SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número2Experiências de violência intrafamiliar entre adolescentes em conflito com a leiValores positivos e desenvolvimento do adolescente: uma perspectiva dos pais índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Journal of Human Growth and Development

versión impresa ISSN 0104-1282versión On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.16 n.2 São Paulo ago. 2006

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

Estresse, resiliência e vulnerabilidade: comparando famílias com filhos adolescentes na escola*

 

Stress, resilience and vulnerability: comparing families that have adolescent children in school

 

 

Hélio Soares de Brito

E-mail: heliobrito@castroalves.br

 

 


RESUMO

Este estudo investigou resiliência e vulnerabilidade em famílias de classe média com filhos adolescentes na escola. Foram considerados os fatores de risco e protetores relacionados à estrutura e dinâmica da convivência intra-familiar. Utilizou-se de metodologia quantitativa associada à qualitativa, com entrevistas semi-estruturadas, Genograma, Entrevista Estruturada (EFE) de Terezinha Carneiro e foram aplicados os questionários, "Como é tua família" para os adolescentes e "Como é sua família" para os adultos, de Ângela Hernández. Foram analisadas 12 famílias com filhos adolescentes. A análise dos resultados revelou: a fragilidade dos vínculos conjugais e o fortalecimento da rede de proteção familiar multigeracional, baseada no afeto e na flexibilização de papéis; a inadequação dos instrumentos utilizados ao privilegiarem a família nuclear tradicional em detrimento de novas configurações familiares. Sugere-se avaliar resiliência como a capacidade de resposta da família ante situações de estresse. Recomenda-se: desvincular dos instrumentos de pesquisa o viés do tipo de família tradicional; a necessidade de realização de estudos interdisciplinares e contextualizados para melhor compreensão dos indicadores de resiliência e vulnerabilidade familiares.

Palavras-chave: Estresse familiar. Resiliência. Vulnerabilidade. Fator de risco. Rede protetora familiar.


ABSTRACT

This study investigated resilience and vulnerability in middle-class families with adolescent children in school. The study considered the risk and protective factors related to the structure and dynamics of intrafamilial conviviality. Quantitative as well as qualitative methodologies were used, with semi-structured interviews, Genogram, and the Structured Interview of Terezinha Carneiro. In addition, the following questionnaires elaborated by Ângela Hernández were applied: "Como é tua família" (How is your family?) to the adolescents and "Como é sua família" (How is your family?) to the adults. Twelve families with adolescent children were analyzed. The analysis of the results showed: the fragility of the matrimonial links and the strength of the multigenerational familial protection network, based on affection and flexible roles; the inadequacy of the used instruments, as they focus on the traditional nuclear family, disregarding new family configurations. It is suggested that resilience is evaluated as the family's capacity to respond to stressful situations. It is recommended that the traditional family bias be disassociated from research instruments, and that interdisciplinary and contextualized studies should be carried out for a better understanding of familial vulnerability and resilience.

Key words: Familial stress. Resilience. Vulnerability. Risk Factor. Familial protective network.


 

 

INTRODUÇÃO

A família contemporânea tem enfrentado várias situações de estresse decorrentes de mudanças profundas na sua estrutura e dinâmica familiar e parental. De modo correspondente, a investigação quanto à família tem suscitado o interesse de acadêmicos, de terapeutas de família, do movimento feminista e de estudos demográficos, sendo importante aprofundar tal tema, tendo em vista ser a família concebida como um elo privilegiado de ligação entre o indivíduo e a sociedade, entre o público e o privado1-4.

Para Donati3, a sociedade é constituída de gerações que mudam sua identidade por meio da família e, ao mesmo tempo, redefinem a família. Desse modo, o equilíbrio da sociedade depende do entrelaçamento das gerações e consiste em encontrar o equilíbrio entre identidade e diferença, entre envolvimento e distância, entre autonomia e solidariedade das gerações. O autor enfatiza a importância de um projeto de família, como rede de apoio inter-geracional, adequado ao ciclo de vida familiar.

Em revisão de literatura, esse autor apresenta uma síntese dos principais problemas da família contemporânea, cujas transformações principais se referem à geração e ao gênero. De um lado, as famílias fragmentam-se e redefinem-se em um novo entrelaçamento de gerações. Há uma tendência ao neo-tribalismo, quando os filhos são cuidados como marsúpio, dentro de uma bolsa protetora. Aumentam as uniões informais e famílias matrifocais. Enquanto a instituição familiar se fragmenta e se desestrutura, predominam os projetos de vida individual, com tendência ao egocentrismo e à falta de diálogo mais profundo entre pais e filhos. A tradição cultural não serve mais como referência, pois surgem novos padrões de convivência.

Por outro lado, para esse mesmo autor, a própria distinção de gênero é questionada. Há uma ambigüidade na definição do que seja masculino e feminino a nível psicológico (personalidade), a nível social (papéis) e a nível cultural (representações simbólicas). Diminuíram as diferenças entre o homem e a mulher, como na moda, na linguagem e nos costumes. Observa-se uma crescente presença feminina nas escolas, no mercado de trabalho, no poder e nas decisões do casal. Constata-se, também, um aumento da presença de personalidades limites, devido à falta de uma clara identidade de gênero, do que seja masculino e feminino.

Donati3 considerou que os estudos sobre a família, do ponto de vista epistemológico, são, geralmente, procedimentos pragmáticos de análise da família. São formas fragmentadas e voltadas para o objeto de fenômeno específico, restrito e/ou local, que levaram a uma visão parcial e dificultaram a construção de uma teoria geral sobre a família.

Diante desse panorama pode-se indagar: serão os modelos teóricos e os métodos atuais apropriados para o estudo da família contemporânea?

Este estudo tem como objetivo geral analisar criticamente a adequação de alguns modelos teóricos e instrumentos que se propõem a estudar o estresse de famílias na vida cotidiana.

Tal investigação justifica-se pelos estudos da família que, geralmente, baseiam-se em modelos teóricos com tendências reducionistas, inspiram-se na experiência clínica da terapia familiar e não contam com estudos empíricos significativos. Além disso, há a necessidade de se definir um modelo teórico apropriado ao estudo que leve em consideração todas as dimensões da família.

Pressupõe-se que as famílias resilientes revelem-se mais competentes porque dotadas de recursos pessoais, familiares, da rede de apoio e de um sistema de crenças que as ajudam a encontrar alternativas de ação frente a situações de estresse e, por isso, apresentem baixo índice de sintomas e mantenham o seu equilíbrio familiar. Ao contrário, as famílias vulneráveis não dispõem desses recursos, apresentando uma maior incidência de sintomas e não conseguindo manter o seu equilíbrio familiar5-,9.

Aportes teóricos

Estudos pioneiros sobre o estresse familiar remontam ao ano de 1949 e à década de 1960, os quais se concentravam na investigação de reação e ajuste familiar à crise. Para essa orientação, o estresse em si não produz necessariamente uma crise. Essa só ocorre quando a família não encontra novas alternativas para o enfrentamento de situações problema do cotidiano. O estresse familiar é definido como um estado decorrente de um desequilíbrio real ou percebido como tal entre a demanda (p. ex, ameaça) e a capacidade (p. ex. recursos) no funcionamento de uma família10.

Nas últimas décadas, é crescente o número de investigações sistêmicas que se concentram mais nos processos e na abordagem ecológica do que na forma padrão de família11-14.

A partir da década de 70, há uma tendência, na área de saúde, de se centrar mais em aspectos sadios do que em casos traumáticos e patológicos. Cada vez mais vem despertando o interesse dos pesquisadores estudos com os conceitos de situação de risco, resiliência e vulnerabilidade15-19.

Os trabalhos pioneiros sobre resiliência provêm da psicóloga Werner (apud 20), década de 60, e do psiquiatra inglês Rutter (apud 8).

Walsh7,16 considera que o conceito de resiliência foi, inicialmente, empregado para o estudo de casos individuais e, atualmente, vem sendo aplicado à família como sistema. A abordagem de resiliência é, para a autora, mais completa que o enfoque de reação e ajuste à crise. Esse centra-se na situação imediata, enquanto o enfoque de resiliência centra-se na compreensão dos problemas, dentro do contexto histórico, político e sócio-econômico-cultural. A família é concebida como uma entidade desafiadora e não apenas como uma entidade inadequada; considera-se que as famílias sadias possam ter problemas e procura compreender porque algumas delas, ante a crise ou estado persistente de estresse, são vulneráveis e se desestruturam, enquanto outras são resilientes e emergem delas mais fortalecidas e com maiores recursos.

Walsh7 (p. 18) adverte que os trabalhos teóricos e investigações sobre o funcionamento familiar, da década de 50, elegeram como "família normal" a família nuclear intacta, de acordo com os padrões de famílias brancas de classe média, residentes em subúrbios de grandes cidades. As famílias vêm sendo comparadas por meio de um único padrão de medida provenientes de categorias de análise e escalas elaboradas e estandartizadas que representam apenas parte do complexo universo familiar. As famílias, contudo, consideradas disfuncionais, de acordo com esses padrões, podem não sê-lo dentro da situação e do contexto específico.

Quintero19 analisa e amplia o conceito de resiliência, definindo-o como o estudo da complexidade humana numa sociedade global. Salienta a importância de se articular o conceito de resiliência com a interdisciplinaridade, a inter-institucionalidade e a inter-setorialidade.

Alguns autores, baseados em revisão de literatura, realizaram análise crítica referente à adequação dos modelos teóricos atuais para a compreensão da família contemporânea3 e sobre o uso inadequado do conceito de resiliência nas pesquisas e na prática de assistência à saúde 21.

Para observar e interpretar mais adequadamente a família contemporânea, Donati3 propôs um novo modelo que considera a família em sua relação social plena e não de forma fragmentada e voltada para o objeto de fenômeno específico. A relação social plena inclui relações intersubjetivas (empática e comunicacional), próprias da convivência familiar, e relações estruturais (vínculos provenientes das expectativas da sub-cultura e do sistema social mais amplo, que a constituem como instituição social). Compreende, portanto, todas as dimensões humanas: biológicas, psicológica, social, cultural, econômica, legal, política e religiosa.

Yunes e Szymanski21, assim como Junqueira e Deslandes22, advertem os pesquisadores no sentido de que vários estudos sobre sucesso, competência e resiliência estão embutidos com forte componente ideológico, pois esses termos estão, geralmente, associados às expectativas e conformidade sociais. As autoras baseiam a sua análise nos estudos de Luthar e Martineu na década de 90. Luthar considera que as investigações sobre competência são, geralmente, realizadas apenas com o enfoque comportamental, através de comportamentos observáveis. Essa autora encontrou níveis significativos de depressão e ansiedade em adolescentes considerados resilientes, estando a sua competência ou resistência ao estresse apenas em conformidade com as expectativas e normas sociais. Para Yunes e Szymanski21, Martineu denominou de resiliência performativa à manifestação de comportamentos de conformidade com as normas sociais, de sucesso acadêmico e empatia, com a intenção apenas de agradar ou enganar.

Para efeito deste estudo, optou-se pela abordagem de resiliência para análise do estresse familiar por enfocar o processo evolutivo e contextualizado da família e permitir uma melhor compreensão das múltiplas alternativas de respostas frente aos desafios familiares.

 

MÉTODO

Foi utilizado o método qualitativo associado ao método quantitativo, a fim de complementar as informações fornecidas por cada uma das técnicas oriundas de várias estratégias de coleta de dados. Parte dos dados foi submetida à análise estatística não paramétrica, objetivando a verificação da confiabilidade dos instrumentos utilizados.

Participaram 12 famílias de adolescentes, da classe média, matriculados num Colégio particular de ensino fundamental e médio da cidade de Salvador, com idade entre 12 a 18 anos. Foram selecionados, de acordo com os critérios do Serviço de Orientação Escolar (SOE) do Colégio, dois grupos com 6 famílias cada: o Grupo 1 constituído por famílias com problema, isto é, aquelas cujos filhos apresentavam problemas de aprendizagem ou de comportamento ou as que não eram consideradas facilitadoras do desenvolvimento dos seus filhos; e o Grupo 2, por 6 famílias consideradas sem problema por não apresentarem tais dificuldades. Esses critérios são similares aos critérios utilizados por Carneiro5 para o estudo de validação da EFE.

Foram utilizados os seguintes instrumentos: a) o Genograma e Cronologia da família. Os genogramas são retratos gráficos da história e do padrão familiar. A cronologia da família consiste em uma listagem de fatos que afetam os indivíduos ou a família como um todo23; b) a Entrevista Familiar Estruturada (EFE), de Carneiro5. Esta entrevista visa investigar os padrões básicos do funcionamento familiar. As categorias de avaliação foram as seguintes: comunicação, conjunto de regras, definição de papéis, liderança, conflitos, manifestação de agressividade, afeição física, interação conjugal, individuação, integração, auto-estima e interação familiar facilitadora de saúde emocional; c) os questionários de Hernández6 que servem para medir os indicadores de saúde e avaliar a adaptabilidade e a vulnerabilidade familiar, visando ao diagnóstico e ao prognóstico. Apresentam formas paralelas: uma para os adolescentes, chamada "Como é tua família", e a outra para os pais e mães, denominada "Como é sua família".

O presente estudo apresentará os resultados gerais das 12 famílias estudadas e fará uma análise crítica dos instrumentos utilizados, enquanto a comparação entre os dois grupos familiares de famílias com/sem problema será objeto de outro artigo.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos resultados revelou a tendência dos instrumentos utilizados adotarem valores e padrões de comportamento próprios de contextos específicos de determinada população, ao privilegiar a família nuclear como protótipo da família adaptada. Por exemplo, o Questionário de Hernández, no sub-fator Tipos de Família, considera que as famílias completas, isto é, constituídas de pais e filhos do primeiro casamento, hipoteticamente, são mais adaptadas do que os demais tipos de família, como a incompleta, quando os filhos convivem apenas com o pai ou com a mãe; a família mista, quando o pai ou a mãe convivem com outro (a) parceiro (a); e outra estrutura de família, quando não apresenta nenhuma dessas características6,23. As famílias completas, contudo, nem sempre são indicadoras de adaptabilidade, como se pode observar ante a vulnerabilidade da família nuclear e o recrudescimento de novas redes de gerações familiares.

Fragilidade dos vínculos conjugais

Os vínculos conjugais, apesar de bastante valorizados nas análises quantitativas e qualitativas dos três instrumentos de pesquisa, apresentaram alto grau de fragilidade nas doze famílias estudadas. De um lado, apenas cinco são famílias completas de primeiro casamento; duas incompletas, de pais separados; três de famílias mistas, de recasados. Por outro lado, apenas três casais foram considerados unidos, três conflitados e um de relação mais distante.

Na EFE, por exemplo, o vínculo conjugal revelou-se como o maior fator de risco nas famílias estudadas, pois foi considerado como pouco diferenciado, isto é, o casal pouco se destaca como unidade conjugal dentro do sistema familiar; a relação é pouco gratificante, pois é percebida como pouco prazerosa e construtiva, como se pode observar pelos comentários da mãe e do filho (fam. 9):

Filho: Meu pai, eu brinco, converso e tudo, mas[...] os meus problemas assim que eu tenho, eu direciono mais pra minha mãe mesmo.

Mãe: Porque ele é muito radical.

Filho: A cabeça dele é muito...

Mãe: É. Muito fechado.

Entrevistador: Podia dar um exemplo desse radicalismo.

Filho: Não[...] se eu tenho um problema aqui [...] pra não dizer, por exemplo, me meti com droga, aí chega aqui, se eu falar com minha mãe que eu me meti é nenhuma, mas se eu falar com meu pai, pronto [...] pode ter falado o que for, mas ele não vai nem querer saber.

Entrevistador: O que é que ele faz? O que é que ele faria?

Filho: Oxê [...] no mínimo ia me xingar da cabeça aos pés.

Mãe: Ele toma uma atitude de poder de cima para baixo, ele não quer, ele toma atitude de poder, acabou, eu tenho poder, eu tenho dinheiro, você não vai ter isso, você não vai ter aquilo, vou cortar, entendeu? [...] Porque eu só tenho duas opções, ou eu viro a mesa [...] pra virar a mesa, eu pensei... os filhos estão acostumados com o padrão de vida, ia cair muito o padrão de vida. Essa só dificuldade de pagar 600 por mês[...] quer dizer[...]aí pensando nisso tudo, mais uma vez pensando neles, porque eu não quero colocar essa responsabilidade, porque uma vez esse daqui (referindo-se ao filho do casal) me chamou e disse assim: "Minha mãe, se você não tá feliz com meu pai [...] ele tinha 9 pra 10 anos. Ele me chamou e falou: "Minha mãe, se você não tá feliz com meu pai, você larga, porque se a gente não puder estudar em colégio particular, a gente estuda em colégio público. Mas não fique[...] como quem diz assim: "Não coloque essa responsabilidade nas nossas costas entendeu? Não pense nem em mim nem em minha irmã". Ele (o pai) é uma criança ainda, ele não pensa em mim e na irmã. Não tá bom pra você largue[...].

Apesar da insatisfação com a relação conjugal, a esposa evita a separação para não reduzir o seu padrão de vida de classe média e acomoda-se à situação. Alega que os conflitos são provenientes da postura autoritária do marido. O filho confirma a mãe quanto à postura radical do pai. Considera que o conflito se relaciona com o poder financeiro o qual parece constituir-se em valor muito significativo para ambos. O esposo, supostamente, diz "eu tenho poder, eu tenho dinheiro", isto é, impõe as suas condições à esposa. Esta, para não abrir mão do padrão de vida, submete-se ao marido. Trata-se, portanto, de um vínculo conjugal fragilizado, pois faltam outros elementos para complementar a satisfação dos cônjuges como o afeto, a intimidade, a solidariedade, o respeito e a liberdade.

Olson24, ao avaliar níveis de satisfação dos cônjuges, revela que o grau de satisfação com a família difere nas várias etapas do ciclo vital. A satisfação dos cônjuges, geralmente, é mais significativa quando o casal não tem filhos ou com filhos menores até 12 anos, do que quando tem filhos adolescentes e maiores de idade. Para esse autor, a insatisfação conjugal começa com o nascimento do filho primogênito e prossegue, lentamente, através dos anos, atingindo seu momento crucial com a emancipação dos filhos e o estágio do ninho vazio, quando os filhos se casam e deixam o lar dos pais.

As estruturas das famílias de classe média vêm passando de hierarquizadas para igualitárias e cada vez mais é questionada a tradicional autoridade e poder do pai, ampliando-se o papel da mãe. A mulher passa a participar e, muitas vezes, até mesmo a substituir o marido no seu papel de provedor. Os saberes dos pais, por vezes desatualizados, não são mais adequados para interpretar a nova realidade em constante mudança. Apesar das mães serem também desatualizadas, costumam ser mais procuradas pelos filhos, de ambos os sexos, quando enfrentam problemas do cotidiano. Desse modo, o familismo, isto é, os interesses coletivos da família, vai dando lugar aos interesses individuais dos seus membros e o sistema patriarcal vai dando lugar ao matriarcal.

Das cinco famílias completas, três revelaram satisfação familiar, uma é distante e uma vem apresentando intenso conflito intrafamiliar, conforme se pode inferir do relato da mãe da fam. 10, em pautas vinculares por não ter meios de auto-sustentação, de acordo com o seu relato:

No início ele (o marido) tinha um padrão de vida muito bom. Depois que foi demitido da empresa e caiu o padrão há 20 anos atrás, não voltou mais aquele padrão de vida anterior. Ele se conforma com a situação. Ele é aposentado e trabalha, o dinheiro não dá. Há muitos conflitos por causa de dinheiro. Ele é mais impulsivo eu sou mais maleável. Só fala alto ofende muito, humilha. Engulo e me desequilibra toda emocionalmente [...] deprimo, tomo remédio, tomo antidepressivo há 4 anos. Há dias que não consigo nem dirigir. A filha mais velha e o caçula ficam do lado dele e a do meio fica do meu lado [...] ele controla tudo, o dinheiro, o mercado, me tirou todo o cartão de crédito. Às vezes penso em separação, mas as crianças não querem. Tenho que ficar engolindo sapo o tempo todo.

As relações estavam bem até que caiu o padrão de vida proveniente da demissão do emprego do marido. A partir desse momento, o casal começou a apresentar conflitos decorrentes do controle financeiro, por parte do marido e conflitos de estilos de relacionamento do casal. A mulher acomodou-se à situação, pois depende do marido economicamente. Na rede familiar do casal, como já foi visto anteriormente, observam-se muitos problemas que afetaram a família. O casal, por outro lado, teve uma herança familiar constituída de muitos membros desligados e geograficamente dispersos que, de alguma forma, tornou mais vulnerável a sua rede familiar de apoio. Na própria família nuclear já está ocorrendo uma fissura, tendo, de um lado, o pai com a filha mais velha e o filho mais novo; do outro lado, a mãe e a filha do meio.

Heilborn25 considera como expectativa do casal moderno a de que a interação conjugal seja regida pelo princípio da igualdade e da mutualidade, tanto na divisão de tarefas domésticas como no tocante aos aspectos financeiros. Apesar de a autora ponderar que não devem ocorrer dependências econômicas entre os parceiros, não é o que se observa em três das famílias estudadas, quando as esposas, por dependência financeira, mantêm uma relação conjugal bastante conflitada.

Os cônjuges, por vezes, preferem separar-se a conviver com o parceiros (as) que não correspondem às expectativas do papel que ocupam, como no caso da fam. 8, cuja mãe separada assim se manifesta:

A separação do meu "ex" (ex-marido) era porque ele não dava atenção a nenhum dos filhos. Era trabalho, casa, caso e sai só. A curtição dele é complicada, gosta de barzinho e fica com meninas. Dei oportunidade mas ele não aproveitou. Ele não amadureceu e para a idade é muito infantil. Nunca tive o direito de sair junto de férias. A separação não abalou muito não, pois ele já era ausente. A minha vida não mudou quase nada [...] os recursos financeiros só dependem de mim, o "ex" não participa.

Beninbá e Gomes26 consideram que a mulher vem ampliando o seu espaço social, uma vez que a escolarização e a profissionalização levaram-na a uma certa autonomia financeira. É o caso da informante, acima referida, que tem o 2º grau completo, emprego estável e preferiu assumir sozinha a família, a ter que conviver com um marido que não correspondia à expectativa, no seu papel de pai e companheiro.

Novas redes protetoras familiares

A família vem passando por mudanças estruturais significativas, tornando as relações entre seus membros mais igualitárias e assumindo novas configurações familiares, a ponto de Donati3 denominar de pós-nuclear à família constituída de novas redes de gerações, cujos membros mantêm relações de parentesco que incluem duas ou mais gerações.

A manifestação de afeto entre os familiares revelou-se como o mais elevado fator protetor de todas as famílias estudadas. Algumas famílias revelaram solidariedade e competência na utilização de estratégias para o enfrentamento de problemas multigeracionais. Por exemplo, na fam. 7, o avô do adolescente superou os problemas econômico-financeiros e ajudou os familiares carentes. A sua filha (tia do adolescente) repete o estilo de solidariedade do pai, conforme pode-se inferir do seu relato:

A família do pai não era de beber, eram simples, humildes, não tinham grandes heróis nem bandidos. O melhor era o pai que aos 17 anos saiu escondido de casa e não voltou mais (colonos do semi-árido da Bahia). As pessoas pensavam que se era para morrer, morreriam todos juntos. O pai era muito "batalhador" foi para Serrinha e depois para Tucano, voltou depois que o avô já havia morrido. Tinha lote de burro (transporte). Nunca passou necessidade e ajudou aos outros irmãos. Os irmãos ficaram no lugar (interior) [...] todos os filhos de meu irmão moram comigo em Salvador. Meus sobrinhos são como se fossem filhos. São 6 sobrinhos e um neto.

O pai revelara aspectos resilientes ao superar a adversidade do semi-árido, enquanto que seus irmãos, ao contrário, denotaram vulnerabilidade, devido à atitude fatalista de preferir "morrer juntos" a ter que se separar. Para Hotliarenco, Cárceres e Alvarez9, são fatores protetores: a habilidade de enfrentamento caracterizada por orientação para as tarefas, as atividades dirigidas à resolução de problema e o melhor manejo econômico. Ao contrário, são fatores de risco: a tendência a evitar problemas e a tendência ao fatalismo em situações difíceis. O pai da informante afastou-se da família, batalhou, teve sucesso e ajudou depois aos irmãos. A tia, de certa forma, repete o pai, pois fez curso superior, veio para Salvador, assumiu a guarda do sobrinho adolescente e dá suporte financeiro e emocional aos demais familiares, irmãos e sobrinhos.

Para Donati3, a família se redefine sucessivamente em novas formas de ser família. Trata-se de um novo entrelaçamento de gerações com suas ambivalências, fragmentações, separações, conflitos e solidariedade.

Mesmo as famílias mais conflitadas deixam transparecer sentimentos de ternura entre os seus membros. Por exemplo, a fam. 11, apesar da comunicação confusa, incongruente, hostil, com conflitos de papéis, na tarefa 2, a mãe inicia o seguinte relato apoiada pelos demais familiares:

A gente briga, mas na hora da verdade todo mundo ajuda[...]. Lá em casa tá todo mundo estressado. Então não pode provocar qualquer besteirinha. É uma coisa explosiva.

O filho aprova a fala da mãe dizendo:É espontâneo, todos falam ao mesmo tempo, responde ao mesmo tempo.

A mãe dirigindo-se depois ao filho: Agora esse aqui precisa respeitar os mais velhos. Ele não era assim, ele não respeita mais nem a mim, nem a avó, nem a tia [...]ele acha que todo mundo tem que respeitar ele. Para ele[...] homem não tem que respeitar ninguém.

Inquirido pelo entrevistador sobre as palavras da sua mãe, responde o filho:

Eu acho que por um lado ela está certa e por outro... Mas o lance é que nenhuma das 3 (a mãe, a tia e a avó) querem me ouvir, querem sempre dar a sua patada e não querem me deixar falar. Por isso eu me irrito.

A mãe, desta família, prossegue em suas queixas explicitando o conflito de papéis existente: Ele ( referindo-se ao filho) foi criado com 3 mães e um pai (o avô que morreu). Mas a mãe sou eu. Então eu fico chateada porque quando eu vou falar com meu filho, aí vem todo mundo. Eu não tenho direito de dizer o que eu quero[...] o que ele deve fazer e o que não deve. Então eu fico sempre chateada, me irrito com isso, porque eu acho que eu tenho razão. Eu me sinto como se fosse uma menininha e não fosse a mãe.

Podem-se observar três aspectos do relato: primeiro, que a comunicação se encontra confusa e tensa, uma vez que todos falam ao mesmo tempo. O feedback eficaz, ou capacidade de saber ouvir, saber falar e modificar comportamentos, quando necessário, parece comprometido. No dizer do adolescente, "nenhuma das três (a mãe, a tia e a avó) querem me ouvir, querem sempre dar a sua patada e não querem me deixar falar"; segundo, há conflitos de papéis entre a mãe, a avó e a tia, conforme a queixa da mãe: "Eu me sinto como se fosse uma menininha e não fosse a mãe"; terceiro, é provável que haja também um conflito de gênero: "Para ele [...] homem não tem que respeitar ninguém" diz a mãe. É bom esclarecer que o adolescente convive numa família extensa com três mulheres, a mãe a avó e a tia. Não conheceu o pai e, quando criança, considerava o avô, já falecido, como pai. Essas circunstâncias, associadas à etapa da adolescência, poderiam estar contribuindo para intensificar as dificuldades de comunicação intra-familiar.

Vários autores enfatizam a importância da comunicação para o bom funcionamento familiar. Olson24, de acordo com o Modelo Circumplexo, considera a comunicação familiar essencial para a coesão e adaptabilidade familiar; Walsh7, na definição de resiliência familiar, valoriza os processos interativos, onde inclui a comunicação franca; Cerveny e Berthoud27 enfatiza a importância do diálogo entre os filhos e cônjuges em estudo sobre o ciclo vital da família.

Apesar de forte tensão intra-familiar, a fam. 11, (tarefa 6 da EFE), ao manifestar afeto, assim se expressou: "os brutos também amam". Os membros da família, a seguir, manifestaram afeição física: a mãe segura o filho e beija-o; a tia também abraça o sobrinho e beija-o; as duas irmãs se abraçam. O neto vai para o colo da avó, beija-a e diz: "esta me livra de um bocado de coisa". A mãe acrescenta: "a avó lhe dá o dinheiro, quando digo que não vou dar, ela dá".

Complementaridade de papéis

Nas famílias estudadas, observou-se uma distribuição de papéis complementares sendo que as famílias mais resilientes revelaram melhor manejo, flexibilidade, rotatividade e capacidade de criar novos papéis de acordo com as circunstâncias. Dois papéis básicos e complementares obtiveram destaque e parecem se constituir em pilares de auto-sustentação e desenvolvimento das famílias ao longo de suas trajetórias multigeracionais. Trata-se do papel de provedor, de um lado e, do outro, o de suporte emocional familiar.

O equilíbrio e o desequilíbrio familiar dependem da flexibilidade ou da rigidez de suas estruturas, do nível de funcionamento, do desempenho dos papéis familiares e da disponibilidade de recursos28.

Na fam. 4, apesar das tensões conjugais, há complementação do casal e integração familiar, de acordo com depoimento da mãe:

O meu marido é minha sogra, calado, introvertido [...] puxou a sogra. Eu sou extrovertida gosto de gente e ele detesta. Nem ele nem eu cedemos, além do mais ele é muito ciumento e não podemos dar atenção à minha família (de origem), enquanto ele tem excelente relação com a sua. Acho que este é o ponto principal do conflito. A família do meu pai tinha um bom padrão de vida, dinheiro, mas não tinha juízo [...] por este motivo, tanto o esposo, quanto a própria avó (materna) evitam o contato com a família do meu pai. A minha família é mais acomodada. A família dele é batalhadora, só tinha homens, eram 4 homens e eram muito sérios, sem alegria e afeto. Na minha casa só tem mulher, eram 3 mulheres, nunca via cueca. Os temperamentos diferentes complementam, ele sabe dirigir, é organizado, não existe medo não existe doença, não existe tristeza graças a isto sinto mais segura e as meninas (2 filhas) também acham melhor ele ser sério, pois equilibra o lado de mais abertura, de boa demais e não toma pé nas coisas. A minha família é avestruz, acomodada com pais doentes. A do marido não, batalha. Eu sou pouco acomodada, não sei nadar, não sei andar de bicicleta. Com mãe e pai doentes não dão força e ele (marido) dá força.

Os cônjuges descendem de duas famílias de perfis distintos; de um lado a família do pai que é "racional, bem sucedida profissionalmente", embora com pouca sensibilidade emocional e, do outro lado, a família da mãe que é mais sensível, porém acomodada. Pode-se identificar a interação complementar entre os cônjuges. A complementaridade é um processo que gera, ao mesmo tempo, atrações, rejeições e complementação entre os dois pólos racionais do marido e emocionais da mulher, além de manter o equilíbrio dinâmico familiar29.

Algumas vezes, há troca e repetição de papéis, através de gerações. Por exemplo, a mãe da fam. 5, de certa forma, também repete a avó ao assumir "as rédeas da família"; é o que se pode inferir, através do seu relato:

Meu avô era cardíaco, tinha depressão, abandonou o trabalho e a avó ficou sendo o homem da família, tinha as rédeas da família. No início do meu casamento era muito amor [...] com a separação virou um inferno. O meu marido ficou desempregado começou a beber, é alcoolista, bebe diariamente, e passou a ter problemas financeiros [...] comecei a trabalhar, cuidar de mim mesma, tenho muito apoio dos amigos [...] me mostram que eu era super poderosa [...] tenho novos relacionamentos[...] dedicação de cabeça no trabalho [...] meu salário e ajuda da minha família é que sustentam a casa.

As circunstâncias levaram a avó a assumir o controle da família, após a doença do avô "era o homem da família, tinha as rédeas da família". Essa circunstância parece indicar que as pessoas se fortalecem e adquirem resiliência, através de situações adversas e desafiadoras16.

Já a mãe informante assumiu as crianças após a separação conjugal, proveniente do desemprego e alcoolismo do marido e de alguma forma repete a avó: "os amigos [...] me mostram que eu era super poderosa". Para Souza30, a diferença de gênero, de acordo com a sua experiência em supervisão clínica com famílias de baixa renda, apresenta significados diferentes quando é atribuída ao marido ou à mulher a responsabilidade do sustento da família. É mais penoso para o marido do que para a mulher a perda do emprego, quando associada ao alcoolismo. A mulher poderá ter preocupações, mas não suscita sentimentos de vergonha. Apesar da emancipação, ainda há a expectativa de que a mulher seja a responsável pelo bem-estar da família e não provedora do lar.

Síntese compartiva dos achados empíricos

As famílias estudadas revelaram atrações, conflitos, enlaces, desenlaces, complementariedade e rotatividade de papéis e novas configurações familiares que, no dizer de Donati3, necessitam de um novo olhar para a sua melhor compreensão. Apresentaram, como principal fator de risco, a fragilidade dos vínculos conjugais e, como fator protetor, a manifestação de afeto e solidariedade multigeracional.

Os dois papéis complementares, o de provedor e o de suporte emocional quando não assumidos pelos pais biológicos, foram substituídos por parentes ou, na ausência desses, pela criação de novos vínculos complementares com membros de outras famílias. Algumas mães, ante a ausência ou omissão dos pais, como "leoas", assumiram sozinhas os dois papéis; e, noutros casos, alguns filhos adultos, devido aos pais carentes, também desempenharam esses papéis. Dessa forma, mudaram-se os cenários, os atores, as configurações familiares, mas as famílias permanecerem em suas funções básicas de procriação, de provimento do sustento e bem estar familiar, da promoção da sociabilidade e de suporte afetivo aos seus membros.

Podem-se fazer algumas restrições com relação a alguns valores implícitos nas categorias de análise dos instrumentos utilizados. Em tais instrumentos, é investigado se as famílias estão estruturadas e adaptadas, ou não, de acordo com as expectativas normativas do ciclo vital, tendo como referência a família média. Por exemplo, no Genograma e no Questionário de Hernández, é esperado que os nascimentos, casamentos, educação, morte de membros da família ocorram dentro das previsões da família nuclear. A expectativa é de que as famílias sejam constituídas de pai e mãe ainda jovens, tenham poucos filhos, tenham uma renda familiar compatível para a auto-sustentação e o bem estar da família; que os filhos se casem quando adultos jovens, os pais passem pela síndrome do ninho vazio após o casamento dos filhos e, na velhice, os pais morram, encerrando-se assim o ciclo vital de sua geração.

No Questionário de Hernández, na escala que vai da menor à maior vulnerabilidade, a família completa, com dois a três membros, com um a dois filhos e que esteja na etapa do ciclo vital de filho adolescente, é vista como a família de menor vulnerabilidade, vindo, a seguir, a extensa e a mista. Já as famílias incompletas e outras, com muitos membros, muitos filhos adultos, são consideradas de maior grau de vulnerabilidade. Hernández6 considera que nas famílias cujo chefe é a mãe (família incompleta) e que apresenta recursos escassos, nota-se maior propensão a diversos tipos de dificuldades. Ora, em princípio, qualquer família com recursos escassos tem mais propensão a ter dificuldades, não apenas a incompleta com a mãe, mas também a incompleta tendo o pai como o chefe. Esse pressuposto vem sendo superado, à medida que a mulher se afirma profissionalmente no mercado de trabalho e passa a contribuir com a renda familiar, muitas vezes, superando a renda masculina. Essa proposição pôde ser comprovada em várias famílias, como na fam. 8, o marido era ausente e omisso, tanto antes quanto depois da separação, e a mulher teve que assumir a família; na fam. 3, apesar de completa, as provedoras e responsáveis pela educação do filho adotivo são as filhas adultas do casal; na fam. 5, a mãe repete a avó assumindo "as rédeas da família" após o desemprego, alcoolismo e a separação do marido; na fam. 6, o neto passou a morar com a avó, embora continue contando com a assistência da mãe e pouca atenção do pai. Já na fam. 7, devido aos pais carentes, a tia obteve a guarda do sobrinho e, inclusive, ajuda a todos, pai e mãe do adolescente e demais sobrinhos.

Todas essas famílias revelaram competência para a superação de desafios e situações adversas. Os critérios, portanto, para avaliar resiliência não devem estar associados ao tipo de família, ao número de membros familiares, ao número de filhos, mas à capacidade de resposta das famílias ante as situações de estresse.

 

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo não podem ser generalizados devido ao reduzido número de casos. Suas conclusões, porém, podem ser aplicadas a outros tipos similares de famílias.

A família nuclear vem passando por um processo de desestruturação, sendo crescente o número de famílias com novos arranjos familiares e que não correspondem às expectativas normativas do ciclo vital familiar tradicional. A maioria das famílias investigadas, neste estudo, também não corresponderam a essas expectativas.

Pode-se, então, indagar: o que está se desestruturando é um tipo de família ou a família em sua função básica como elo de ligação privilegiado entre o público e o privado? Será que é válido considerar apenas um modelo de família como protótipo de família ideal, quando a família é um processo que, na sua história, vem passando por sucessivos estágios de adaptação e superação de mudanças internas e externas?

Pôde-se constatar que as famílias vêm se redefinido em novas formas de ser família, com a diminuição da incidência de famílias completas, com o aumento de famílias incompletas, de uniões informais e de famílias uniparentais. Restringe-se o papel masculino e amplia-se o feminino na estrutura de autoridade. Surge um novo entrelaçamento familiar em que convivem vários membros de várias gerações.

Os instrumentos utilizados apresentaram viés no sentido de privilegiar a família tradicional nuclear em detrimento das demais configurações familiares. Diante dessas reflexões, caberia uma revisão de algumas categorias de análise dos instrumentos, no sentido de se evitar o estereótipo de família tradicional e torná-los mais compatíveis à investigação de famílias resilientes e vulneráveis, tendo em vista as novas alternativas de convivência familiar. Nesse sentido, as análises quantitativa e qualitativa desses instrumentos deveriam se desvincular da família nuclear de classe média que tem como referência a família completa com poucos filhos, cujo funcionamento deveria estar de acordo com as expectativas normativas do ciclo de vital. O estudo de resiliência deveria centrar-se na qualidade das respostas das famílias, no enfrentamento dos desafios e adversidades, tendo em vista o seu contexto específico e não em tipos de família, número de membros e filhos e etapas do ciclo de vida. Pôde-se observar, pela análise deste estudo, que as resoluções de problemas, muitas vezes, extrapolaram os limites dos recursos tradicionais familiares e encontraram outras possíveis alternativas de solução dentro de contexto específico.

Será que os novos arranjos familiares têm propensão para a resiliência ou para a vulnerabilidade?

O conceito de resiliência foi, inicialmente, aplicado ao indivíduo e, posteriormente, à família. A família, porém, não é a soma dos indivíduos, mas tem características próprias: uma estrutura de relações, padrões de valores, normas e regras compartilhados, distribuição de funções e papéis, liderança e laços afetivos, além de relações sócio-econômicas e culturais mais amplas. São, portanto, outras variáveis a serem analisadas e que necessitam de abordagem adequada. Além do mais, as investigações sobre a resiliência de crianças que viviam em condições de penúria foram realizadas, por meio de estudos longitudinais pioneiros, dentro do seu contexto físico, econômico e sócio-cultural. A maioria dos estudos sobre a família é proveniente de estudos transversais e de diagnósticos clínicos, próximos à abordagem de reação e ajuste familiar à crise, pontuais e imediatos, enquanto o conceito de resiliência é mais contextualizado. Dessa maneira, seria recomendável a realização de estudos interdisciplinares e contextualizados para melhor compreensão dos indicadores de resiliência e vulnerabilidade familiar.

Sugere-se, igualmente, a realização de estudos comparativos, com um número mais representativo de casos e com famílias de outras classes sociais, a fim de se obter resultados mais confiáveis e extensivos a outros grupos de famílias.

 

REFERÊNCIAS

1. Kaloustian SM, organizador. Família brasileira: a base de tudo. São Paulo: Cortez; Brasília (DF): Unicef; 1994.        [ Links ]

2. Ribeiro I, Ribeiro ACT. Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo: Loyola; 1995.        [ Links ]

3. Donati P. Manuale di socioliogía della famiglia. Roma: Laterza; 1998.        [ Links ]

4. Petrini JC. Pós-modernidade e família: um itinerário de compreensão. Bauru: EDUCS; 2003.        [ Links ]

5. Carneiro TF. Família: diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Zahar; 1983.        [ Links ]

6. Hernández A. Família y adolescência: indicadores de salud, manual de aplicacion de instrumentos. 2ª ed. Washington (DC): W. K. Kellogg Foundation; 1996.        [ Links ]

7. Walsh F. Strengthening family resilience. New York (NY): Guiford; 1998.        [ Links ]

8. Presman J. Es la resiliencia... la resi qué? Disponível em: http://www.lavozdelinterior.com/2001/0606/suplementos/sacud/nota 36917_htm [acesso em 12 mar 2004].        [ Links ]

9. Hotliarenco MA, Cárceres I, Alvarez C. La pobreza desde la mirada de la resiliencia. Disponível em: http://www.resiliência.cl/investig/nres.pdf [acesso em 21 mar 2004].        [ Links ]

10. Pittman FS. Crisis familiares previsibles e imprevisibles. In: Falicov CJ. Transiciones de la familia: continuidad y cambio en el ciclo de vida.. Buenos Aires: Amorrort; 1991. p. 357-80.        [ Links ]

11. Minuchin S. Famílias: funcionamento & tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas; 1980.        [ Links ]

12. Bowen M. La terapia familiar en la práctica clínica: fundamentos teóricos. Bilbao: Desclee de Brouwer; 1989. v. 1.        [ Links ]

13. Falicov CJ. Transiciones de la familia: continuidad y cambio en el ciclo de vida. Buenos Aires: Amorrortu; 1991.        [ Links ]

14. Bronfenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996.        [ Links ]

15. Costa M, López E. Salud comunitaria. Barcelona: Martínez Roca; 1986.        [ Links ]

16. Walsh F. Normal family processes. 2ª ed. New York (NY): Guilford; 1993.        [ Links ]

17. Goleman D. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva; 1995.        [ Links ]

18. Salovey P, Sluyter DJ. Inteligência emocional da criança: aplicação na educação e no dia a dia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus; 1999.        [ Links ]

19. Quintero M. La resiliencia: um reto para trabajo social. Disponível em: http://www.ucr.cr/~trasoc/a1/cc-virtual-doc 02.html-31k [acesso em 12 mar 2004].        [ Links ]

20. Cyrulnik B. Hay vida después del horror. Disponível em http://www.unesco.org/courier/2001_11/sp/dires.htm [acesso em 8 jul 2003].        [ Links ]

21. Yunes MAM, Szymanski H. Resiliência: noção, conceitos afins e considerações críticas. In: Tavares J, organizador. Resiliência e educação. São Paulo: Cortez; 2001. p. 13-42.        [ Links ]

22. Junqueira MFPS, Deslandes SF. Resiliência e maus-tratos à criança. Cad Saúde Pública. 2003;19(1):227-35.        [ Links ]

23. Carter B, McGoldrick M. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.        [ Links ]

24. Olson DH. Tipos de familia, estrés familiar y satisfacción con la familia: una perspectiva del desarrollo familiar. In: Falicov CJ. Transiciones de la familia: continuidad y cambio en el ciclo de vida. Buenos Aires: Amorrortu; 1991. p. 99-129.        [ Links ]

25. Heilborn ML. O que faz um casal, casal?: conjugalidade, igualitarismo e identidade sexual em camadas médias urbanas. In: Ribeiro I, Ribeiro ACT, organizadores. Famílias em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo: Loyola; 1955. p. 91-106.        [ Links ]

26. Beninbá CRCS, Gomes WB. Relatos de mães sobre transformações familiares em três gerações. Estud Psicol (Natal). 1998;3(2):177-205.        [ Links ]

27. Cerveny CMO, Berthoud CME. Família e ciclo vital: nossa realidade em pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.        [ Links ]

28. McGoldrick M, Gerson R. Genogramas en la evaluación familiar. Buenos Aires: Gedisa; 1987.        [ Links ]

29. Watzlawick P, Beavin JH, Jacksom DD. Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo: Cultrix; 1993.        [ Links ]

30. Souza MTS. Família e resiliência. In: Cerveny CMO, organizador. Família e...: comunicação, divórcio, mudança, residência, deficiência, leis, bioética, doença, religião e drogadição. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004. p. 53-84.        [ Links ]

 

 

Enviado em 05/01/2006
Modificado em 15/03/2006
Aprovado em 08/04/2006

 

 

* Parte da dissertação de Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador (2005), de Hélio Soares de Brito, orientado por Elaine Pedreira Rabinovich, intitulado Estresse, resiliência e vulnerabilidade: comparando famílias com filhos adolescentes na escola.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons