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Nova Perspectiva Sistêmica

versión impresa ISSN 0104-7841versión On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.27 no.61 São Paulo mayo/ago. 2018

 

ECOS

 

 

Grupo Unidade e Grupo Diferença: o sim só pode ter sentido, se existe o não

 

 

Cristina RuffinoI

I Instituto ConversAções, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

 

 


 

 

Fui chamada a escrever o Ecos de um artigo da saudosa Marisa Japur: “Grupo unidade e grupo diferença: o sim só pode ter sentido, se existe o não”, publicado na edição 30 da Nova Perspectiva Sistêmica em abril de 2008. O convite me emocionou e honrou pela homenagem à autora, que foi minha grande amiga e companheira de trabalho nos últimos 12 anos. Em agosto completarão seis meses do seu falecimento repentino, sem chances de despedidas, o que torna cada oportunidade de ‘reencontro’ com as lembranças que mantenho dela e das conversas que permanecem vivas um momento especial de conexão.

Ecoar este artigo poderia tomar diversas direções, desde ampliar algo sobre grupos, quanto destacar a consistência, sempre brilhante, da autora na articulação com a perspectiva construcionista social. De todas as possibilidades, o meu recorte é muito pessoal, fundado no encontro do afeto e no amor.

Reler o artigo foi me remetendo a conversas pessoais com a autora em um momento muito especial para nossas vidas: estávamos saindo da vida acadêmica para construir o Instituto ConversAções como um espaço de trabalho que refletisse nossa ética, compromissos, valores e planos. Busco nas minhas lembranças e nas inúmeras anotações da época, que foi de intensa exploração e construção, fragmentos que compõem esta história. Pretendo, aqui, nesta conversa informal, recortar o que destaco do artigo da Marisa e suas contribuições e contar como as conversas pessoais que estávamos tendo na construção da nossa equipe / dupla se atrelavam à experiência da Marisa como equipe reflexiva do atendimento objeto de reflexão. Convido os leitores a ecoarem comigo pensando na relação com os grupos / equipes das quais participam. Para isso, farei primeiro um recorte do que nos foi apresentado pela Marisa e, em seguida, trarei parte da nossa história, a partir dos meus olhos, apontando o quanto o atendimento descrito a um só tempo nos trazia questões que alimentavam os diálogos na construção da nossa dupla ao mesmo tempo em que o que conversávamos nas nossas reuniões seguia com ela para os atendimentos que acompanhava da equipe.

Marisa já atuava com grupos na sua área de ensino e pesquisa na universidade há mais de duas décadas quando resolveu conhecer a prática desenvolvida e oferecida pelo Familiae-RP e se inscreveu como aluna no curso de Atendimento a Famílias e Redes Sociais. No decorrer deste curso, concomitante às aulas teóricas, os alunos participavam como equipe reflexiva de um atendimento à equipe. A articulação teórico-prática que apresenta no artigo foi inicialmente elaborada como trabalho de conclusão do curso desta formação.

No trabalho, Marisa realizou uma instigante articulação a partir de um atendimento realizado com uma equipe multiprofissional de saúde que trabalhava com pessoas portadoras de transtornos alimentares e seus familiares, por duas docentes do Familiae-RP, com a participação das alunas do referido curso como Equipe Reflexiva.

A equipe que procurou por atendimento já havia buscado ajuda e sido atendida em outros momentos neste mesmo instituto e trazia uma fala do quanto se beneficiara das reflexões ocorridas anteriormente, o que sustentava uma grande expectativa com o novo atendimento. O atendimento foi composto por dez encontros, ao longo de 12 meses, constituindo a parte prática do curso, sendo que as alunas assistiam aos atendimentos e atuavam como equipe reflexiva. As alunas tiveram como consigna para o trabalho de conclusão de curso: realizar uma articulação teórico-prática destacando do atendimento “o que ele tem de significativo para você? Como você o articula teoricamente?”. Como Marisa mesmo disse no artigo, essa consigna possibilitava uma posição dialógica do autor com o seu objeto de reflexão. E nesta dialogia, o destaque feito por ela, dentre todas as possibilidades, foi para a questão do que estava sendo denominado de grupo / equipe e o que significar ‘grupo’ daquela forma estava implicando nos entendimentos diários. Construiu seu argumento destacando de cada encontro os temas trazidos pelos participantes por meio da seleção de enunciados que, segundo o seu entendimento, ajudavam a construir o que estava sendo descrito como problema pela equipe.

A adesão ao atendimento não foi feita por todos os membros da equipe. Dentre os temas trazidos pela equipe do referido atendimento, Marisa destacou as descrições da ‘equipe como grupo’ e o que denominou de ‘descrições de si como participantes de grupo’. Identificou que os participantes compartilham da ideia hegemônica de grupo como unidade e que este entendimento ajudava a construir nos participantes uma sensação de falta, incompletude e cisão frente a não presença de todos. Ou seja, a definição de grupo que compartilhavam contribuía na construção do que definiam e viviam como problema.

Como membro da equipe reflexiva, Marisa pontuou isto para a equipe no quinto encontro, com a fala: “que efeitos têm gerado pra vocês a crença de que é bom / útil / necessário / preciso que todos da equipe venham ao atendimento?”. A equipe pareceu suplementar esta fala e as conversas que se seguiram trouxeram novas possibilidades. A partir daí os participantes deixaram de referir a não adesão dos demais como cisão e passaram a falar das diferenças dentro do grupo como uma realidade possível, buscaram olhar para as necessidades de cada participante e incluíram conversas sobre distinções e limites.

Assim, Marisa apontou no artigo os efeitos que a descrição de grupo como unidade gerou para aquela equipe na medida em que implicava determinadas ações e naturalizava expectativas de uniformidade que, na medida em que não se efetivavam, criavam a ideia de insatisfação e desânimo. Refletir sobre a descrição que traziam e suas consequências abriu possibilidades, permitindo que a diferença dentro da equipe fosse qualificada de forma positiva. Coerente com o discurso construcionista social, no artigo não traz a definição do que grupo / equipe deve ser ou qual seria a melhor descrição, mas explora com maestria os efeitos que tiveram na coordenação de ação daquela equipe os sentidos de grupo que compartilhavam e as consequentes implicações que aquele sentido teve na construção dos entendimentos cotidianos de suas ações e no que construiu como ‘problemas da equipe’.

Reler este artigo foi um grande presente, tanto pela oportunidade de retomar a discussão conceitual quanto pela imersão que conduziu na minha / nossa história. O atendimento em questão aconteceu no período em que minha relação com a Marisa tomou o propósito de construirmo-nos como sócias para atuar com equipes e famílias em mediação de conflitos. Apesar de sermos, na época, colegas no departamento de psicologia na Universidade de São Paulo, foi no Familiae-RP que nos identificamos e estreitamos os vínculos. Fizemos juntas o curso de formação como mediadoras no Familiae-RP e a proximidade no curso, os estudos conjuntos, as discussões que se seguiam aos atendimentos possibilitaram a identificação mútua que nos uniu. Foi aí que começamos a construir o afeto e a confiança, resultando no convite que Marisa me fez de montarmos uma empresa que oferecesse trabalhos de mediação e facilitação de diálogos para famílias e equipes.

Na medida em que a ideia da empresa se tornou uma possibilidade e projeto comum, começamos a desenhar o que viria a ser o nosso instituto, que foi sendo denominado, depois de muitos ensaios e tentativas diversas, de ConversAções. Na época não havia qualquer ideia de oferecermos formação, já que o Familiae de Ribeirão Preto, ao qual ambas estávamos ligadas, oferecia-a de forma primorosa e com uma equipe da qual adorávamos participar, contribuir e, sobretudo, aprender. Para construir a nossa dupla / equipe, nos propusemos partir de um olhar minucioso das nossas próprias experiências e histórias enquanto participantes de grupos e equipes. Exercitando uma metaposição a partir da qual observávamos nossa própria construção como dupla, fomos definindo tópicos que entendíamos pertinentes partilhar e refletir: o que da vida profissional gostaríamos de conhecer uma da outra; nossas experiências como grupo / equipe e a forma como estas experiências haviam nos marcado e a que nos convidavam; que características de cada uma parecia fértil em produzir boas conversas e quais precisaríamos cuidar frente ao que estávamos conhecendo uma da outra e de quais as formas de cuidar.

Assim, partíamos das nossas experiências como participantes de equipes e instituições, descrevendo-as, identificando as características que nos ajudaram a dar o melhor de nós e aquelas que nos limitavam. Acreditávamos que identificando e nomeando nas nossas histórias as experiências poderíamos, de forma corresponsável, escolher o que desejávamos preservar e atualizar na nova dupla / equipe que se formava. Ambas tinham desejo de construírem relações mais satisfatórias e favoráveis do que as já vividas, onde ambas pudessem trazer partes mais desejáveis de si mesmas. Na medida em que caminhamos, lembro-me da Marisa repetir diversas vezes sua satisfação por sentir-se pertencendo e compondo nossa dupla “sem ter que encolher para caber”.

Nossos encontros foram concomitantes ao período do atendimento referido no artigo. Nos nossos encontros para definição e construção da nossa equipe, Marisa trazia recortes do atendimento como disparadores e contava que carregava com ela as conversas que tínhamos nas vésperas das aulas para os atendimentos. Os recortes que trazia nos davam oportunidade de revisar nossas próprias concepções de equipe e nossas experiências vividas nas diferentes instituições das quais havíamos feito parte, inclusive, e sobretudo, nas que estávamos imersas. Conversar sobre o atendimento da equipe era um disparador para conversar sobre nós mesmas. Observar a equipe, a forma como se constituiu e se transformava era também observar nosso movimento de construção da nossa dupla e dos nossos propósitos. Identificamos, através deles, a necessidade de distinguir e nomear nossas inúmeras diferenças, ao mesmo tempo em que nos convencíamos da necessidade de preservá-las. O desafio passou a ser compartilhar e cooperar mantendo nossas singularidades e diferenças.

Na época, já tínhamos identificado uma característica comum e muitas diferenças. O que era comum era a facilidade de criarmos métodos e procedimentos, ações que as pessoas descreviam como ‘organização’. Eu atribuía esta ‘facilidade’ da Marisa à sua habilidade analítica, que ela empregava com impecável destreza; ela, por sua vez, atribuía a minha ‘facilidade’ pela formação e experiência como pedagoga e dizia que isto me possibilitava olhar para processos, desmembrando e reconstituindo conversas e ações - descrições possíveis que iam nos constituindo. Além de algo em comum, havia inúmeras diferenças. Vínhamos de formações, histórias de carreiras e experiências de vida diversas, aspectos que juntos nos constituíram com modos singulares de estar no mundo. Marisa era um fenômeno na articulação teórica e domínio dos conceitos, eu totalmente da prática. Eu costumava dizer: “Nunca vi alguém com tanto domínio e coerência teórica”; ela, por sua vez, dizia em diferentes contextos: “Não conheço pessoa mais generosa e com atitudes mais coerentes que a Cris”. Marisa absolutamente objetiva e determinada, eu toda amorosa e acolhedora. Os ‘sins’ dela traziam muito claro os ‘nãos’; os meus ‘nãos’ eram povoados por possíveis ‘sins’.

Nunca desejamos perder a singularidade de cada uma, mas fomos nos ampliando, misturando e combinando. Permaneceram diferenças e com elas fomos conseguindo dançar de uma forma natural. Sinto que fomos uma unidade na diferença.

 

I Pedagoga, doutora em Psicologia, terapeuta familiar e de casal, mediadora de conflitos. Sócia-Fundadora do Instituto ConversAções. E-mail: cristina@conversacoes.com.br

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