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Journal of Human Growth and Development
versión impresa ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.1 São Paulo abr. 2010
PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH
Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito
Dangerousness: Historic evolution and practice of the concept
Kátia Mecler
Doutora em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenadora do setor de perícia do Hospital de Custodia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, Rio de Janeiro e Perita do Instituto Medico Legal Afrânio Peixoto - Rio de Janeiro
RESUMO
O conceito de periculosidade nasceu no final do século XIX dentro da Escola Positiva do Direito Penal, tendo-se constituído o conceito-chave do Direito Penal moderno. O Direito Clássico detinha-se na gravidade do delito e na correspondente punição. Já a Escola Positiva do Direito Penal considerou o delito um indicador, um sintoma de personalidade anormal. Propunha-se, assim, o seu tratamento, com a subseqüente prevenção de novos delitos. O Direito Clássico, portanto, ocupava-se do Crime, e o Positivo, do Criminoso. A relevância dada pelo Direito Penal moderno ao tripé "delito, tratamento e prevenção", bem como à identidade entre crime e patologia, trouxe em si a necessidade premente da figura do psiquiatra. Desde então, a tentativa de elaboração de critérios objetivos para aferição da periculosidade de sujeitos infratores tem sido uma das tarefas principais da Psiquiatria Forense.O presente trabalho pretende demonstrar a maneira particular em que a evolução histórica do conceito de periculosidade afeta ainda hoje a teoria e a prática da Psiquiatria Forense.
Palavras-chave: periculosidade; risco de violência, doente mental infrator; ética; história da Psiquiatria Forense.
ABSTRACT
The concept of dangerousness was created by the Positive School of Penal Law in the second half of the XIXth century. Since then, it has become one of the key concepts of the modern Penal Law.The Classical Penal Law School was oriented toward the severity of the delictuous act and its correspondent sentence. The Positive Criminal Law School took the delict as an indicator, a symptom of an abnormal personality. Although mainly dedicated for justifying discrimination and seclusion, its scientific orientation paved the way for etiologic thought that nowadays can be restored as a matter of rehabilitation for society - what was not a clear orientation by that days. Even then, however, the preventive mentality was already part of that approach, pointing out to the psychosocial factors as well as neurologic and genetic factors, which was not, however put into practice. It can be said that Classical Law used to deal with Crimes, while the Positive Law, with C riminals. This article presents the particular ways in which the historical evolution of the concept of dangerousness has affected the theory and the practice of Forensic Psychiatry until our days.
Key words: dangerousness; violence risk; mentally disorder offender; ethics; history of forensic psychiatry.
INTRODUÇÃO
O conceito de periculosidade criminal nasceu no final do século XIX dentro da Escola Positiva do Direito Penal, tendo se tornado o conceito chave do Direito Penal Moderno. Ao contrário do Direito Clássico, que detinha-se na gravidade do delito e na correspondente punição, o Direito Positivo considera o delito como um sintoma de periculosidade, como "índice revelador da personalidade criminal". O delinqüente, por sua vez, é visto como pertencente a uma classe especial, caracterizado como portador de um conjunto de anormalidades somato-psíquicas.1
Para os adeptos da Escola Positiva, o indivíduo não seria um ser racional agindo livremente. Importava à Ciência descobrir as causas que conduziam ao crime. O crime deixava de ser uma questão de moralidade para ser uma questão médica, psicológica e sociológica. Conforme discorre Carrara, os positivistas alegavam que, assim como a medicina científica passou, a partir do século XIX, a ter como objeto os doentes e a classificar as doenças segundo suas causas, também o Direito deveria ter como objeto os criminosos e, não, seus crimes, classificando as formas de criminalidade segundo suas causas. Os juízes, ao julgarem os criminosos deveriam se orientar para uma avaliação particularizada da periculosidade, compreendida como uma espécie de índice de criminalidade virtual, ou índice pessoal de expectativa de realização de novos crimes .
Portanto, a pena deveria ser ajustada à natureza do criminoso e aplicada de acordo com o princípio de defesa social, cabendo à sociedade a proteção do indivíduo perigoso, através da medida de segurança, que deveria ser aplicada até que houvesse a cessação de tal estado.
Deve-se a Garófalo2, em 1878, a primeira tentativa de sistematização jurídica da concepção periculosista. Este autor argumentava que, se as sanções têm de constituir um meio de prevenção, deveriam ser adaptadas não apenas à gravidade do delito ou ao dever violado, mas sim à "temibilidade" do agente. Definiu "temibilidade" como "a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade de mal previsto que se deve temer por parte do mesmo".2 Este foi o conceito-chave, para fins penais, dos positivistas, sendo o antecessor da contemporânea Teoria da Periculosidade.
Em 1880 foi fundada a União Internacional de Direito Penal (UIDP), que se tornou o mais ativo propagador da idéia de defesa social como fundamento da pena. Durante os congressos da UIDP, foram debatidas amplamente a definição legal do conceito de pericu- losidade e a elaboração dos critérios de aferição do estado perigoso. Quanto a este último, deveria atender a duas exigências fundamentais: a identificação de índices precisos, em obediência ao princípio de certeza do direito, e a individualização da avaliação, de acordo com a natureza do conceito de periculosidade. Foi dedicado um grande espaço, também, à distinção entre pena e a medida de segurança.2
Em 1913, no Congresso Internacional da UIDP em Copenhague, acordou-se sobre a definição de certas categorias de indivíduos perigosos, indicando as seguintes:
"1º) os reincidentes; 2º) os alcoólicos e deficientes de qualquer espécie; 3º) os mendigos e vagabundos".
Em 1920, Ásua estabeleceu os seguintes fatores para a determinação da periculosidade: "a personalidade do homem, sob seu tríplice aspecto: antropológico, psíquico e moral;
- a vida anterior ao delito;
- a conduta do agente após o delito;
- a qualidade dos motivos;
- o delito cometido."
Loudet3 estabeleceu uma analogia entre a aplicação da doutrina do estado perigoso e a da Medicina Preventiva. Segundo ele, a verdadeira defesa social consistiria na tomada de medidas asseguradoras e tutelares antes da aparição da reação anti-social.4,5
O autor classificou os índices de periculosidade da seguinte forma:
a) médico-psicológicos:
"aqueles que surgem da existência de estados de alienação mental de semi-alienação ou de simples desequilíbrios psíquicos vinculados ou não a perturbações somáticas, que, em determinada ou indeterminada circunstância, permitem prognosticar uma reação anti-social em um dado sujeito."
b) sociais:
"estão condicionados por fatores ambientais."
Neste caso, a periculosidade não está dentro do sujeito, e sim, fora, no ambiente que "o nutre, o estimula, o excita". Suprimindo "este estímulo, esse alimento, esta excitação", a periculosidade desaparece. Das causas sociais, as mais importantes, para o autor, seriam as econômicas.
c) legais:
Referem-se aos antecedentes criminais e ao delito.
Loudet considerava os índices legais como os de menor importância. Para ele, tais índices, na maioria dos casos, não fariam outra coisa senão trazer elementos complementares aos demais, e, freqüentemente, se encontram subordinados aos índices médico-psicológicos e sociais.
O desenvolvimento de instrumentos de avaliação padronizados nos últimos 20 anos tornou-se prioridade nos esforços para melhorar a validade e a fidedignidade das previsões quanto ao risco de violência. A expectativa de uma forma geral no âmbito psiquiátrico pericial é de que estes instrumentos possam gerar dados confiáveis sobre a possibilidade de pacientes cometerem atos violentos sob certas circunstâncias.
Alguns destes instrumentos serão brevemente descritos a seguir:
Psychopathy Checklist - Revised (PCL-R)4
O PCL-R baseia-se no conceito clássico de psicopatia. O PCL-R contém 20 itens escolhidos de forma a avaliar comportamentos e traços emocionais característicos da personalidade psicopática.
Barrat Impulsiveness Scale (BIS-11)5
O BIS-11 foi desenvolvido para medir os três principais componentes da impulsivi-dade: o motor, o cognitivo e a ausência de planejamento.
Historical, Clinical and Risk Management Violence Risk Assessment Scheme (HCR-20)6:
O HCR-20 é um instrumento especialmente desenvolvido para avaliação do risco de comportamento violento futuro em populações psiquiátricas e criminosas. No HCR-20 há 20 itens individuais, divididos em suas respectivas sub-escalas: itens históricos, clínicos e de manejo de risco. Sob cada item há uma breve descrição da literatura relevante e o esquema de codificação para o mesmo. Os principais fatores de risco do HCR-20 são:
- Itens históricos:
1. Violência prévia;
2. Idade precoce no primeiro incidente violento;
3. Instabilidade nos relacionamentos;
4. Problemas no emprego;
5. Problemas com Uso de Substâncias;
6. Doença mental importante;
7. Psicopatia;
8. Desajuste precoce;
9. Transtorno de personalidade;
10. Fracasso em supervisão prévia.
- Itens clínicos:
1. Falta de insight;
2. Atitudes negativas;
3. Sintomas ativos de doença mental importante;
4. Impulsividade;
5. Sem resposta ao tratamento.
- Itens de manejo de risco:
1. Planos sem viabilidade;
2. Exposição a fatores desestabilizan-tes;
3. Falta de apoio pessoal;
4. Não aderência às tentativas de tratamento;
5. Estresse.
A PERICULOSIDADE NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA
Para entender como o conceito de periculosidade foi incorporado em nosso país, é interessante seguir o pensamento de Heitor Carrilho que, pode-se dizer, foi o maior sistematizador da Psiquiatria Forense no Brasil. Adepto entusiasta da doutrina positivista, concentrou seu olhar na personalidade do criminoso, construindo todo um sistema de representações que procurava interpretar o crime em torno de especificidades patológicas dos criminosos.7
Ao procurar fixar os objetivos da perícia psiquiátrica para fins penais, Carrilho afirmou que esta perícia se impunha como uma exigência dos novos rumos do Direito Penal, tornando-se indispensável para o esclarecimento de questões relativas aos objetivos da defesa social.
A Psiquiatria Pericial, segundo Carrilho , não deveria se restringir a verificar se o indivíduo é mentalmente desenvolvido. Carrilho afirmou que as modernas escolas penais transformaram as antigas noções de castigo e de vingança, que norteavam o Direito Penal, no princípio correto de defesa social. Em suas palavras, em 1930:
"O estado perigoso e a conseqüente temibilidade dos delinqüentes, examinados à luz de um rigoroso critério antropopsicológico, serão a base em que se apoiará toda a legislação repressiva...".8
E ainda, em outro artigo, em 1930:
"E se o crime é, na maioria dos casos, a expressão de anormalidades psíquicas permanentes ou momentâneas que merecem ser estudadas em todos os íntimos aspectos de sua determinação, corramos em apoio dos postulados da neurhigiene, prestigiemos as iniciativas e os objetivos da profilaxia mental, porque eles sonham com a validez integral das coletividades, desejam a eurritmia das sociedades e querem a vida social fraterna e sólida".9
Em 1940, Carrilho8,9 viu suas idéias consolidadas no Código Penal, que regulamentou a perícia técnica, em matéria de periculosidade, e a conseqüente medida de segurança .
A disposição principal do Código Penal de 1940 foi a introdução do sistema do duplo binário, cuja característica principal era a presença de duas reações penais de naturezas diversas, que poderiam atingir os imputáveis. De um lado, a pena, de caráter retribuitivo, aplicada segundo o grau de culpa do sujeito e a gravidade do seu ato; de outro, a medida de segurança que se calcava, principalmente, na avaliação do grau de periculosidade do acusado. Esta última se caracterizava principalmente pelo caráter preventivo, uma vez que objetivaria uma dupla finalidade - a defesa social, segregando os considerados perigosos, e o tratamento destes indivíduos, com o objetivo de anular sua periculosidade .
Na exposição de motivos nº 5, do Código Penal de 1940, encontramos:
"5. É notório que as medidas puramente repressivas e propriamente penais se revelaram insuficientes na luta contra a criminalidade, em particular contra as suas formas habituais. Ao lado disto, existe a criminalidade dos doentes mentais perigosos. Estes, isentos de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de segurança ou custódia senão nos casos de imediata periculosidade. Para corrigir a anomalia, foram instituídas, ao lado das penas, que têm finalidade repressiva e intimidante, as medidas de segurança. Estas, embora aplicáveis em regra post delictum, são essencialmente preventivas, destinadas à segregação, vigilância, reeducação e tratamento dos indivíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis.10
Na exposição de motivos nº 24, do Código Penal de 1940, lemos:
"(...) O juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somente o fato criminoso, e suas circunstâncias objetivas e conseqüências, mas também o delinqüente, a sua personalidade, seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau de culpa e os motivos determinantes (artigo 42). O réu terá de ser apreciado através de todos os fatores, endógenos e exógenos, de sua individualidade moral e da maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao juiz incumbirá investigar, tanto quanto possível, os elementos que possam contribuir para o exato conhecimento do caráter ou índole do réu - o que importa dizer que serão pesquisados o seu curriculum vitae, as suas condições de vida individual, familiar e social, a sua conduta contemporânea ou subseqüente ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilidade de vir ou tornar o agente a praticar previsto como crime). Esta, em certos casos, é presumida pela lei, para o efeito da aplicação obrigatória de medida de segurança; mas, fora desses casos, fica ao prudente arbítrio do juiz o seu reconhecimento").10
No código de 1940, os perigosos eram (artigo 78):
"I - aqueles que, nos termos do artigo 22 são isentos de pena;
II - os referidos no parágrafo único do artigo 22;
III - os condenados por crime cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez.
IV - os reincidentes em crime doloso;
V - os condenados por crime que hajam cometido como filiados a associação, bando ou quadrilha de malfeitores."
Heitor Carrilho8,9 recomendava a confecção de "psychobiogramas" para cada preso, de modo "a que pudessem ter todos eles a sua ficha psychologica, tal como são obrigados a ter a sua ficha dactyloscopica". Para Carrilho, como para os positivistas em geral, o ponto básico para a eficácia da "terapêutica penal era sua individualização".7
A revisão da parte geral do Código Penal de 1984 acabou com o sstema do duplo binário, dispensando a medida de segurança para os imputáveis. Conforme ressaltou Moraes, o conceito de periculosidade presumida e a consequente medida de segurança continuam sendo aplicados de forma generalizada, na prática penal, somente aos inimputáveis, reforçando a idéia de que o doente mental é necessariamente perigoso.11
Isto está explicitado na Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal:
"87. Extingue o Projeto a medida de segurança para o imputável e institui vicariante para os fronteiriços. Não se retoma, com tal método, soluções clássicas. Avança-se, pelo contrário, no sentido da autenticidade do sistema. A medida de segurança, de caráter meramente preventivo e assistencial, ficará reservada aos inimputáveis. Isso, em resumo, significa: culpabilidade - pena; periculosidade - medida de segurança. Ao réu perigoso e culpável não há razão para aplicar o que tem sido, na prática, uma fração de pena eufemisticamente denominada medida de segurança".
A legislação atual prevê duas espécies de medida de segurança:
- Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (CP, art. 96, I)
- Tratamento ambulatorial (CP, art. 96, II)
A cessação da periculosidade deve ser averiguada por meio de perícia médica (exame de cessação de periculosidade). Embora as medidas de segurança tenham duração indeterminada, cabe ao juiz da sentença que as aplica estabelecer seu prazo mínimo (de um a três anos). A perícia médica deverá ser realizada ao término do prazo mínimo fixado e repetida anualmente enquanto não se determinar a cessação da periculosidade.12
A legislação vigente no país determina que cabe ao perito psiquiátrico averiguar a cessação da periculosidade. É importante ressaltar, contudo, que a periculosidade é, nesse contexto, um conceito jurídico (e não médico ou psicológico) implicando na capacidade de se prever o comportamento futuro do sujeito submetido à medida de segurança.
Aplicação do conceito: o exame de cessação da periculosidade no Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho (HH), Rio de Janeiro.13
Em pesquisa conduzida no no HH, Rio de Janeiro , o nosso objetivo foi refletir sobre a prática pericial em matéria de cessação de periculosidade, diante da exigência legal de emissão de laudo sobre o qual se baseará a desinternação dos submetidos à medida de segurança. Foram examinados 114 exames de cessação de periculosidade (ECP) e realizadas entrevistas com os peritos responsáveis por estes laudos.
Inicialmente, observou-se que ao contrário dos demais laudos emitidos pelos peritos (Sanidade Mental e Dependência Toxiclógica), os ECP. não são sistematizados quanto a um padrão formal. Aparentemente os laudos deveriam conter os registros de todo o procedimento pericial, mas o que ocorre, porém, é que estes são em geral bastante "econômicos" em relação as informações.
As observações feitas foram agrupadas em linhas gerais a partir de semelhanças observadas. Para balizar o trabalho de campo, foi elaborado o que chamamos "grade de critérios. A análise dos laudos, após uma avaliação genérica inicial, não sistematizada, foi realizada de acordo com os seguintes pontos de enfoque:
- Variáveis sócio-demográficas (VSD)
Em geral incompletas, são encontradas no ítem Identificação, presente em todos os laudos. As VSD, quando disponíveis foram as seguintes: sexo, cor, idade, estado civil, escolaridade, profissão.
- Tempo de permanência do periciado na instituição
Embora pouco mencionado nos laudos foi registrado, quando existente.
Assim, encontrou-se nos laudos cinco tipos de conclusões possíveis, que foram catalogadas da seguinte forma:
I - Periculosidade cessada + tratamento ambulatorial / liberdade vigiada / sem tratamento ambulatorial;
II - Periculosidade cessada + sugestão de transferência para colônia agrícola;
III - Periculosidade mantida + continuidade da internação hospitalar;
IV- Periculosidade mantida (atenuada) + sugestão de visitas periódicas ao lar;
V - Periculosidade mantida + sugestão de transferência para estabelecimento penal não psiquiátrico / transferência para hospital psiquiátrico não penal.
Foi construída e utilizada, também, uma grade de critérios, adotada em função da observação nos laudos de padrões detectados através de expressões utilizadas pelos peritos, que se repetiam e se diferenciavam de laudo para laudo.
- GRADE DE CRITÉRIOS:
a) Gravidade do delito (GD):
O item foi incluído como consequência da observação de que pouquíssimos laudos dão relevância a natureza do delito praticado pelo periciado. Na maioria dos laudos o que se encontra a respeito é uma mera citação numérica doartigo do Código Penal infringido.
b) Antecedentes: criminal e psiquiátrico
Quase como no item anterior, encontra-se diminuta ocorrência de menção da história criminal e psiquiátrica do periciado, anterior ao cometimento do delito e consequente internação.
c) Sintomas produtivos
Ao contrário dos itens anteriores, onde foi possível perceber o critério pela ausência generalizada de menção dos mesmos, no caso da sintomatologia produtiva, foi possível observar que era mencionada frequentemente nas conclusões dos laudos, ou seja, a presença ou a remissão dos sintomas como condições importantes na aferição de periculosidade. É importante mencionar que este critério assim como todos os outros foram construídos a partir de expressões utilizadas pelos peritos. No caso dos sintomas produtivos foi considerada menção à presença ou não de "alucinações", "ideação delirante", "agitação psicomotora", "sintomatologia psicótica", "crise convulsiva" (no caso de pacientes epilépticos).
A sistemática adotada considerou se constava ou não a menção, sendo que nos casos em que constava, procurou-se identificar os casos em que havia presença ou ausência de tais sintomas.
d) Sintomas negativos
O mesmo enfoque aplicado ao critério anterior foi empregado neste item. Considerou-se sintomatologia negativa a menção ao comprometimento ou não, nas funções da vontade, pragmatismo e afetividade. As expressões: "defeito", "residual", "deterioração" também foram consideradas.
e) Apoio sócio-familiar
Foi considerado valorização a este item as seguintes referências:
- menção a visita ou não dos familiares do periciado;
- menção ao desejo dos familiares quanto à volta do periciado ao lar;
- o condicionamento do resultado do laudo à existência do apoio familiar.
f) Comportamento
Foi considerado quando havia citação aos seguintes itens:
- realização de atividade produtiva para instituição;
- participação em atividades de grupo;
- relacionamento com funcionários e demais internos;
- comportamento em saídas para visitas à familiares;
- relato de fuga.
g) Juízo crítico
Considerado como um critério quando havia descrição à consciência do periciado acerca do delito praticado; e/ou de sua doença e da importância de seguir a terapia recomendada, especialmente no que se refere a ingestão de medicamentos.
h) Diagnóstico
Em determinadas situações foi possível observar que o perito, em função de determinadas categorias nosológicas apresentadas pelo paciente justificava sua conclusão.
i) Parecer da equipe técnica
O critério foi considerado quando havia citação dos seguintes itens:
- a opinião da equipe técnica;
- os relatórios emitidos pela equipe;
- o trabalho da equipe junto ao periciado.
Cabe ressaltar aqui, que os relatórios da equipe técnica (psiquiatra, psicólogo e assistente social), são encaminhados à Vara de Execução Penal, anexados ao ECP.
A partir desta primeira análise, foram realizadas as entrevistas com os peritos esclarecendo pontos que ficaram obscuros, na análise inicial dos laudos.
Estas entrevistas foram feitas no HH, totalizando oito que correspondiam a época a totalidade dos peritos. Foram abordados os seguintes tópicos:
- a trajetória profissional do perito;
- explicitação das características dos pacientes, ou situações que levam a determinar a existência de periculosidade;
- explicitação do referencial teórico que fundamenta a determinação das características acima mencionadas;
Um dos fatores mais relevantes que apareceu na leitura inicial dos laudos foi a situação sócio-familiar do periciado, isto é, me pareceu que uma família presente influenciava decisivamente nas conclusões dos peritos. A falta deste dado em alguns laudos levou-me a buscar junto ao Serviço Social do MJHC, informações complementares. Coincidentemente verifiquei que aquele serviço dispunha de uma listagem que distribuía os periciados em três grupos:
- com família;
- com família e sem apoio;
- sem família.
Entende-se por "com família e sem apoio" aquela situação em que a família não manifesta praticamente nenhum interesse pelo interno, especialmente no que se refere a sua volta ao lar.
OS LAUDOS
A seguir destacarei algumas conclusões a partir da análise dos ECP.
Nenhuma variável sócio-demográfica demonstrou associação significativa com o resultado do laudo, salvo a variável "apoio familiar".
A análise dos laudos resultante da grade de critérios adotada indicou que em linhas gerais os critérios mais utilizados na avaliação de periculosidade foram a presença ou ausência de sintomatologia produtiva e negativa, o comportamento do periciado na instituição, e a existência ou não de apoio sócio-familiar.
Os itens menos valorizados foram a gravidade do delito, e a história criminal e psiquiátrica do periciado; critérios considerados de grande importância em vários estudos mencionados nos últimos anos.
Parece que a prática que foi adotada para execução dos laudos analisados segue o modelo estabelecido por Loudet na década de 30, que por sua vez teve grande influência no trabalho de Heitor Carrilho. Loudet3 considerava os índices médico-psicológicos e sociais como os elementos mais importantes para aferição da periculosidade.
Não é de se espantar o fato de ter encontrado um grande número de pacientes cronificados no manicômio e com permanência maior que cinco anos.
AS ENTREVISTAS
Um primeiro aspecto a ser analisado foram as trajetórias profissionais distintas. Todos os peritos, com exceção de um chegaram a perícia através de convite de um perito mais antigo, que às vezes ocupava o cargo de diretor de um dos manicômios. Todos vieram transferidos de outro local. Há diferenças importantes de entrevistado para entrevistado, em especial em função da época e em que ponto de sua formação profissional tomaram contato com a perícia. Como é característico do exercício da profissão médica no Rio de Janeiro (possivelmente no Brasil), alguns têm outro vínculo com o setor público (Universidades ou Secretarias de Saúde), e quase todos também tem prática privada (consultório mais frequentemente). Todos se conhecem e as vezes têm discordâncias entre si.
A escola destes peritos foi o ensinamento dos peritos mais antigos e a leitura dos Arquivos do Manicômio Judiciário, revista de grande repercussão, sobretudo na área pericial, até meados dos anos 60, tendo seu auge na década de 30 e 40. Vejamos:
"Minha formação não é nenhuma, é Heitor Carrilhiana..., comprei livros do Chalub e comecei a fazer laudos, estudar. Eu sou psiquiatra, em psiquiatria forense a minha formação foi jogada aos touros..."
Um aspecto levantado por alguns peritos foi a questão das atividades assistencial e pericial na mesma instituição. Dois peritos acreditam que seria mais adequada a separação das atividades assistencial e pericial, ou seja que as mesmas ocorram em locais separados. Um deles considera o Fórum o local ideal para o exercício da função, enquanto o outro acha que o maior problema reside na questão administrativa, e compara o Manicômio com um centauro, que para funcionar satisfatoriamente deveria contar com um diretor que também as características de um centauro. Dá o exemplo de dois diretores que devido às suas especializações davam maior apoio a um dos setores - pericial ou assistencial.
Um perito fazendo referência as argumentações contra as atividades pericial e assistencial na mesma instituição argumenta da seguinte forma:
"Acho que são argumentos que estão ligados a uma frustração pelo não reconhecimento. É a tal história, tira a perícia daqui e você vai ter a enfermagem dizendo que o diretor trata melhor os médicos do que a enfermagem.
Talvez a grande dicotomia na instituição, mais do que ser perícia e clínica ao mesmo tempo é ser um hospital prisão. Talvez essa seja a coisa mais esquizofrênica da instituição, porque o resto vai ser difícil de você mudar. Você trata aqui de maluco, ele normalmente é dividido, a instituição também é dividida.
Não sei se existe algum tipo de temor. Em outro lugar você vai ver o cara uma vez na vida e nunca mais vai vê-lo, então, você pode analisar uma série de questões. É importante a gente ter uma escola."
A divisão entre os dois poderes, o médico e o judiciário fica então entre duas instancias, tendo que julgar como médico se aquele paciente-preso deve ter "alta"da medida de segurança detentiva.
"..é preciso que eles tenham condições mínimas de poder ter alta, do ponto de vista legal e do ponto de vista clínico..."
Em princípio, pude observar que os critérios estabelecidos pelos entrevistados, na determinação da cessação de periculosidade do doente mental advém da experiência da prática clínica e daquilo que é literalmente visualizado. Todos concordam que a remissão dos sintomas produtivos, proeminentes é de fundamental importância, como pode ser depreendido pela fala abaixo:
"... o critério que eu sempre utilizo é o da alta, e é o mesmo que eu utilizo para o doente lá fora. Uma pessoa que está num quadro de agitação psicomotora, você não vai dar alta pra ela, vai esperar que essa situação decline, vai esperar que a situação delirante mais ou menos sistematizada seja debelada pela medicação neuroléptica..."
Outro critério, observável e visível é o comportamento durante a detenção. No entanto, este comportamento não é articulado ao diagnóstico da doença, mas sim a qualidade social ou anti-social do paciente-preso:
"Outro critério é como foi o comportamento durante a internação, quer dizer, se a pessoa em pouco tempo participou da vida do hospital, foi trabalhar na secretaria, na faxina, na cozinha, copa ou se nunca trabalhou em lugar nenhum."
Aqui, também uma questão se levanta, pois este tipo de visibilidade pode encobrir, por outro lado, o "bom paciente/detento", aquele referido como de bom comportamento, aquele a quem se deveria ter mais precaução, ou aquele já institucionalizado - o que morreu para o mundo.14
Uma outra variável apontada por alguns peritos é a presença dos sintomas negativos (defeito), que deixaria os pacientes menos perigosos do que a população em geral.
"... do ponto de vista psiquiátrico especificamente, um esquizofrênico residual ou com defeito, com certeza encontra-se em um estado muito mais grave do que alguém que só teve um ou dois surtos. Do ponto de vista legal, um esquizofrênico com defeito, encontra-se em uma situação muito menos grave do que um paciente que já teve um ou dois surtos..."
Neste caso, um "tratamento" que catalise o processo de cronificação de um paciente poderia ser visto como algo positivo, uma vez que anularia a periculosidade destes indivíduos. Ao comentar com um perito esta impressão que já havia tido ao analisar os laudos, este perito surpreso comenta:
"Paradoxo curioso. Para não ser perigoso, vamos deixar bem ruinzinho, com sintomas negativos.²
Outro aspecto que esta categoria aponta é quanto aos pareceres da equipe técnica. As opiniões se dividem em relação ao grau de importância dada ao parecer final da equipe, embora quase todos considerem de fundamental importância o relato do corpo técnico em relação aos critérios de visibilidade mencionados, como por exemplo: a resposta do paciente ao tratamento, principalmente no que tange os sintomas produtivos; o comportamento do interno na instituição e a presença do apoio sócio-familiar.
"São fundamentais e são elementos que eu sempre levo em consideração, eu faço a leitura desses pareceres antes do exame propriamente dito, como um estudo para eu poder especular determinada sintomatologia ou determinado dado positivo, ou dado a nível de apoio sócio-familiar..."
Outro fator a ser considerado por dois peritos é a necessidade de se avaliar o juízo crítico do paciente.4 Este pode ser enfatizado tendo em vista a consciência do crime praticado, ou a consciência demonstrada pelo paciente em relação a sua doença bem como a necessidade percebida pelo mesmo em continuar tratando-se em regime ambulatorial, sobretudo em continuar tomando a medicação. Conforme "diz" um dos entrevistados:
"O principal é que haja um juízo crítico de realidade ou uma recuperação do juízo crítico de realidade e um segundo critério é uma reversão do quadro clínico digamos, assim, uma melhora da doença ou mesmo uma cessação, uma cura; mais a essência seria a possibilidade da pessoa recuperar um juízo crítico que se perdeu."
A gravidade do crime é pouco valorizada pela maioria dos peritos, pois estes, salvo um, tendem a considerar o delito que, não é e não foi vísivel, como o fator menos importante.
"Acho que o delito que o cara cometeu, como eu te falei anteriormente, estaria nesta lista, lá para baixo, em nível de importância...²
Um fator que foi destacado por todos, é o contexto social onde o paciente vai ser inserido, ou o apoio sócio-familiar.
"A saída implica no problema fundamentalmente social. Tá otimamente bem e daí? Ele vai para rua, vai fazer o que? Ele vai voltar a tomar remédio, tem alguém, tem trabalho? Eu acho a parte social fundamental.Tem gente que mora aqui otimamente bem e até se adapta, porque não tem o que fazer, já tem a sua função aqui dentro e fica até receoso de ir para rua e não ter a metade do que tem aqui..."
"A periculosidade do doente mental está ligada à própria evolução, resposta terapêutica, apoio sócio-familiar, e esse conceito de periculosidade vai estar ligado a esses itens, na minha maneira de ver a periculosidade do doente mental passa por um critério eminentemente clínico. Eu acho que estaria vinculado a fomentação da ação terapêutica. Você faz essa terapêutica institucional, coloca ele na rua e ele não é mais tratado; por isso que é muito importante essa responsabilidade que a gente chama na maioria de apoio sócio-familiar; a conscientização por parte da família..."
O quadro que se apresenta da periculosidade, dentro do âmbito do acima descrito, transcende o sujeito para vincular-se ao social. De um discurso psquiatriáco, por excelência referido ao indivíduo, passa-se a um discurso de imputação social da patologia.
A família se transfigura no próprio ambiente hospitalar, pois cronificado, o doente mental infrator está totalmente dependente de alguém. Assim:
"(...) ele tem que ter uma condição familiar que possa abrigá-lo como um indivíduo absolutamente inoperante, inválido que passa a ser um encargo para essa família do ponto de vista econômico..."
Ora, se a esfera pública não possui condições suficientes para ofertar o abrigo necessário, é necessário se ter a certeza de que esse abrigo virá da família, pois a pressuposição é de que a periculosidade vinculada à cronicidade da doença mental aliada à "miserabilidade", tão frequentemente apontada nos laudos, é irremediável.
O discurso remete-se a questões da evolução da doença, às respostas terapêuticas, ao apoio e define-se como pautado num critério eminentemente clínico/institucional. Se todo esse processo é respaldado numa prática institucionalizada há que se substituir esse respaldo por outro. Na falta dele é natural que se opte por manter a proteção institucional, até porque a cronicidade requer um apoio e a sociedade reivindica a garantia da cessação da periculosidade. Num certo sentido, o laudo acaba por transcender seu cunho eminentemente psiquiátrico, penetrando nas questões que vão além da patalogia do sujeito, porque a avaliação pericial da cessação da periculosidade implica uma responsabilidade social. Neste aspecto, vejamos o que diz um dos entrevistados:
"...a lei tem como objetivo a proteção da sociedade e você não pode expor ao risco a sociedade..."
Três peritos apontam para menor periculosidade do doente mental comparada com a população em geral.
"O perigo é de como ele vai se proteger lá fora, porque ele é um indivíduo indefeso, porque a maioria dos nossos pacientes doentes mentais, eles não tem grande periculosidade ou quase nenhuma..."
"...essa questão da periculosidade está mal colocada, porque perigosos são todos os seres humanos...Então o doente mental é perigoso? E, eu concordo, mas também o não doente mental, o dito normal é perigoso. Talvez mais do que o doente mental."
Por outro lado, em outros momentos fica clara a ligação entre periculosidade e doença mental.
"Então, se você tiver um contexto favorável, se ele tiver uma família, tiver oportunidades de trabalho dentro das possibilidades dele que é evidente, porque depois que o indivíduo tem aqueles surtos psicóticos iniciais, ele nunca mais volta ao estado anterior, tanto que há uma determinada concepção dentro da psiquiatria entre surto e defeito...aí é o que se chama evolução para cronificação ou malignidade do processo. Aí nesse caso o indivíduo se torna crônico e realmente ele se torna dependente de alguém..."
Neste caso, a periculosidade do doente mental reside no fato dele ser alguém que perdeu a razão e que jamais a recuperará de forma absoluta. Ele é portador de um defeito incorrigível, passível até de ser amenizado, mas absolutamente incorrigível; e por isso mesmo capaz de levá-lo à reincidência.
"...esquizofrênico que já praticou um ilícito, já existe a facilitação mental de praticar o mesmo ilícito..."
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se dizer que a noção de periculosidade condicionou historicamente a legislação e a práxis psiquiátrica, constituindo o ponto crucial para as previsões que balizarão a atitude da sociedade para com os doentes mentais, especialmente os que cometem crimes.
Percebemos que as conceituações no Direito Penal de delito, tratamento e prevenção, bem como a identidade entre crime e patologia trouxeram a necessidade premente da figura do psiquiatra no âmbito do Direito Penal.
Desde então a tentativa de elaboração de critérios objetivos para aferição da periculosidade dos sujeitos infratores vem sendo uma das tarefas principais da Psiquiatria Forense.
Em nossa pesquisa no HH, verificamos que nenhuma variável sócio-demográfica demonstrou associação significativa com o resultado do laudo, salvo a variável "apoio familiar".
Os critérios considerados fundamentais na avaliação da cessação da periculosi-dade são a presença ou ausência de sintomatologia produtiva, o comportamento do periciado na instituição e o apoio sócio-familiar, ou seja, critérios eminentemente ligados à prática clínica do perito. No entanto, cabe ressaltar que a diferença reside no fato de no caso do hospital psiquiátrico não penal, a alta estar ligada principalmente a remissão sintomatológica, enquanto no manicômio judiciário, a mesma ausência, como entendem alguns peritos, não determinará por si só a cessação da periculosidade. É necessária a presença do apoio sócio-familiar como observado anteriormente. A falta deste apoio pode ser um agravante tão sério que pode levar a perpetuidade da medida de segurança, apesar de todos os pacientes-presos terem sido absolvidos de seus delitos.
Com a palavra, o trecho de um laudo:
A "prisão perpétua" seria o pior dos males. Este já é o segundo exame de cessação do paciente, em ambos não foi aprovada sua saída."
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Correspondênciapara:
kátia@mecler.com.br
Recebido em 22 de agosto de 2009.
Modificado em 02 de janeiro de 2010.
Aceito em 30 de janeiro de 2010.