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Revista Brasileira de Psicodrama

versión On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.1 São Paulo  2011

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

 

Papéis sociais femininos e as conservas culturais em relação ao dinheiro: cartografia de uma oficina temática de Psicodrama1

 

Female social roles and cultural conserves in relation to money: cartograph of a thematic psychodrama workshop

 

 

Cláudia Cecília Zendron*; Nédio Antonio Seminotti I, **

Faculdade de Psicologia da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo relatamos e discutimos uma oficina psicodramática realizada com um grupo de mulheres cuja temática foi focalizada na sua relação com o dinheiro. O grupo foi composto por cinco mulheres e foram realizados quatro encontros com duração de três horas cada. A discussão apoiou-se nos conceitos desenvolvidos por Moreno para o psicodrama, articulados à cartografia como método de análise proposto por Deleuze e Guattari. A partir das cenas dramatizadas desenhou-se uma cartografia das linhas de produção de subjetividade. As conservas culturais que reproduzem a ideologia patriarcal e que se manifestam no desempenho dos papéis sociais e nas suas relações de subordinação e que, por sua vez, constituem um obstáculo à saúde mental das mesmas, foram tomadas como referência para a análise. Acompanhando-se a composição dessas linhas na fabricação da barreira invisível que interfere no modo como as mulheres lidam com o dinheiro, buscou-se, pelo exercício da espontaneidade, incidir em seu traçado, produzindo rupturas nos modos existentes de subordinação.

Palavras chave: Psicodrama; cartografia; papéis sociais; conservas culturais; gênero; dinheiro.


ABSTRACT

In this article, we report and discuss a psychodramatic workshop developed with a group of women about their relationship with money. The group was integrated by five women, and the workshop was composed by four meetings of three hours each. The discussion was based on the concepts developed by Moreno about psychodrama, in connection with the cartographic method of analysis, as suggested by Deleuze and Guattari. Based on the dramatized sketches, cartography of the subjective production lines was designed. The cultural conserves that reproduce the patriarchal ideology and that are manifested on the roles played by women and on their subordination in inter-relationships, and which in turn constitutes an obstacle to their mental health, was taken as a reference of analysis. Focusing on the composition of those lines in the production of the invisible barrier that interferes on how women deal with money, it was also the aim of this research to produce ruptures on the modes of existence of this subordination through the exercise of spontaneity.

Keywords: Psychodrama; cartography; social roles; cultural conserves; gender; money


 

 

"Uma cura seria como construir uma obra de arte, com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez a forma de arte que se vai usar". (Guattari, 1993, p.223.)

Tanto no trabalho psicoterapêutico como na coordenação de grupos de reflexão sobre subjetividade feminina, encontramos a temática do dinheiro interpenetrada nos relatos das dificuldades enfrentadas pelas mulheres, as quais aparecem em diferentes situações: no modo como se apropriam e administram seus rendimentos, na forma como cobram por seu trabalho, na maneira como tomam decisões sobre seus investimentos etc. Estas dificuldades nem sempre são evidentes, ficam naturalizadas e mascaradas na vida cotidiana, gerando sentimentos como incompetência, incapacidade e inadequação, levando a diferentes níveis de sofrimento psíquico. Dada nossa atuação clínica no campo da prática privada, o universo de mulheres que compõem nossa clientela constituise, majoritariamente, por mulheres com inserção profissional definida e rendimentos advindos de seu trabalho. As mulheres que compuseram o grupo que participou da oficina para a realização desse estudo originamse deste segmento socioeconômico. Ainda que possamos encontrar aí singularidades restritas ao segmento social em questão, interessa-nos a dimensão de gênero como uma dimensão que abarca as mulheres em todos os segmentos sociais.

Buscamos então identificar, no contexto psicodramático, como os papéis sociais desempenhados pelas mulheres interferem no modo como lidam com o dinheiro. Partimos da hipótese de que esses papéis sociais sustentam um "teto de vidro", ou seja, sustentam as barreiras invisíveis vividas pelas mulheres em relação à realização de sua autonomia econômica. A expressão "teto de vidro" surge no final dos anos 1980, designando a barreira invisível que impede o crescimento da carreira profissional das mulheres dentro de uma hierarquia organizacional (Steil, 1997). Esse "teto de vidro" está presente não apenas na hierarquia organizacional das empresas, mas também em outras dimensões da vida das mulheres, a partir dos primeiros papéis sociais desempenhados desde o núcleo familiar. Assim, entendemos que a forma como as mulheres lidam com o dinheiro está intrincada num mosaico de condições objetivas e subjetivas que compõem esse "teto de vidro", o qual vai sendo construído desde muito cedo, no desempenho de seus papéis sociais.

Com este intuito investigativo, realizou-se uma oficina psicodramática com um grupo de mulheres cuja temática foi focalizada na sua relação com o dinheiro. O psicodrama tornou-se um dispositivo de investigação e intervenção, a partir do qual se construiu uma cartografia das linhas de reprodução (papéis sociais e conservas culturais) e das linhas de produção (criação de novos modos de ação, outras subjetivações). Através de dramatizações, buscou-se expressar e compreender a relação entre papéis sociais femininos (conservas culturais) e a autonomia no manejo do dinheiro. Além disso, pretendeu-se favorecer, através das dramatizações e das técnicas dramáticas empregadas, a consciência, por parte das integrantes do grupo, das conservas culturais e da necessidade de desenvolvimento da espontaneidade como forma de ruptura com os comportamentos de subordinação.

 

A ideologia patriar cal como conserva cultural

Vivemos em um contexto social multideterminado em que os papéis sociais como conservas culturais vêm garantindo, historicamente, a repetição e reprodução de lugares de subordinação, tanto para as mulheres como para os homens. No entanto, por vivermos numa sociedade de ideologia patriarcal, não podemos ignorar o efeito maciço desta ideologia sobre as normas de conduta e, consequentemente, sobre as diferenças assim produzidas em níveis de subordinação entre os papéis sociais de homens e mulheres. O cerne da ideologia patriarcal é a crença na inferioridade feminina e na superioridade masculina. A diferença entre os sexos transforma-se em hierarquia, em que o sexo masculino passa a ser o que detém o poder e exerce o controle sobre a organização social. A superioridade masculina é explicada por uma visão biologicista em que não há distinção entre sexo e gênero sexual; tudo é naturalizado e reduzido à essencialidade biológica. Assim, até mesmo os papéis sociais são vistos como a expressão dessa essencialidade, vistos como determinados pela natureza. A organização social passa a ser definida por esta cisão e algumas consequências dessa hierarquia são bastante visíveis, como a divisão sexual do trabalho: os homens situam-se na esfera da produção e do público, enquanto as mulheres permanecem voltadas à reprodução e ao doméstico, ao privado. A resultante dessa rígida hierarquia é um funcionamento social que oprime as mulheres, em todos os âmbitos de sua realização como sujeito: na esfera sexual, econômica, intelectual, política, religiosa, psicológica e afetiva (Coria, 1997, p.53).

Apesar dos avanços que os estudos de gênero promoveram na qualidade de vida das mulheres, ainda há questões pendentes no que diz respeito aos papéis sociais femininos e às conservas culturais que os constituem e alimentam. Em uma análise crítica das conquistas do feminismo, Badinter (2005) afirma que os maiores avanços obtidos nas últimas décadas deveram-se à desconstrução audaciosa do conceito de natureza. Isto teve um impacto fundamental na liberdade em relação aos papéis tradicionais que definiam o gênero. Mas esta conquista hoje está em risco, pois retornam, em muitos âmbitos, as práticas que, sustentadas no discurso da diferenciação, violam os direitos das mulheres e colocam-nas como em uma sociedade separada da masculina (Badinter, 2005, pp.150-151). Estamos, então, diante de novas formas de estereotipia dos papéis sociais, ao mesmo tempo em que ainda enfrentamos aquelas antigas formas que se mantiveram intactas ou ocultadas no cotidiano.

 

Conservas culturais e sofrimento psíquico da mulher

A estereotipia nas relações sociais é, para Moreno, um padecimento que deve ser tratado e cuja terapêutica dá-se pelo resgate da espontaneidade e da criatividade através da criação de novos papéis que produzam rupturas e modifiquem a realidade social (Santos, 1990, p. 154). Burin, Moncarz e Velázques (1990) defendem a concepção de que, ao longo da história, a construção do conceito de saúde-enfermidade mental para as mulheres esteve ligada intimamente à produção social das mulheres como sujeito, e que, portanto, a construção da subjetividade feminina em nossa cultura esteve imbricada com a construção de sua saúde mental. Para estas autoras é na construção de sentidos, enraizada nas condições da vida cotidiana das mulheres, que ocorre a construção de seu mal-estar. Esta noção entende que a saúde mental é construída de acordo com certos processos históricos, sociais, econômicos, sendo configurada nestes múltiplos entrecruzamentos (Burin; Moncarz; Velázques, 1990, p. 23).

Entendemos, assim, que as conservas culturais que reproduzem a ideologia patriarcal e que se manifestam nos papéis sociais e nas condutas de subordinação femininas podem ser consideradas, desde o ponto de vista psicodramático, como um obstáculo à saúde mental da mulher. Sua etiologia não se circunscreve ao âmbito psicossomático, mas se configura no âmbito das relações sociais, ali mesmo onde os papéis sociais são apreendidos e desenvolvidos. Essa multiplicidade de papéis é, para o psicodrama, um critério de saúde, pois quanto maior a diversidade de papéis assumidos por um indivíduo, maior a sua flexibilidade e capacidade de ação e de respostas criativas e espontâneas.

 

A oficina psicodramática como dispositivo de ruptura das conservas culturais

Um dispositivo nada mais é do que uma montagem (como no teatro, no cinema ou nas artes plásticas) ou um artifício que inclui diferentes elementos de distintos âmbitos: elementos sociais, naturais, tecnológicos ou subjetivos. Um dispositivo caracteriza-se, ainda, por sua capacidade transformadora, por sua capacidade de gerar o novo, de criar, de produzir mudanças. Num dispositivo, tanto o seu objetivo como o processo gerado para obtê-lo são imanentes entre si e têm uma função tanto semiótica como pragmática (Baremblitt, 1992, pp.74 e 151).

Pensamos que a oficina proposta constitui-se, de acordo com esta definição, num dispositivo acionando e colocando em relação, vários elementos na perspectiva de interferir, através do psicodrama, na visualização e configuração da rede relacional na qual se inserem as mulheres que dela participam. Neste sentido, esta proposta não se pretende neutra. Pelo contrário, a concepção dessa oficina–dispositivo-instrumento ocorre a partir de

"um paradigma ético-estético-político que concebe uma subjetividade que se experimente, [que] se arrisque em outros modos de composição, de uma subjetividade que se produza heterogênea e ao mesmo tempo heterogenética, de uma subjetividade que esteja comprometida com os processos coletivos que a produzem" (Barros, 2007, p.325).

Entendemos, dessa forma, que o pensamento moreniano encontra-se alinhado a este paradigma, ao sublinhar o processo de criação e seu caráter coletivo como a base de todo o seu método. Moysés Aguiar (1990) indica que, nas entrelinhas e em pressupostos não explícitos da obra de Moreno, há algumas afinidades com concepções básicas do anarquismo. Este depoimento parece-nos corroborar a existência, ainda que não explícita, das afinidades que intuímos entre o psicodrama e o paradigma ético-estético-político. Assim, a oficina foi por nós concebida como este dispositivo–instrumento. O objetivo constitui-se, então, investigar e intervir sobre uma rede relacional composta por mulheres com uma tarefa comum: através da técnica psicodramática, dramatizar cenas que envolvam a temática do dinheiro.

Os encontros constituíram-se como sessões temáticas, a partir dos seguintes eixos:

a) Primeiro Encontro: O que é o dinheiro?

b) Segundo Encontro: o "primeiro dinheiro";

c) Terceiro Encontro: as decisões em relação ao dinheiro

d) Quarto Encontro: uma cena cotidiana marcante que envolveu dinheiro

Esta "estrutura" a partir da qual se realizaram os encontros serviu apenas como "eixo norteador" para o trabalho, pois a característica de cocriação do psicodrama deixa-nos sempre uma abertura para o inusitado, para o que não pode ser previsto, para o que nasce no momento mesmo da interação psicodramática. A escolha da dramatização investigativa abre um caminho instigante e cheio de possibilidades: a oficina dramática com o grupo de mulheres pode nos brindar histórias que nos ajudem a desvelar esta dimensão ainda não explícita, tanto para a pesquisadora como para as participantes, e indicar possíveis transformações às últimas. Este é um trabalho coletivo, em que a investigação é tarefa de todas as participantes, em diferentes momentos do processo, e pelo qual se tenta, como nos diz Merengué, "objetivar o subjetivo, transformar a cena psicodramática em objeto de crítica" (Merengué, 2006, p.65).

 

Psicodramatizar -cartografar -compreender - segmentar

Construir uma cartografia dessa oficina temática é a tentativa de acompanhar o desenho da paisagem sempre movente que se configura no contexto psicodramático: busca-se a produção de uma cartografia ou, como nos diz Suely Rolnik, "mergulhar na geografia dos afetos, e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem" (Rolnik, 2007, p.66). A cartografia faz-se a partir de "linhas duras" ou "molares", ou seja, aquelas que se dão num plano homogêneo, de reprodução, mas que se segmentam em outras direções, como rizomas, surgindo então "linhas moles" ou "moleculares", linhas que nos levam à heterogênese, à diferenciação, à produção do novo.

A cartografia é então um método para acompanhar processos em um território existencial no qual o pesquisador está implicado. Isso exige do pesquisador-cartógrafo "uma abertura [...] a uma espécie de toque fragmentário, que, recusando totalidades perceptivas, abre as portas para a fabulação" (Amador e Fonseca, 2009).

Ainda segundo Rolnik (2007), os procedimentos do cartógrafo são "inventados" em função daquilo que pede o contexto em que se encontra a partir exclusivamente de um tipo de sensibilidade que ele procura fazer prevalecer. O cartógrafo utiliza um "composto híbrido", usando ao mesmo tempo seu olho molar e seu olho molecular para apreender o movimento que surge da tensão entre fluxo e representação (Rolnik, 2007, pp. 66-67).

As noções de subjetividade e inconsciente, produzidas por Gilles Deleuze e Felix Guattari, são fundamentais na constituição do método da cartografia. Segundo Rolnik, a subjetividade para estes autores está sempre em movimento de produção, transbordando o indivíduo. Há então processos de individuação ou subjetivação, que acontecem nas conexões entre fluxos heterogêneos, resultando daí o indivíduo e seu contorno, como figura de subjetividade efêmera, formada por agenciamentos coletivos e impessoais (Rolnik, 1996).

Encontramos também no esquizodrama, metodologia criada por Gregório Baremblitt, a partir dos conceitos de Deleuze e Guattari, outra pequena máquina metodológica que se conecta ao psicodrama, convocando- nos às tarefas que ele chama de negativas e positivas: as primeiras consistem em problematizar as identidades que se fundamentam nas características do estável, do exclusivo e do excludente; as segundas, em intensificar e deflagrar os pontos de singularidade dos participantes e dos movimentos do grupo para a proliferação das diversidades e para a atualização de novos elementos de subjetivação (Cardoso, 2006).

A aproximação entre o método psicodramático e o método da cartografia (esquizoanálise) faz-se possível quando pensamos o psicodrama como um dispositivo do qual o pesquisador-cartógrafo lança mão para apreender o movimento que se produz na tensão entre as conservas culturais (plano da reprodução, da representação) e a espontaneidade (plano da produção, da invenção). Esta aproximação também só se faz possível quando descartamos os pressupostos identitários, que em diferentes momentos, mimetizaram-se ao psicodrama no seu desenvolvimento histórico e quando intensificamos a vertente libertária do teatro espontâneo ou, como nos diz Moysés Aguiar, quando o psicodrama de fato volta-se para a captura dos conteúdos ideológicos que aprisionam a espontaneidade e a criatividade (Aguiar, 1990, p.125).

Assim, o contexto psicodramático torna-se o espaço de compreensão do imaginário, em que se pode dar vazão àquilo que ainda não foi pensado, compreendido e elaborado (Merengué, 2006, pp. 76-77). Este é o território existencial em que poderemos cartografar, a partir dos papéis sociais femininos, o modo como as mulheres lidam com o dinheiro, situando sua trajetória, sua trama, para então poder ver quais novas possibilidades nos indicam, onde estariam as linhas segmentadas, as rupturas a serem feitas no desmanche das tramas que sustentam as conservas culturais que levam à perda da autonomia das mulheres em relação ao dinheiro.

 

Psicodramatizar , não interpretar , cartografar

O psicodrama não quer interpretar. O que interessa ao psicodrama é compreender e inventar. Compreender o conflito da pessoa a partir do modo como se produzem e conectam os diferentes sistemas de referência de um sujeito. Isto é obtido através da dramatização desse conflito, colocando-se em jogo os papéis sociais e buscando, através dos papéis psicodramáticos, referentes de espontaneidade e criação que permitam mudanças efetivas na vida das pessoas.

Os papéis sociais produzem-se e reproduzem-se nos movimentos das sociedades e cumprem sua função de manutenção das conservas culturais. Esta é uma função importante, pois sem as conservas culturais as sociedades não se estabeleceriam em suas normas mínimas de funcionamento e não poderiam constituir-se como tal. No entanto, isto que é necessário para a sobrevivência humana também traz em si um grande paradoxo: o que nos garante a organização como sociedade também contém os elementos que produzem repetição, reprodução, hierarquia, clausura, submissão e sofrimento. Mulheres e homens inter-relacionam-se e desempenham papéis sociais forjados pela cultura. Papéis que são atravessados por suas características biológicas e marcados pela ideologia patriarcal, que naturaliza estas diferenças e as cristaliza em um determinado modo de produção de subjetividade: um plano homogêneo de existência, no qual cada indivíduo passa a copiar-se a si mesmo. Este modo de produção de subjetividade gera desigualdades que, por sua vez, geram sofrimento psíquico tanto nos indivíduos como nos grupos. As mulheres, submetidas a uma condição de menos-valia por esta ideologia, apresentam formas de sofrimento psíquico que advêm da cristalização de seus papéis sociais. Este recorte sobre a articulação entre gênero e papéis sociais é o nosso "buraco da fechadura". É nele que posicionamos nosso olho molar para poder ver através da porta fechada. Do outro lado, encontramos o modo como as mulheres lidam com o dinheiro. Através do buraco da fechadura, nosso olho não pode ver tudo, apenas um recorte. Neste recorte estão al- guns elementos que compõem um imenso contexto. Interessa-nos ativar nosso olho molecular, ver tais elementos em movimento, compreender o modo como operam e fazer experimentos no seu funcionamento. Busca- mos, assim, incidir no modo como as mulheres lidam com o dinheiro.

A oficina psicodramática permitiu-nos cartografar as linhas que se de- senham a partir das inter-relações e compreender a composição dessas linhas na fabricação da barreira invisível que se interpõe na forma como as mulheres lidam com o dinheiro. Assim identificamos o vidro, o cristal invisível que as impede de lidar com o dinheiro com autonomia. A primeira linha que acompanhamos foi a que passou a desenhar-se como impos- sibilidade de comunicação, de partilhamento, de integração. Esta linha desenhou-se a partir de uma inter-relação em que, de um lado, há um que sabe, e de outro, um que não sabe, transformando-se, neste percurso, em exclusão. A cena, a partir de uma situação ficcional, revela como ficam excluídos aqueles que não se apropriaram da complexidade da noção monetária: não conseguem estabelecer as condições para tomarem parte em um contexto. O dinheiro é, antes da sua materialidade, uma noção, um saber. As linhas cartografadas revelam-nos que este grupo de mulhe- res economicamente independentes, produtoras de seu próprio sustento, tem uma grande dificuldade em significar e expressar a noção dinheiro.

Da cena ficcional à cena vivida, de uma realidade ficcional a uma re- alidade experimentada: as linhas continuam seu percurso, remetem-nos ao átomo social familiar, aos papéis de filha, pai, mãe, irmãos. A linha da impossibilidade e da exclusão é tramada ao fio da ideologia patriarcal, marcando o papel de filha pela subordinação. A filha, diante do pai que supostamente sabe, torna-se insegura e incapaz de expressar seu desejo. A linha da subordinação, desenhada no átomo da família, estende-se a outros átomos sociais, replica-se na realidade social, tirando da mulher a capacidade de decisão sobre o seu próprio dinheiro. Outra cena, outra linha que se esboça e se conjuga: em jogo, o papel de ex-esposa e de mãe. A linha da subordinação ganha força e revela-se em mais um contexto: sem capacidade de decisão, não há possibilidade de negociação. A linha desdobra-se em desistência, em um "abrir mão". A mulher subordinada não pode negociar, porque a negociação requer uma simetria no víncu- lo. O contexto psicodramático permite revelar o desenho desta linha, e a experimentação neste espaço inaugura a possibilidade de interferir-se em seu trajeto, transformando-a em algo que escapa à subordinação: a mulher subordinada e defendida, que não negocia e facilmente abre mão de seu interesse, transforma-se em mulher que pondera, que estabelece parâmetros e mantém, com segurança e firmeza, seu ponto de vista.

Agora no papel de amiga, fora do átomo social familiar, estendendose na rede social, a linha da subordinação mantém sua trajetória e revela outro componente que a constitui: o pudor em relação ao dinheiro. A mulher obediente, subordinada, insegura, incapaz de expressar seu desejo, de decidir sobre o uso do dinheiro fica impedida de se apropriar com autonomia do seu próprio dinheiro. É a mulher que, junto da amiga, melindra- se, sente vergonha de estabelecer um contrato. Sem um contrato, expõe-se ao risco de perdas, fica vulnerável às situações que envolvem dinheiro. A experimentação, no contexto psicodramático, permite o aparecimento de outro modo de agir desse papel, no qual há participação ativa na definição das regras do jogo, na efetivação de um contrato, trazendo um sentimento de bem-estar, de segurança, de apropriação.

Foram investigados quatro momentos diferentes, quatro cenas, todas elas ligadas ao tema dinheiro. As cenas possibilitaram-nos ver como, através dos papéis sociais, engendra-se e mantém-se a falta de autonomia que as mulheres experimentam ao lidar com o dinheiro. A família, átomo social matricial desses papéis, interpenetrada pela ideologia patriarcal, transforma-se numa máquina de produção de subordinação, marcando claramente as características que levam as mulheres à falta de autonomia em relação ao manejo do dinheiro. Esta é construída a partir dos afetos que são mobilizados no desempenho dos papéis sociais: em relação ao dinheiro, as mulheres aprenderam a duvidar de si mesmas, a temê-lo, a envergonhar-se de obtê-lo e administrá-lo.

Estas barreiras invisíveis – este "teto de vidro" que impede a mulher de exercer sua autonomia – geram um constante sentimento de inadequação, de insegurança, de menos-valia. Em todas as cenas dramatizadas, estes sentimentos estiveram presentes e foram expressos tanto nos diálogos dos personagens como nos compartilhamentos das participantes do grupo. Estes sentimentos produzem, além das perdas concretas, um mal-estar que poderíamos qualificar de crônico, uma vez que nada na nossa organização social acontece fora da instituição do dinheiro. As mulheres estão constantemente, nas suas ações mais cotidianas, vivenciando os efeitos gerados pela falta de autonomia em relação ao manejo do dinheiro. Isso gera vulnerabilidade psíquica, predispondo-as a várias formas de sofrimento psíquico.

A oficina psicodramática sobre este tema pode constituir-se num excelente agenciamento ou dispositivo de prevenção e promoção da saúde da mulher, permitindo um processo terapêutico coletivo, em que todas e todos passam a ser cocriadores de novos modos de interação. Por mais duras que sejam as linhas desenhadas pelas conservas culturais, há sempre a possibilidade de que, pelo exercício da espontaneidade, num ato criativo, produza-se uma segmentação dessas linhas, abrindo espaços para outros modos de existência, nos quais as mulheres não esbarrem em "tetos de vidro".

 

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Claudia C. Zendron
Rua Felipe Camarão, 748, sala 302
Porto Alegre - RS
e-mail: cczendron@uol.com.br

Nedio Seminotti
Avenida Padre Cacique, 1900/802
Porto Alegre - RS
e-mail: nedio.seminotti@pucrs.br

 

 

Notas
1 - Este artigo é baseado na monografia de mesmo título, apresentada à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Centro de Estudos Barros Falcão como exigência para obtenção do título de especialista em psicodrama
* Psicóloga CRP0705620, especialista em psicologia clínica pelo CFP, especialista em psicodrama pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Doutor em psicologia pela Universidad Autónoma de Madrid, especialista em psicodrama pela Febrap, professor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da PUCRS e coordenador do Grupo de Pesquisa de Processos e Organizações dos Pequenos Grupos.