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Journal of Human Growth and Development
versión impresa ISSN 0104-1282versión On-line ISSN 2175-3598
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.15 n.2 São Paulo ago. 2005
ATUALIZAÇÃO CURRENT COMMENTS
Saúde e poder: um estudo sobre os discursos hegemônicos e subalternos em contextos multiculturais*
Health and power: a study about hegemonical and subaltern speeches in multicultural contexts
Ondina P. PereiraI; Tânia M. C.de AlmeidaII
IProfessora da Universidade Católica de Brasília (UCB), Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Endereço: SQN 404 - Bloco O - apto. 207 - Brasília (DF) 70.845-150 ondinapena@brturbo.com.br
IIProfessora da Universidade Católica de Brasília (UCB), Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Endereço postal: SQN 107 - Bloco H - 406- Asa Norte, Brasília (DF) 70.743-080 tmara@pos.ucb.br
RESUMO
A dificuldade de comunicação entre profissionais de saúde e as comunidades populares é notória e se expressa principalmente na ineficácia dos tratamentos tal como os prescreve a medicina oficial, assim como no descontentamento, por parte dos usuários, com os seus resultados. Este artigo refletir sobre tal situação, colocando em relevo a importância ética da escuta, pelos profissionais da saúde, dos discursos e saberes extra-científicos sobre a doença e a saúde afirmados por tais comunidades. A escuta mais sensível poderá dar visibilidade aos elementos que impedem a comunicação efetiva, proporcionando a restituição da reciprocidade comunicativa, o que significa a recusa e a transformação das relações de subalternidade aí estabelecidas.
Palavras-chave: Saúde. Ética. Religião. Discurso médico e subalternidade.
ABSTRATCT
The difficulty of communication between health professionals and popular communities are well known and appears mainly in the inefficacy of the treatments such as the official medicine prescribes them, as well as in the dissatisfaction, on the part of the users, with its results. In this article, we analyze this situation, placing in relief the ethical importance of listening to, for the professionals of the health, the speeches and extra-scientific knowledge on the illness and the health affirmed by such communities. Listening most sensible will be able to give visibility to the elements that hinder the communication accomplish, providing the restitution of the reciprocity in the communication, which means the refusal and the transformation of the relations of subalternity established there.
Key words:Health. Ethical. Religion. Medical speech and subalternity
INTRODUÇÃO
Em pesquisa sobre a relação entre as ciências humanas e a saúde, nós constatamos, em comunidades populares de Brasília (DF) sob os cuidados de profissionais da saúde, uma baixa conversibilidade entre os termos do saber da medicina - laica e científica - e as linguagens compreensíveis para aqueles que procuram seus cuidados. Trata-se de comunidades que, apesar do baixo nível de escolaridade formal, são detentoras de outros saberes marcados por concepções religiosas estranhas ao universo das categorias médicas.
A dificuldade de tradução entre as duas realidades torna evidente a existência de uma falha na reciprocidade entre os profissionais da saúde (em particular os médicos) e os usuários do sistema público. Tal fato impede, por um lado, a eficácia dos tratamentos tal como os compreende a medicina oficial, por outro, a satisfação e confiança em relação aos tratamentos por parte dos usuários.
Essa dificuldade de comunicação assinala uma questão conflituosa de natureza ética e política. Ou seja, o sistema de saúde oficial desconsidera a diversidade de crenças e de valores legítimos no domínio da saúde e impõe o discurso científico como superior aos outros, como se aquele fosse um discurso universal e, portanto, portador de uma autoridade incontestável face à tradição cultural, que, apesar de ser mais antiga e popularmente disseminada que o outro código, tornou-se marginal e inferior no mundo moderno.
O presente artigo é uma reflexão sobre a importância ética da escuta, pelos profissionais da saúde, dos discursos e saberes extracientíficos sobre a doença e a saúde afirmados por comunidades populares. Tal escuta mais sensível poderá dar visibilidade aos elementos que impedem a comunicação, levando, assim, à restituição da reciprocidade entre os discursos, o que significa a recusa e a transformação das relações de subalternidade entre eles.
Para conduzir o desenvolvimento dessas reflexões, lançaremos mão de certas teorias que, tendo surgido a partir de cruzamentos disciplinares diversos, estão na origem dos chamados estudos subalternos. Estes, por sua vez, fazem freqüentemente referência à idéia de desconstrução, no sentido de Derrida1, e à concepção de poder segundo Foucault2.
O que reúne esses estudos tão diferentes entre si parece ser uma tentativa de deslocamento do olhar. O olhar moderno seria um olhar etnocêntrico e, segundo Derrida, nem mesmo a etnologia, que combateu o etnocentrismo, teria conseguido realizar esse deslocamento, já que foi essa disciplina que tornou possível à cultura européia a construção de sua imagem perante o resto do mundo como única cultura capaz de praticar o exercício de desdobramento de si, e, portanto, de falar da alteridade.
Dessa forma, pode-se afirmar que a capacidade de deslocamento do olhar é uma capacidade própria do subalterno, na medida em que é capaz, além de restituir ao dominador o olhar deste sobre si mesmo, também de mudar o locus da enunciação, isto é, o lugar onde o olhar tem origem. Nessa perspectiva, o ponto central é abandonar o olhar ocidental como referência dominante e substituí-lo por uma base comutativa e mais equivalente de olhares, dando lugar legítimo e simétrico ao olhar e à voz marginal.
A história dos estudos subalternos tem lugar no momento em que alguns pensadores iniciaram um processo de transformação do olhar, procurando se implicar no horizonte do outro para abrir espaço às diferenças em um mundo submetido à ocidentalização. Essa tarefa implica na aceitação do outro com suas demandas e na interrogação da "posicionalidade"3 dos pesquisadores, assim como de suas produções científicas, no jogo político da descolonização4.
Nós gostaríamos, então, de pensar aqui o domínio da saúde e as relações entre os discursos de profissionais e de pacientes dentro da perspectiva dos estudos subalternos. Se o mundo e as relações humanas nesses estudos constituem um texto, é necessário fazer aparecer uma nova narrativa que surja na contra corrente da tradição discursiva dominante, já que esta última erige a produtividade máxima à categoria de possibilidade única de existência civilizada.
Nossa estratégia é assim a de mostrar o discurso hegemônico da medicina como uma produção científica diretamente articulada aos interesses capitalistas dominantes e globalizantes. Trata-se de uma potente produção dentro da sociedade moderna, não importando onde a medicina tenha sido construída, seja em um país considerado evoluído ou no chamado Terceiro Mundo. Em seguida, esse saber hegemônico no Ocidente será contraposto a discursos contra-hegemônicos de pacientes entrevistados e de outras tradições culturais marginais e atualmente desprezadas.
O discurso hegemônico da medicina
Na narrativa tradicional sobre o nascimento da medicina moderna, aprendemos que seu discurso científico se estabeleceu com o desenvolvimento dos saberes da fisiologia e da patologia5. Em nossa perspectiva, entretanto, essa narrativa, mesmo que "verdadeira" e produza resultados eficientes no que diz respeito à conservação do corpo físico, esconde uma importante dimensão dessa história, qual seja, a inscrição dos saberes em uma racionalidade científica articulada ao capital e à ideologia do individualismo moderno.
O estabelecimento desses conhecimentos proporcionou a emancipação e a secularização das práticas da saúde, as quais antes estavam fortemente relacionadas aos discursos e valores criados fora da dimensão econômica da vida, isto é, fora da modernidade ocidental e capitalista. A partir do momento em que esses conhecimentos ditos científicos alcançaram a hegemonia na narrativa da existência, a compreensão do que se considera "saúde" não foi mais orientada por outros valores suscitados pela vida compreendida como totalidade sócio-psíquica e cultural, já que, aos olhos do capitalismo, da mesma forma que a razão é um instrumento, a vida só é um meio de produção, acumulação de riqueza e expansão do poder.
Em outras sociedades, a pessoa que ficava doente era também portadora de uma significação religiosa e cultural da sua doença, o que lhe dava o sentimento de pertencer ao universo simbólico no seu contexto original6. Entretanto, na história do Ocidente Moderno, esse universo simbólico enfraqueceu, dando lugar ao fortalecimento da materialidade das relações econômicas, da simulação do social e dos códigos7. Com a hegemonia da narrativa econômica, a doença e a saúde tornaram-se questões de mercado, perdendo sua capacidade de sinalizar a existência de problemas na ordem das trocas entre os humanos e entre estes e o mundo. Assim, os problemas de saúde passaram a ser considerados como meros signos orgânicos da falta de equilíbrio corporal e mal-estar físico individual, que têm na sua origem agentes exteriores nocivos (vírus, bactérias, acidentes) e o envelhecimento do corpo.
Poderíamos falar aqui, então, no domínio da saúde, de uma confrontação de saberes, valores e poderes, de onde surgiu e se impôs - enquanto verdade única dos corpos e das relações sociais - a troca econômica (entendida como a troca onde todas as coisas são traduzidas nos termos de um equivalente geral - o dinheiro), sobre os escombros da troca simbólica (compreendida como a troca onde o valor é a troca nela mesma e não as coisas trocadas). Nesse caso, o importante são as relações sociais, como Mauss8 nos ensinou em sua obra clássica Essai sur le don,de 1950.
Em um mundo dominado pela economia, há uma tendência crescente à medicalização e compartimentação dos corpos e dos saberes da medicina, justamente porque, para se obter uma produção rápida e eficiente, é necessário antes de tudo ter corpos produtivos disciplinados e representados como um conjunto de fragmentos, onde cada um desses recebe tratamento isolado1. Tais corpos disciplinados produzirão saberes que legitimarão a medicalização que, de sua parte, constituir-se-á como valor. Eis o círculo que dá suporte ao imperativo de normas médicas de disciplina e higiene, estas últimas naturalizadas, como se não existisse nada além da barbárie do bio-poder, que, no domínio da saúde, tem a função de manter a capacidade produtiva das pessoas, durante o tempo mais longo possível, a serviço da acumulação capitalista.
Trata-se, assim, de um sistema de saúde cuja função é a de produzir tratamentos rápidos, individuais e eficazes, com o objetivo de extirpar a doença - freqüentemente só seus sintomas - e de suprimir as marcas que a poderiam remeter às relações sociais ou simbólicas. Na concepção de Baudrillard7,9, todos esses sistemas modernos - positivos, absolutos, totalitários - constituem-se por intermédio da expulsão dos elementos considerados negativos, que irão retornar de uma maneira catastrófica, como uma anomalia sobre a qual o sistema não tem mais solução, pois se trata "de uma alteridade diabólica que vem perturbar essa tão bela máquina"9 (p.12).
No domínio da saúde, essa "alteridade diabólica" tem lugar sob a forma de anomalias súbitas, falhas, doenças virais e misteriosas. É a regra fundamental da reversibilidade, que protege o sistema de uma positivação total, e, portanto, do risco de dessimbolização. Assim, segundo Baudrillard9 (p.12), "a viralidade é a patologia dos circuitos fechados, dos circuitos integrados, da promiscuidade e da reação em cadeia. É uma patologia do incesto, tomado em um sentido largo e metafórico". E continua: "A impossibilidade da troca, da reciprocidade, da alteridade, secreta uma outra alteridade invisível, diabólica, imperceptível, esse Outro absoluto que é o vírus, feito ele mesmo de elementos simples e de uma recorrência ao infinito" (tradução livre).
Segundo essa perspectiva, as doenças estranhas, apesar de seus efeitos catastróficos, são uma força que age no contra fluxo da narrativa hegemônica, constituindo uma linha de fuga diante de um mal ainda pior: a dissolução total do outro na programação universal do ser humano. Elas não teriam entretanto lugar dentro de uma narrativa que muda o locus da enunciação e cuja origem do olhar é a alteridade. Essa narrativa descreve uma sociedade doente, anestesiada pela produção de medicamentos para tentar curar o incurável: a ausência de trocas simbólicas - que poderiam oferecer o sentido verdadeiro da vida.
Apesar dos esforços dessas contra narrativas, que sobrevivem dentro de comunidades periféricas do capitalismo - e aqui fazemos referência particular ao Brasil e mais especificamente à periferia de Brasília (DF), onde esses discursos alternativos se apóiam em diversas crenças religiosas - a codificação, formalização e institucionalização das práticas médicas perseguem seus objetivos de controlar a doença através do saber anatômico e fisiológico dominado exclusivamente pelos médicos, o que os mantém dentro de uma posição de autoridade incontestável frente aos seus pacientes, reduzidos, apesar de seus conhecimentos tradicionais e de sua autopercepção, à passividade. Nessa situação, os pacientes não partilham suas experiências de cura realizadas dentro de contextos religiosos, o que priva seus médicos do conhecimento de uma face importante de significação cultural e existencial da população, assim como de uma dimensão de resistência e de crítica à medicina hegemônica.
A experiência, a sabedoria e a contra narrativa do doente/subalterno
A resposta à colonização do corpo pelo olhar anátomo-fisiológico aparece de várias formas. Nas entrevistas com a população periférica de Brasília, nós escutamos alguns relatos que se repetem, dando visibilidade à discussão que fazemos aqui. O conjunto das falas pode ser sintetizado da seguinte forma:
Eu tinha um problema sério nos olhos, sentia muita dor e fui a médicos muitas vezes. Depois de cada consulta, eu voltava pra casa cheia de receitas, de remédios, mas sem muita esperança. Ficava sempre o sentimento de que coisas importantes não haviam sido ditas, que não houve um diálogo, que o médico mal havia me tocado, mal havia me escutado. .Mesmo assim, eu tomava os remédios, seguia as prescrições e a dor continuava lá. Resolvi ir a um especialista, mas as condições da consulta continuaram as mesmas: entrar no consultório, não conseguir falar, sentir a impossibilidade de fazer o médico escutar o que eu sentia. Eu me perguntava se o médico e eu não falávamos a mesma língua, porque eu também não conseguia muito prestar atenção às poucas palavras que ele me dirigia. Então, as consultas aconteciam sempre assim.
Um dia, um médico me disse que eu ficaria cega em pouco tempo, que eu tinha uma doença chamada toxoplasmose. Eu simplesmente não acreditei. E decidi ir a um curandeiro do qual me haviam falado. Eu nem sabia qual era a religião dele. Eu já havia freqüentado o candomblé, a igreja católica e outros cultos também, mas eu não tinha escolhido nenhum.
Eu só fui uma vez ao curandeiro. Havia uma multidão que esperava para ser atendida. Ele me recebeu muito bem, foi muito acolhedor e me fez entrar em uma sala minúscula. Depois de uma conversa calma, amável, ele operou meus olhos. Ele me mandou sentar e fechar os olhos. Então, passou um bisturi em cima dos meus olhos - sem mesmo tocar minha pele. Depois, passou um remédio em cima dos olhos e me mandou ir embora.
Eu me sentia muito bem. A sensação era muito diferente com relação ao que eu tinha experimentado nos consultórios médicos. Com eles, tudo parecia estranho e agora, tudo parecia familiar. O sentimento mais forte era esse: eu me sentia em casa. Meu corpo também, eu o percebia dentro de um estado confortável. No dia seguinte, a dor tinha desaparecido. Mesmo sem compreender o que havia acontecido no curandeiro, eu acreditava que alguma coisa muito íntima tinha me tocado. Mas, de qualquer forma, eu tinha ainda necessidade de saber até que ponto minha doença tinha sido curada. Então, voltei ao médico que havia previsto minha cegueira. Ele ficou espantado ao constatar que a ferida dos meus olhos estava cicatrizada. Eu nada disse sobre minha ida ao curandeiro. Ele não iria me compreender, nem mesmo acreditar em mim.
Acontecimentos como esses são bem mais comuns do que se imagina em nosso país. Acreditamos que os elementos importantes a se compreender nesse relato são a dificuldade de comunicação e a forma de acolhimento do médico em relação à demanda da paciente, aspectos que desaparecem no curandeiro; a sensação de estranheza no consultório médico e a familiaridade com o curandeiro, que podem ser traduzidas em "sensação confortável do corpo". Outro elemento é a necessidade para os pacientes de voltar aos médicos para obter a certeza de que a cura se realizou e seu espanto em constatar o impossível para a ciência. Esse retorno, que acontece a partir de uma inversão estrutural de posição, é uma forma de dizer que a medicina não detém todos os saberes sobre o corpo e a saúde, devendo, pois, ser humilde face aos outros conhecimentos - ainda que a confiança no veredicto médico seja ambígua e que as pessoas o procurem em busca de uma afirmação final.
Há também casos em que as pessoas, depois de curadas, não voltam ao médico. Elas o ignoram simplesmente, de acordo com essa afirmação, por exemplo : «(...) eu não tinha como provar nenhuma de minhas curas ao médico. Não há como dizer qualquer coisa sobre o que havia acontecido comigo».
Trata-se, então, de uma questão de posição nessa estrutura de poder que se erige nas relações entre o médico e o paciente, seja lá qual for a abordagem específica de cada médico ou sua simpatia pessoal. Qual é o lugar que meu corpo, meu discurso sobre mim mesma, minha cultura ocupa no consultório médico? E no curandeiro? Parece que a narrativa síntese responde claramente a tais questões. O texto do médico reserva uma posição passiva, subalterna, à paciente, que não quer de modo algum ocupa-lo, porque, em algum lugar, ela sabe que o texto não lhe pertence, que ele foi escrito com uma pretensão de universalidade para apagar as especificidades do outro texto, no qual ela participa da sua autoria.
É no curandeiro que ela encontrará intimidade e identidade com o texto, o que lhe dá sensação de conforto, de ser bem recebida e de estar dentro de uma comunicação real. A identificação dessa familiaridade ocorre mesmo diante da autoridade de um chefe religioso, que pode utilizar ironicamente elementos cênicos e performáticos do mundo médico (por exemplo: vestimentas, bisturis ou máscaras).
Da mesma forma, podemos encontrar pesquisas antropológicas que indicam a existência de culturas onde a percepção corporal das pessoas é de tal forma diferente da visão ocidental, que essas pessoas têm dificuldades de compreender e de seguir o discurso hegemônico da medicina oficial. Por exemplo, Pereira10 escreve sobre culturas onde o corpo não se reduz a fragmentos como na visão biomédica, mas é descrito como um corpo inteiro, sensível e fenomenal. Um outro exemplo específico no Brasil são as pesquisas realizadas na periferia de Porto Alegre-RS11, 12, que mostram a variedade de representações sobre o corpo, a saúde, a reprodução e a fertilidade experimentadas por essa população, escapando a qualquer discurso que não reconheça a diferença das significações e simbolizações que são construídas por eles.
Duas histórias de grupos indígenas do Sul do Brasil abrem-se sobre a mesma questão de diferenças textuais, segundo Souza13. Há um forte contraste entre o corpo moderno (monádico) e o corpo indígena (holístico), que pode ser atravessado por conteúdos oníricos (guarani) ou pelo comando de espíritos (kaigang), revelando a riqueza da diversidade de corpos co-existentes em uma mesma pessoa, época e lugar. Seus corpos, duplicados ou triplicados, são interconectados. Nesse contexto, a vida e a morte não têm fronteiras, assim como a natureza e as forças sobrenaturais são contínuas. Entretanto, nada desse corpo holístico é compreendido pelo ser humano moderno.
O projeto moderno baniu a alteridade para promover um único projeto de humanidade para todos os povos e grupos. Além dos estudos mencionados, outras pesquisas antropológicas sobre populações mais próximas de nós, inseridas no mundo urbano e vivendo sob o mesmo modo de produção dominante, mostram a diversidade humana e sua resistência a se deixar enquadrar nas práticas médicas hegemônicas, o que revela a dimensão falaciosa do projeto capitalista de igualdade. Por conseguinte, a menos que os profissionais da saúde comecem a reconhecer a limitação do monólogo biomédico, eles não estarão em posição de respeito ao outro e à sua diferença.
Esses esforços de construção de uma narrativa diferente daquela que está em vigor no domínio da saúde constituem também uma linha de fuga diante da falsa homogeneidade do mundo. Dessa forma, a noção de saúde poderá ser compreendida para além da ausência de doenças e para além de sua dimensão orgânica. Essa abordagem supõe uma compreensão da humanidade na sua diversidade, intraduzível pela narrativa do homem branco, burguês e colonizador, o que pode restituir aos sujeitos os termos da verdadeira significação do processo de desigualdade que os transformam sempre em subalternos, sempre em pacientes.
Algumas reflexões conclusivas
Ao mostrarmos, através do olhar do paciente/subalterno, as limitações do modelo biomédico, nós chegamos a entrever um outro modelo que, por compreender os processos de saúde e de doença do ser humano na complexidade das relações que os envolvem, torna possível uma intervenção mais justa e humana sobre a qualidade de vida dos grupos subalternos. Esse modelo, fundado sobre novos eixos éticos e políticos, é somente uma possibilidade aqui esboçada e já observada em parte dentro de alguns projetos inovadores, pois vários outros modelos podem surgir. Como exemplo dos já existentes, citamos o projeto pedagógico do curso de medicina do GDF, investigado por nós e estruturado em uma abordagem que procura aproximar as ciências humanas e a saúde14.
Uma das mais urgentes transformações que devem sofrer o sistema de saúde e a posição superior dos profissionais que atuam nele é a abertura à participação dos pacientes nos processos de decisão de sua cura, o que significa, de acordo com a metáfora que temos utilizado aqui, a leitura atenta do texto escrito por aqueles que portam seus sofrimentos. Tal abertura exige a escuta e a consideração da "positividade" do subalterno4, isto é, uma postura de considerar afirmativamente suas experiências subjetivas, suas significações e visões de mundo como pontos principais para elucidar suas enfermidades. Essa escuta, tão complexa, sensível e invertida em razão do lugar de sua enunciação no processo de diagnóstico e de cura, poderia contribuir para a transformação da noção mesma de saúde e de doença e, em conseqüência, à promoção de um sistema voltado para a inclusão e para a cura em um sentido mais lato.
Devido a esta proposição crítica e de transformação que nós defendemos aqui, ressaltamos que nossa perspectiva difere das linhas da psicologia da saúde ou hospitalar. Tradicionalmente, essas linhas objetivam a adaptação e adesão dos pacientes ao sistema hegemônico, buscando linguagens populares que possam facilitar a tradução das representações dos dois universos, médico e popular, e a assimilação do último.
Nós acreditamos que a postura ora defendida, voltada à afirmação das experiências subjetivas, implicará também no reconhecimento da complexidade que envolve todos os fenômenos patogênicos. Em uma nova narrativa, não é mais possível insistir na exclusividade da abordagem organicista e fisiológica da doença, pois esta não se deve somente a uma condição orgânica dada. Trata-se de uma experiência singular e existencial, várias vezes desencadeada pela dor de se viver em situação social de risco, seja por causa da exclusão provocada pelo processo cruel de eliminação de diferenças e pela dificuldade de acesso a um sistema de saúde digno e humano, seja por causa da posição de resistência à disciplina imposta pelo modelo hegemônico atual.
Dessa forma, as estratégias da biomedicina não estão aptas a responder às questões éticas e políticas trazidas pelos grupos excluídos, simplesmente porque elas são partes importantes do próprio problema. O que acontece, ao contrário, é o aprofundamento da distância, da desigualdade e da opressão social, mediante a opção hoje disseminada pela sofisticação tecnológica nos diagnósticos, nos testes de laboratório, nos tratamentos e nas pesquisas, assim como no esquecimento da experiência do sujeito com seu corpo e sua dor inseridos no complexo processo contemporâneo de pós-colonização.
REFERÊNCIAS
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13. Souza JOC. O que é, afinal, o corpo índio no Brasil meridional ? In : Leal OF, organizador. Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS; 1995. p. 453-66. [ Links ]
14. Pereira OP, Almeida TMC. A formação médica segundo uma pedagogia de resistência. Interface : comunicação, saúde, educação 2004/2005; 9 (16): 69-79. [ Links ]
Recebido em 15/06/2005
Modificado em 27/06/2005
Aprovado em 20/06/2005
* Trabalho parcialmente apresentado, sob o título Multiculturalisme et pouvoir: une étude sur des discours supérieurs et subalternes dans le domaine de la santé, no X Congresso Internacional da ARIC - Association pour la Recherche Interculturelle, Symposium 72, intitulado: Lecture et prise en charge du trauma. Alger, Argélia, 05 de maio de 2005.