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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641Xversión On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dic. 2007

 

DIÁLOGO

 

Nada é insignificante, nada é desprezível: comentário à entrevista de Paulo Nogueira-Neto

 

Nada es insignifi cante, nada es despreciable: comentario a la entrevista de Paulo Nogueira-Neto

 

Nothing is insignificant, nothing is worthless: comment to Paulo Nogueira-Neto’s interview

 

 

Claudio Rossi*

Sociedade Brasileira de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A entrevista de Paulo Nogueira-Neto é estimulante, mas nos inquieta. Provocou muitas reflexões a respeito do nosso trabalho, e encontramos diversos aspectos em comum com o dele. Identificamo-nos com suas preocupações e com sua ação – ele no macrocosmo, nós no micro –, mas poderíamos, talvez, fazer um pouco mais? Poderíamos multiplicar nossa ação e atingir mais pessoas? De que maneira isso poderia ser feito?

Palavras-chave: Ecologia; Educação; Técnica; Política; Atenção Flutuante; Neutralidade; Integração; Macrocosmos; Microcosmos.


RESUMEN

La entrevista de Paulo Nogueira Neto es estimulante, pero inquietante. Nos produjo reflexiones a respecto de nuestro trabajo, y encontramos muchos aspectos en común con el de él. Nos identificamos con las preocupaciones y con la acción de Paulo – él en el macrocosmo y nosotros en el micro –, pero será que podríamos hacer un poco más? Podríamos multiplicar nuestra acción y alcanzar a más personas? De que manera lo podríamos hacer?

Palabras clave: Ecología; Educación; Técnica; Atención fluctuante; Neutralidad; Integración; Macrocosmo; Microcosmo.


ABSTRACT

Paulo Nogueira Neto’s interview is stimulating but disquieting. It caused us to reflect on our work and find that it has many aspects in common with his. We identify with Paulo’s concerns and with his action; he is in the macrocosm and we are in the microcosm, but perhaps we could do a little more. What if we could multiply our action and reach more people? How could we do that?

Keywords: Ecology; Education; Technique; Politics; Unsteady attention; Neutrality; Integration; Macrocosm; Microcosm.


 

 

Conheci Paulo Nogueira-Neto há quarenta anos. Era professor competente, discreto, de poucas palavras. Convivia harmoniosamente com alunos e professores. Numa época de atitudes e opiniões inflamadas, ele era cuidadoso e equilibrado em suas manifestações. Era difícil saber o que pensava. Eu não era aluno dele, ia lá para buscar minha namorada, mas o encontrei algumas vezes. Hoje com 85 anos, de fóssil ele não tem nada (apesar de suas palavras), a não ser que o classifiquemos como uma espécie de fóssil ativissimus. Continua a ser uma pessoa dinâmica e engajada. Essa capacidade de transitar entre opostos com discrição, sem se comprometer desnecessariamente, talvez tenha sido fundamental para suas vitórias políticas.

É inevitável cotejar a carreira desse homem que tem passado a vida lutando politicamente por uma causa tão fundamental à espécie humana, participando de governos, lidando publicamente com milhares de pessoas, com a de um psicanalista, como eu, que passa a maior parte do tempo encerrado no consultório, trabalhando em causas não menos importantes, porém com um número muito limitado de clientes. Ele cuidando da ecologia macro e nós, psicanalistas, da micro. Assim como na ecologia é indispensável perceber que o homem não está sozinho no universo e que depende do meio ambiente para sobreviver, na psicanálise é necessário reconhecer que o nosso eu não é o centro do mundo, nem do externo nem do interno. Nas duas, sabe-se que ignorar a “ecologia” pode precipitar a tragédia. Em ambas trata-se de zelar pelo conjunto. Numa o conjunto é representado pelos inúmeros seres que compõem a biodiversidade e as diferentes dimensões físicas e biológicas do planeta; na outra, é formado pelas diferentes dimensões anímicas presentes num corpo, que por sua vez está imerso no meio físico e cultural.

Integração e máxima consciência possível do todo são as regras fundamentais das duas ciências. Nada pode ser considerado mais importante do que o interesse de todos. Nada é insignificante, nada é desprezível. A destruição de um ser aparentemente desnecessário ou mesmo pernicioso pode gerar um grande desequilíbrio ambiental, para prejuízo de todos. Isso é verdadeiro na ecologia e na psicanálise. A consideração por todos os seres na ecologia é equivalente à atenção eqüiflutuante da psicanálise. Freud descobriu a importância da “democracia” e da equanimidade no mundo interno, bem antes que a consciência ecológica desse os primeiros passos no planeta.

É interessante notar que, em 1934, pelas palavras de Paulo Nogueira-Neto, bem depois da revolução pós-“copernicana” e pós-“darwiniana” da psicanálise – demonstrando que o eu não era o poderoso controlador da personalidade que ele julgava ser –, ainda não existiam os conceitos de “meio ambiente” e “biodiversidade”. Foi necessário que a destruição da natureza chegasse ao ponto a que chegou para que o homem percebesse que havia “ambiente” e “biodiversidade” com a dignidade e o significado que esses conceitos têm no contexto das questões ecológicas. Somos levados a pensar que, de fato, é muito difícil para os homens abrirem mão da ilusão de que o universo está aí para satisfazer todos os seus desejos, sem limites de qualquer espécie. É necessário que a natureza dê sinais de estar “morrendo” para que as pessoas acreditem que ela é esgotável.

Na verdade, é mais fácil elas acreditarem do que conseguirem mudar de comportamento. Muito parecido com o nosso trabalho, no qual o insight é apenas o primeiro passo. Mais fácil teria sido a tarefa de Paulo se seus interlocutores políticos, empresariais, públicos e privados tivessem passado por uma boa e eficiente análise. Sem uma considerável dose de negação e de splitting, não é possível ignorar o meio ambiente e pôr em primeiro plano metas comerciais. Para serrar a base do galho no qual se está sentado, só acreditando que se é flutuante ou imortal. Mas psicanálise ainda não é feita em massa – e, como bom político, Paulo teve de exercer a ciência do possível. Com perseverança e tenacidade, foi conseguindo pequenos avanços. Que, no entanto, fizeram a grande diferença.

Se pensamos nos anos de trabalho necessários para obter pequenas diferenças na mente dos nossos pacientes (dos que desejam mudar), é de fato surpreendente o que um político hábil é capaz de conseguir. Paulo diz não ser político, mas, se podemos facilmente concordar que não é um político profissional, como chamaríamos sua hábil e criativa prática se não como Política com p maiúsculo? Interessante notar, também, o senso de oportunidade que muitas vezes predominou sobre a necessidade de obter informações que demandariam longos e precisos estudos. É fácil perceber que muita terra preservada teria sido perdida se Paulo e seus correligionários não tivessem agido com agilidade e muita esperteza. Evitar a palavra “floresta” foi importante para salvar muitas delas. Coisas que, contadas, parecem brincadeira foram realmente eficazes.

Neto de fazendeiro com sensibilidade ecológica, filho de pai democrata (exilado por se opor à ditadura de Getúlio), Paulo foi capaz de conviver com o governo militar e, graças a sua assessoria e habilidade de convencer, extrair dele boas decisões que se opunham às metas principais de homens poderosos, como o superministro Delfim Netto. Aliás, demonstrou que não se deve abrir mão das possibilidades de defender uma boa causa. O fato de um governo ser autoritário e ditatorial não significa que não se possam atingir bons objetivos se as pessoas forem tratadas sem preconceitos. Trabalhando como assessor do governo e da oposição ao mesmo tempo, Paulo conseguiu encaminhar importantes projetos. Isso teria sido impossível se não tivesse evitado se comprometer com palavras de ordem, com atitudes político-partidárias, com oposição frontal à ditadura. Seu compromisso era com a salvação do meio ambiente. Jamais se desviou dessa meta. Aproveitava cada oportunidade para discretamente exercer influência.

Aqui, são possíveis outras analogias com o trabalho psicanalítico. Se fizermos uma transposição dessas histórias contadas por Paulo para o mundo interno e para a relação analítica, poderíamos dizer que ele foi neutro, tal como nós precisamos ser diante das diferentes forças que se confrontam dentro de nossos pacientes. Diante dos conflitos, não podemos tomar partido de um lado ou de outro. Precisamos, com habilidade e paciência, levar em consideração todas as oposições e esperar que o bom senso predomine, para o bem do conjunto. Muitas vezes precisamos desmistificar palavras e conceitos (assim como Paulo fez com a palavra “floresta”) para que o diálogo interno se restabeleça e se evite um impasse.

Nosso trabalho tem uma parte mais técnica, na obtenção de informações, e outra mais política, na perlaboração. Dizem as más línguas que uma análise precisaria durar cinco anos, pois seis meses seriam necessários para a pessoa se conhecer e quatro anos e meio para ela se conformar com isso. Precisamos ser muito hábeis para facilitar a emergência dos conhecimentos e, depois, para ajudar o sujeito a se conformar com o que acabou de saber. Muitas vezes damos uma pequena e tímida contribuição, e o “congresso interno” do paciente nos surpreende tomando atitudes muito mais radicais e bem elaboradas do que havíamos imaginado. Devagar e sempre, trabalhamos dando pequenos toques, aproveitando “notícias de jornal”, nos fazendo passar, na transferência, por entidades mais importantes do que somos (saborosa é a história das organizações fantasmas que o jovem Paulo e seus amigos inventaram para pressionar os políticos), tudo isso com uma persistência que precisa ser incansável.

Com certeza, no micro fazemos coisas parecidas com as que Paulo fez no macro. Trabalhamos para compor interesses, buscando uma solução que preserve as diferentes tendências em jogo. Cada vez que perdemos essa neutralidade, nós nos distanciamos do nosso objetivo e perdemos eficiência. Respeitar os ditadores internos com a mesma disposição com que zelamos pelos interesses dos dominados e lhes damos voz é vital para que haja desenvolvimento. Se precisamos fazer valer nossos valores e opiniões, perdemos nossa chance de ajudar. Se insistimos no equilíbrio da “ecologia”, ganhamos força.

Essa força, Paulo a mantém até o fim da entrevista. Cita dados impactantes, descreve situações alarmantes e em momento algum mostra impaciência, desesperança, intolerância. Apenas argumenta, apontando caminhos e soluções. Tem 85 anos e diz que “temos 30 anos pela frente” para lutar contra o aquecimento global. Inclui-se, sempre, na luta. Está conosco e com todos, sempre. Pensa em conjunto. É um indivíduo plenamente desenvolvido e autônomo, mas pensa sempre no conjunto da humanidade de que faz parte.

Essa é a outra fonte de sua força. Ele está sempre convidando a pensar de forma integrada. Sempre buscando uma saída viável. Sempre levando em conta o ponto de vista e a necessidade do outro. Regozija-se com Al Gore, com a sabedoria milenar dos índios, “que não são bobos” e preservam a floresta, com a preocupação ecológica, que vem aumentando cada vez mais. Conforme os dados que revela sobre as áreas indígenas, parece perfeitamente verossímil que fatores culturais sejam suficientemente significativos para inibir a destrutividade do homem em relação à natureza. Os índios, apesar da forte pressão que sofrem da cultura ocidental, têm valores que resistem e que os levam a preservar a mata.

A educação, portanto, é recurso fundamental para a solução do problema. Se as crianças forem ensinadas a pensar na “mãe natureza” como algo limitado e que precisa de respeito e cuidados, poderemos resolver o problema. Pelo que nos disse Paulo, a “mãe terra” já está com excesso de filhos, e, se não eliminarmos as áreas de miséria, principais focos de reprodução humana descontrolada, ultrapassaremos o limite no qual é possível sustentar a população com os recursos planetários. Educação e a busca de desenvolvimento sustentável, com a preservação de recursos para as próximas gerações, seriam as soluções para as questões que nos afligem. A tecnologia poderá dar uma importante contribuição com o desenvolvimento de energias limpas e que não consumam o planeta. O progresso político poderá levar os países mais fortes economicamente a investir mais na eliminação da miséria, e, assim, será possível um melhor controle demográfico.

Mas, quanto à educação, como ela deveria ser? Uma educação que nos ajudasse a não sermos bobos, como a dos índios. De que maneira educar as crianças a não serem ávidas, sem consideração, onipotentes, individualistas? Como desenvolver seres humanos que preferiram gastar recursos com a eliminação da pobreza a investir em guerras? Como ajudá-las a ter consideração e gratidão para com a “mãe natureza” e com as próprias mães? Na verdade, precisaríamos desenvolver uma forma de educar que fosse muito integradora e formadora. Não seria suficiente uma educação informativa. Seria interessante estudar como os índios, que “não são bobos”, criam e educam suas crianças.

Nesse âmbito a psicanálise seria de boa ajuda. Sabemos que muitas coisas se decidem nos primeiros anos de vida. O desenvolvimento simbólico, a capacidade de mentalização, a integração dos objetos se dão muito precocemente e dependem profundamente das primeiras experiências emocionais da criança. A educação precisa começar pela educação da mãe e pela assistência materno-infantil. Trabalhos psicanalíticos, e também de outras fontes, têm demonstrado que pequenos investimentos no período pré-natal e na primeira infância são altamente recompensados. A presença continente da mãe, que para isso precisa ser apoiada, é fundamental à formação de crianças integradas e mentalmente equilibradas. Esperar até a idade escolar é equivocado, e os investimentos necessários para a correção dos problemas que já terão sido gerados serão muito maiores.

A entrevista de Paulo Nogueira-Neto é estimulante, mas inquietante. Provocou muitas reflexões a respeito do nosso trabalho, e encontramos diversos aspectos em comum com o dele. Nós nos identificamos com as preocupações e com a ação de Paulo – ele no macrocosmo e nós no micro –, mas poderíamos, talvez, fazer um pouco mais? Poderíamos multiplicar nossa ação e atingir mais pessoas? De que maneira isso poderia ser feito? Como poderíamos transmitir com mais eficiência nossos conhecimentos e fazer com que modificassem decisões dos governos e de instâncias capazes de agir de forma mais significativa para o desenvolvimento da cultura? Talvez valha a pena pensarmos juntos sobre essas questões. Afinal, não somos muitos, mas não cabemos numa Kombi.

 

 

Endereço para correspondência
Claudio Rossi
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Diogo Moreira, 132/2105, 21º andar – Pinheiros
05423-010 – São Paulo SP – Brasil
Tel.: +55 11 3095-9120
E-mail: clrossi@terra.com.br

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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