélicos se apoderaram do saber psicanalítico e deturparam as sociedades freudianas de todas as tendências. Depois de terem criado uma sociedade de psicanálise dita "ortodoxa" e de terem formado 1.500 praticantes que pretendem estar em condições de distinguir uma esquizofrenia de uma possessão demoníaca em função da reação do paciente à frase "o sangue de Jesus tem poder", em 2000 eles elaboraram um projeto de lei para a regulamentação da profissão de psicanalista (Roudinesco, 2005, p. 70).
E no arrolar dos acontecimentos, tudo parecia ter sido dito, se não fosse...
Exauridos pela hiperconectividade diante do curso prolongado da pandemia, mas ainda vigilantes e cuidadosos com a prática, a comunidade psicanalítica é comunicada da abertura de um curso de graduação, com bacharelado em psicanálise, no formato a distância (ead), de 4 anos, por um Centro Universitário. O curso foi autorizado pelo mec na gestão do ministro Milton Ribeiro (julho de 2020 a março de 2022), pastor presbiteriano, teólogo, advogado e professor brasileiro.
A Folha de S. Paulo publica matéria de Marco Antonio Coutinho Jorge em 11 de janeiro de 2022: "Bacharelado em psicanálise é aberração". Cabe ao mec rever autorização dada a curso cuja motivação é empresarial.
O Movimento Articulação (2021) se expressa em matéria publicada em 10 de dezembro:
A formação em psicanálise decorrente da análise pessoal, da leitura crítica da teoria e das reflexões clínicas, dá-se sempre de modo singular, não cabendo em programas fixos e comuns para todos, em um tempo pré-determinado. A oferta desse curso desconsidera essa especificidade da formação do psicanalista e negligencia a formação do psicanalista praticada há mais de 100 anos, em todo o mundo.
Ao mesmo tempo, a Febrapsi, por intermédio da Diretoria do Conselho Profissional prepara e compila, na edição de março de 2022,10 textos e notas sobre os acontecimentos no cenário atual. Escolho fazer coro com Carlos Cesar Marques Frausino:
Sendo assim, emergem indagações acerca da psicanálise e sua relação com a cultura e a sociedade contemporânea. Será que estamos municiados com reflexões e argumentos suficientes para navegar nesse quadro? Será que o edifício, teórico e clínico, da psicanálise suporta tais mudanças? E o exercício do ofício do psicanalista? No campo psicanalítico como se move a dinâmica entre tradição e inovação no processo formação/transmissão da psicanálise? Como zelar pelo nosso ofício em tempos de pandemia e de hiperconexão? (p. 5)
Peço aos leitores que suportem minha pausa para perguntar a Guimarães Rosa:
- O diabo é demasiado humano? E, se é fantasiação, como sentá-lo na cadeira dos estudiosos?
Não sugiro uma conversa na dimensão metafísico-ontológica, mas apenas uma pausa para a aproximação desses inquietantes movimentos na psicanálise.
Reflexões
O propósito dessas breves reflexões se estende para além do campo ideológico, mas se interessa também por pensar os desdobramentos quando diferentes segmentos da sociedade pleiteiam a inserção do ser humano em Casas Verdes - remédio universal, buscando uma eugenia da raça humana.
Nesse contexto, o tema que nos surge não é remédio, mas pauta para contínuo diálogo e vigilante reflexão diante do ofício da psicanálise, que busca o ser humano em sua extensão ético-estética: direito ao exercício de ser em comunhão com o outro numa sociedade de afetos e efeitos.
Roudinesco, na obra O paciente, o terapeuta e o Estado (2005), nos pergunta por que um Estado deveria saber quem tem e quem não tem o direito de se ocupar do sofrimento da alma. Existiria uma lei capaz de dizer a norma e excluir a desordem, prevenindo pessoas contra sua própria humanidade? O Estado, ao reconhecer a profissão, não passará a exigir capacitação por meio de cursos universitários, como ocorre com as demais profissões? Seria adequada a submissão da formação psicanalítica aos cânones universitários? O tema é indissociável do tipo de formação. (Mori, 2012, p. 44)
Sim, Roudinesco, o tema é indissociável do tipo de formação! Não é à toa que, enquanto o Projeto n. 101/2018 aguarda votação no Senado, o curso de graduação em Psicanálise é aprovado pelo mec (Borges, 2018).
Qual mal-estar entre todas as outras práticas psicanalíticas ancoradas na teoria psicanalítica, mas não a vida psicanalítica? Uma inquietação me busca, me contrai e me faz cuidar da pedra no meio do caminho.
Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha nação que fosse danosa a uma outra, eu não a proporia a meu príncipe, porque sou homem antes de ser francês ou ainda porque sou necessariamente homem, não sendo francês senão por acaso. Se soubesse de alguma coisa que me fosse útil e prejudicial à minha família, meu espírito a rejeitaria. Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, buscaria esquecê-la. Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha pátria e que fosse prejudicial à Europa ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu a veria como um crime. (Roudinesco, 2005, p. 138)
Referências
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Recebido em: 24/1/2022
Aceito em: 4/4/2022
1 Trabalho iniciado no XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Belo Horizonte, Minas Gerais, de 19 a 22 de junho de 2019. Mesa-redonda: "O ofício do psicanalista: (de)formação a regulamentação".
2 Em "Psicanálise para brasileiros: história de sua circulação e apropriação no Entre-Guerras" Facchinetti acrescenta sobre Carrero: "É dessa relação recíproca e sem mediação entre indivíduo e cultura que parte Júlio Porto-Carrero (1887-1937) para pôr o país no divã. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (fmrj), foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros a estabelecer uma clínica no Brasil com base na psicanálise, em 1923. Ele se dizia 'um convicto da ciência de Freud' e, como tal, prescrevia a aplicação da teoria freudiana 'na vida diária, [na] pedagogia, até mesmo [no] comércio, [na] educação da caserna, [nos] inquéritos judiciários, [nos] sistemas penitenciários... (Porto-Carrero, 1929, p. 159)'" (Facchinetti, 2012 p. 47)
3 "Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes do passado: transferência e resistência. Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses, dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir-se em chamar a si próprio de psicanalista" (Freud, 1914/1996b, p. 26).
4 Christian Dunker cita alguns: Oskar Pfister, pastor protestante, esteve interessado em aproximar as ideias da psicanálise à prática pedagógica, Ernest Kris, estudioso da estética, buscava a compreensão para a produção com base no inconsciente e, por fim, Wilhelm Reich, marxista questionador do psiquismo.
5 "Em 1926, quando tomou a defesa de seu amigo Theodor Reik, Freud enfatizou quão perigoso era dedicar-se, de forma incoerente, à caça aos charlatães: 'Permita-me dar à palavra 'charlatão' o sentido a quem tem direito, e não sua significação legal. Pela lei, é charlatão aquele que trata dos doentes sem provar que possui um diploma médico reconhecido pelo Estado. Eu preferiria outra definição: é charlatão aquele que empreende um tratamento sem possuir os conhecimentos e capacidades requeridos. Apoiando-me nessa definição, arrisco-me a afirmar que - não unicamente nos países da Europa - os médicos fornecem à análise seu maior contingente de charlatães. Muito frequentemente eles praticam o tratamento psicanalítico sem tê-lo aprendido e sem compreendê-lo'" (Roudinesco, 2005, p. 31).
6 Max Eitingon (1881-1943).
7 24 de outubro de 1927: carta a Freud comunicando a fundação. Foram eleitos: Francisco Franco da Rocha, presidente, e Durval Marcondes, secretário.
Em 17 de junho de 1928, Durval Marcondes viajou ao Rio de Janeiro com o objetivo de participar da fundação dessa primeira Sociedade naquela cidade. Na sede do Hospital Nacional de Alienados, foram eleitos: Juliano Moreira, presidente, e Porto-Carrero, secretário. Todo o grupo de Juliano Moreira tornou-se membro dessa sociedade, que logo se extinguiu.
Junho de 1928: Revista Brasileira de Psychanalyse, com artigos de Franco da Rocha, J. Ralph, J. P. Porto-Carrero, Durval Marcondes e Paulo José de Toledo. Interrompeu suas publicações, que foram retomadas apenas em 1967.
1936: dra. Adelheid Koch (1896-1980), primeira psicanalista com formação atestada pela IPA, chega ao Brasil, sendo reconhecida em 1951, no XVII Congresso em Amsterdam, como nova integrante da SBPSP.
1967: Comissão de Ensino na SBPSP para organizar a formação de psicanalistas, conforme estipulado pela IPA.
Criação da Associação Brasileira de Psicanálise (ABP), que futuramente será a Febrapsi.
8 A spob é a que mais chamou a atenção, comandada por evangélicos de várias igrejas. Os cursos de psicanálise para pastores já foram alvo de crítica dos próprios evangélicos. Segundo o psicólogo Ageu Heringer Lisboa, do Centro de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), a entidade distribuiu, em 1997, dois artigos condenando a prática. O cppc é presidido por Uriel Heckert, doutor em Psiquiatria e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, e já publicou, em conjunto com a editora Ultimato, o livro Cartas Freud-Pfister 1909-1939, com tradução de Karen Kepler Wondracek. "O documento trata dos riscos de formações espúrias, surrealistas e eticamente sofríveis, propostas por sociedades de terapia divina ou de psicologia cristã. Isso subverte uma tradição normativa adotada em todo o mundo", diz Ageu Heringer Lisboa. Para o psicólogo presbiteriano, os cursos da sbop "desviam a formação da própria psicanálise e da atividade pastoral".
9 O Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras se reúne há mais de 20 anos no sustento de ações contrárias à prática leiga e laica. Subscrita por 49 grupos de psicanálise distribuídos em todo o território nacional e apoiada por 104 outros grupos também de outras nacionalidades.
10 "Ofício de psicanalista. Impasses, desafios e perspectivas".