Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Revista Psicopedagogia
versión impresa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.36 no.111 São Paulo sept./dic. 2019
ARTIGO DE REVISÃO
Aplicação do modelo da dupla rota no diagnóstico da dislexia: revisão sistemática
Application of the double-route model in the diagnosis of dyslexia systematic review
Heloísa dos Santos Peres CardosoI; Patrícia Martins de FreitasII
IMestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino PPGEn, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, BA, Brasil
IIDoutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), Professora Associada da Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, BA, Brasil
RESUMO
A dislexia é um transtorno de aprendizagem da leitura que pode afetar a escrita, entretanto, a identificação desse transtorno ainda é muito imprecisa. O objetivo desse estudo foi verificar a aplicação do modelo neurocognitivo da dupla rota nos estudos sobre diagnóstico, através de revisão sistemática da literatura. Os descritores utilizados: dislexia, leitura, dupla rota; avaliação da dislexia; diagnóstico da dislexia, nas bases de dados Medline, SciELO e Google Acadêmico (2013-2018). A amostra foi constituída de 52 estudos e 40 aplicaram o modelo da dupla rota no diagnóstico. Os resultados mostraram que os instrumentos mais utilizados foram Tarefa da Consciência Fonológica (20%), Tarefa de Leitura de Palavras e pseudopalavras (15%); as funções cognitivas mais investigadas foram a leitura (30%), e consciência fonológica (25%). Os estudos mostraram evidências empíricas do uso do modelo, demonstrando que déficits nos componentes do processamento fonológico e lexical explicam a presença da dislexia, contribuindo para o diagnóstico.
Unitermos: Diagnóstico. Dislexia. Modelo Neurocognitivo.
SUMMARY
Dyslexia is a learning disorder of reading that can affect writing, however, the identification of this disorder is still very imprecise. The objective of this study was to verify the application of the neurocognitive double-route model in the diagnostic studies, through a systematic review of the literature. The descriptors used: dyslexia, reading, double-route; evaluation of dyslexia; diagnosis of dyslexia, in the Medline, SciELO and Google Academic databases (2013-2018). The sample consisted of 52 studies and 40 applied the double-route model in the diagnosis. The results showed that the most used instruments were Phonological Awareness Task (20%), Word Reading Task and pseudowords (15%); the most investigated cognitive functions were reading (30%) and phonological awareness (25%). The studies showed empirical evidence of the use of the model, demonstrating that deficits in the components of phonological and lexical processing explain the presence of dyslexia, contributing to the diagnosis.
Keywords: Diagnosis. Dyslexia. Neurocognitive Model.
INTRODUÇÃO
A dislexia é definida como uma disfunção neurocognitiva, que ocorre em crianças com capacidade intelectual típica, sem deficiência sensorial e com suporte educacional adequado, mas que não conseguem alcançar ou realizar adequadamente a habilidade para ler e escrever1.
As consequências da dislexia para o desenvolvimento escolar ocasionam lacunas no processo de aprendizagem, com maiores chances para repetência ou mesmo abandono precoce dos estudos. A dislexia afeta as habilidades de leitura interferindo em diferentes componentes da leitura como a fluência ou velocidade, as trocas fonológicas, falhas na compreensão, erros lexicais, que podem ser apresentados na leitura e em muitos casos na escrita2. Na escrita os erros podem ser ortográficos, como omissões, adições, ou troca de vocábulos, e ainda confusão na sequência dos sons3. Ao avaliar os aspectos das funções executivas em crianças com dislexia, os resultados mostraram que estas crianças possuíam habilidades inferiores em tarefas de memória de trabalho4.
Um estudo investigou a relação de déficits cognitivos de dislexia em famílias com e sem histórico de dislexia e os resultados mostraram uma forte associação entre consciência fonêmica e repetição de pseudopalavras com dificuldade de alfabetização e histórico familiar de dislexia5.
A evidência sobre a natureza neurobiológica da dislexia tem sido produzida por estudos de genética e neuroimagem funcional que identificam o contraste entre as áreas ativadas em pessoas com habilidade de leitura desenvolvida e a hipoativação dessas áreas em pessoas com a dislexia1. As áreas identificadas com hipoativação foram áreas temporais basais bilaterais, giro angular, giros temporais médio e superior para integração intermodal e processamento fonológico, situadas no hemisfério esquerdo6. Foram identificadas hipoativação na área de linguagem perisilviana diminuídas ou simétricas6. Por meio de estudos de neuroimagem funcional têm sido identificadas falhas de ativação em áreas que são tipicamente ativadas durante a leitura, dentre elas as mais frequentemente citadas são: área de Wernicke, giro angular, giro fusiforme1.
A dislexia possui uma prevalência entre 5% a 10%7. No Brasil, Lima e Silva8 realizou uma pesquisa com alunos do 3º ano de escolas particulares e constatou prevalência de 12,1%. Na Índia, um estudo realizado com crianças entre 7 e 12 anos constatou a prevalência de 13,67%9. Em relação à prevalência do sexo, os resultados de quatro estudos epidemiológicos mostraram que dificuldades de leitura estão presentes mais em meninos que em meninas10. No estudo realizado na Índia citado acima, em relação ao sexo, a prevalência da dislexia foi de 19% no sexo masculino e 8,5% no sexo feminino9.
O diagnóstico da dislexia é complexo e depende da avaliação de diversas funções cognitivas, além da leitura e escrita. Para realizar o diagnóstico da dislexia, é necessário que a criança seja exposta à aprendizagem da leitura de forma adequada. Portanto, o diagnóstico precoce geralmente ocorrerá após o primeiro ano da alfabetização3. Como sua principal característica é a dificuldade de leitura, é necessário aguardar a finalização da etapa de alfabetização para realizar a avaliação e possível diagnóstico3.
Segundo a Associação Brasileira de Dislexia (ABD)11, na realização do diagnóstico duas etapas devem ser analisadas: a de exclusão de outras dificuldades (deficiências visuais e auditivas) e a do diagnóstico diferencial da dislexia, alguns sintomas relevantes importados do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)12. A dislexia possui comorbidades com outras desordens com alto grau de sobreposição. O transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e a Discalculia são alterações do neurodesenvolvimento que também têm alterações no processamento fonológico e com manifestações equivalentes à dislexia13.
O modelo dimensional baseado em sinais e sintomas não analisa os componentes cognitivos que compõem o modelo de desenvolvimento da leitura. A análise modular oferecida pelo modelo cognitivo neuropsicológico da leitura pode ser uma alternativa para o diagnóstico do transtorno da leitura e da escrita. A aplicação do modelo cognitivo conhecido como dupla rota utiliza um mapa da arquitetura funcional da leitura, demonstrando quais são os componentes e sua operacionalização durante a leitura de palavras14.
Com base no modelo teórico de processamento da leitura, podemos dizer que o processamento da leitura é traduzido como um modelo constituído de componentes que forma duas estratégias: a fonológica (rota fonológica), desenvolvida na fase alfabética; e a lexical (rota lexical), desenvolvida na fase ortográfica15.
A rota lexical é necessária para realizar leitura de vocábulos conhecidos que já estavam armazenados na memória ortográfica, em função de práticas repetidas de leitura. Esse movimento é chamado de sistema de reconhecimento visual das palavras ou léxico de input visual. Na rota lexical, palavras que ocorrem com frequência são reconhecidas automaticamente, diferentemente de palavras que ocorrem com menor frequência; esse fenômeno recebe o nome de efeito de frequência. As pseudopalavras, por sua vez, não são reconhecidas facilmente como as palavras reais, esta é uma característica presente na rota lexical e recebe o nome de efeito de lexicalidade.
Isso explica o fato de palavras conhecidas possuírem unidades de reconhecimento no léxico de entrada visual, e o mesmo não acontece com pseudopalavras16. Oliveira et al.17 realizaram pesquisa com crianças do segundo ao quinto ano. Esse estudo mostrou que a rota lexical foi mais utilizada por crianças do quarto e quinto ano independentemente da criança estudar em escola pública ou particular. Segundo estas autoras, a partir do 4o ano a criança já adquiriu um maior conhecimento da ortografia, dando-lhe condições de retomada espontânea das palavras, recorrendo menos à rota fonológica17.
Para a leitura de novos vocábulos, usa-se a rota fonológica. Após a exposição da palavra, é feita a verificação dos grafemas, fragmentando em microunidades (grafemas e morfemas), unindo-os aos seus sons correspondentes. Nessa rota, grafemas transformam-se em fonemas permitindo um output fonológico16. Na rota fonológica, a leitura é consideravelmente influenciada pela quantidade de letras que a palavra possui, isso é conhecido como efeito de extensão. As palavras em que as transformações de grafemas em fonemas não seguem as regras (grafia-som) dificultam a sua leitura precisa, isso recebe o nome de efeito de regularidade. Isso explica a transformação de grafema em fonemas em palavras regulares, que seguem regras, o mesmo não acontece com palavras irregulares16.
Para Frith18, analisar os tipos de erros baseados no modelo cognitivo de dupla rota possibilita investigar os vários tipos de dificuldades na leitura. Alguns sinais precisam ser considerados na realização do diagnóstico da dislexia: história familiar; atrasos na fala; atraso na aquisição da leitura e escrita; sintomas de ansiedade na realização de testes ou provas; problemas na soletração; capacidade cognitiva elevada que não justifica o problema na leitura e escrita; entende a informação principal do texto, mas não lembra das particularidades; confusões de letras com diferente orientação espacial (b/d); alteração de fonemas surdos por sonoros, ou o contrário; dificuldades com rimas; transposição e/ou adição de fonemas; substituições de vocábulos com arranjos semelhantes; segmentação incorreta em frases; problemas para compreender o texto lido, além de leitura lenta e silabada19.
Salles & Parente20 realizaram uma pesquisa com crianças de segundo e terceiro ano, com objetivo de investigar qual rota era mais utilizada. Os resultados mostraram que, nestas séries, a rota fonológica está mais avançada e, portanto, mais empregada; crianças que empregavam a rota lexical apresentaram rendimento inferior na leitura. As autoras sugerem que este modelo cognitivo de leitura permite investigar e diferenciar a capacidade de leitura de crianças com desempenho padrão daquelas com problemas na leitura e estas informações poderão ser usadas em programas que beneficiem crianças com dificuldades na leitura20. Quando existe dificuldade em ler palavras conhecidas ou não, ou em ler palavras que não seguem regras grafia-som, isso pode indicar em qual das rotas a dificuldade está presente. E qualquer disfunção em uma rota, ou em ambas, poderá impossibilitar o desenvolvimento da leitura.
Segundo Ellis16, o modelo da dupla rota, baseado na teoria do processamento da informação, busca compreender o desempenho das funções humanas específicas, como os processos da leitura e escrita. Esta abordagem destaca os processos mentais envolvidos em cada função, procurando assim disponibilizar uma descrição precisa e compreensível dos processos cognitivos.
A teoria de processamento de informação permite compreender o processamento da linguagem e seus diferentes componentes nos processos cognitivos como pensamento, percepção, memória, linguagem (falada e escrita), disponibilizando descrição minuciosa dos processos mentais21. Segundo esta autora, o benefício da teoria de processamento de informação é a realização de uma avaliação cognitiva permitindo detectar a dificuldade de leitura em uma das rotas, lexical e fonológica (ou em ambas as partes), oferecendo resultados práticos na detecção de déficits específicos.
De acordo com modelo da dupla rota (fonológica e lexical), quando uma palavra é apresentada, primeiramente são assimilados os traços que compõem suas letras, na sequência as letras são decodificadas. Após isso, duas rotas podem ser utilizadas. A rota fonológica, na qual são modificados grafemas em fonemas, permitindo um output fonológico, por meio de um sistema de transformação grafema-fonema regular. A outra é a rota lexical, formada por duas sub-rotas: rota lexical semântica ou indireta, que trabalha com o acesso ao sistema semântico: o reconhecimento de um item no léxico ortográfico permite o reconhecimento do seu significado no sistema semântico que, por sua vez, impulsiona o léxico fonológico para a produção do output; rota lexical não semântica ou direta, atua por meio do reconhecimento no léxico do indivíduo da representação ortográfica de uma palavra. O léxico ortográfico é unido com o léxico fonológico, e a partir da representação fonológica o sistema fonêmico pode produzir um output15. Conclui-se que não é apenas a decodificação da letra, mas também o reconhecimento e interpretação do som.
A estrutura de dupla rota não é um modelo de aprendizagem da leitura, mas é um algoritmo que demonstra os módulos que compõem a arquitetura funcional da leitura e a operacionalização desse modelo é uma estratégia para diferenciar uma criança com desenvolvimento típico de crianças com dislexia15.
Dehaene1 explica que para ler qualquer palavra em voz alta é necessário analisar o item (palavra real ou não palavra) no conjunto de análise visual. Para ler palavras reais, inicialmente são identificadas no léxico visual de entrada, a pronúncia é retomada do léxico fonêmico de saída (o que constitui a rota léxico-fonêmica). Essa retomada pode acontecer simultaneamente com o processo semântico ou simultaneamente com a transformação grafema-fonema. Em relação à leitura de não palavras, o reconhecimento dos grafemas é enviado do conjunto de análise visual para o sistema de transformação grafema-fonema, de modo que os elementos fonêmicos podem ser retomados e reduzidos (ou sumarizados) para executar a pronúncia (rota fonológica). Desse modo, a leitura de palavras passa por um exame da rota lexical e a de não palavras, por um exame do processo fonológico.
Conforme as evidências apresentadas em diferentes estudos, a aplicação do modelo da dupla rota possui uma aceitabilidade para os estudos que investigam as especificidades da dislexia22-24. Para verificar o quanto o modelo tem sido utilizado como parâmetro para a definição diagnóstica da dislexia na prática profissional, realizamos um estudo de revisão sistemática. O objetivo desta investigação foi verificar a aplicação do modelo neurocognitivo da dupla rota nos estudos sobre o diagnóstico da dislexia. A complexidade do diagnóstico da dislexia, sua importância para o desenvolvimento escolar de inúmeras crianças e a necessidade de difusão do modelo cognitivo da leitura foram os aspectos que motivaram esse estudo.
MÉTODO
O método utilizado foi revisão sistemática da literatura. Foram selecionados estudos nacionais e internacionais publicados nos últimos cinco anos (2013 a 2018), indexados nas bases de dados Medline, SciELO e Google Acadêmico. Os descritores utilizados para a realização da busca foram:1- dislexia, leitura e dupla rota; 2- dislexia, leitura e dupla via; 3- avaliação da dislexia; 4- diagnóstico da dislexia. As buscas dos descritores foram feitas em português e em inglês.
Os trabalhos identificados pela estratégia de busca inicial foram avaliados segundo os seguintes critérios de inclusão: estudos empíricos, baseados no modelo neurocognitivo da dislexia, publicados no período de 2013 a 2018. O total de estudos, que foram listados a partir dos descritores utilizados, foi de 80 artigos. Dessa amostra, 28 foram excluídos por se tratar de estudos de revisão, estudos publicados há mais de cinco anos, e que não tratavam do tema proposto. A amostra final foi constituída de 52 estudos. O processo de busca e seleção dos estudos está representado pela Figura 1.
RESULTADOS
De acordo com os critérios de inclusão, foram analisados 52 estudos incluindo artigos, teses e dissertações. As variáveis analisadas foram: ano da publicação, tipo de estudo, o país em que foi realizado o estudo, a amostra, média e desvio padrão, distribuição por sexo, funções cognitivas investigadas e instrumentos utilizados para coleta de dados e, por fim, se o estudo aplica o modelo neurocognitivo.
A maioria dos estudos - 40 (76,92%) - utilizou o modelo da dupla rota como fundamento para a pesquisa. Analisando a distribuição do delineamento, foi possível identificar maior uso de estudos que comparam grupos: 32 (61,53%), com objetivo de comparar grupos de leitores com e sem dificuldades de leitura; seguido de estudos descritivos: sete (13,46%); estudos de caso: cinco (9,61%); estudo experimental: três (5,76%); estudos pré e pós-teste e retrospectivo: dois (3,84%); estudo longitudinal: um (1,92%).
Os países com maior número de estudos foram Estados Unidos, Itália e Reino Unido, com 12 (30%) estudos; seguidos de Israel, Espanha e Portugal, com 9 (22,5%) estudos. Observou-se que diferentes nacionalidades (Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, China, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Israel, Itália, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido) investigaram a dislexia, com base no modelo neuropsicológico da dupla rota, demonstrando que o modelo é consistente tanto em línguas opacas quanto transparentes. São consideradas línguas transparentes aquelas em que existe uma similaridade entre letra e som, por exemplo, a língua italiana. Em línguas opacas existe um grau de complexidade maior, em que a aquisição da leitura será mais lenta, por necessitar de uma maior manipulação com as irregularidades da língua, um exemplo é a língua inglesa1.
Em relação à variável participantes da pesquisa, a média de participantes foi de 89,4. A média da idade dos participantes da pesquisa foi de 9,74 anos. Embora houvesse uma predominância de estudos com crianças, as pesquisas que investigaram dislexia em adultos estão de acordo com a literatura, que mostra que a dificuldade de leitura persiste ainda na vida adulta1. Nos estudos analisados, o gênero mais pesquisado foi o masculino, presente em 33 (63,46%) dos estudos; esta prevalência também é apontada na literatura9.
As análises dos estudos foram conduzidas por meio de instrumentos de avaliação que estão associados com as funções cognitivas que se pretendia avaliar (Tabela 1). Estes instrumentos foram aplicados com o objetivo de avaliar tanto a rota fonológica como a lexical, ambos processos envolvidos no modelo teórico de dupla rota. A inteligência foi avaliada em todos os estudos e os instrumentos mais utilizados foram: Escala de Inteligência Wechsler para crianças (WISC III) e Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, presentes em 10% dos estudos.
As análises mostraram que, além das funções relacionadas ao processamento léxico-fonológico, também foram avaliadas outras funções que contribuem para a leitura (Tabela 2).
DISCUSSÃO
O modelo neurocognitivo (dupla rota) contribui com a explicação do processamento da leitura fluente, mas também explica características dos transtornos da leitura, tanto os adquiridos quanto os do desenvolvimento. Esse modelo permite descrever os componentes específicos da leitura e através de instrumentos adequados de medida é possível obtermos um mapa sobre o desempenho leitor da criança identificando os déficits nas funções cognitivas específicas24. O objetivo do estudo foi identificar por meio de publicações científicas a aplicação do modelo da dupla rota no diagnóstico da dislexia e, consequentemente, verificar quais são os instrumentos utilizados para a avaliação dos sinais.
Os resultados encontrados demonstram que a aplicação do modelo é consistente para investigação e diagnóstico da dislexia. Esse resultado converge com estudo de Sela et al.22, que mostram as implicações da aplicação do modelo da dupla rota na aquisição da leitura precoce.
Considerando o modelo teórico da dupla rota (fonológica e lexical) para explicar a aquisição da leitura, os dados mostraram que o diferencial desse modelo é a possibilidade de identificação de déficits específicos, diferenciando disfunções para a rota lexical e para a rota fonológica. Esses resultados vão ao encontro de estudos que afirmam que o modelo neurocognitivo (dupla rota) permite uma compreensão do desempenho satisfatório, mas também dos déficits nas funções cognitivas específicas, possibilitando compreender se a dificuldade está na rota fonológica, lexical ou em ambas as rotas14,24,25. Esses resultados podem contribuir com o melhor direcionamento das pesquisas voltadas para o diagnóstico da dislexia, assim como para a atuação clínica.
Em relação às funções cognitivas investigadas, os resultados mostraram várias funções específicas que devem ser investigadas para o diagnóstico da dislexia, com objetivo de não ter apenas o diagnóstico, mas saber qual função específica precisa ser estimulada. Tal resultado está de acordo com o estudo de Zygouris et al.26, que evidencia que crianças com dislexia podem melhorar suas habilidades através de programas de remediação que visam fortalecer processos audiovisuais e fonológicos, juntamente com sua capacidade de memória de trabalho. Esse resultado está de acordo com os pressupostos do modelo neurocognitivo, que afirma que o modelo é consistente para investigar e diagnosticar pacientes com dislexia, pois oferece respostas consistente sobre déficits específicos, potencializando a elaboração de programas de estimulação cognitiva.
Outros instrumentos foram apresentados e outras funções cognitivas como memória de trabalho também foram avaliadas, mas com percentual abaixo de 5%, por isso, não foram incluídos nas tabelas. Em relação à função cognitiva memória de trabalho, o estudo atual também está de acordo com os achados de Chan27 e Knoop-van Campen et al.4, no que se refere à correlação entre comprometimento na memória de trabalho em crianças com dislexia. As alterações da leitura são medidas por déficits de consciência fonológica, memória de trabalho verbal e inteligência, demonstrando que para o diagnóstico das crianças o perfil cognitivo também deve ser considerado.
Outro dado relevante é que as pesquisas analisadas foram realizadas com participantes de diferentes línguas, demonstrando a consistência do modelo teórico tanto para ortografias opacas quanto ortografias transparentes. Esse resultado está de acordo com o estudo de Diamanti et al.28, que mostra que crianças inglesas apresentaram maior dificuldade na precisão da leitura e subtração fonêmica quando comparadas às crianças gregas. Verhoeven & Keuning29 também afirmam que em ortografias transparentes leitores com dislexia são mais sensíveis à extensão da palavra no momento da leitura. O modelo teórico consegue explicar as rotas usadas pelos leitores, independentemente de o idioma possuir ortografia mais opaca ou transparente.
As pesquisas demonstraram a relevância do modelo da dupla rota para investigação e diagnóstico do transtorno da leitura, em diferentes idades, desde crianças muito novas até adultos. Sela et al.22 também corroboram com os resultados desse estudo, tendo observado que o modelo é útil para avaliar tarefas de decisão lexical tanto em crianças quanto em jovens com e sem dislexia. No entanto, como existe uma urgência em solucionar dificuldades de aprendizagem logo nos primeiros anos de escolarização, houve um número maior de pesquisas envolvendo crianças.
Os estudos analisados para esse trabalho trouxeram comparações entre sujeitos com e sem dificuldade de leitura. Esse dado é importante, uma vez que o modelo neurocognitivo oferece parâmetros para diferenciar uma simples dificuldade de aprendizagem de um transtorno. Essa informação pode contribuir para a identificação de alunos com atraso na leitura, diferenciando aqueles que possuem uma dificuldade de um transtorno de aprendizagem, possibilitando uma melhor intervenção.
Os resultados encontrados por este estudo devem ser analisados com cautela, considerando a presença de viés de amostra, pois os estudos que fizeram parte da revisão são resultados de pesquisas na área da dislexia e da aprendizagem da leitura e, portanto, elaborados por pesquisadores familiarizados com o modelo da dupla-rota. O resultado reflete que o diagnóstico realizado no âmbito das pesquisas aplica o modelo da dupla rota, entretanto, ainda não temos a dimensão se isso também corresponde à prática profissional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apresentou a relação entre o modelo funcional da leitura conhecido como modelo da dupla rota e o diagnóstico da dislexia. Por ser um estudo de revisão sistemática, os resultados encontrados podem contribuir para compreensão do estado da arte sobre a difusão do modelo em estudos que tenham como objetivo o diagnóstico da dislexia.
Um dos impactos sociais da dislexia é o aumento de maus leitores ou leitores disfuncionais, comprometendo as chances de que esses indivíduos tenham oportunidades de inserção social. Para minimizar tais efeitos, são necessários procedimentos de diagnóstico com protocolos de avaliação que sejam fundamentados em um modelo neurocognitivo bem definido. Outra contribuição apresentada é a aplicabilidade do modelo da dupla rota como uma ferramenta capaz de detectar déficits específicos nos componentes do processamento fonológico e lexical.
A dislexia é um transtorno que chama a atenção tanto para áreas da educação quanto da saúde. Portanto, o modelo teórico da dupla rota deve ser mais aprofundado e sua operacionalização deve fazer parte dos procedimentos de avaliação das alterações específicas da leitura.
REFERÊNCIAS
1. Dehaene S. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso Editora; 2012. [ Links ]
2. Piasta SB, Wagner RK. Learning letter names and sounds: effects of instruction, letter type, and phonological processing skill. J Exp Child Psychol. 2010;105(4):324-44. [ Links ]
3. Catts HW. Identificação Precoce da Dislexia. In: Alves LM, Mousinho R, Capellini SA, orgs. Dislexia Novos Temas, Novas Perspectivas. Rio de Janeiro: Walk; 2011. p. 55-70. [ Links ]
4. Knoop-van Campen CAN, Segers E, Verhoeven L. How phonological awareness mediates the relation between working memory and word reading efficiency in children with dyslexia. Dyslexia. 2018;24(2):156-69. [ Links ]
5. Moll K, Loff A, Snowling MJ. Cognitive endophenotypes of dyslexia. Sci Stud Read. 2013;17(6):385-97. [ Links ]
6. Pennington BF, McGrath LM, Rosenberg J, Barnard H, Smith SD, Willcutt EG, et al. Gene × environment interactions in reading disability and attention-deficit/hyperactivity disorder. Dev Psychol. 2009;45(1):77-89. [ Links ]
7. Elliott GJ, Grigorenko LE. The dyslexia debate. New York: Cambridge University Press; 2014. [ Links ]
8. Lima e Silva NML. A prevalência da dislexia em alunos do ensino fundamental de escolas particulares [dissertação]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2004. [ Links ]
9. Rao S, Raj SA, Ramanathan V, Sharma A, Dhar M, Thatkar PV, et al. Prevalence of dyslexia among school children in Mysore. Int J Med Sci Public Health. 2017;6(1):159-64. [ Links ]
10. Rutter M, Caspi A, Fergusson D, Horwood LJ, Goodman R, Maughan B, et al. Sex differences in developmental reading disability: new findings from 4 epidemiological studies. JAMA. 2004;291(16):2007-12. [ Links ]
11. Associação Brasileira de Dislexia (ABD) [Internet]. São Paulo: ABD; 2018 [acesso 2018 Nov 6]. Disponível em: http://www.dislexia.org.br/ [ Links ]
12. Associação Psiquiátrica Americana (APA). Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais, 5a edição - DSM-5. Porto Alegre: Artmed; 2014. [ Links ]
13. Daucourt MC, Erbeli F, Little CW, Haughbrook R, Hart SA. A Meta-Analytical Review of the Genetic and Environmental Correlations between Reading and Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Symptoms and Reading and Math. Sci Stud Read. 2019;1-34. [ Links ]
14. Gvion A, Friedmann N. A Principled Relation between Reading and Naming in Acquired and Developmental Anomia: Surface Dyslexia Following Impairment in the Phonological Output Lexicon. Front Psychol. 2016;7:340. [ Links ]
15. Coltheart M, Rastle K, Perry C, Langdon R, Ziegler J. DRC: A dual route cascaded model of visual word recognition and reading aloud. Psychol Rev. 2001;108(1):204-56. [ Links ]
16. Ellis AW. Leitura, Escrita e Dislexia: Uma análise cognitiva. Porto Alegre: Artmed; 1995. [ Links ]
17. Oliveira AM, Germano GD, Capellini SA. Desempenho de escolares em provas de processo de identificação de letras e do processo léxico. Rev CEFAC. 2016;18(5):1121-32. [ Links ]
18. Frith U. Dyslexia as a developmental disorder of language. London: MRC, Cognitive Developmental Unit; 1990. [ Links ]
19. Rotta NT, Pedroso FS. Transtorno da Linguagem Escrita: dislexia. In: Rotta NT, Ohlweiler L, Riesgo RS, orgs. Transtornos da Aprendizagem - Abordagem Neurobiológica e Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 133-47. [ Links ]
20. Salles JF, Parente MAMP. Processos Cognitivos na Leitura de Palavras em Crianças: Relações com Compreensão e Tempo de Leitura. Psicol Reflex Crit. 2002;15(2):321-31. [ Links ]
21. Pinheiro AMV. Dificuldades Específicas de Leitura: A Identificação de Déficits Cognitivos e a Abordagem do Processamento de Informação. Psicol Teor Pesqui. 1995;11(2): 107-15. [ Links ]
22. Sela I, Izzetoglu M, Izzetoglu K, Onaral B. A Functional near-infrared spectroscopy study of lexical decision task supports the dual route model and the phonological deficit theory of dyslexia. J Learn Disabil. 2014; 47(3):279-88. [ Links ]
23. Ripamonti E, Aggujaro S, Molteni F, Zonca G, Frustaci M, Luzzatti C. The anatomical foundations of acquired reading disorders: a neuropsychological verification of the dual-route model of reading. Brain Lang. 2014;134:44-67. [ Links ]
24. Coltheart M. Dual route and connectionist models of reading: an overview. London Rev Educ. 2006;4(1):5-17. [ Links ]
25. Nobre AP, Salles JF. O papel do processamento léxico-semântico em modelos de leitura. Arq Bras Psicol. 2014;66(2):128-42. [ Links ]
26. Zygouris NC, Avramidis E, Karapetsas AV, Stamoulis GI. Differences in dyslexic students before and after a remediation program: A clinical neuropsychological and event related potential study. Appl Neuropsychol Child. 2018;7(3):235-44. [ Links ]
27. Chan CYH. Verbal Working Deficits in Children with Chinese Developmental Dyslexia. Int J Educ Psychol Res. 2018;7(2):24-8. [ Links ]
28. Diamanti V, Goulandris N, Campbell R, Protopapas A. Dyslexia Profiles Across Orthographies Differing in Transparency: An Evaluation of Theoretical Predictions Contrasting English and Greek. Sci Stud Read. 2017;22(1):55-69. [ Links ]
29. Verhoeven L, Keuning J. The Nature of Developmental Dyslexia in a Transparent Orthography. Sci Stud Read. 2017;22(1):7-23. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Patrícia Martins de Freitas
Rua: Hormindo Barros, 58 - Quadra 17 - Lote 58
Bairro Candeias-Vitória da Conquista-BA, Brasil CEP 45.029-094 -
E-mail: pmfrei@gmail.com
Artigo recebido: 23/7/2019
Aprovado: 25/9/2019
Trabalho realizado na Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, BA, Brasil.
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.