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Barbaroi
versión impresa ISSN 0104-6578
Barbaroi no.39 Santa Cruz do Sul dic. 2013
ARTIGOS
O Slow Food e a nova dimensão temporal da modernidade
Slow Food and the new temporal dimension of modernity
Slow Food y la nueva dimensión temporal de la modernidad
Daniel Coelho de Oliveira
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) - Minas Gerais - Brasil
RESUMO
O artigo objetiva explorar a relação entre consumo e a dimensão temporal. Entende-se que o Slow Food, movimento social de origem italiana, possui no tempo sua problematização central. Dessa forma, para entender a proximidade entre consumo e a dimensão temporal, a proposta do trabalho passa por uma tentativa de explorar as temáticas entre consumo e tempo a partir das proposições teóricas presentes nas obras A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber; A ética romântica e o espírito do consumismo moderno, de Colin Campbell; O mundo dos bens, de Mary Douglas e Baron Isherwood; e a reflexão de Anthony Giddens sobre a modernidade.
Palavras-Chave: Slow Food. Consumo. Modernidade.
ABSTRACT
This article aims to explore the relationship between consumption and the temporal dimension. It is understood that the Slow Food social movement of Italian descent in time has its central problematic. Thus, to understand the closeness between consumption and the temporal dimension, the proposed work involves an attempt to explore the themes of consumption and time from the theoretical propositions present in the work The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism by Max Weber, Ethics and the romantic spirit of modern consumerism Colin Campbell, World of Mary Douglas and Baron Isherwood goods and reflection Anthony Giddens on modernity.
Keywords: Slow Food. Consumption. Modernity.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo estudiar la relación entre el consumo y la dimensión temporal. Se entiende que la Food movimiento social Slow de ascendencia italiana en el tiempo tiene su problemática central. Por lo tanto, para entender la cercanía entre el consumo y la dimensión temporal, el trabajo propuesto consiste en un intento de explorar los temas de consumo y el tiempo de las proposiciones teóricas presentes en la obra La ética protestante y el espíritu del capitalismo de Max Weber, La ética y el espíritu romántico del consumismo moderno Colin Campbell, World of Mary Douglas y Baron Isherwood bienes y reflexión Anthony Giddens sobre la modernidad.
Palabras Clave: Slow Food. El Consumo. La Modernidad.
"Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo (...)"
Oração ao Tempo (Caetano Veloso)
Devagar ou rápido? Desfrutar o momento intensamente, ou aproveitar lentamente cada momento da experiência? Dilemas que podem estar relacionados às práticas dos consumidores contemporâneos. A partir desta questão, organizações1 de consumidores estabelecem suas bandeiras. Será abordado alguns aspectos do movimento denominado Slow Food.
O Slow Food parte do princípio de que a maneira como nos alimentamos tem profunda influência no mundo que nos rodeia. O movimento também enfatiza que a busca por qualidade da alimentação e o tempo do desfrutar do seu sabor é uma forma de tornar a vida cotidiana mais prazerosa.
Atualmente, a associação fundada por Carlo Petrini, em 1986, conta com mais de cem mil membros em 132 países. O Slow Food possui como princípio o direito ao prazer da alimentação, usando produtos artesanais de qualidade especial, produzidos de forma que respeite tanto o meio ambiente quanto as pessoas responsáveis pela produção, os produtores. Tendo esses princípios como balizadores, o movimento se coloca em oposição à tendência de padronização alimentar. Também defende a necessidade de que os consumidores sejam bem informados, possibilitando aos mesmos a oportunidade de se tornarem coprodutores. (SLOW FOOD, 2011).
Assim como outros movimentos sociais, o Slow Food busca demarcar seu posicionamento e diferenciar-se dos demais, sendo uma das estratégias utilizadas a demarcação fundacional através de uma manifesto expondo seus interesses. Nesse sentido, em 1989, foi lançado em um pequeno "manifesto" com pouco mais de 20 linhas que norteava os interesses e objetivos da recém-criada organização. Entende-se que o texto revela de forma clara e objetiva o posicionamento dos interesses do grupo. Um dos objetivos do trabalho é o de analisar o manifesto de forma geral, e utilizar partes específicas para exemplificar a posição defendida pelo mesmo.
Lançado por representantes de 15 países, observa-se uma forte crítica ao estilo de vida construído pela civilização ocidental, o manifesto propõe alternativas para diferentes estilos de vida. A proposta de mudança passa pela ressignificação da dimensão temporal. No curto manifesto, não menos do que 13 palavras rementem à noção de temporalidade, palavras como "lento", "slow", ou seus opostos "rapidez" e "fast" perpassam todo o texto. Algumas frases são emblemáticas e merecem ser citadas na íntegra.
"Somos escravizados pela rapidez e sucumbimos todos ao mesmo vírus insidioso: a Fast Life, que destrói os nossos hábitos, penetra na privacidade dos nossos lares e nos obriga a comer Fast Food."
"Que nos sejam garantidas doses apropriadas de prazer sensual e que o prazer lento e duradouro nos proteja do ritmo da multidão que confunde frenesi com eficiência."
Observa-se forte crítica ao ritmo de vida percebida pelos autores do manifesto na sociedade contemporânea, uma censura a mudanças de hábitos tradicionais. A negação do modo "fast" de viver e comer é apontada como uma possibilidade de resgate do prazer frente a um mundo percebido pelos autores como utilitarista.
"Em nome da produtividade, a Fast Life mudou nossa forma de ser e ameaça nosso meio ambiente. Portanto, o Slow Food é, neste momento, a única alternativa verdadeiramente progressiva."
"Slow Food é uma ideia que precisa de inúmeros parceiros qualificados que possam contribuir para tornar esse (lento) movimento , em um movimento internacional, tendo o pequeno caracol como seu símbolo."
A busca pela produtividade indiscriminada, segundo eles, está presente no atual modelo do capitalismo. São bases para a organização da nossa sociedade, são realizadas advertências aos impactos nefastos ao meio ambiente. A autointitulação como "alternativa progressista" procura converter novos adeptos à causa. De forma análoga ao "O Manifesto Comunista" de Karl Marx e Friedrich Engels, que, ao final, exorta os trabalhadores do mundo para se engajarem em uma causa nobre, o "manifesto" do Slow Food busca "inúmeros parceiros qualificados". A diferença é que não são todos convocados: somente os "qualificados" serão responsáveis por difundir a bandeira do caracol pelo mundo.
Feita a apresentação do Slow Food, nosso objetivo agora é explorar a relação entre consumo e a dimensão temporal. Entende-se desta forma que o Slow Food possui no tempo uma problematização central. Para relacionar estes dois temas, "consumo" e "tempo", utilizaremos um referencial teórico que não se limitará ao "campo" da sociologia do consumo.
A proposta do trabalho passa por uma tentativa de relacionar o temático consumo e tempo a partir das proposições teóricas presentes na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber; A ética romântica e o espírito do consumismo moderno, de Colin Campbell; O mundo dos bens, de Mary Douglas e Baron Isherwood; e a reflexão de Anthony Giddens sobre a modernidade. O trabalho será estruturado da seguinte forma: nas duas seções iniciais, apresentar-se-á, de maneira descritiva, como tempo e consumo aparecem nas respectivas obras. Nas considerações finais, serão realizadas convergências, aproximações e distanciamentos entre as abordagens, tendo em vista um melhor delineamento das posições defendidas pelos autores.
O tempo do espírito do capitalismo ao espírito do consumismo moderno
Logo no início de sua obra, Weber (2004) formula uma problematização de ordem estatística. Segundo ele, basta observar as estatísticas ocupacionais em alguns países europeus para constatar a notável frequência de um fenômeno, o caráter predominantemente protestante dos proprietários dos capitais e empresários, assim como das camadas superiores da mão de obra qualificada. A maior participação de protestantes em postos de trabalhos mais elevados nas grandes empresas capitalistas se deve, em parte, a razões históricas. Retomando o passado, percebe-se que a confissão religiosa não aparece como causa, mas, sim, como consequência de fenômenos econômicos.
Weber (2004) aponta a Reforma Protestante como importante fato histórico, não no sentido de eliminar a dominação, mas pela substituição de uma dominação extremamente cômoda da Igreja Católica, por outra incômoda, que penetrou e procurou regular toda a esfera da vida doméstica e pública dos fiéis. Na concepção de Giddens (1990), a novidade da obra de Weber não consiste em fazer uma relação entre a Reforma e o capitalismo moderno, uma vez que autores anteriores a Weber já haviam feito essa relação, como foi o caso de alguns escritos de Karl Marx e Friedrich Engels. Sua originalidade é constituída a partir do entendimento de que o protestantismo, longe de se desinteressar do controle das atividades cotidianas, exigia aos seus fiéis uma disciplina muito mais rígida do que o catolicismo, introjetando, assim, um elemento religioso em todos os aspectos da vida do crente.
Com um título que faz referência direta à obra de Max Weber sobre as origens do capitalismo moderno, Colin Campbell (2001) procura explicar o espírito do consumismo moderno, como Weber fez com o espírito do capitalismo. Ele busca entender a revolução do consumidor ocorrida entre as camadas médias da sociedade inglesa do século XVIII. A nova propensão ao consumo foi associada a outras significativas inovações socioculturais desse tempo, como o caso da popularidade do romance e o amor romântico.
A partir da Tese de Max Weber sobre a relação entre o protestantismo e o capitalismo, fica particularmente difícil explicar como um grupo protestante ascético que estimulava, por um lado, a operosidade dedicada a um chamamento e, por outro, um ascetismo abstinente, passou a considerar moralmente correto adquirir bens de luxo, alterando sua propensão para poupar pela propensão para consumir, incentivados por um desejo de prazer hedonista responsável pelo desenvolvimento do consumo moderno. Se, para Weber, determinadas doutrinas protestantes santificaram o trabalho e a acumulação conscienciosa e legal da riqueza, é possível ampliar essa análise para compreender como a moral tradicional também contribuiu para superar as oposições religiosas às novas práticas de busca por prazer através dos bens de consumo de luxo.
Campbell (2001) observa que, além da "ética da produção" originária do protestantismo, o século XVIII observou aparecimento do romantismo, que incentivou uma nova postura do consumidor moderno. Campbell vê coerência nas duas éticas aparentemente opostas; para ele, a burguesia abraçou a ética protestante e a ética do consumo. Dessa forma, observa-se que grande parte da tradição puritana foi transplantada para o romantismo: as famílias de classe média transmitiam, com sucesso, tanto os valores racionais e utilitários quanto aqueles românticos.
"A lógica cultural da modernidade não é meramente a da racionalidade, como se expressa nas atividades de cálculo e experimentação: é também a da paixão e a do sonhar criativo que nasce do anseio" (CAMPBELL, 2001, p.318).
É exatamente da tensão entre estas duas tradições: racionalidade e sonho criativo, que depende o dinamismo da sociedade ocidental. A fonte principal de sua inquieta energia não provém apenas da ciência e da tecnologia, tampouco da moda, da vanguarda e da boemia, mas da tensão entre o sonho e a realidade, o prazer e a utilidade.
O capitalista originário da ética protestante apresentava atitudes, aparentemente, irracionais que geraram uma conduta de vida racional. Para Weber (2004), o calvinismo defendia uma desumanidade patética, como foi o caso da doutrina da predestinação. Porém, o efeito foi uma mudança radical na condução da vida intramundana de seus membros. A santificação da vida no calvinismo assemelhava-se ao caráter de administração de empresa. O comportamento ascético tomava conta de toda a existência do indivíduo. A metódica da conduta de vida ética influenciada pelo calvinismo contrastava com a posição do catolicismo e do luteranismo.
"E com mais razão o catolicismo considerou o calvinismo, desde o início até os dias de hoje, como seu verdadeiro adversário (...). Mas a razão dessa repulsa comum aos católicos e luteranos se funda na peculiaridade ética do calvinismo. Já uma vista de olhos superficial nos ensina que aqui se produziu uma relação entre vida religiosa e ação terrena de espécie totalmente diversa das que produziram quer no catolicismo quer no luteranismo." (WEBER, 2004. p.78-79).
Como foi possível verificar, o principal mérito da análise de Weber consiste no fato de ela ter demonstrado que o instrumentalismo moral do espírito do capitalismo constituiu consequência involuntária de uma ética religiosa. Ou seja, que havia afinidade entre certas denominações protestantes e a ética econômica da atividade capitalista moderna. Foi demonstrado que a racionalização da vida econômica, que caracteriza o capitalismo moderno, se relaciona com compromissos de valores irracionais.
Na visão de Campbell (2001), é possível explicar a mudança da visão do consumo como algo moralmente inaceitável para algo virtuoso. A resposta deve ser encontrada numa revolução cultural nos valores e atitudes morais com relação à aquisição, levando o debate para fora da teoria econômica tradicional e colocando-o no contexto mais amplo das Ciências Sociais. Paralelamente à revolução do consumidor, houve uma série de fenômenos culturais que aparecem primeiro na Inglaterra do século XVIII e parecem relacionar-se com essa revolução. Portanto, o consumo é fator cultural e a nova propensão a consumir teve origem numa mudança de valores e atitudes.
As análises da Revolução Industrial tenderam a se concentrar mais nas mudanças das técnicas de produção, deixando de lado as análises das mudanças na natureza da procura, ou seja, a demanda do consumidor. Houve uma tendência a deixar o tema do consumo exclusivamente para a Economia e sua predominante tradição de pensamento utilitário. A compreensão da Revolução Industrial (transformação dramática das formas de abastecimento) pressupõe uma compreensão análoga sobre as forças que provocaram uma mudança dramática nos hábitos de procura do consumidor, a chamada "revolução do consumidor".
As especificidades do capitalismo ao longo dos tempos podem ser evidenciadas pela forma como o tempo é utilizado, com vista a conquistar ou atingir determinado objetivo. Weber (2004) utiliza as palavras de Benjamin Franklin para definir o que seria o primeiro espírito do capitalismo. Nele, o tempo aparece como uma variável chave.
"Lembra-te tempo é dinheiro; aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins ao dia e vagabundeia metade do dia, ou fica deitado em seu quarto, não deve, mesmo que gaste apenas seis pence para se divertir, contabilizar só essa despesa; na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais." (WEBER, 2004, p.42-43).
Observa-se que, no fundo, as advertências morais são de cunho utilitário, virtudes que de forma despretensiosa, ou não intencional, formaram a base do capitalismo ocidental. No capitalismo atual, o tempo também é um bem raro. O empreendedor eficiente é aquele capaz de aperfeiçoar o uso deste recurso escasso, principalmente escolhendo com discernimento as relações que devem ser mantidas, evitando conectar-se a pessoas próximas, ou àquelas que propiciam somente prazer de ordem afetiva ou lúdica. (WEBER, 2004).
As palavras de Benjamin Franklin expressam que tempo é algo valioso; horas desperdiçadas são horas perdidas de trabalho. O crente ascético estava liberto dos entraves tradicionais que condenava o enriquecimento. O acúmulo de bens materiais como fruto do trabalho passou a ser considerado algo bem-visto por Deus. A única advertência era sobre a má utilização da riqueza em uma vida ociosa e de prazeres. A preguiça, a perda de tempo e o consumo supérfluo são os pecados por excelências. Em outras palavras, para um calvinista desejar ser pobre é a mesma coisa que desejar ser doente, sua prática ascética estava ancorada na produção de riqueza privada.
As alterações no uso do tempo para Campbell (2001) podem ser observadas na "revolução do lazer". Despesas em atividades de lazer, vistas antes como supérfluas, passam a ser entendidas como recreação saudável. Percebe-se o desenvolvimento do romance moderno e o aparecimento de um público leitor, particularmente feminino. Por conseqüência, há uma expansão das horas dedicadas à leitura de romances. Há também a ascensão do amor romântico. No século XVIII, evidenciaram-se as atitudes relacionadas a este tipo de amor, tornando-o moda e motivo para o casamento. Tais transformações não ocorreram sem oposição moral. Por outro lado, os novos valores tratavam de impulsionar e justificar os benefícios do luxo e do consumo, sendo o mais importante deles o incentivo à produção e à prosperidade.
A análise realizada por Weber (2004) é centrada na ação social do capitalista, ou seja, em sua conduta dotada de sentido racional. O ethos da conduta do mesmo influenciou de forma decisiva a estruturar organizações do capitalismo nascente. O controle do tempo, a vigilância, a disciplina na realização de todas as funções, a separação entre o tempo da fábrica e o tempo de lazer - entendendo-se o lazer como período de descanso funcional para uma maior produtividade no ambiente de trabalho. De acordo com essas características, as organizações do primeiro espírito capitalista em Weber (2004) se aproximam da "sociedade disciplinar" de Focault (1996), constituída por grandes meios de confinamento e que possui como características principais a distribuição de indivíduos em espaços individualizados, hierarquizados e classificatórios. Em síntese, busca estabelecer uma sujeição do indivíduo ao tempo com a pretensão de tornar seu trabalho o mais eficaz possível.
Outra importante forma de "ação" está relacionada ao consumo de bens e serviços. Para tratar da temática é importante levantar um questionamento inicial. Por que os indivíduos estão sempre necessitando de bens e serviços? Segundo Campbell (2001), as teorias convencionais não enfatizam essa questão: limitam-se a tratá-la como subproduto da exposição dos indivíduos aos meios de comunicação ou como desejos emulativos. Em certo sentido, pode-se dizer que o autor busca entender a natureza do consumismo moderno. Mas de que forma se originam novas necessidades de consumo e sua insaciabilidade? Para Campbell (2001, p.130):
"A atividade fundamental do consumo, portanto, não é a verdadeira seleção, a compra ou o uso dos produtos, mas a procura do prazer imaginativo a que a imagem do produto se empresta (...). O consumidor moderno desejará um romance em vez de um produto habitual porque isso o habilita a acreditar que sua aquisição, e seu uso, podem proporcionar experiências que ele, até então, não encontrou na realidade."
Pode-se dizer que a interação dinâmica entre ilusão e realidade é a chave para compreender o consumo moderno. Sendo assim, o espírito do consumismo moderno não é materialista, mas imaginativo. O consumidor se depara com um dilema temporal. Ocorreu a substituição da prática de adiar a satisfação, ou seja, de deixar os prazeres para o amanhã, para a busca pela satisfação direta e imediata, em muito facilitada pelos mecanismos de barateamento da produção e concessão de crédito. O desejo de aquisição se aproxima da possibilidade de alcançar o bem. Os desejos não satisfeitos agora podem no máximo adiar temporariamente sua satisfação.
De acordo com a obra de Weber (2004), o que se proibia, ao protestante do ponto de vista ético, não era a posse da propriedade, ou a riqueza em si. O que não se admitia era que o sujeito se apegasse ao prazer e ao ócio resultante da posse da riqueza. Dessa forma, o pecado mais condenável era a perda de tempo. Uma hora de trabalho perdida significava distanciamento da glória de Deus. Sob outro ângulo, Campbell (2001) acredita que não existe desvinculação entre a ética do trabalho e a do consumo. A ociosidade praticada por senhoras inglesas no século XVIII através da leitura de romances foi uma das bases da mudança cultural que provocou a revolução do consumo. Em suma, se, para Weber (2004), o espírito ascético do capitalista limitou a utilização da propriedade e o consumo de produtos de luxo, para Campbell (2001), a revolução no capitalismo não se opôs aos devaneios e paixões de uma burguesia cada vez mais ávida por novas experiências.
Após o debate sobre duas diferentes éticas relacionadas ao surgimento do capitalismo e ao processo de consumo, busca-se agora apresentar o consumo a partir da perspectiva de uma antropóloga e de um economista, que procuram desvencilhar velhos mitos sobre o consumo. Certamente, Mary Douglas e Baron Isherwood levantarão novas questões para elucidar o debate.
A temporalidade do mundo dos bens
Ninguém explica por que as pessoas querem bens. Segundo Douglas e Isherwood (2009), os economistas ignoram a questão, e os ambientalistas e moralistas apontam para a ânsia destrutiva da sociedade do consumo. O consumidor, longe de ser visto como alguém que realiza uma escolha soberana, seria o dono passivo de uma carteira de dinheiro, cujo conteúdo foi esvaziado por forças poderosas. A teoria higiênica ou materialista defende que nossas necessidades mais básicas e universais são as necessidades físicas. Para evitar uma abordagem grosseiramente veterinária, a maioria dos economistas acrescenta dois outros tipos de necessidades: as espirituais e as materiais.
Já a teoria utilitarista apenas supõe que o indivíduo esteja agindo racionalmente na medida em que suas escolhas são consistentes entre si e estáveis no curto prazo que é relevante. Nesse sentido, o "gosto" é tomado como dado, e o indivíduo reagiria à alta de preços, comprando menos, e à baixa, comprando mais. Também reage de maneira consistente à mudança na sua renda. "Na proporção em que ele obtém maior quantidade de um bem particular, seu desejo por unidades adicionais desse bem diminui." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009: p.56-7). Os antropólogos são críticos a essa posição, pois os indivíduos são vistos como isolados. Assim, como ninguém sabe por que as pessoas querem bens, do outro lado, não se sabe muito sobre as razões que levam as pessoas a não gastarem.
Pensando numa perspectiva temporal, a poupança pode ser considerada como investimento ou consumo adiado. A ideia de poupança não é universal. Nem todas as culturas valorizam quem gasta moderadamente. Cada cultura constrói sua realidade moral de maneira diferente e distribui aprovação ou desaprovação a virtudes e vícios opostos de acordo com as visões locais. Gastar apenas um pouco da renda pode, em certo lugar e época, ser considerado econômico e sábio; em outros, pode ser visto como avarento e mesquinho.
Redefinindo o consumo
Douglas e Isherwood (2009) procuraram construir uma teoria que explique o consumo em sociedades industriais ou mesmo nas distantes sociedades tribais, ou seja, o desafio é produzir uma definição antropológica de consumo com bom alcance explicativo. Os autores partem da suposição de que os bens carregam significados sociais, por isso a parte principal do seu uso concentra-se na capacidade de vê-los como comunicadores. Os bens são mais do que meios de subsistência, são de exibição competitiva.
"Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido (...). Esqueçamos a ideia de que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a ideia de que as mercadorias são boas para pensar." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009. p.108).
A cultura se constrói a partir de práticas tradicionais ao longo do tempo; os autores defendem que a cultura, como padrão possível de significados herdados do passado, ao mesmo tempo é um abrigo para as necessidades interpretativas do presente. "Os rituais são convenções que constituem definições públicas visíveis. Antes da iniciação, havia um menino, depois dela, um homem; antes do rito do casamento, havia duas pessoas livres, depois dele, duas reunidas em uma" (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009. p.112). Na visão dos autores, viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem memórias; por isso, tanto para sociedades tribais, quanto para nós, os rituais servem para conter a flutuação dos significados.
Todo universo social precisa de uma dimensão temporal demarcada. Um exemplo é o calendário, o qual pode ser dividido em períodos anuais, semestrais, mensais, etc. Nesse sentido, os autores demonstram que a passagem do tempo é carregada de significado. "Outro ano passou, um ano começou; vinte e cinco anos, um jubileu de prata, cem, duzentos anos, uma celebração de centenário ou bicentenário; há um tempo de viver e um tempo de morrer, um tempo de amar. Os bens do consumo são usados para marcar esses intervalos." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009. p.133). Argumenta-se também que os bens são portadores de significados, mas nenhum o é por si mesmo. O significado só é decifrado nas relações entre todos os bens.
A ideia de Douglas e Isherwood (2009) é focalizar os bens como projeto classificatório. Dessa forma, os bens são como marcadores, "... a ponta visível do iceberg que é o processo social como um todo. Os bens são usados para marcar, no sentido de categorias de classificação." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p.123). Os autores entendem que pode haver marcação privada, mas a ideia é estudar seu uso público. É necessário tempo para fazer uma marcação pública dos bens. Existem reuniões para classificar eventos, encontros para manter julgamentos antigos ou alterá-los.
No processo de consumo, está subjacente a necessidade de compartilhar nomes. Seu compartilhamento é a recompensa de um longo investimento de tempo e atenção. "O consumo físico permite a prova, o teste ou a demonstração de que a experiência em questão é viável. Mas o argumento antropológico insiste em que de longe, a maior utilidade não está na prova, mas no compartilhamento dos nomes que foram apreendidos e classificados. Isso é cultura." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p.125). Portanto, observa-se que há um elevado custo de tempo para estabelecer os significados e compartilhá-los publicamente.
Os bens e seus nomes são parte de um sistema de informações. Os indivíduos precisam estar presentes nos serviços de marcação, nos rituais de consumo dos outros para poder pôr em circulação seus próprios juízos sobre a conformação das coisas utilizadas e para celebrar as várias ocasiões. Os bens são vistos como possibilidades de acesso à informação. Pensar os bens como possibilidade de acesso à informação permite dizer que há uma disputa relacionada às oportunidades de participar deste compartilhamento de informação. Em suma, o consumo é visto como mecanismo de poder, de inclusão e exclusão. Mas, por que os homens precisam de bens? Responder a este questionamento é um dos objetivos dos autores. "O homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e para entender o que se passa à sua volta." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p.149). No entanto, os bens não são usados somente com o objetivo de informação, há preocupação mais importante em controlá-la. O consumidor está o tempo todo interessado em estar próximo do centro de transmissão.
É chamada a atenção para a importância da variável tempo para o consumo. Douglas e Isherwood (2009) ressaltam que há uma ideia diferenciada do tempo, associada a diferentes tipos de atividade de consumo. "Ao discutir o tempo, então, temos de levar em conta o caráter autorrealizado das visões de curto e de longo prazo. A visão de curto prazo espera que uma cortina de incerteza impeça as decisões de longo prazo, mas o fato mesmo de que todos assumem uma visão de curto prazo cria aquela incerteza que justifica a preocupação." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p.268).
Apresentada a leitura de Douglas e Isherwood (2009) sobre o universo do consumo, serão analisados agora alguns aspectos da obra de Anthony Giddens. Sua contribuição se faz relevante devido ao fato de o autor analisar, de forma minuciosa, o período denominado pelo mesmo de alta modernidade.
Consumo e o Tempo da Modernidade
A era moderna é marcada pelo distanciamento do tempo-espaço. O que se convencionou chamar de globalização nada mais é do que esse processo de alongamento. Ocorre a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. (GIDDENS, 1991). Mas, como a teoria sobre a modernidade pode ajudar a entender a relação entre tempo e consumo?
Para alcançar uma explicação razoável, primeiramente, é preciso destacar que os modos de vida produzidos pela modernidade se diferem de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma forma sem precedentes. Giddens (1991) busca nas sociedades pré-modernas o contraste necessário para definir a relação entre tempo-espaço no mundo moderno. As culturas pré-modernas vinculavam o tempo ao espaço, o tempo era ligado às ocorrências naturais regulares. A principal ruptura acontece com a invenção do relógio mecânico no final do século XVIII. "O relógio expressava uma dimensão uniforme de tempo 'vazio' quantificado de uma maneira que permitisse a designação precisa de 'zonas' do dia." (GIDDENS, 1991. p.26). As refeições presentes em momentos demarcados do dia exemplificam bem a situação.
A separação entre tempo e espaço é crucial no dinamismo da modernidade porque é a condição principal para o processo de desencaixe. Um dos mecanismos de desencaixe das sociedades modernas são os sistemas peritos, mecanismos de excelência técnica, competência profissional, organizados por áreas profissionais (advogados, arquitetos, médicos, nutricionistas, etc.). Podem-se relacionar os sistemas peritos com a organização em cadeia do modo Fast Food de alimentação. As grandes corporações de Fast Food são organizadas a partir de complexos sistemas técnicos, orquestrados de forma precisa para alcançar o maior número de consumidores possível com rentabilidade compensadora. Os produtos semiprontos, de rápida preparação, para serem tão "práticos" são cercados por sofisticado sistema de produção, as próprias embalagens são exemplos desse sistema. Portanto, resta ao consumidor "confiar" para que tudo ocorra perfeitamente; acreditar na marca, ou na certificação do órgão responsável. É vedado a ele o acompanhamento face a face de todo o processo. "Os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe porque, em comum com as fichas simbólicas, eles removem as relações sociais das intermediações de contexto." (GIDDENS, 1991, p.36). Deve-se destacar que a confiança está relacionada com as transformações da relação no tempo e no espaço.
Trata-se da reflexidade da Modernidade, um transformar do tempo em um presente contínuo, porque há um constante repensar de todas as práticas. "A reflexidade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informações renovadas sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter (...)" (GIDDENS, 1991.p.45). Dessa forma, o que caracteriza o período moderno não é a adoção do novo por si só, mas a reflexidade indiscriminada.
A definição da ordem pós-tradicional passa por duas questões centrais. Responder: O que é tradição? E quais são as características genéricas de uma "sociedade pós-industrial"? Segundo Giddens (1991), a tradição está envolvida com o controle do tempo.
"Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente. Mas evidentemente, em certo sentido e em qualquer medida, a tradição também diz respeito ao futuro, pois as práticas estabelecidas são utilizadas como uma maneira de se organizar o tempo futuro." (GIDDENS, 1997, p.80).
A tradição, vista comumente como uma característica pré-moderna, continua presente no período contemporâneo. "A tradição, em suma, contribui de maneira básica para a segurança na continuidade do passado, presente e futuro, e vincula esta confiança a práticas sociais rotinizadas." (GIDDENS, 1991. p.107).
Giddens (1997) questiona o pressuposto Iluminista de que crescente informação sobre o mundo social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles, mas, o domínio sobre estes meios estaria longe de ser a chave para a felicidade humana. Em sua visão, o mundo da "alta modernidade" é mais aberto e contingente. Trata-se de um mundo em que a oportunidade e o perigo andam juntos. Levando essas questões para o universo do consumo alimentar, a teoria da gastroanomia ressalta que a sociedade contemporânea e as suas diferentes fontes de informação sobre comida, como por exemplo, a ciência e as ideologias alimentares, são na sua maior parte contraditórias. Segundo Barbosa (2007), isso levaria a um estado de gastroanomia, no interior do qual as pessoas viveriam a angústia de não saber o que comer e qual orientação seguir.
Segundo Giddens, a experiência do cotidiano reflete o papel da tradição em constante transformação. "Não apenas a comunidade local, mas as características íntimas da vida pessoal e do eu tornaram-se interligadas a relações de indefinida extensão do tempo e espaço." (GIDDENS, 1997. p.77).
A tradição em geral envolve um ritual. Por que razão? Giddens (1997) entende que a tradição é ativa e interpretativa, e o ritual faz parte das estruturas sociais que conferem integridade às tradições, um ritual é o meio de garantir a preservação. O ritual revigora a experiência cotidiana e refaz os laços que unem a comunidade, mas ele tem esfera e linguagem próprias e uma verdade em si, isto é, uma "verdade formular". A "verdade formular" na qual se funda o ritual necessita do intérprete, e este é o guardião da tradição. Ele se caracteriza pelo status, isto é, o papel que ocupa na ordem tradicional. "Os guardiões da tradição poderiam parecer equivalentes aos especialistas nas sociedades modernas." (GIDDENS, 1997. p.83).
O crescente número de adeptos do movimento "Slow Food" pode ser resultado da desconfiança em relação ao estilo de vida "moderno", e da crescente importância atribuída à revalorização do patrimônio rural, como ligação nostálgica a um passado e um pretenso regresso às raízes e à tradição. De acordo com Giddens (1991), a tradição tem sido solapada pela "reflexividade" da vida social moderna, que se coloca em oposição direta a ela. Porém, a tradição contribui de maneira básica para a segurança ontológica, na medida em que mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro, e vincula essa confiança às praticas sociais rotinizadas.
Tradição pode ser definida como meio de identidade - a identidade pressupõe significado e processo. A tradição, de certa forma, implica uma visão privilegiada do tempo. A sociedade tradicional possui como âncora uma confiança básica na continuidade das identidades, o que se transforma, assim, em um mecanismo orientador que não ocorre em sociedades onde as consequências da modernidade estão radicalizadas. Escolhas, na visão de Giddens (1997), têm a ver com colonização do futuro em relação ao passado. Um questionamento exemplifica tal afirmação: "quem é você e o que você quer?".
Nos contextos pós-tradicionais, não temos outra escolha senão decidir como ser e como agir, o que comer, e até os vícios são escolhas. Segundo Giddens (1997), também não podemos considerar a vida cotidiana como algo determinado só por escolhas livres. A vida cotidiana seria impossível se não estabelecêssemos rotinas. Barbosa (2007) aponta nos resultados de sua pesquisa o sentimento de tensão diária descrito pelos entrevistados que cumprem a obrigação diária de ter que decidir um cardápio para a família. Nesse caso, o maior desconforto não se relaciona à rotina e à obrigação de ter que preparar o alimento, mas, sim, de ter a obrigação de decidir.
Considerações finais
O Slow Food, além de pregar a mudança no hábito de comer, defende que o alimento deve ser pensado a partir de três importantes características: ele deve ser bom, limpo e justo. É defendida também a manutenção de hábitos tradicionais, isso quer dizer que há uma tentativa de manter ao longo do tempo uma diversidade de conhecimento expresso nessas práticas alimentares.
O Slow Food segue o conceito da ecogastronomia , conjugando o prazer e a alimentação com consciência e responsabilidade, resposta aos efeitos padronizantes do fast food; ao ritmo frenético da vida atual; ao desaparecimento das tradições culinárias regionais, na procedência e sabor dos alimentos e em como nossa escolha alimentar pode afetar o mundo (SLOWFOOD-BRASIL, 2011).
O trabalho destacou que a dimensão temporal do fenômeno do consumo também pode ser entendido a partir da sociologia de Max Weber, em sua obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". A abordagem weberiana leva a concluir que existe uma causalidade entre a "ética" intramundana protestante e o surgimento do capitalismo na Europa Ocidental e na América do Norte. No protestantismo ascético, não se condenava o lucro como no catolicismo e no luteranismo. Ao contrário, o ganho financeiro era louvável, uma demonstração de dever cumprido. O que torna pecado é o gasto ostentatório: o consumo desenfreado deve ser substituído por uma conduta ascética. Nessa perspectiva, o consumo deve ser limitado, em especial dos produtos supérfluos. Em síntese, a conduta austera do indivíduo protestante contribuiu para o desenvolvimento da ética capitalista ocidental, marcada pela seletividade do consumo de certos bens.
Observamos também que, para Campbell (2001), o surgimento da propensão para o consumo, nos primórdios da Revolução Industrial, deve ser buscado numa revolução cultural que surge, primeiro, na Inglaterra do século XVIII, tem por base uma série de mudanças nos valores e atitudes morais e éticas que estimularam uma substituição do ascetismo pelo hedonismo, minando as restrições puritanas ao desejo, à ambição material e ao sonho de opulência.
A proposta de Campbell (2002) não é a de negar a tese de Weber (2004), mas de estendê-la e demonstrar que tanto os aspectos ascéticos do capitalismo racionalizado, quanto o modo pietista e sentimental contribuíram de maneira significativa para o desenvolvimento da economia moderna. Sob essa ótica, acredita-se que o consumismo moderno é marcado pela emoção, tornando o consumo mais do que uma necessidade, uma busca pela própria gratificação pessoal, tanto racional, quanto emocional.
O consumo, para Campbell (2002), permite definir de forma clara a identidade dos grupos sociais. Duas teses estão presentes em sua obra. Uma de que o romantismo2 foi fundamental na formação da sociedade de consumo moderna. Ou seja, assim como a "ética puritana" promoveu o espírito do capitalismo, a "ética romântica" operou a transformação do espírito consumista. A segunda aponta que o consumo moderno é oriundo de uma mudança na concepção das fontes de prazer, na estrutura do hedonismo. O que o autor chama de hedonismo moderno nada mais é do que o deslocamento da preocupação primordial das sensações para as emoções.
Já Douglas e Isherwood (2009) buscam construir uma ponte entre a antropologia e a economia para explicar o fenômeno do consumo. Os autores defendem a ideia de que o consumo tem de ser colocado de volta para o processo social, deixando de ser visto apenas como resultado ou o objetivo do trabalho.
Os bens podem ser entendidos como um "sistema de informação": os objetos que um indivíduo específico possui e exibe não dizem respeito apenas ao status, mas, à personalidade, aos interesses e aos gostos de quem os possui. Douglas e Baron (2009) destacam que os bens de consumo não são meras mensagens; eles constituem o próprio sistema. "Os bens são neutros, seus usos são sociais, podem ser usados como cerca ou como pontes." (DOUGLAS, BARON, 2009. p. 36). Ou seja, os usos sociais que fazemos dos bens são determinantes para entender as especificidades das relações sociais.
Mais do que os usos físicos, os bens servem como marcadores, no sentido de categorias de classificação. O sistema de marcação pode ser de uso público. "Os bens são dotados de valor pela concordância dos outros consumidores. Eles se reúnem para classificar eventos, mantendo julgamentos antigos ou alterando-os" (DOUGLAS, BARON, 2009. p.123). Ao buscar bens, obtêm-se serviços de marcação, isto é, precisa-se estar presente aos rituais de consumo dos outros para poder pôr em circulação seus próprios juízos e valores sobre a adequação das coisas utilizadas para celebrar as diversas ocasiões.
Destaca-se que o consumo e sua relação com o tempo podem ser explicados a partir da lente analítica de Giddens (1991), ao afirmar que a modernidade é um fenômeno de dois gumes, que, por um lado, cria oportunidades para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante, e, por outro, há o lado sombrio. Análise semelhante pode ser feita em relação ao consumo, especificamente ao consumo alimentar. Se, por um lado, nunca se produziu tanto alimento, apesar das péssimas distribuições, por outro, há muita insegurança em relação à qualidade desse alimento.
Ao analisar trabalhos de diversas correntes disciplinares, corre-se algum risco de não agrupá-los de forma satisfatória. Por outro lado, podem auxiliar na obtenção de uma visão global do universo do consumo numa perspectiva temporal. Weber (2004) e Campbell (2001) nos demonstram que, ao observar o que os homens fazem com seu tempo, é possível descobrir muito sobre seu "ethos", suas atitudes voluntárias ou involuntárias. Douglas & Isherwood (2009) revisam um conjunto de autores da tradição econômica, sociológica e antropológica que abordam o universo do consumo. A frase mais conclusiva deste trabalho aparece logo no prefácio. "Os bens são neutros, seus usos são sociais: podem ser usados como cercas ou como pontes." (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009. p.36). Grande parte do nosso tempo é gasto construindo cercas ou pontes, compartilhando momentos de compra com um restrito clube de amigos, ou restringindo a participação de outros nos nossos rituais de consumo. Já Giddens (1991) nos autoriza a dizer que o consumo pode ser visto como uma "faca de dois gumes", ou seja, oportunidades e riscos são cada vez mais presentes em nossa vida cotidiana. A metáfora do carro de Jagrená3, que Giddens (1991) utiliza em seu livro, é perfeita para encerrar este texto. Como um aspecto da modernidade, o consumo pode ser entendido como uma máquina em movimento de enorme potência a qual podemos guiar até certo ponto, mas que, também, ameaça escapar de nosso controle e se espatifar. Cabe a cada um a decisão de entrar ou não no carro, de estar ou não disposto a gastar o precioso tempo em uma viagem estimulante, talvez repleta de perigos.
Referências
BARBOSA, Lívia. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, nº 2, p. 87-116, jul/dez, 2007. [ Links ]
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocoo, 2001. [ Links ]
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. [ Links ]
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. [ Links ]
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. [ Links ]
______. Capitalismo e Moderna Teoria Social. Lisboa: Editora Presença, 1990. [ Links ]
______. A vida em uma sociedade Pós-Tradicional. In: Beck, Ulrich et. al. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora UNESP, 1997. [ Links ]
REEBER, Michel. Religião: termos, conceitos e idéias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. [ Links ]
SLOW FOOD BRASIL. Manifesto Slow Food. Disponível em: <http://www.slowfoodbrasil.com/content/view/37/56/>. Acesso em: 02 jan. 2011. [ Links ]
WEBER, Max. A ética protestante e o "espírito" do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [ Links ]
Data de recebimento: 07/12/2012
Data de aceite: 14/12/2013
Sobre o autor:
Daniel Coelho de Oliveira é Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Mestre e doutorando em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ. Endereço eletrônico: daniel.coelhoo@yahoo.com.br.
1 Há inúmeros movimentos de consumidores que procuram ressignificar a relação do homem com o tempo e o espaço. Entre eles: o de economia solidária, comércio justo, indicação geográfica, etc.
2 O romantismo que Campbell (2002) estuda é o movimento cultural que surgiu na Inglaterra no final do século XVIII e início do século XIX.
3 O termo "Jagrená" vem do hindu Jagannãth, "Senhor do mundo", e é um título de Krishna; De acordo com a mitologia Indiana, um ídolo desta deidade era levado anualmente pelas ruas num grande carro, sob cujas rodas, conta-se, atiravam-se seus seguidores para serem esmagados. (GIDDENS, 1991).