Introdução
Nas sociedades letradas, aprender a ler é uma das aquisições mais importantes na vida do ser humano, pois impacta não apenas sua trajetória acadêmica, mas também os âmbitos social, emocional e profissional. Além disso, há evidências de que a leitura influencia positivamente processos cognitivos de alto nível, como o controle cognitivo e as habilidades de memória, raciocínio e resolução de problemas (Kolinsky & Morais, 2018; Morais & Kolinsky, 2020). Infelizmente, um grande contingente de crianças apresenta dificuldades importantes na aprendizagem da leitura.
Segundo Gough e Tunmer (1986), existem três tipos de “maus leitores”: os disléxicos, ou seja, indivíduos que apresentam dificuldades em identificar palavras escritas, mas possuem habilidades cognitivas gerais normais; os hiperléxicos, casos muito raros, pois os leitores adquirem a capacidade de identificar palavras escritas, mas suas habilidades cognitivas são insuficientes ou mesmo muito fracas, o que dificulta a compreensão do que leem; e a última situação é o que eles chamam de “variedade de jardim”, e representam os casos cujas habilidades de identificar palavras escritas não foram automatizadas, causando problemas de fluência e compreensão. No caso desta última categoria de maus leitores, fatores extrínsecos como pobre background sociocultural, baixa qualidade da educação recebida e a metodologia de alfabetização utilizada parecem ser as causas primárias das dificuldades de leitura observadas.
Segundo a abordagem cognitiva da “Ciência da Leitura”, ler é transformar representações gráficas da linguagem em representações mentais de seu som e significado (Morais et al., 2013). O modelo da Dupla Rota de leitura (Coltheart, 2013) propõe que o leitor proficiente dispõe de dois processos para acessar a pronúncia e o significado das palavras na leitura: um processo indireto (também chamado de rota fonológica ou sublexical), no qual há uma conversão dos grafemas em seus fonemas correspondentes, ocorrendo então o acesso primeiramente à pronúncia e, posteriormente, ao significado da palavra lida, e um processo direto (também chamado de rota ideovisual ou lexical), quando o leitor identifica visualmente o padrão ortográfico da palavra pelo processamento das letras em paralelo, com acesso direto ao significado.
Coerente com esse modelo, há o pressuposto de que o desenvolvimento prévio da rota fonológica é muito importante durante a aprendizagem da leitura, pois é pela decodificação das palavras por essa rota que suas representações ortográficas serão armazenadas na memória de longo prazo, permitindo a leitura pela rota lexical, através do reconhecimento visual direto das palavras, sem necessidade de mediação fonológica (Morais et al., 2013; Share, 1995).
Atualmente, a maioria dos autores considera que o processamento fonológico está diretamente envolvido no ato da leitura, portanto, possíveis déficits nesse processamento seriam os responsáveis pela maior parte das dificuldades no aprendizado dessa habilidade (Capovilla & Capovilla, 2000; Ramus et al., 2013; Santos & Navas, 2004; Wagner & Torgesen, 1987; Vellutino & Fletcher, 2013).
Segundo Wagner e Torgesen (1987), o processamento fonológico corresponde aos processos cognitivos relacionados à percepção, recodificação, armazenamento e recuperação da informação fonológica, sendo composto por três habilidades básicas: consciência fonológica, recodificação fonológica na memória de trabalho e acesso lexical à recodificação fonológica na memória de longo prazo. Essas habilidades têm sido extensivamente investigadas nas últimas décadas como preditores da leitura e da escrita e relacionadas às dificuldades na sua aprendizagem (Godoy, 2017; Schoenel et al., 2020).
A consciência fonológica consiste na capacidade de analisar e refletir sobre a estrutura sonora da linguagem oral, envolvendo a capacidade de isolar, manipular e combinar os seus elementos (Soares, 2016). Segundo Barrera e Maluf (2003), a consciência fonológica pode ser analisada em níveis, que podem ser diferenciados em habilidades suprafonêmicas, como consciência de sílabas, rimas e aliterações, e consciência fonêmica, que se refere especificamente à capacidade de isolar e manipular fonemas, as menores unidades sonoras da fala que possibilitam a distinção entre os significados das palavras. Alguns autores consideram que a consciência fonêmica é a habilidade básica do processamento fonológico envolvido na alfabetização, sendo a chave para a aprendizagem do sistema alfabético de escrita (Ehri et al., 2001; Godoy, 2017; Melby-Lervåg et al., 2012; Morais et al., 2013).
No entanto, resultados de um estudo recente realizado com crianças brasileiras com dificuldades de leitura destacaram a importância da consciência silábica e fonêmica para um bom desempenho na leitura e na escrita (Oliveira & Guaresi, 2018). Também no francês, língua um pouco mais transparente que o inglês, e cuja estrutura silábica é mais simples, alguns estudos sugerem que a atenção às unidades silábicas seria mais importante para a aprendizagem inicial da leitura (Chetail & Mathey, 2009; Colé et al., 1999; Doignon & Zagar, 2006). No caso do português (brasileiro), língua ainda mais transparente que o francês em relação ao inglês (Seymour, 2013), há poucos estudos a respeito. Os resultados de Lopes e Barrera (2019) mostraram que o uso de uma técnica de realce silábico potencializou o mecanismo de recodificação fonológica na leitura de palavras e pseudopalavras de alunos da 2ª série do Ensino Fundamental, principalmente no caso daqueles alunos com habilidades de leitura menos desenvolvidas.
Também de grande importância para o processamento fonológico é a memória de trabalho, principalmente a alça fonológica. Esta consiste basicamente em uma memória verbal de curta duração que pressupõe um armazenamento temporário de informações fonológicas e um processo de repetição verbal. Assim, a alça fonológica armazena e processa informações codificadas verbalmente, sejam elas apresentadas de forma auditiva ou visual, transformando o estímulo perceptivo em códigos fonológicos (Baddeley, 2011).
Embora menos estudada do que a consciência fonológica, a relação entre memória fonológica (de trabalho) e habilidades de leitura também é frequentemente citada na literatura por meio da relação encontrada em vários estudos entre dificuldades de leitura e baixo desempenho em memória verbal de curto prazo, avaliada por tarefas como span de dígitos e repetição de pseudopalavras (Granzotti et al., 2013; Snowling, 2000; Wagner & Torgesen, 1987).
O acesso lexical à recodificação fonológica, terceira habilidade envolvida no processamento fonológico, costuma ser avaliado por meio de tarefas de nomeação rápida que verificam a capacidade de recuperação dos códigos fonológicos da memória de longo prazo, com base na velocidade de nomeação de estímulos visuais. Alguns autores consideram que essa tarefa engloba, além do processamento fonológico (capacidade de acessar e recuperar informações fonológicas rapidamente no léxico mental), processos perceptivos (reconhecimento de padrões visuais) e motores relacionados à articulação da fala (Godoy, 2017; Justi & Cunha, 2016; Justi et al., 2014; Wolf & Bowers, 1999).
Vários estudos encontraram uma relação entre déficits em tarefas de nomeação rápida e dificuldades de leitura (Araújo et al., 2015; Bicalho & Alves, 2010; Cardoso-Martins & Pennington, 2001; Denckla & Rudel, apud Justi & Cunha, 2016). No entanto, devido à variedade de habilidades envolvidas nas tarefas de nomeação rápida, há controvérsias na literatura sobre seu valor como medida estrita do processamento fonológico (Mendes & Barrera, 2017; Justi et al., 2014).
Distúrbios específicos de aprendizagem de leitura são chamados de dislexia do desenvolvimento. Vários autores (Frith, 1985; Snowling, 2000; Vellutino & Fletcher, 2013) propõem um modelo causal de dislexia do desenvolvimento centrado em déficits no processamento fonológico, manifestados por baixo desempenho em tarefas de consciência fonológica, memória fonológica e nomeação rápida. Esses modelos, entretanto, baseiam-se, majoritariamente, em estudos realizados na língua inglesa, considerada uma língua com estrutura silábica muito complexa e com elevado grau de irregularidade (Seymour, 2013). Torna-se relevante, portanto, a realização de estudos que se dediquem a testar essas hipóteses em falantes/leitores de línguas e ortografias mais transparentes e com padrões mais simples de estruturação silábica, como é o caso do Português Brasileiro.
De fato, identificar quais habilidades estão na base das dificuldades de aprendizagem da leitura é importante para a detecção de grupos de risco, bem como para o desenvolvimento de programas e metodologias de ensino voltadas para o desenvolvimento dessas habilidades por meio de intervenções que permitam prevenir e remediar as dificuldades de leitura.
No entanto, a existência de correlação entre habilidades de processamento fonológico e habilidades de leitura não indica, por si só, uma relação causal, uma vez que a própria leitura (ou sua dificuldade) poderia ser responsável pelos baixos desempenhos observados nas avaliações da consciência fonológica, memória fonológica e nomeação rápida. Uma forma de testar a hipótese do papel causal dos déficits do processamento fonológico nas dificuldades de leitura em estudos transversais é comparar grupos com e sem dificuldades de aprendizagem de leitura pareados por nível de leitura, o que implica comparar crianças de diferentes faixas etárias/nível escolar.
Assim, o objetivo geral deste estudo é analisar as habilidades de processamento fonológico (consciência fonológica, memória fonológica e nomeação rápida) de uma amostra de escolares brasileiros com dificuldades na aprendizagem da leitura, por meio da comparação desse grupo com outro grupo composto por alunos mais jovens, com nível de leitura equivalente, mas sem dificuldades no aprendizado da leitura.
Espera-se que crianças com dificuldades na aprendizagem da leitura tenham desempenho significativamente inferior nas habilidades de processamento fonológico, apesar do nível de leitura semelhante entre os grupos, excluindo a possibilidade de que as habilidades de leitura possam ser consideradas a causa do baixo desempenho nas habilidades de processamento fonológico, corroborando assim a hipótese de uma relação causal entre déficits no processamento fonológico e dificuldades de leitura em crianças falantes do Português Brasileiro. Um objetivo mais específico do estudo é explorar o papel dos diferentes níveis de consciência fonológica (habilidades fonêmicas e suprafonêmicas) nas dificuldades de leitura em crianças falantes de uma língua de estrutura silábica mais simples, como é o caso do Português Brasileiro em comparação com o inglês.
Método
Participantes
A pesquisa foi realizada com 24 alunos do Ciclo I do Ensino Fundamental de duas escolas públicas do estado de São Paulo, frequentadas por alunos de classe econômica baixa. Doze alunos foram indicados por seus professores por apresentarem dificuldades importantes de leitura e compuseram o Grupo 1 (G1). Eles frequentavam a 4ª e 5ª séries e tinham idade entre 9 e 14 anos (média de idade de 10,75; DP=1,48). Um segundo grupo (G2) foi composto por 12 alunos do 1º ao 3º ano, indicados por seus professores por não apresentarem dificuldades de leitura (idade média de 6,92; DP=1,16). Esse grupo foi composto pelo pareamento das medidas de leitura com o G1. Na amostra total, 16 participantes eram do sexo masculino (67%) e oito (33%) do sexo feminino, com predominância de participantes do sexo masculino no grupo de crianças com dificuldade de leitura (83%). A aprovação ética foi obtida do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, em 04/09/2017, CAAE 69698517.5.0000.5407, e o consentimento informado por escrito foi obtido para cada participante.
Instrumentos
Para avaliar as habilidades de leitura dos participantes e realizar a composição dos grupos, foi utilizado o Teste de Leitura de Palavras e Pseudopalavras Isoladas - LPI (Salles et al., 2017). Esse instrumento é composto por 59 estímulos que variam de acordo com regularidade (palavras regulares e irregulares), extensão (palavras curtas e longas), frequência (baixa e alta) e lexicalidade (palavras e não palavras). O instrumento apresenta evidências de validade e dados de padronização para crianças do 1o ao 7o ano do Ensino Fundamental público e privado.
Para avaliação da consciência fonológica, foi utilizada a Prova de Consciência Fonológica por Produção Oral – PCFO (Seabra & Capovilla, 2012). Esse instrumento avalia a habilidade de manipular os sons da fala, expressando oralmente o resultado dessa manipulação, por meio da avaliação dos componentes suprafonêmicos e fonêmicos. A Prova é composta por 10 subtestes que avaliam: síntese e segmentação silábica, síntese e segmentação fonêmica, julgamento de rima e aliteração, manipulação silábica e fonêmica e transposição silábica e fonêmica. Cada subteste envolve 2 exemplos e 4 itens de teste, e a pontuação total do teste pode variar entre 0 e 40 pontos. A PCFO possui evidências de validade e confiabilidade (alfa de Cronbach de 0,91 em uma amostra de crianças brasileiras de 1ª a 4ª série) e dados de padronização para crianças brasileiras de 3 a 14 anos.
O Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavras - TRPP (Seabra, 2012) foi utilizado para avaliar a memória fonológica. Neste teste, o aplicador pronuncia para a criança sequências contendo de duas a seis palavras, com intervalo de um segundo entre elas e a criança deve repetir as palavras na mesma sequência, sem cometer erros. Um ponto é concedido para cada sequência repetida corretamente. Existem dois itens com duas palavras, dois itens com três palavras e assim por diante. Posteriormente, são apresentadas as sequências com pseudopalavras. Há também dois itens para cada quantidade de estímulos, variando de duas a seis pseudopalavras. Todas as palavras e pseudopalavras têm duas sílabas, com uma estrutura silábica consoante-vogal. A pontuação desse teste pode variar de zero a 20 pontos. O teste possui evidências de validade e confiabilidade (alfa de Cronbach = 0,77) e dados de padronização para crianças brasileiras de 3 a 14 anos.
A tarefa de Nomeação Automatizada Rápida (RAN) (Denckla & Rudel, adaptado por Ferreira et al., 2003) foi o instrumento utilizado para avaliar a velocidade de recuperação da informação fonológica armazenada na memória de longo prazo. A tarefa é composta por quatro subtestes, um para cada categoria de estímulos: cores, dígitos, letras e objetos. Os estímulos são distribuídos aleatoriamente em 10 linhas e 5 colunas, cada estímulo aparece uma vez em cada linha. A pontuação é feita contando o tempo (em segundos) que cada participante gasta para completar a tarefa, ou seja, para nomear todos os estímulos de cada categoria. Esta prova não é padronizada para a população brasileira, porém estudos constataram uma diminuição no tempo necessário para a nomeação dos estímulos conforme aumenta a idade e o nível de escolaridade (Ferreira et al., 2003).
Por fim, também foi aplicado o Teste de Matrizes Coloridas de Raven (Angelini et al., 1999). Este teste é um instrumento não verbal para a avaliação da inteligência. O teste foi aplicado com o objetivo de excluir possíveis casos de déficit intelectual da amostra. No entanto, nenhuma criança apresentou percentil igual ou inferior a cinco, o que seria sugestivo de deficiência mental.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Os participantes foram avaliados em pequenos grupos no Teste de Raven. As provas de leitura de palavras e pseudopalavras (LPI), consciência fonológica (PCFO), memória fonológica (TRPP) e nomeação rápida (RAN) foram aplicadas individualmente pela pesquisadora. As avaliações foram realizadas no ambiente escolar, em sala silenciosa, durante o período letivo. Os instrumentos foram aplicados em duas sessões distintas, a fim de evitar a interferência da fadiga.
A análise dos dados foi realizada nos programas estatísticos SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), versão 23.0. e JAMOVI 2.3.21. Além dos resultados brutos obtidos pelos participantes, foram considerados nas análises também os resultados ponderados, dependendo das normas (por ano escolar e/ou idade) dos instrumentos utilizados. As comparações entre os grupos com e sem dificuldades de leitura nas diferentes habilidades avaliadas foram realizadas por meio de testes estatísticos apropriados (paramétricos ou não paramétricos) com base nos resultados obtidos por meio da aplicação prévia do teste de normalidade Shapiro-Wilk.
Resultados e Discussão
Iniciamos apresentando os resultados obtidos pelos participantes na avaliação de leitura (LPI), considerando os escores brutos e normalizados (percentis), estes últimos ponderados de acordo com o ano de escolaridade dos participantes e o tipo de escola (escola pública). A Tabela 1 apresenta os resultados descritivos obtidos pelos grupos com dificuldade (G1) e sem dificuldade (G2) no LPI, no que diz respeito à leitura de palavras regulares e irregulares, pseudopalavras e pontuação total. Apresenta também os resultados das análises inferenciais para comparação dos dois grupos, pela utilização do teste de Mann-Whitney, uma vez que a hipótese de normalidade dos dados foi rejeitada para a maioria das variáveis consideradas. A Tabela 1 também informa o tamanho do efeito das diferenças encontradas entre os grupos.
LPI | Mín. | Máx. | Mediana | U | p | Tamanho de Efeito | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Escore Total (Bruto) | G1 | 9 | 53 | 33,50 | 76,50 | 0,817 | 0,062 |
(0-59) | G2 | 8 | 57 | 36,50 | |||
Escore Total (Normalizado) | G1 | 1 | 10 | 1,00 | 144,00 | <0,001 | 1,000 |
(0-99) | G2 | 16 | 70 | 47,50 | |||
Palavras Regulares (Bruto) | G1 | 6 | 18 | 13,00 | 71,50 | 1,000 | 0,007 |
(0-19) | G2 | 4 | 18 | 14,50 | |||
Palavras Regulares (Normalizado) | G1 | 1 | 7 | 1,00 | 144,00 | <0,001 | 1,000 |
(0-99) | G2 | 20 | 60 | 40,00 | |||
Palavras Irregulares (Bruto) | G1 | 1 | 17 | 9,50 | 64,50 | 0,685 | 0,104 |
(0-20) | G2 | 0 | 20 | 7,50 | |||
Palavras Irregulares (Normalizado) | G1 | 1 | 7 | 1,00 | 144,00 | <0,001 | 1,000 |
(0-99) | G2 | 16 | 90 | 40,00 | |||
Pseudopalavras (Bruto) | G1 | 2 | 18 | 11,00 | 89,50 | 0,324 | 0,243 |
(0-20) | G2 | 3 | 19 | 13,50 | |||
Pseudopalavras (Normalizado) | G1 | 1 | 50 | 1,00 | 134,00 | <0,001 | 0,861 |
(0-99) | G2 | 16 | 90 | 57,50 |
Nota - LPI = Teste de Leitura de Palavras Isoladas; G1 = Grupo com dificuldades de leitura; G2 = Grupo sem dificuldades de leitura. (Tamanho de Efeito = Correlação bisserial de ordens)
A Tabela 1 mostra que não há diferenças significativas entre G1 e G2 quando comparamos os resultados brutos obtidos pelos dois grupos. Tal resultado já era esperado, pois o G2 foi composto de forma a ser equivalente, em sua competência de leitura, ao G1. No entanto, a comparação do desempenho de leitura ponderada de acordo com as normas de escolaridade mostra desempenho significativamente superior do G2, tanto no resultado total do teste quanto na leitura de palavras regulares, irregulares e de pseudopalavras, o que de certa forma também já era esperado, uma vez que esse grupo foi formado por alunos sem queixas de dificuldades de leitura. Essa análise inicial ratifica, portanto, a pertinência da composição dos grupos para os objetivos da pesquisa.
Em seguida, buscando realizar uma análise mais detalhada da rota de leitura preferencial utilizada pelos participantes, foram comparados os escores normalizados de leitura no caso de palavras irregulares e pseudopalavras, no interior de cada grupo, uma vez que, de acordo com o modelo de Dupla Rota (Coltheart, 2013), as pseudopalavras só podem ser lidas pela rota fonológica enquanto as palavras irregulares necessitam do uso da rota lexical para serem lidas corretamente. Os resultados das comparações realizadas pelo teste de Wilcoxon para amostras repetidas indicam que, no G1, não foram encontradas diferenças significativas entre a leitura de palavras irregulares e pseudopalavras (W=10,00; p=0,10), enquanto, no G2, as pseudopalavras foram lidas com mais precisão do que as palavras irregulares (W=48,00; p=0,04).
Esses resultados sugerem o uso preferencial da rota fonológica pelos participantes do G2, o que é esperado no caso de crianças em início de alfabetização (Capovilla et al., 2004; Salles et al., 2017), como é o caso dos participantes do G2. Já no G1, os resultados obtidos, mais baixos escores e sem diferenças significativas na comparação entre leitura de pseudopalavras e palavras irregulares, sugerem prejuízo no uso das duas rotas de leitura, tanto fonológica quanto lexical. Porém, como o uso da rota lexical depende do léxico ortográfico visual que resulta das habilidades de decodificação pela rota fonológica, conforme a hipótese de autoensino (Share, 1995; Castles et al., 2018), é possível supor que problemas no processamento fonológico estejam na base do baixo desempenho do G1 no uso de ambas as rotas, dificultando assim a aquisição e o desenvolvimento das habilidades de leitura.
A habilidade de memória fonológica foi avaliada por meio do TRPP (Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavras). Os dados foram analisados levando em consideração o desempenho bruto e normalizado, em função da idade, para ambos os grupos. Os resultados das análises descritivas do desempenho dos grupos e das análises inferenciais realizadas para compará-los são apresentados na Tabela 2. O teste de Mann-Whitney foi utilizado nessa comparação, pois a hipótese de normalidade dos dados foi rejeitada para a maioria das variáveis consideradas. Na referida tabela são incluídos também os tamanhos de efeito das diferenças observadas entre os grupos.
TRPP | Mín. | Máx. | Mediana | U | p | Tamanho de Efeito | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Palavras (Escore Bruto) | G1 | 2 | 6 | 4 | ||||
(0 – 10) | G2 | 2 | 5 | 4 | 68,50 | 0,859 | 0,049 | |
Palavras (Normalizado) | G1 | 77 | 115 | 87,5 | ||||
G2 | 87 | 122 | 107 | 36,00 | 0,040 | 0,500 | ||
Pseudopalavras (Bruto) | G1 | 1 | 3 | 2 | ||||
(0 – 10) | G2 | 1 | 3 | 2 | 67,50 | 0,798 | 0,062 | |
Pseudopalavras | G1 | 62 | 109 | 91 | ||||
(Normalizado) | G2 | 80 | 117 | 100 | 48,00 | 0,172 | 0,333 | |
Escore Total (Bruto) | G1 | 4 | 8 | 5,5 | ||||
(0-20) | G2 | 4 | 8 | 5,5 | 65,50 | 0,719 | 0,090 | |
Escore Total | G1 | 70 | 106 | 90,5 | ||||
(Normalizado) | G2 | 84 | 123 | 100,5 | 33,00 | 0,026 | 0,542 |
Nota - Escores Normalizados: < 70, muito baixo; entre 70 e 84,baixo; entre 85 e 114, médio; entre 115 e 129, alto; ≥130, muito alto; G1 = Grupo com dificuldades de leitura; G2 = Grupo sem dificuldades de leitura; TRPP = Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavrass. (Tamanho do Efeito = Correlação bisserial de ordens).
Os resultados apresentados na Tabela 2 mostram que, no caso dos resultados normalizados, existem diferenças significativas a favor do G2 no escore total do TRPP e no subteste de repetição de palavras. No subteste de repetição de pseudopalavras não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos. É possível observar ainda que ambos os grupos obtiveram valores de mediana correspondentes à classificação média nas habilidades de memória fonológica (variando entre 85 e 114).
No entanto, quando analisados os resultados individuais (conforme a Figura 1), observa-se que, no G1, mais participantes apresentam desempenhos classificados como baixo ou muito baixo aproveitamento nas três categorias do teste, enquanto o G2 apresenta o padrão inverso, com poucas crianças classificadas nesses níveis e algumas delas, inclusive, apresentando alto desempenho nas habilidades de memória fonológica. Esse padrão diferencial dos grupos pode ser constatado até mesmo no subteste de repetição de pseudopalavras, no qual a princípio não foi encontrada diferença significativa entre os grupos, porém dois participantes do G1 apresentaram resultados muito baixos nesse subteste, o que é sugestivo de déficits importantes na memória fonológica.
De todo modo, a ausência de diferenças significativas entre os grupos com e sem dificuldades de leitura no subteste de repetição de pseudopalavras é digna de nota e merece ser melhor investigada em pesquisas futuras, uma vez que estudos têm encontrado déficits nessa habilidade em grupos de crianças com distúrbios e dificuldades de leitura, conforme citado nos estudos de Wagner e Torgesen (1987) e Granzotti et al. (2013). Observa-se, porém, que neste último estudo também não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos com e sem dificuldades de aprendizagem quando os itens da tarefa de repetição de palavras sem sentido eram compostos por pseudopalavras de duas e três sílabas, porém nesse estudo as crianças dos dois grupos tinham a mesma idade e grau de escolaridade.
Para avaliar as habilidades de consciência fonológica dos participantes, foi utilizado a PCFO (Prova de Consciência Fonológica por Produção Oral). Os resultados totais foram analisados levando em consideração o desempenho bruto e normalizado, dependendo da idade dos participantes. Também foi realizada uma análise dos resultados comparando os subtestes que avaliam habilidades suprafonêmicas e fonêmicas, mas neste caso foram computados apenas os resultados brutos, uma vez que a PCFO não possui dados padronizados para essas duas subcategorias. A Tabela 3 apresenta os resultados descritivos e inferenciais dessas análises. Nesse caso, os grupos foram comparados por meio do Teste t para amostras independentes, pois não foi rejeitada a hipótese de normalidade dos dados. O tamanho do efeito foi calculado com base no Teste d de Cohen.
Nota: TRPP = Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavras; G1= grupo com dificuldades de leitura; G2 = grupo sem dificuldades de leitura
Fonte: Elaboração própria
PCFO | Mín. | Max. | Média | DP | t | p | d | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Escore Total (Bruto) | G1 | 19 | 32 | 24,75 | 3,96 | 1,253 | 0,223 | 0,511 |
(0 – 40) | G2 | 20 | 33 | 26,75 | 3,86 | |||
Escore Total (Normalizado) | G1 | 35 | 106 | 75,33 | 18,68 | 4,768 | <0,001 | 1,947 |
G2 | 81 | 128 | 107,83 | 14,45 | ||||
Habilidades Suprafonêmicas (Escore bruto) | G1 | 8 | 16 | 11,42 | 2,15 | 2,626 | 0,015 | 1,072 |
(0-16) | G2 | 9 | 16 | 13,58 | 1,88 | |||
Habilidades Fonêmicas (Escore bruto) | G1 | 2 | 9 | 5,08 | 2,15 | 0,457 | 0,652 | 0,186 |
(0 – 16) | G2 | 2 | 10 | 5,50 | 2,32 |
Nota - Escores Normalizados: <70, muito baixo; entre 70 e 84,baixo; entre 85 e 114, médio; entre 115 e 129, alto; ≥130, muito alto; G1 = Grupo com dificuldades de leitura; G2 = Grupo sem dificuldades de leitura; PCFO = Teste de Consciência Fonológica por Produção Oral; Habilidades suprafonêmicas = subtestes de rimas, aliterações, manipulação e transposição silábicas; Habilidades fonêmicas = subtestes de síntese, segmentação, manipulação e transposição fonêmicas (OBS- Os subtestes de análise e segmentação silábica não foram considerados por terem apresentado efeito teto na amostra como um todo).
Na avaliação da consciência fonológica, novamente os resultados normalizados da PCFO indicaram diferenças significativas entre os escores médios dos grupos, com o G1 apresentando escore médio baixo (75,33) enquanto o G2 apresenta escore médio dentro do esperado para a idade (107,83). É notável que também comparando os escores brutos o tamanho do efeito da diferença entre os grupos foi considerável, o que mostra a importância dessa habilidade para o desempenho da leitura.
Estes resultados concordam com os obtidos por vários estudos (Granzotti et al., 2013; Vellutino & Fletcher, 2013) que concluem que os alunos com dificuldades na aprendizagem da leitura apresentam prejuízos nos testes de consciência fonológica comparativamente a alunos com bom desempenho na leitura. Vale ressaltar também que cinco (42%) participantes do G1 pontuaram muito baixo na PCFO, o que sugere déficits importantes na consciência fonológica dessas crianças, confirmando a relação já bem estabelecida na literatura que aponta a consciência fonológica como um dos principais precursores da aprendizagem da leitura (Capovilla & Capovilla, 2000; Morais et al. 2013; Barrera & Maluf, 2003; Santos & Navas, 2004).
Analisando-se o desempenho dos participantes nos subtestes que avaliam diferentes níveis de consciência fonológica foi possível observar diferenças significativas entre os grupos nas habilidades suprafonêmicas (subtestes que englobam rima, aliteração e consciência silábica), com as crianças do G2 superando as do G1 com grande tamanho de efeito.
Entretanto, ao analisar o desempenho dos participantes nos subtestes que avaliam o nível de consciência fonêmica, não foram observadas diferenças significativas entre os grupos, com ambos apresentando baixo desempenho. Isso pode ser explicado pelo fato de as crianças do G2 ainda não estarem totalmente alfabetizadas, porém o número de erros tanto na leitura quanto nas provas de consciência fonológica é compatível com o esperado para a escolaridade e idade desse grupo. No caso do G1, no entanto, os baixos desempenho refletem as importantes dificuldades desses alunos em ambos os níveis de análise fonológica.
Esses resultados indicam, portanto, dificuldades importantes dos participantes do G1 com as habilidades metafonológicas em geral e não apenas no que diz respeito à consciência fonêmica. Tais dados vão ao encontro dos resultados obtidos em outras pesquisas com amostras de alunos brasileiros com dificuldades de aprendizagem (Granzotti et al., 2013; Oliveira & Guaresi, 2018), os quais também encontraram resultados significativamente inferiores com relação às habilidades de consciência silábica dessa população, habilidades essas cognitivamente mais simples e que tendem a ser desenvolvidas previamente em relação à consciência fonêmica (Barrera & Maluf, 2003; Seymour, 2013).
A Tabela 4 informa os resultados brutos obtidos pelos grupos (G1 e G2), bem como a comparação entre eles, quanto à velocidade de recuperação da informação fonológica na memória de longo prazo, avaliada por meio da tarefa RAN. Diferentemente de outros testes, a pontuação dessa tarefa é computada em segundos, sendo que valores menores correspondem a melhores resultados, pois indicam maior rapidez na nomeação dos estímulos. Conforme mencionado anteriormente, este teste não possui padronização brasileira que abranja a faixa etária do estudo, por isso, as análises se basearam apenas nos resultados brutos.
RAN | Min. | Máx. | Mediana | U | p | Tamanho do Efeito | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Cores | G1 | 31 | 73 | 46,00 | |||
G2 | 42 | 73 | 56,00 | 39,00 | 0,060 | 0,458 | |
Objetos | G1 | 42 | 97 | 53,00 | |||
G2 | 47 | 99 | 66,50 | 38,00 | 0,053 | 0,472 | |
Dígitos | G1 | 24 | 59 | 33,00 | |||
G2 | 30 | 60 | 40,00 | 42,00 | 0,088 | 0,417 | |
Letras | G1 | 26 | 66 | 35,00 | |||
G2 | 29 | 65 | 44,50 | 55,00 | 0,340 | 0,236 |
Nota - RAN = Nomeação Automatizada Rápida; G1 = Grupo com dificuldades de leitura; G2 = Grupo sem dificuldades de leitura; tempo medido em segundos. (Tamanho do efeito = Correlação bisserial de ordens)
Os dados apresentados na Tabela 4 mostram que, para a nomeação das cores e de objetos, as diferenças em favor de G1 podem ser consideradas marginalmente significativas, correspondendo a baixo efeito da idade e/ou escolaridade na velocidade de nomeação desse grupo de participantes, diferentemente do que costuma ocorrer no caso de crianças sem dificuldades de aprendizagem (Lúcio et al., 2017). No mesmo sentido, o fato de não serem observadas diferenças significativas entre os grupos quanto à velocidade na nomeação de letras e dígitos indica ainda maiores dificuldades do G1 no que diz respeito à automatização deste tipo de estímulos.
Os resultados globais mostram, portanto, o baixo desempenho dos participantes do G1 na tarefa de RAN, principalmente no que diz respeito à nomeação de letras, mostrando que essa habilidade ainda está longe de ser automatizada para esses alunos, corroborando os resultados obtidos por diversos pesquisadores da área (Bicalho & Alves, 2010; Cardoso-Martins & Pennington, 2001).
Considerações
Os resultados obtidos oferecem suporte à hipótese da relação causal entre fracas habilidades de processamento fonológico e dificuldades de leitura em crianças brasileiras, usuárias de um código ortográfico mais transparente que o inglês, sugerindo atrasos significativos (ou mesmo, em alguns casos, possíveis déficits) nas habilidades fonológicas dos participantes do G1.
Esses atrasos dizem respeito principalmente à consciência fonológica (desde seus níveis mais elementares, como a consciência de sílabas), à memória fonológica de curto prazo e à recuperação da informação fonológica da memória de longo prazo, principalmente no caso da automatização do reconhecimento das letras. Embora não possamos afirmar que os participantes do G1 sejam disléxicos, os resultados muito abaixo do esperado para a série escolar e/ou idade apresentados por alguns participantes desse grupo nos testes de consciência fonológica e memória fonológica, bem como na nomeação de letras, permitem-nos levantar esta hipótese.
É possível afirmar, contudo, que as habilidades de processamento fonológico avaliadas estão fortemente e provavelmente causalmente relacionadas ao aprendizado da leitura. Concluímos, portanto, que tais habilidades fonológicas devem ser consideradas tanto no planejamento pedagógico da alfabetização regular como em intervenções com crianças em risco ou com dificuldades de aprendizagem de leitura, mesmo no caso de sistemas de escrita mais transparentes como o Português Brasileiro.
Particularmente, as dificuldades observadas nos participantes do G1 com os níveis mais simples de habilidades de consciência suprafonêmica sugerem a importância de se trabalhar intencionalmente o desenvolvimento da consciência fonológica desde a pré-escola para minimizar os efeitos de possíveis déficits no processamento fonológico sobre a aprendizagem da leitura. Indicam ainda que o trabalho com a consciência das sílabas pode vir a ter um impacto positivo importante, principalmente no caso de crianças em risco de apresentarem dificuldades na alfabetização.
Finalizamos apresentando algumas limitações do presente estudo. A primeira diz respeito ao pequeno número de participantes, o que, de certa forma, prejudica a generalização dos resultados obtidos. A falta de normas brasileiras para a versão utilizada da tarefa de Nomeação Automática Rápida (RAN) foi outro fator limitante, o que dificultou uma análise mais aprofundada dos resultados referentes a essa habilidade.
Finalmente, embora o delineamento metodológico do estudo vise testar uma hipótese de relação causal entre habilidades de processamento fonológico e dificuldades de leitura, por meio do controle do nível de leitura dos participantes através da comparação com um grupo de crianças mais novas, respostas mais conclusivas a essa questão também precisam ser apoiadas por estudos experimentais.
Existem muitos estudos científicos que demonstram a eficácia do treino de habilidades de consciência fonológica para a alfabetização, como mostram algumas revisões da literatura (Barrera & Santos, 2014; Ehri et al., 2001; Silva & Godoy, 2020). Entretanto, maior atenção deve ser dada à realização de estudos experimentais que testem a eficácia do desenvolvimento de habilidades suprafonêmicas, como é o caso das sílabas, rimas e aliterações, especialmente no caso dos sistemas de escrita alfabética de estrutura silábica mais simples do que o Inglês.
Por outro lado, estudos experimentais envolvendo os efeitos de treinos em memória fonológica e nomeação automática rápida para a aprendizagem da leitura são menos comuns na literatura. Há, portanto, a necessidade de mais estudos envolvendo o treino de outras habilidades do processamento fonológico, a fim de demonstrar de forma inequívoca a importância dessas habilidades para a aprendizagem da leitura e da escrita, principalmente no caso do Português Brasileiro.