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Revista Brasileira de Psicodrama
versión impresa ISSN 0104-5393versión On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.23 no.2 São Paulo dic. 2015
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20150004
ARTIGOS INÉDITOS
História de vida: aspectos teóricos da Psicossociologia clínica
Life stories: theoretical aspects from the Psychosociology clinic
Historia de Vida: aspectos teóricos de la Psicosociología clínica
Juliana Castro Benício de CarvalhoI; Liana Fortunato CostaII
IUniversidade de Brasília - e-mail: castrojuli28@yahoo.com.br
IIUniversidade de Brasília - e-mail: lianaf@terra.com.br
RESUMO
Este texto visa indicar as bases teóricas do trabalho com História de Vida, tendo como base a abordagem da Psicossociologia Clínica. Os conceitos História de Vida, Abordagem Clínica e Historicidade foram apresentados e podem embasar tanto a pesquisa acadêmica, quanto a intervenção de profissionais. A compreensão proposta evita que se culpabilize os indivíduos por suas escolhas, além de permitir que se reconheça a influência exercidas pelos sujeitos no meio coletivo.
Palavras-chave: História de vida. Psicossociologia clínica. Clínica.
ABSTRACT
The aim of this text is to present the theoretical basis for the Life Stories method, based on the Clinical Psychosociology approach. The concepts of this method are presented, such as Life Stories, Clinical Approach and Historic authenticity. The academic elements of this method are presented as well as professional intervention. Understanding this method avoids blaming people for their choices, and gives the opportunity of recognizing the influence thatindividuals have on society.
Keywords: Life stories. Clinical psychosociology. Clinic.
RESUMEN
Este texto tiene el objetivo indicar las bases teóricas del trabajo con el método de la Historia de Vida, basado en el enfoque de la Psicosociología clínica. Se presentan los conceptos del método como la Historia de la Vida, el enfoque clínico y la historicidad. Los elementos académicos de este método se presentan así como la intervención profesional. La comprensión de este método evita culpar las personas por sus elecciones y da la oportunidad de reconocer la influencia que tienen los individuos en la sociedad.
Palabras-clave: Historia de vida. Psicosociología clínica. Clínica.
INTRODUÇÃO
O presente texto é um estudo teórico sobre as bases teóricas da Psicossociologia Clínica, abordagem que privilegia a compreensão de histórias coletivas por meio de Histórias de Vida. Serão apresentados alguns conceitos utilizados na Psicossociologia Clínica, como Histórias de Vida, Abordagem Clínica e Historicidade, e esse conjunto de conceitos pode embasar tanto a pesquisa acadêmica, quanto a intervenção de profissionais.
PSICOSSOCIOLOGIA CLÍNICA
Ao identificar o processo singular de construção da subjetividade, evidenciam-se também elementos do contexto social ao qual o sujeito faz parte, uma vez que um é constituído em relação ao outro. Assim, ao conhecer a História de Vida de uma pessoa, podese também conhecer e analisar elementos do contexto social que perpassaram essa construção, bem como as transformações que ocorreram tanto no indivíduo quanto na sociedade ao longo do tempo (HOULE, 1986). Em outras palavras, pode-se acessar o processo de constituição de uma sociedade quando se conhece o processo de constituição de uma História de Vida, poisambos ocorrem simultaneamente, um atravessando e influenciando o outro e sendo modificado por esse outro.
HISTÓRIA DE VIDA
Um ponto a esclarecer é em relação ao termo História de Vida. O termo original é récit de vie, do francês, que se traduz em português "história de vida" (RHÉAUME, 2013). No entanto, há uma conotação na língua francesa importante que se perde com a tradução. A palavra histoire está mais ligada à exposição de fatos ou sucessão de eventos de forma objetiva, que busca divulgar um acontecimento sem considerar os sentimentos e as percepções presentes. Essa palavra está ligada geralmente às diversas situações presentes na construção e na transformação das sociedades ao longo do tempo, aos grandes eventos, como os de guerra, aos denominados fatos históricos, os quais são divulgados como a versão oficial do vivido pelo coletivo e organizados em uma disciplina específica, a História, que estuda esses grandes acontecimentos. A palavra récit, contudo, possui outro significado que está relacionado à narração subjetiva da própria história de vida a outra pessoa, sobre os fatos vividos e presentes na memória de quem narra, sendo eles relacionados a fatos concretos ou imaginários. Assim, ao ler o termo História de Vida neste texto, o sentido aqui presente é o de récit de vie, englobando, então, sentimentos, fantasias e emoções de quem narra. Vale ressaltar que alguns teóricos vão utilizar em seus textos o termo História de Vida também com o sentido de récit de vie.
Em termos históricos (LEGRAND, 1993), o trabalho com Histórias de Vida tem sua origem em duas disciplinas distintas: a Antropologia Cultural e a Sociologia. Na Antropologia Cultural, ela fez-se presente em investigações norte-americanas em tribos indígenas e na busca de histórias de grandes chefes índios, entre os anos de 1926 e 1945. Após esse período, essa abordagem começou a enfraquecer no meio acadêmico. E na Sociologia, uma referência crucial é a Escola de Chicago, fundadora da Sociologia Empírica americana. Depois de muitas pesquisas entre os anos de 1920 e 1940, o uso das histórias de vida em pesquisa também ficou enfraquecido nos Estados Unidos. Uma hipótese para esse enfraquecimento é o momento pós-Segunda Guerra Mundial, quando o mundo acadêmico passou a valorizar somente métodos quantitativos e entrevistas realizadas por meio de questionário.
Somente nos anos 1970, pesquisas que se utilizam de histórias de vida vão voltar à cena graças à publicação da obra intitulada Histoire de vie: ou récits de pratiques?, do sociólogo francês Daniel Bertaux (1976), na qual apresenta um panorama e uma avaliação sobre pesquisas que se utilizaram do método biográfico, além de algumas conclusões a que chegou após diversas experiências de acesso a histórias biográficas. Com base nesse texto, o interesse pelas histórias de vida como método de investigação científica voltou a crescer no meio acadêmico, perdurando até os dias atuais (LEGRAND, 1993).
ABORDAGEM CLÍNICA
Entre os teóricos que vão participar ativamente desse movimento de reavivamento das histórias de vida como método de investigação, aponta-se Vincent de Gaulejac, sociólogo francês, que organizou a Sociologia Clínica. Esse autor lança um olhar clínico ao vivido pelos atores sociais, considerando, assim, o conhecimento acumulado por esses atores ao longo dos anos para analisar e compreender a sociedade (GAULEJAC e HANIQUE, 2012).
Apresentando uma epistemologia pluralista, muitos teóricos favoreceram a organização da Sociologia Clínica, indicando a possibilidade de aproximação entre a Sociologia e a Psicologia. Entre eles, tem-se o sociólogo Émile Durkheim que, implicitamente, em sua obra, indica que fatos sociais também são fatos psíquicos, enfatizando o papel essencial das crenças e das paixões na vida coletiva. Outro sociólogo importante é Marcel Mauss, que apontou a necessidade de se considerar o campo clínico na Sociologia, fato importante para a compreensão de um fenômeno social, bem como abarcar o vivido de cada indivíduo, com os sentidos que ele lhe confere, seus sentimentos e suas emoções, sempre vendo esse sujeito como protagonista de sua própria história. Também Cornelius Castoriadis, com a visão de sujeito sócio-histórico, e Edgar Morin, com a noção de complexidade, são referências importantes para a Sociologia Clínica. Complexidade, para Morin, diz respeito a aspectos de um conceito que são tecidos, que repousam tanto em uma como em outra dimensão. Assim, esses autores vão buscar identificar os pontos de ligação entre indivíduo e sociedade, o imaginário e a realidade, a objetividade e a subjetividade, o psíquico e o social(GAULEJAC, 2012).
A Sociologia Clínica é uma abordagem que considera os fenômenos sociais como multidimensionais (GAULEJAC, 2012), pois não abarca somente o coletivo, mas também a dimensão psíquica, individual, enfatizando que o vivido pelos atores sociais remete à questão da fronteira entre Psicologia e Sociologia, o externo e o interno, a objetividade e a subjetividade. A proposta da Sociologia Clínica situa-se na intersecção entre esses opostos, buscando esse encontro de contrários, a ligação, os pontos em comum e os complementares, os elementos que se fazem presentes em ambas as dimensões. Como exemplo, tem-se a contribuição importante da história social e familiar no processo de construção identitária de um indivíduo. Outro exemplo é em relação ao sentimento de vergonha, que pode ser avaliado a partir de, pelo menos, três perspectivas: a perspectiva moral, relacionando-o às normas fixadas pelo meio no qual se faz parte; a existencial, ligada à ameaça à estima de si mesmo, com efeitos diretos na identidade do indivíduo em que o mais importante é não ser estigmatizado e, por consequência, excluído; e a social, que possui efeitos de controle sobre esse indivíduo na medida em que marca sua identidade social e evita que um sujeito não siga as normas e os valores de uma sociedade. Com isso, pela perspectiva social, o sentimento de vergonha possibilita maior coesão entre as pessoas de um mesmo grupo ou de uma sociedade. Essas três perspectivas, pela ótica da Sociologia Clínica, não são excludentes entre si, mas complementares, pois evidenciam vários elementos em relação à vergonha e ao desejo de reconhecimento e aceitação de uma pessoa em um dado contexto social (GAULEJAC, 2006).
Diante do exposto, o profissional deve ter em mente que ao incluir a dimensão clínica da subjetividade em pesquisa ou intervenção, quer seja por meio da Psicossociologia ou da Sociologia Clínicas, tem-se a premissa de que o saber científico é importante, mas não o mais importante. Não é defendida a hierarquização dos saberes, com o saber científico como o mais adequado na compreensão de uma situação. Ao contrário, a postura clínica constrói-se pela escuta e pela valorização do saber relacionada à experimentação, considerando também o conhecimento que os atores sociais têm de seu mundo social. Com a valorização de diferentes pontos de vista, favorece-se um espaço de coconstrução do saber. Vale salientar que o saber científico não é recusado, mas busca evitar o uso da violência simbólica que pode ser instaurada entre os que sabem e os que não sabem. A compreensão dos fenômenos sociaisocorre com a análise que contém um movimento de ir e vir entre a experiência e a teoria, o experimentado e o reflexivo, o vivido e o conceitual (GAULEJAC & HANIQUE, 2012).
Nesse cenário (RHÉAUME, 2012), a abordagem clínica não valoriza a organização desigual entre os saberes, mas busca um encontro entre as experiências tanto do profissional e do sujeito ou do grupo com quem está em contato. Ferrarotti (1990b) complementa indicando que esse encontro, essa interação deve ocorrer em uma relação de igualdade que permite a ambos uma comunicação não somente coerente metodologicamente com os pressupostos utilizados, mas também humana.
É essencial em pesquisas ou intervenções que utilizem uma abordagem clínica, que o profissional assuma uma postura de igualdade em relação ao sujeito, considerando o saber do outro tão importante na compreensão do fenômeno em questão, quanto o saber científico. Essa postura não ignora que os diversos tipos de saberes possuem especificidades entre si. Rhéaume (2012) aponta que, em linhas gerais, existem três tipos de saberes no contexto da pesquisa e intervenção em práticas sociais: o acadêmico ou científico, o saber prático dos profissionais de intervenção, ou gestão, e o saber da experiência e de senso comum dos usuários e dos consumidores de bens e serviços, ou membros da população em geral. Além desses, existem os saberes estético e espiritual, entre outros. Contudo, na prática é difícil estabelecer uma relação igualitária tanto entre os saberes de um mesmo tipo - por exemplo, entre os diversos saberes acadêmicos acumulados por diferentes abordagens -, quanto entre as diferentes formas de saber, ou seja, entre os saberes científicos, práticos e de senso comum, entre outros.
Outro ponto fundamental é o que indica Legrand (1993), que mostra que a expressão de uma história de vida não corresponde à descrição objetiva do vivido, mas o ato de contar a própria história é uma construção ou uma reconstrução da vida e dessa história. Esse é um trabalho complexo, pois o sujeito, que é histórico, na medida em que produz a própria história, é produzido por ela concomitantemente. O sentido em relação ao que se viveu é sempre reconstruído pelo ato de contar a própria história, há sempre uma ressignificação nesse momento. No entanto, segundo Grell (1986), para que a narração de uma história, de uma trajetória de vida, ocorra plenamente, é importante que o narrador deseje contá-la.
Nesse contexto, tem-se como proposta a transformação do termo clínica, que tem em sua origem o sentido de estar próximo ao leito de uma pessoa doente para ajudá-la, uma vez que a palavra grega klinè significa leito. No caso da abordagem clínica apresentada neste texto, a noção de proximidade e de implicação em relação ao outro aplica-se no contexto social, por meio de intervenções ou pesquisas com pessoas ou grupos sociais. Ao possibilitar ao outro o acesso às suas experiências, ao seu vivido, há maior compreensão por ele do que se passou, maior conhecimento sobre esse vivido. Com isso, há maior possibilidade de ele se tornar mais ativo na construção da própria história futura, em um papel de ator social, fazendo escolhas de forma mais clara e consciente (RHÉAUME, 2012). Como acrescentou Sévigny (2001), a clínica em Ciências Humanas não se preocupa somente com determinado problema, mas também com a pessoa envolvida nessa questão.
Os métodos clínicos são construídos para permitir ao sujeito expressar sua história de vida, analisar conflitos vivenciados e criar respostas diante das contradições identificadas, as quais estão presentes nas trajetórias sociais, mas que, muitas vezes, se traduzem em conflitos psíquicos (LEGRAND, 1993). Assim, por meio da expressão da história de vida, pode-se acessar não só as diferentes posições sociais ocupadas pelo indivíduo ao longo de sua vida - como o desempregado, o toxicômano ou o usuário da política pública de assistência social,entre outros -, mas também indica a trajetória subjetiva desse indivíduo, ou seja, um trabalho interior de construção da própria identidade (BELLOT, 2000). Como exemplo, em uma pesquisa com crianças em situação de acolhimento institucional na França, por meio do método da História de Vida, Abels-Eber (2000) identificou que essas crianças se sentiam responsáveis pelo próprio acolhimento, mas, ao longo dos encontros, puderam apreender a dinâmica familiar e social que as conduziram para aquela situação. Esse trabalho possibilitou que saíssem do lugar de se culpabilizarem pelo afastamento em relação aos pais, restituindo a cada um a própria responsabilidade e permitindo que, ao não focar no passado, as crianças olhassem para o futuro de forma mais tranquila e com maiores possibilidades.
Ao utilizar o método da História de Vida, é importante que o profissional favoreça a empatia, a compreensão mútua, a coconstrução de hipóteses, a confrontação de saberes teóricos, práticos e experimentados. Deve-se favorecer a implicação e, ao mesmo tempo, o distanciamento do profissional. Dessa forma, é preciso propor suportes metodológicos que favoreçam essa exploração, construindo instrumentos de apoio e mediação necessários. É importante uma postura entre a proximidade e a distância, entre a atenção ao vivido e a análise das determinações sociais presentes, entre o sujeito como um agente de historicidade implicado em um processo de produção da sociedade e a análise das condições de seu assujeitamento (GAULEJAC, 2012).
HISTORICIDADE
Para a Psicossociologia Clínica, todo sujeito é um ser histórico na medida em que, por mais que seja programado por sua história de alguma forma, possua uma singularidade, uma capacidade de reescrevê-la. Nesse contexto, a historicidade está relacionada com a função que permite ao sujeito distanciar-se de sua história, tomar consciência de como os fatores sociais, culturais, de classe, econômicos e familiares atuaram e determinaram sua trajetória, muitas vezes levando-o a agir de determinada forma, modificar o sentido desses determinantes, reprogramando sua maneira de estar no mundo e agir de forma diferente no futuro. Para isso, ele precisa considerar a necessidade de criação de estratégias sociais condizentes com a evolução da sociedade ao qual faz (GAULEJAC, 2005).
Considerando a função da historicidade, pode-se compreender porque, mesmo em condições objetivas de existência semelhantes, duas pessoas podem compreender e significar suas histórias de forma diferente. E cada história possui e pode possuir vários significados ao longo do tempo, considerando que o futuro é indeterminado e o comportamento humano é relativamente imprevisível (GAULEJAC, 2005). A fim de compreender a relação que o indivíduo possui com sua história, é imprescindível que se analise o sistema social ao qual integra, o tempo em que se encontra e o espaço que ocupa, condicionando-o como ser histórico-social.
Em relação à historicidade vista de um ângulo coletivo, ela refere-se à ação que a sociedade exerce sobre ela mesma, pelo conhecimento e pela representação que possui sobre si. As sociedades possuem uma história e, ao produzir modelos culturais, permitem uma interpretação do futuro, em um movimento entre produção e reprodução, limites impostos por meio da cultura e dos modelos de conhecimento e as rupturas produzidas por desequilíbrios internos. Tem-se então a historicidade coletiva como um conjunto de processos, em que a sociedade produz sua própria história. Toma-se, por exemplo, um termo de Karl Marx do século XIX, o de classe social. Esse conceito indicava que havia uma tensão entre as classes sociais de uma sociedade, que se relacionam de formas antagônicas, em que a classe dirigente se tornava a classe dominante em contraposição às demais classes, na medida em que impunha seu modelo cultural e suas orientações para toda a sociedade, buscando atender a seus próprios interesses. As outras classes, dominadas, denominadas de proletariado, buscavam defender-se de várias maneiras contra os interesses da classe dominante.
Atualmente, essa dinâmica é denominada por Gaulejac (2005) de relações sociais de desigualdade. Não há uma consciência de classe entre as pessoas, mas os conflitos sociais persistem, confirmando que a desigualdade social está presente ainda hoje. O proletariado de antes refere-se aos "excluídos" de hoje, sendo aqueles que não são aceitos pela sociedade de forma geral por não alcançarem os padrões de produtividade e excelência esperado na atualidade. Assim, as relações de dominação de antes são percebidas hoje como relações de desigualdade, uma concepção mais subjetiva, mas que provoca vários conflitos sociais. E essa tensão presente nos conflitos sociais marca a história de cada indivíduo, de acordo com o lugar social que ocupa. Ferrarotti (1990a) pontua que a história de um contexto social é também a história do cotidiano de pessoas, de grupos desconhecidos pela grande história da humanidade, mas que compõem todo o processo histórico. Assim, cada narração biográfica, conforme apontou Ferrarotti (1990b), não trata somente de uma vida, mas das múltiplas interações que ocorreram entre indivíduos, instituições e grupos e que são contadas por intermédio dessa vida.
A questão central de um trabalho com História de Vida está na compreensão da relação da subjetividade dos indivíduos na construção de suas relações sociais e de seus papéis como atores sociais. Ou também de forma inversa, estuda os efeitos estruturantes das relações sociais sobre o desenvolvimento dos sujeitos em seus vínculos coletivos (RHÉAUME, 2007). Bellot (2000) complementa ao indicar que a narração biográfica permite uma leitura das estruturas coletivas que orientam relações sociais específicas, ao mesmo tempo em que oferece uma leitura da atuação do indivíduo nesse contexto.
Os diferentes grupos nos quais o indivíduo integra, seja a família, o grupo de pares, a escola ou um abrigo, por exemplo, participam da construção da subjetividade desse indivíduo, ao mesmo tempo em que participam da dimensão estrutural de um sistema social. O grupo media e reproduz o contexto social mais amplo por meio de suas relações de poder e de comunicação, de suas normas e sanções e de suas modalidades de relações afetivas. Isso vai ser filtrado e interiorizado pelos indivíduos que o compõem. Contudo, por mais que cada um tenha sua própria leitura do grupo ao qual faz parte, existe um compartilhamento de aspectos da leitura do grupo entre seus membros, ou seja, pontos em comum nessa leitura. Percebe-se, então, como indicou Ferrarotti (1990b), que os grupos, instituídos nas sociedades atuais, possuem atuação fundamental no psiquismo dos indivíduos.
Assim, a Psicossociologia Clínica, que possui como um de seus métodos a História de Vida, permite o acesso a elementos tanto da subjetividade dos sujeitos quanto do social, bem como do processo histórico que se faz presente. Vale ressaltar que essa história não se resume na junção de fatos vividos pelo indivíduo, mas apresenta quais significados as ações possuem para esse indivíduo e quais os sentimentos envolvidos. Ao contar a própria história, aparecem lembranças familiares, impressões e sentimentos em relação ao vivido, organizados pela percepção que o indivíduo possui ao contar sobre sua trajetória naquele momento. E também o trabalho com Histórias de Vida pode favorecer que o narrador empregue novo sentido ao passado, ao vivido (GRELL, 1986).
Então, considerando que a Psicossociologia Clínica aborda, em sua análise, o sofrimento humano interligado a contextos sociais, a intervenção ou a pesquisa por meio de Histórias de Vida é um campo privilegiado de compreensão de fenômenos sociais e subjetivos inter-relacionados. Como afirmou Le Grand (2005, p. 275): "no sentido mais genérico da expressão, a história de vida é uma pesquisa e uma produção de sentido relativo à vida de uma pessoa, vida considerada na sua duração".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto apresentou alguns elementos da Psicossociologia Clínica, com foco no método da História de Vida. Esse método pode ser utilizado tanto em pesquisa, quanto em intervenção, indicando tanto elementos subjetivos, quanto elementos da organização do contexto social em determinado momento histórico. Essa compreensão permite ao pesquisador e ao profissional da intervenção perceber a inter-relação entre o individual e o coletivo, saindo de uma postura que pode tanto culpabilizar o indivíduo por suas escolhas, quanto não reconhecer a influência que os sujeitos podem exercem no coletivo e provocar mudanças importantes. E como indicou Rhéaume (2013), ao valorizar os saberes de senso comum e profissional, que são experiências do cotidiano e que muitas vezes são negligenciados na análise de um fenômeno social, juntando-se ao saber científico, amplia-se o campo de conhecimento dessa situação.
Como limite deste artigo, tem-se que não foram explorados técnicas e suportes metodológicos no trabalho com Histórias de Vida. Entretanto, ao mesmo tempo, para cada intervenção ou pesquisa, é importante que o profissional observe o contexto e os sujeitos envolvidos para, só assim, propor determinada técnica que possa favorecer com que o sujeito ou grupo narre sua História de Vida.
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Recebido: 06/12/2015
Aceito: 22/02/2016
Juliana Castro Benício de Carvalho: Psicóloga da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social do Distrito Federal. Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.
Quadra 205, lote 07, Bloco B, ap. 504. Águas Claras, CEP 71925-000. Brasília, DF.
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E-mail: castrojuli28@yahoo.com.br.
Liana Fortunato Costa: Psicóloga, Terapeuta Familiar, Psicodramatista. Doutora em Psicologia Clínica. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPSICC/UnB).
SQN 104, Bloco D, ap. 307, CEP 70733-040. Brasília, DF.
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