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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641Xversión On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dic. 2007

 

INTERCÂMBIO

 

Compulsão à repetição e o princípio de prazer1

 

Compulsión a la repetición y el principio del placer

 

Repetition compulsion and the pleasure principle

 

 

André Green2

Société Psychanalytique de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor procura demonstrar que a compulsão à repetição pode ser também encontrada em material distante da atuação. Salienta, em exemplo clínico, a qualidade alucinatória do ato de relembrar como efeito da negação, e não da repressão. Complementa ainda os conceitos de ligação e desligamento, relativos ao princípio de prazer-desprazer, enfatizando a importância da perda de significado do conteúdo do objeto, com ou sem atuação.

Palavras-chave: Compulsão à repetição; Negação; Ligação; Desligamento; Perda de significado.


RESUMEN

O autor trata de demostrar que la compulsión a la repetición se puede también encontrar en el material lejos de la actuación. Destaca, en ejemplo clínico, la calidad alucinatoria del recordar como efecto de la negación, y no de la represión. Complementa aun los conceptos de ligación y desligamiento, relativos al principio del placer-desplacer, enfatizando la importancia de la pérdida de significado del contenido del objeto, con o sin actuación.

Palabras claves: Compulsión a la repetición; Negación; Ligación; Desligamiento; Pérdida del significado.


ABSTRACT

The author tries to demonstrate that compulsion to repetition can also be found in material that is distant from acting-out. He highlights, in a clinical example, the hallucinatory quality of remembrance as an effect of denial and not of repression. The concepts of bonding and separation, related to the principle of pleasure-displeasure, are complemented, emphasizing the importance of the loss of meaning of the object’s content, with or without an acting-out.

Keywords: Compulsion to repetition; Denial; Bonding; Separation; Loss of meaning.


 

 

Freud inicia seu artigo sobre “Recordar, repetir e elaborar” lembrando as mudanças da técnica psicanalítica desde as origens. Todas as técnicas anteriores a 1914 levaram em conta, direta ou indiretamente, a recordação. Freud fala até de um “impulso à recordação” (SE, v. 12, p. 151). Ele opõe esse impulso à “compulsão à repetição”, observada sempre que a recordação falha.

Um dos aspectos desse artigo transformador é que ele obriga Freud a abandonar sua confiança excessiva no recordar. Hoje compreendemos que, na verdade, uma recordação completa é impossível. Nenhum paciente pode realmente se lembrar de todas as incidências e conseqüências de um evento. Se a pessoa se lembra de um fato através da memória, ele geralmente está dissociado, para evitar a repetição de sua natureza traumática vinculada a outros aspectos seus, isto é, a qualidade alucinatória do relembrar, sua qualidade de estranheza [uncanny], sua ressonância no corpo etc. Retomarei esse ponto adiante, no material clínico. Como Freud descreve no caso de alguns pacientes:

[…] o paciente não se lembra de nada do que ele esqueceu e reprimiu, mas ele o atua. Ele o reproduz não como memória, mas como uma ação; ele repete, sem saber, é claro, que está repetindo (Freud, SE, v. 12, p. 150).

De modo geral, aceita-se que aqui a recordação toma a forma de ação. Desejo dissociar a compulsão à repetição de sua expressão através da ação. Do meu ponto de vista, a compulsão à repetição pode ser encontrada em material que não é ação. A repetição não é prejudicial em si. O que é prejudicial é que o paciente parece ignorar totalmente as relações entre os fragmentos repetidos. Eles são postos lado a lado sem qualquer conexão. Em alguns pacientes, a compulsão para repetir pode ser precedida por uma paralisia da comunicação.

O paciente, que foi informado sobre a regra fundamental, faz de conta que não tem nada a dizer, apesar de ter uma história repleta de acontecimentos e de longos relatos de doenças: “Ele está silencioso e declara que nada lhe ocorre” (ibid., p. 150). Não acredito, como faz Freud, que isso possa ser tomado como mera repetição de uma atitude homossexual em relação ao analista, usada como resistência.

Chama minha atenção o fato de que o que Freud descreve aqui tenha sido encontrado também pela Escola Psicossomática de Paris em pacientes que sofrem de limitações no funcionamento mental. Parece que estamos frente à mesma situação: um defeito temporário do funcionamento psíquico. Se nada ocorre ao paciente, que pode apresentar uma mente vazia [blank mind], isso se dá obviamente para impedir qualquer associação e, assim, evitar a possibilidade de atribuir um significado ao que ocorre na sessão. Essa não é apenas uma conseqüência da repressão; é também uma expressão mais radical, um efeito da negação.

O é importante é o elo não reconhecido entre o ato e seu conteúdo, que também pode ser encontrado de outras maneiras. A especificidade da compulsão à repetição é o fato de se repetir de diferentes modos, mas sem nenhuma consciência de que se está repetindo um mesmo conteúdo similar. As diferentes formas de repetição parecem não se relacionar umas às outras. A falha de reconhecimento dos diferentes modos de repetir é responsável por sua recorrência continuada.

Em outras palavras, não há reconhecimento dos diferentes modos da repetição; o fato de todos eles lidarem com o mesmo conteúdo é negado. Entretanto, quando Freud retomar esse tópico uma segunda vez, em Além do princípio de prazer, em 1920 – seis anos depois –, ele examinará de que maneira essa compulsão se relaciona com o princípio de prazer:

Mas, como a compulsão à repetição – a manifestação do poder do reprimido – se relaciona com o princípio de prazer? É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão à repetição tem de causar desprazer para o ego, já que traz à luz atividades dos impulsos instintivos reprimidos. Este, entretanto, é desprazer de um tipo que nós já consideramos e não contradiz o princípio de prazer: desprazer para um sistema e, simultaneamente, satisfação para outro. Mas nós agora chegamos a um fato novo e muito digno de nota, ou seja, que a compulsão à repetição também traz de volta, do passado, experiências que não incluem a possibilidade de prazer e que nunca podem, mesmo num passado remoto, ter trazido satisfação, mesmo para impulsos instintivos que tenham, desde então, sido reprimidos (Freud, SE, v. 18, p. 20).

Assim, esse parece ser o fim da soberania do princípio de prazer; sob a pressão de uma compulsão, as situações indesejadas e as emoções dolorosas são repetidas. A hipótese de uma compulsão à repetição parece “mais primitiva, mais elementar, mais instintiva do que o princípio de prazer, que ela sobrepuja” (ibid., p. 23). Essa é a afirmação mais extrema de Freud sobre a compulsão à repetição.

Estamos definitivamente além do princípio de prazer? Podemos pensar que o que Freud expõe em 1920 é a sua opinião final, mas estaríamos errados. Na verdade, abandonar a soberania do princípio de prazer foi uma decisão muito perigosa, pois abrir caminho para as pulsões destrutivas reforçou a compulsão à repetição. Freud também acrescenta: “[…] a compulsão à repetição e a satisfação instintiva, que é imediatamente prazerosa, parecem convergir, aqui, para uma relação íntima” (ibid., p. 23). Encontramos aqui mais complementaridade do que antagonismo.

Retomando novamente o assunto em “O problema econômico do masoquismo”, de 1924, Freud considera os perigos do masoquismo. Em decorrência, amplia o poder do princípio de prazer: “Estamos tentados a chamar o princípio de prazer de vigia da nossa vida, ao invés de meramente da nossa vida mental” (SE, v. 19, p. 159). Pois, após a introdução de ambas as pulsões, a de morte e a destrutiva, não é apenas a vida mental que tem de ser protegida, mas, na verdade, toda a nossa vida.

Percebendo que errara em compreender o princípio de prazer em termos meramente quantitativos – isto é, reduzindo tensões –, Freud conclui que era necessário levar em conta “alguma característica dele que [se pudesse] descrever apenas como qualitativa” (ibid., p. 160) e atribui ao instinto de vida a tarefa de representar as demandas da libido: “A conclusão a ser tirada dessas considerações é que a descrição do princípio de prazer como o vigia de nossa vida não pode ser rejeitada” (ibid., p. 161).

Vemos então que, depois da onda de difusão do instinto de morte, num movimento posterior o poder do princípio de prazer-desprazer é restaurado. Embora sejamos confrontados com uma fusão dos instintos de vida e morte, estar vivo é um testemunho da preeminência da ação combinada das pulsões de vida e do princípio de prazer-desprazer. Terminando sua obra com o Esboço, Freud conclui:

O id obedece ao inexorável princípio de prazer. E não apenas o id. Parece que a atividade dos outros agentes psíquicos também é apenas capaz de modificar o princípio de prazer, mas não de anulá-lo; e permanece uma questão da mais alta importância teórica, e uma que ainda não foi respondida, quando e como seria possível, em algum momento, o princípio de prazer ser superado (Freud, SE, v. 23, p. 198).

Parece, aqui, que “inexorável” seria uma qualidade mais apropriada para qualificar a compulsão à repetição.

Como deveríamos encarar as contradições e mudanças de opinião de Freud? Sem dar uma resposta definitiva a essas questões, talvez alguns argumentos do capítulo final de Além do princípio de prazer (cap. 7) nos dêem uma indicação. Freud escreve:

Descobrimos que uma das funções mais primitivas e mais importantes do aparelho mental é ligar os impulsos instintivos que vêm de encontro a ele. […] A ligação é um ato preparatório que introduz a dominância do princípio de prazer (Freud, SE, v. 18, p. 62).

A ligação é vista como uma função preliminar que serve para mostrar o caminho para a eliminação final no prazer da descarga. Tal preliminar parece estar ausente na compulsão à repetição. Freud nos dá uma explicação esclarecedora sobre isso. No despertar da vida, há muitas falhas que impedem o princípio de prazer de funcionar nas formas primárias da vida mental. “Posteriormente, o domínio do princípio de prazer é muito mais assegurado” (ibid., p. 63). No início da vida mental a luta por prazer é muito mais intensa do que em épocas posteriores, porém mais restrita; tem de se submeter a freqüentes interrupções.

Quero especificar que minha compreensão de ligação é diferente da de Freud. Para ele, o processo primário é uma expressão de desligamento. Visto de uma perspectiva mais moderna, na qual as pulsões são consideradas menos elementares e a organização pulsional está presente desde o início, o conceito de ligação pulsional também está presente nesse estágio. Não precisamos relacionar a ligação apenas à passagem do processo primário para o processo secundário. A ligação é uma característica da organização pulsional mesmo antes de se tornar uma expressão dos processos primários. Portanto, é uma forma de atividade primitiva intensificada pela organização pulsional, antes mesmo da passagem do processo primário para o secundário. Em outras palavras, o desligamento está relacionado a mecanismos muito primitivos; é uma das expressões de falha que impedem o acesso ao princípio de prazer-desprazer.

Podemos identificar nessas falhas uma das razões pelas quais o surgimento da compulsão para repetir não estabelece relações entre os fragmentos repetidos, sua tendência à descarga e sua expressão por conteúdos tanto desprazerosos como prazerosos. Descarga não significa atuação, mas livrar-se do significado do conteúdo, com ou sem atuação.

Como a ligação trabalha em conjunção com o desligamento, as falhas de ligação em afirmar o domínio do princípio de prazer podem ser atribuídas a um desenvolvimento excessivo dos processos de desligamento. Isso acontece sempre que há uma recusa das respostas do objeto, como forma de protestar contra sua natureza insatisfatória. Nunca nenhum sentido geral é revelado para formar um grupo coerente de idéias. O desligamento torna qualquer grupo de idéias descoordenado e sem sentido. E é quando esta está no auge que o paciente se torna silencioso. Nada lhe ocorre — e, mesmo que ocorra, ele não será capaz de expressá-lo.

Assim, a ação ou a atuação não é o único meio pelo qual a compulsão à repetição se expressa. A perda de significado é uma conseqüência de as experiências serem desligadas.

 

Exemplo clínico

A paciente, uma mulher em torno dos cinqüenta anos, é uma psiquiatra que trabalha numa instituição para adolescentes que sofrem de desordens de caráter. Eu a vejo há mais de dezoito anos numa relação face a face, três vezes por semana. Ela havia feito várias tentativas de suicídio e apresentava comportamento compulsivo. Inicia a sessão dizendo que ocorrera um estupro na sua instituição. Acrescenta que as coisas mudaram: no passado, o estuprador teria sido excluído da instituição imediatamente, sem que os funcionários quisessem ouvir nada sobre as circunstâncias do estupro. Hoje é diferente, a situação é investigada. Tanto a vítima do estupro como o estuprador são ouvidos com um esforço de compreensão. Supus que ela talvez quisesse compreender mais sobre aspectos de sua própria história.

Depois de ouvi-la por algum tempo, decidi intervir e lhe disse que esse relato do estupro talvez a tivesse feito pensar sobre as relações sexuais entre os pais dela, sobre as quais me falara muitas vezes no passado. Ela respondeu: “Você quer dizer sodomia? Ah, eu até diria que com eles era um tipo de exibicionismo, gritos, choros, respiração arfante, uma agitação que não parava”. Essa era a interpretação que dava à toda aquela excitação.

A paciente estava convencida de que seu pai era violento a mãe à noite. Todo anoitecer ela descarregaria o revólver que ele deixava trancado na mesinha-de-cabeceira para se defender de potenciais agressores. Ao terminar a sessão, mantenho a associação para mim mesmo.

Na sessão seguinte ela não vem. Na outra, ela aparece excessivamente surpresa: “Dr. Green, eu não sei o que aconteceu depois da última sessão. Eu tinha parado de beber fazia dois meses, mas depois da sessão eu bebi uma garrafa e meia de champanhe. É alucinante!” E ela repete: “É alucinante!”. Eu digo a ela: “Sim, aquela evocação das relações sexuais dos seus pais foi para você como uma alucinação que a levou a beber”. Estou convencido de que, em paralelo à evocação verbal da cena, um funcionamento alucinatório estava ativo e ela se viu apanhada por ele. Sua compulsão a beber novamente tinha o sentido de reviver em seu corpo uma excitação supostamente associada com a cena. A embriaguez tinha o sentido de completar a expressão verbal usada na recordação do passado.

Algum tempo depois, a paciente me contou que havia parado de beber. Mas, passados dois anos, durante uma fase de conflito com a mãe, ela teve um pesadelo incompreensível que a deixou transtornada. O pesadelo era muito difícil de descrever, representando pessoas com rostos estranhos. A paciente chegou a dizer que as pessoas tinham rostos muito incomuns e que não conseguia reconhecê-los. Moviam-se juntas, agindo de maneira que ela não era capaz de descrever. Dessa vez, a estranheza a subjugava completamente. Ela não compreendia o que estava por trás das cenas que sonhara e não podia fazer qualquer sugestão sobre seu significado. A exemplo dos pacientes de Freud, quando questionada minha paciente se manteve em silêncio, dizendo que nada lhe ocorrera e que ela não conseguia encontrar nenhum significado para isso.

Para mim, era óbvio que o pesadelo trazia um mesmo conteúdo de antes, era outra versão de uma fantasia da cena primária que ela não poderia admitir que ainda estivesse presente nela, e ainda ativa. A paciente estava um tanto deprimida e apresentava uma mente vazia [blank mind]. Permaneceu aproximadamente dois meses nesse estado de suspensão de qualquer atividade mental. Nenhum dos meus encorajamentos para que associasse surtiam efeito, até que, de repente, ela reatuou comigo o mesmo comportamento que havia tido com seu analista anterior, um colega muito hábil. Ela se evadiu, não comparecendo às nossas sessões posteriores, fazendo-se inalcançável, sem dar nenhuma justificativa para a interrupção, apesar dos vários convites para que viesse me ver. Devo confessar que eu já havia considerado essa possibilidade, mas me sentia falsamente protegido contra essa eventualidade, já que a transferência estava bem enraizada e resistira a tais ameaças no passado.

O que quero enfatizar é que, além da expressão verbal do trauma no passado, uma excitação concomitante a ela a forçou a completar a ação das palavras através da necessidade de repetir a excitação no corpo. Quando ela diz “Isso é alucinante”, não se trata apenas de uma figura de expressão; esta revela também um processo alucinatório potencial que inunda a lembrança ao vir à tona. A alucinação, de um lado, e a embriaguez, de outro, estão saturando a experiência. Mas no pesadelo o conteúdo estava muito perto de ser compreendido por ela. Tinha de ser negado.

Quando a compulsão à repetição produz o pesadelo, nada da lembrança anterior é reconhecido. Ao contrário, sentimentos de estranheza relacionados ao misterioso, ao sinistro [uncanny], não permitem reconhecer nada. A ansiedade, entretanto, está aqui, mais importante do que nunca, e a única solução é fugir, o que em si é também uma repetição. Portanto, durcharbeiten (a elaboração) requer da paciente coragem para suportá-la. A fuga pode ser compreendida ainda como manifestação do princípio de prazer contra a consciência da compulsão à repetição, às custas de perder a possibilidade de encontrar um significado para ela.

 

Conclusão

Como devemos compreender as relações entre a compulsão à repetição e o princípio de prazer?

Um ponto central na teoria de Freud é a relação das pulsões com o corpo. As pulsões não são expressões diretas do corpo. Por exemplo, no Esboço, Freud escreve: “Não pode haver dúvidas de que a libido tem fontes somáticas, que ela flui para o ego a partir de vários órgãos e partes do corpo” (SE, v. 23, p. 151). No mesmo trabalho escreveu também sobre o id: “[…] ele contém os instintos que se originam da organização somática e que encontram uma primeira expressão psíquica aqui [no id], em formas que nos são desconhecidas” (SE, v. 23, p. 145). Dessa última observação, segue-se que, mesmo quando estreitamente ligada à organização somática, há uma transformação da primeira expressão psíquica numa forma que nos é desconhecida.

O que é essa transição? Como podemos imaginá-la? Quando Freud se critica por sua assim chamada inspiração biológica, esquece-se que ele não mistura a organização somática com a primeira expressão psíquica. Em nossa compreensão, é esse, fundamentalmente, o trabalho que leva às pulsões, por misterioso que seja.

Propomos compreender a passagem da organização somática para a primeira expressão psíquica como resultado da interação entre dois seres. Em outras palavras, é o contato com a mãe que cria a primeira expressão psíquica.

Assim, a referência às pulsões não implica, de modo algum, uma referência a alguma organização psíquica elementar. Em período recente, ao discutir se determinadas organizações mentais são psicossomáticas ou psicopáticas, diferentes autores chegaram à conclusão de que faltava algo na suposta organização pulsional do paciente, como se tivéssemos ido além da organização pulsional. Chegamos à conclusão de que a essa organização, diferentemente do que se costuma compreender, já é uma organização complexa, aspecto que Freud não poderia descobrir em razão da sua falta de experiência com estruturas mentais regredidas.

Talvez Freud tenha tomado a atividade pulsional como elementar por ter em mente apenas neuróticos e psicóticos, casos que são, na verdade, estruturas mentais solidamente organizadas. Hoje o nosso contato com estruturas menos organizadas – desordens de personalidade borderline, constelações psicossomáticas — é muito mais freqüente. Comparados a elas, os neuróticos e às vezes os psicóticos parecem pelo menos mais claros de serem decifrados, mesmo quando mais difíceis de tratar e modificar. É por isso que hoje consideramos a atividade pulsional mais organizada do que pensávamos. Temos também de nos questionar sobre o princípio de prazer.

Talvez devêssemos retornar às primeiras intuições de Freud. No início, aproximadamente até 1915, Freud usa indistintamente “representações inconscientes” e “impulsos instintivos”, sem estabelecer nenhuma diferenciação precisa entre as duas expressões. Depois do artigo sobre “Recordar, repetir e elaborar”, ele adotará apenas a expressão “impulsos instintivos”. Lemos em “O estranho” (1919):

É possível reconhecer o domínio, na mente inconsciente, de uma “compulsão a repetir” que se origina dos impulsos instintivos e provavelmente é inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão suficientemente poderosa para prevalecer sobre o princípio de prazer –, emprestando a certos aspectos da mente o seu caráter demoníaco e, ainda, muito claramente expresso nos impulsos das crianças pequenas (Freud, SE, v. 17, p. 238).

Ele acrescenta que tudo o que nos lembre dessa compulsão a repetir é percebido como estranho e observa também que essa compulsão é suficientemente forte para se colocar acima e além do princípio de prazer.

Portanto, o “caráter demoníaco”, que provavelmente se relaciona estreitamente com o poder repetitivo dos impulsos instintivos, sobrepõe-se a uma organização mais delicada e frágil: o princípio de prazer, este construído sobre uma base menos trabalhada do funcionamento mental. Seria possível que o princípio de prazer se construísse menos sobre impulsos do que sobre representações inconscientes nascidas da experiência? Freud posteriormente abandonará a referência às representações inconscientes, deixando sem resposta as origens do princípio de prazer.

A verdadeira mutação ocorrerá em 1923, em O ego e o id. No final do capítulo 1, Freud descarta o conceito de inconsciente; forçado a admitir várias formas de ser inconsciente, ele se distancia do conceito:

[…] nós temos de admitir que a característica de ser inconsciente começa a perder significado para nós. Ela se torna uma qualidade que pode ter muitos significados, uma qualidade que somos incapazes de tornar, como teríamos desejado fazer, a base de conclusões de grande alcance e inevitáveis (Freud, SE, v. 19, p. 18).

Com a introdução do id, qualquer alusão a “representação inconsciente” desaparece e é de fato substituída pelo “impulso instintivo”, que agora se torna o modo de qualificar a vida mental elementar.

Quando Freud decide dar preferência ao “impulso instintivo” e abandona a representação inconsciente, a diferença entre ação e impulso se torna muito pequena. Pode estar aí a razão pela qual, na compulsão para repetir, o paciente às vezes atue em vez de lembrar, como se tivesse tomado o caminho mais curto do impulso para a atuação. Nenhuma mediação, nenhuma representação, nenhum adiamento. Na compulsão à repetição, a descarga não está na manifestação da atuação, mas na própria repetição, que é o contrário da elaboração, visto que, nesse caso, os mesmos conteúdos são infinitamente renovados para ajudar no aparecimento de um novo significado ou de um significado oculto.

Uma escolha fundamental foi aqui colocada: descarga na eliminação da tensão ou elaboração levando à representação do objeto.

Para evitar o problema da repetição, o sujeito tem de incluir a relação com o objeto. Minha paciente sempre pensou que sua mãe sabia tudo sobre ela. Segundo costumava dizer, a mãe sabia melhor sobre seus pensamentos do que ela própria… Ela não tinha nenhuma idéia sobre si mesma e, além disso, segundo disse, não sabia como pensar ou nem mesmo o que era pensar. Sua vida era muito restrita. A compulsão à repetição era um substituto para o pensamento. Mas, quando a compulsão à repetição envolveu seu trauma principal, a situação se tornou insuportável.

Ao escrever que a hipótese de uma compulsão para repetir parece “mais primitiva, mais elementar, mais instintiva do que o princípio de prazer, que ela sobrepuja” (SE, v. 18, p. 22), Freud talvez esteja sugerindo que o princípio de prazer se fia em fenômenos complexos: representações inconscientes, alguma forma de elaboração das pulsões, alguma capacidade de escolha entre o prazer e o desprazer, a evitação do desprazer etc.

Compreendemos, assim, que o princípio de prazer não seja de modo algum um mecanismo básico. O princípio de prazer é frágil, delicado, como somos lembrados nas afirmações de Freud no último capítulo de Além do princípio de prazer. Parece que, mudando para o modelo da segunda tópica, Freud estava interessado não apenas na descrição de uma atividade mais primitiva do que o inconsciente, mas também numa espécie de modo indomado de funcionamento. E, se o princípio de prazer é inexorável, as pulsões destrutivas parecem sê-lo ainda mais quando não estão fusionadas com a pulsão de vida. É como se a organização psíquica mais antiga, aquela que nunca pode ser domada, fosse a das pulsões destrutivas. Portanto, mesmo que escolhamos permanecer com a idéia de que esse princípio de prazer é o vigia sobre nossa vida, tal questão está menos baseada em material em estado bruto, mas implica algum tipo de transformação das pulsões.

Finalmente, podemos sintetizar nossa posição como se segue: se a compulsão à repetição é demoníaca, isso parece decorrer de sua natureza narcísica, que está fadada a se repetir infinitamente. O princípio de prazer se origina de uma evolução na resposta do objeto e pode afinal se tornar inexorável, perdendo sua qualidade de nos salvaguardar, de agir como guardião da nossa sobrevivência, e acabar se tornando um aliado da compulsão à repetição. Mas, em geral, ele age do lado de Eros para preservar nossa vida e lutar contra as pulsões destrutivas, que ocorrem, em sua maior parte, do lado da repetição.

 

 

Endereço para correspondência
André Green
Société Psychanalytique de Paris
9 Avenue de l’Observatoire
75006 – Paris – France
E-mail: andregreen@wanadoo.fr

 

 

1 Conferência especial apresentada no 45º Congresso Internacional da IPA – Berlim 2007: Remembering, Repeating and Working Through in Psychoanalysis and Culture Today. Título original: “Repetition compulsion and the pleasure principle”. Tradução do inglês: Denia Hukai (membro afiliado do Instituto de Psicanálise de São Paulo), com RBP.
2 Membro titular da Société Psychanalytique de Paris SPP.

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