Antes de tudo, olhem com cuidado para essa epígrafe visual. É a obra As metamorfoses de um touro, de Pablo Picasso (1945). O que vemos? Em cada quadro, consta uma representação distinta de um mesmo touro. É claro que não são representações esparsas ou desconectadas entre si; na verdade, tudo se passa como se ele sofresse de algum mal ou de algum bem que vai se intensificando. No começo, temos um touro soberbo, balançando seu rabo, cheio; e, à medida que avança o trabalho do pintor, as representações ficam cada vez mais distantes da primeira, indo em direção ao touro-mínimo, ao traço; que por fim se dilui completamente no fundo branco. “É curioso: ele terminou por onde normalmente devia começar” (Célestin, citado por Parmelin, 1981, p. 32), anotou o litógrafo que acompanhou a composição.
Em geral, quando pensamos na sequência geradora de qualquer construção humana, imaginamos que sua produção segue um percurso que vai do esboço inicial à edificação final - da forma abstrata e simples à forma completa e complexa (Assis Silva, 1995). Os tourinhos de Picasso abalam essa crença, justamente pondo em relevo o processo contrário: do touro à tauridade. “Vamos dar isso ao açougueiro”, brincava o pintor durante a confecção. “A dona de casa poderia dizer: quero este pedaço” (Parmelin, 1981, p. 33). Ao espectador, está aberta a possibilidade de fixar-se em um dos quadros; ao artista, porém, não fica reservada essa possibilidade, visto que seu objeto é o próprio processo de metamorfose.
Essa metamorfose, contudo, possui seus paradoxos - e é esse o ponto que destacamos. Ao mesmo tempo em que Picasso constrói o touro-linha, ele desconstrói o touro-realidade; simultaneamente, dá forma e deforma. Imaginamos, nesse processo de formação e de deformação, o processo de transformação (Bion, 1965) tanto de um conceito quanto de uma experiência clínica; e também o da própria psicanálise que, a depender do ponto de vista do observador, se desconstrói ou se constrói, se forma ou se (de)forma. Essa tensão entre formação e deformação gostaríamos de trazer para o primeiro plano. Ela pode ser pensada de diferentes modos: um campo entre tradição e inovação, entre tradução e traição, entre adulto e adúltero, entre o passado e o futuro… Tal tensão grafamos assim: (de)formação.
“Psicanálise em (de)formação” fecha o primeiro ciclo da proposta editorial da atual gestão do Jornal de Psicanálise, que se iniciou com “O que fazemos com o sexual?”, depois buscou pensar “A potência da diferença” e refletir sobre “Hiperconectividade e exaustão”. É um ciclo de edições que tem como eixo condutor pensar a psicanálise contemporânea como uma psicanálise viva, em que passado e futuro estão em diálogo com base nos desafios do presente. Como Walter Benjamin conceitua em O anjo da história:
Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força, que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Benjamin, 1921/1994, p. 226)
Nesse trecho, Walter Benjamin marca um tipo de dialética entre passado, presente e futuro. O progresso não é linear. Aqui a história tem a importância de dar subsídios para o futuro, a história impressiona o anjo (se imprime dentro dele) e, assim, o transforma. A partir desse momento, ele não precisa continuar agarrado a ela, pois esta já faz parte dele. Se de algum modo o anjo não se descola do passado, se não pode se deixar levar pelos ventos do paraíso que o impelem ao futuro, ficará melancolicamente preso às ruínas de um tempo que já foi. Boaventura de Sousa Santos remete-se justamente à alegoria formulada por Benjamin para propor uma teoria da história que permita ir às raízes para abrir novas e mais amplas opções. Dirá, citando Benjamin, que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo como verdadeiramente foi. Significa apoderarmo-nos de uma memória tal como ela relampeja num momento de perigo” (Benjamin, citado por Sousa Santos, 1997, p. 106).
Esse relampejo em momento de perigo serve como metáfora para expressar uma determinada articulação entre passado, presente e futuro; faz pensar na relação entre o que ficou para trás, o que está por vir e o que permanece. Vale a pena pensar por que permanece o que permanece, e por que se transforma o que se transforma; e intuir para onde caminha essa transformação: afinal, é da touridade que falamos, ou as deformações tornaram impossível observar o elemento fundamental?
Tomando emprestada a pergunta de Renato Mezan, em O tronco e os ramos, sobre por quais motivos e caminhos a herança de Freud foi ampliada e transformada por seus sucessores em direções tão diversas (Mezan, 2014), somos conduzidos às relações possíveis entre raiz, tronco e ramos nos diferentes terroirs em que a psicanálise vem sendo cultivada.
O Jornal de Psicanálise, com esta carta-convite, propõe um jogo entre a formação psicanalítica e a própria psicanálise em constante formação. A formação - da psicanálise e do psicanalista - inclui ao mesmo tempo construção e desconstrução, e perguntamos: em que medida o caldo cultural, as questões específicas de uma era ou as particularidades de um agrupamento social evidenciam uma nota, um tom que precisa ser levado em consideração no trabalho teórico e clínico dos analistas, para evitar que façamos de nosso ofício o exercício de um saber reificado, estéril e sem relação com as transformações inevitáveis da própria psicanálise?
O que gostaríamos de assinalar aqui é a ideia de uso de objeto dado por Winnicott: uma psicanálise viva e suficientemente forte para refletir sobre as peculiaridades de seu tempo para poder, paradoxalmente, sobreviver ao atual e ao circunstancial.
Interessa-nos então a questão: quais tempestades tocam nossas asas e movem a psicanálise e a formação psicanalítica a suas metamorfoses? E mais: no caminho entre touro e tauridade, entre a forma da psicanálise e a psicanálise em forma (ou em formação), o que fica como traço mínimo e como ética?
O Jornal de Psicanálise convida os autores a desdobrarem essas questões em artigos a serem enviados para o número “Psicanálise em (de)formação” até a data-limite de 21/08/2022. Lembramos que também serão aceitos artigos não temáticos e que as normas para publicação encontram-se ao final de cada número do Jornal ou em normas-portugues.pdf (sbpsp.org.br).