Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano): A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas
derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
… Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades.
(Manoel de Barros)
A psicanálise precisa estar à altura da vida. E para os verdadeiros desafios, aqueles singulares de cada tempo, para cada nova geração, o “traço acostumado” não é o suficiente. Pois nele falta o tropeço, falta o mancar que é próprio da psicanálise; e que a leva a se “desformar” - expressão feliz que o poeta soube forjar e que se aproxima do que no Jornal de Psicanálise grafamos como (de)formar.
O número que agora publicamos encerra o primeiro ciclo desta equipe editorial. De certo modo, nele explicitamos o que fundamenta a escolha dos três anteriores: “Psicanálise em (de)formação”. Interessados em interrogar a formação em psicanálise, não consideramos ser conveniente pensá-la fora de um tempo e de um espaço, sem relação com as perguntas que se esforça por responder. “O que fazemos com o sexual?”, “A potência da diferença” e “Hiperconectividade e exaustão” foram, portanto, assuntos que despontaram porque interrogavam nossos repertórios e forçavam-nos a torções, reorganizações e inclusões. Foram temas que ajudaram no desformar do nosso traço acostumado.
Na carta-convite ao atual número oferecemos a imagem d’As metamorfoses de um touro, de Picasso, que mostra o caminho de um touro realista e soberbo até o touro-mínimo, pura linha: do touro à tauridade. Num elogio à implicação do pintor com o processo de metamorfose, a imagem nos aproxima do compromisso da psicanálise, ela própria em constante formação e deformação, sublinhando o aspecto instituinte que a torna viva e, assim, sempre em vias de algum grau de (de)formação do instituído. Assim se deu no próprio movimento do pensamento freudiano, e na história do movimento psicanalítico depois dele. Nunca chegou o momento em que, bem acabada, a psicanálise pudesse ser apenas transmitida, sem inquietações. Pela natureza mesma de seu objeto, afortunadamente esse tempo nunca chegará, ainda que tudo que é instituído cumpra rituais que podem ganhar um relevo tal, que ameace perder de vista o traço mínimo de sua ética, aquela em relação à qual cada movimento pode trair ou honrar.
Não é apenas o artista que cresce com suas derrotas. O psicanalista também avança quando consegue situar os temas com os quais ele e a psicanálise encontram dificuldades. “Se a sonda tocasse o fundo, tudo estaria resolvido … é preciso sempre dar mais linha. Ou cortá-la…”, escreve Aníbal Machado (1994, p. 93). O motor que levava Freud a promover grandes transformações em sua teoria era a insuficiência do estabelecido para dar conta dos desafios que a ele se apresentavam. Foi assim quando não acreditou mais em sua neurótica, ou quando precisou reconhecer um “Além do princípio de prazer”, por exemplo. Foi assim também com os pós-freudianos que precisaram se interrogar, por exemplo, sobre a clínica da psicose e sobre a psicanálise com crianças, e quando os autores da psicanálise contemporânea tiveram de encontrar caminhos para estender o campo clínico nos limites da analisabilidade. Esse compromisso em se saber testemunha e participante da formação da psicanálise, e não apenas do psicanalista, é o que buscamos ressaltar com a escolha editorial dos títulos até aqui.
Neste número, as questões raciais e a análise didática se fizeram especialmente presentes entre os assuntos abordados na seção temática. A articulação entre formação psicanalítica e questões raciais comparece como interrogante a convocar projetos de ações antirracistas promotoras de necessárias transformações institucionais relativas à distribuição de espaços e relações de poder. Em “História da psicanálise”, publicamos os relatórios do Congresso Interno de Atibaia que reuniu os membros da sbpsp em 2007 em torno do tema da análise didática. O documento testemunha uma instituição buscando pensar um de seus dispositivos de formação, que são inevitavelmente imperfeitos e merecem constantes considerações na tensão com relação à fidelidade ao que da psicanálise se assemelha à tauridade. Foi esse também o eixo principal da entrevista com Luiz Meyer, membro da sbpsp que há muitos anos desenvolve trabalhos críticos em relação à prática da análise didática.
Nos “Diálogos”, lemos Durval Mazzei e Marina Kon Bilenky discutirem “As nuances na e da formação do analista”, artigo escrito por Thiago da Silva Abrantes que se centra no papel capital da análise na perlaboração da resistência do supereu para a formação da escuta de um psicanalista.
Em “Conexões”, o poema de Vanessa Corrêa divide espaço com o artigo de Donny Correia, historiador e crítico de arte que, cem anos depois, discute as formações e deformações do cinema no movimento modernista da Semana de Arte de 1922.
No espaço destinado à Associação dos Membros Filiados publicamos o trabalho de Flávio Gosling “A flexibilidade dos origamis e riscos de engessamento”, premiado no último Simpósio da amf com uma apreciação crítica acerca dos funcionamentos institucionais que podem ou não favorecer a formação de um analista flexível e objeto de deformações benignas. No mesmo espírito crítico, a “Aula inaugural” com Sandra Schaffa e Luiz Tenorio Oliveira Lima abordou o tema “Por uma ética da formação em tempos sombrios”.
A cor escolhida para capa expressa a metáfora do cobre, metal capaz de ser deformado sem perder suas propriedades. O número do Jornal que temos em mãos apresenta múltiplos esforços para pôr à prova do tempo respostas já formuladas sobre formação do psicanalista e da psicanálise e suas dinâmicas institucionais. Retirando dessas formações humanas as naturalidades, rastreia em suas páginas as condições mais favoráveis para manter o potencial formativo de um psicanalista de “alma atormentada”, comprometido menos em aplicar e mais em fazer psicanálise.
Boa leitura a todos!