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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641Xversión On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009
PRÊMIOS
A pessoa do analista: o novo/velho incômodo. Reflexões a partir da “Teoria da sedução generalizada”, de Jean Laplanche1
La persona del analista: el nuevo/viejo incómodo. Reflexiones a partir de la “Teoría de la seducción generalizada”, de Jean Laplanche
The person of the analyst: the new/old uneasiness. Reflections from Jean Laplanche’s “Theory of Generalized Seduction”
José Carlos Calich; Alice Becker Lewkowicz; Carmem Emília Keidann; Heloísa Cunha Tonetto; Magali Fischer; Regina Pereira Klarmann2
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
RESUMO
Os autores propõem uma reflexão sobre a situação de análise, valendo-se do pensamento de Laplanche a respeito da “Teoria da sedução generalizada”. Nesta, a neutralidade é vista como um conceito a ser revisado, considerando o papel fudamental do recusamento do analista frente a suas próprias demandas e às do paciente, como um instrumento técnico que possibilita o trabalho de tradução das mensagens enigmáticas. Reconhecem a complexidade do tema, uma vez que o analista se vê imerso em suas mensagens enigmáticas que ele também não traduziu e interferem em seu trabalho. Apresentam um material clínico que ilustra o questionamento da transferência em pleno e em oco, sendo esta a possibilidade de abrir o inusitado, ainda não pensado e por isto levar a uma situação de incômodo ao analista, concomitante ao favorecimento de novas traduções que contribuem para a expansão do inconsciente e o crescimento psíquico.
Palavras-chave: Recusamento; Transferência; Pessoa do analista; Situação de análise; Neutralidade.
RESUMEN
Los autores proponen una reflexión sobre la situación de análisis, valiéndose del pensamiento de Laplanche respecto a la “Teoría de la seducción generalizada”. Se ve la neutralidad como un concepto a revisar, pues, por la recusación del analista frente a sus demandas y las del paciente posibilita el trabajo de traducción de los mensajes enigmáticos. Reconocen la complejidad del tema, pues el analista se ve inmerso en sus mensajes enigmáticos que él tampoco tradujo e interfieren en su trabajo. Presentan un material clínico que ilustra el cuestionamiento de la transferencia en pleno y en hueco, siendo ésta la posibilidad de abrir lo inusitado y todavía no pensado y, por eso, llevar a una situación de incómodo al analista, concomitante al favorecimiento de nuevas traducciones que contribuyen a la expansión del inconsciente y el crecimiento psíquico.
Palabras clave: Recusación; Transferencia; Persona del analista; Situación de análisis; Neturalidad.
ABSTRACT
The paper proposes a reflection on the analytic situation, based on Laplanche’s thoughts about the “General Seduction Theory”. In this theory, neutrality should be re-defined considering the fundamental role of the “refusement” of the analyst, as a technical instrument to allow the work of fostering translation of the enigmatic messages. The complexity of the movements in the session is identified, as the analyst is also immersed in his own non-translated enigmatic messages that interfere with his work. A clinical material is presented illustrating the interplay between the filled-in transference and the hollow-out transference, this last opening the possibilities to reach the un-usual, un-thought, generating states of discomfort and uneasy, which at the same time favours new translations and are in the basis to unconscious expansion and growth.
Keywords: Refusal; Transference; Analyst person; Analytic situation; Neutrality.
A intenção de nosso artigo é procurar avançar no entendimento e detalhar questões relativas “à pessoa do analista”, na situação de análise, utilizando a “Teoria da sedução generalizada” proposta por Jean Laplanche. Em sua formulação teórica, Laplanche faz trabalhar os fundamentos da psicanálise, propondo que o surgimento do psiquismo em todo o pequeno ser humano (infans) é estabelecido como decorrência de um movimento de sedução sexual oriundo dos adultos cuidadores. Nesta reconceituação, a sedução é um fenômeno generalizado, considerando as condições essenciais do início da vida humana, a que chama de “situação antropológica fundamental”.
Esta seria uma situação assimétrica constituída de um pequeno ser humano ainda sem psiquismo, ávido por significados permitidos biologicamente por uma função tradutiva constitucional, em comunicação com um mundo adulto repleto de códigos de significação construídos e acumulados ao longo dos séculos e veiculado por meio do acolhimento e dos cuidados dispensados à criança pelo adulto, pela linguagem verbal e não verbal, pelas estruturas linguísticas e pelos mitos (apreendidos, portanto, em um “nível de registro do apego”). Esta comunicação estaria, porém, comprometida de modo inconsciente por desejos sexuais dos adultos provenientes de uma sexualidade infantil reprimida, ativada na relação com o pequeno ser.
A falta de significação estabelecida pela presença surpreendente, embaralhante e desorientadora deste sexual na comunicação, provoca um enigma persistente que estimula o processo tradutivo, ativando permanentemente o psiquismo, sendo, neste modelo, a própria força pulsional. Por sua potencialidade disruptiva, seriam tornadas inconscientes, criando os espaços do pré-consciente e do inconsciente recalcado, lugar onde também se alojariam aquelas porções da mensagem comunicada que puderam ser traduzidas, porém foram insuportáveis à consciência (criando o “nível de registro do sexual”). No modelo proposto por Laplanche, aquelas mensagens que tivessem impossibilidade definitiva (“radical”) ou temporária de tradução ou, ainda, tivessem perdido sua tradução estariam inscritas em um espaço inconsciente específico, por ele denominado de “encravado” (inconscient enclavé), onde ficariam à espera de uma possível tradução. Seria um local como um “subconsciente” (“sob a pele”), que albergaria o que ainda não é psíquico propriamente dito, mas sim sua matéria-prima bruta: as mensagens não traduzidas, evidenciando-se o estado de não ligação. Neste estado, as mensagens não seriam integradas ao psiquismo, tendo conexões apenas ao nível operatório, da metonímia, sendo responsáveis, quando de sua externalização (através da alucinação, psicopatia, passagem ao ato perverso etc.) pelos componentes borderline, perversos e psicóticos nas personalidades neuróticas ou não. Esse tipo de mensagem, por sua estrutura implícita, quando “retransmitida” na comunicação com o pequeno ser humano, não é primariamente estimuladora do psiquismo, mas sim salvo exceções permitidas por uma excepcional capacidade tradutiva da perpetuação da não significação transgeracional.
Do ponto de vista da teoria da técnica, Laplanche parte da ideia da instauração e construção de um processo gradual com significação energética que estrutura, organiza e delimita o espaço de análise. As regras implícitas (como a regra fundamental), explícitas (regras do contrato), bem como a regra da não resposta, vão definindo e criando o lugar do espaço pulsional (a Tina-Lugar da sexualidade, do amor e do ódio) e o do recusamento.3 Neste espaço, o adaptativo fica tangencializado e reinstaura-se a sedução enigmática originária de cada um dos constituintes da dupla. Considera que a regularidade e constância no tempo contribuem para a instalação da transferência.
Para esse autor, o conceito de neutralidade apresenta duas dimensões. Uma delas seria a da neutralidade benevolente e outra a do recusamento, um fenômeno que está na base da transferência, em dois níveis essenciais. Num nível mais profundo, está o recusamento estrutural de fornecer códigos para as mensagens eróticas, códigos esses incomunicáveis, e o outro, um recusamento objetivo aos próprios desejos que esbarra no fato de o analista estar em ignorância com o seu inconsciente. Por “neutralidade benevolente”, o autor entende a regularidade, constância e atitude receptiva do analista.
A transferência analítica é, nestes moldes, uma reinstauração da situação originária, sendo o estabelecimento do setting a própria transferência. Por meio da neutralidade benevolente e do recusamento, o analista dispõe-se a receber, conter e manter a sedução originária, mas, agora, nessa reinstauração do infantil, na busca assintótica da forma pura. A tensão da presença de seus enigmas e os do outro, provoca no analisando (e também no analista) a intensificação da atividade tradutiva e a possibilidade de construção de novos significados e a consequente expansão do inconsciente. Assim, o analista é para o paciente um “suposto significar” e não um saber.
Neste modelo, coexistem sempre duas formas de transferência: a transferência em pleno e a transferência em oco. O conceito de transferência em pleno seria equivalente ao conceito de transferência proposto por Freud no que se refere à repetição de padrões de comportamentos originalmente vinculados às imagos infantis. A transferência em oco, de outra natureza, equivale à ausência, o “oco” de significações. Nesta, a repetição remete à reinstauração do enigma originário e o “oco” impõe sua presença pela clivagem das imagens e das cenas transferidas em pleno. Para transformar este “oco” em espaço de trabalho analítico, o analista deverá oferecer um estado mental, de tolerância a seus próprios enigmas, adequado para que o paciente possa “hospedar” ou “acomodar” seu próprio oco, ou seja, os enigmas de sua situação originária, diferindo, portanto, do estado mental da transferência em pleno.
A transferência em pleno tem, em geral, uma sequência de imagens que vai se repetindo em uma desarmonia ligada (cadeia de significantes). Quando há um rompimento das ligações, uma clivagem, surge a transferência em oco, que surpreende pelo seu caráter inusitado e enigmático. A transferência em oco refere-se ao irrepresentável, alude ao novo, algo que nunca foi conhecido, sendo o irrepresentável diferente do irrepresentado. Este pode vir a ser re-conhecido na sessão. Já pode ter uma representação, mas que não esteve acessível. Nesse sentido, a transferência em oco lida com o irrepresentável, enquanto a transferência em pleno trabalha com o irrepresentado. Na transferência em oco, há que se possibilitar que o analista revitalize o “roçar” de sua mensagem não traduzida em seu próprio psiquismo, e pela tolerância à angústia, mantida pela recusa à gratificação da descarga pulsional, crie um espaço compartilhado de tradução, indo além dos conteúdos já conhecidos, dando origem a um novo movimento de tradução.
O analista tem uma experiência, um saber, um método, porém também tem uma recusa radical do saber sobre o bem de seu paciente ou da verdade a respeito dele. O que é oferecido ao analisando é um lugar da palavra, da palavra livre. Há uma assimetria essencial, de certa forma que lembra a situação adulto-criança. Então, é o analisando, com a ajuda e presença do analista, que vai encontrar a sua verdade.
Queremos destacar que, em nossa compreensão, aquilo que se diferencia na situação de análise, segundo a concepção de Laplanche, é que o espaço analítico deve transcender aquele da busca de significados e mesmo de vivências irrepresentadas no interior do paciente, ultrapassando estes estratos (transferência em pleno) em busca do lugar da produção de significados. O usual e o arbitrário são substituídos por um não-significado, sem conteúdo e sem contexto. Uma camada que não porta significados, porque é a fonte dos significados (“reinstauração do enigma da sedução originária, com valor energético/pulsional”). Neste local de transcendência (transferência em oco) é possibilitado o surgimento da nova significação.
Ilustração clínica
Cândida tem 33 anos, em análise há sete. Tornou-se profissionalmente muito bemsucedida, mas com dificuldades significativas nas relações interpessoais. Considera-se muito tímida e insegura, necessitando constantemente a aprovação de outros, tendo sido este um dos motivos manifestos da busca de análise. Não consegue manter relacionamentos amorosos por mais do que alguns meses em função da angústia e das correspondentes fantasias que estes lhe despertam. Tinha muito receio de não conseguir se manter em análise por não suportar o vínculo (sic) ou porque eu rapidamente cansaria de sua pessoa “desinteressante”. O primeiro contato com ela é agradável e sua revelação de timidez e insegurança inclusive surpreende.
Na curso da relação comigo chama atenção a intensa palidez de seus desejos. Ainda que sua atitude não seja exatamente submissa, a falta de espontaneidade e de sua presença como pessoa é marcante.
Na penúltima sessão de uma semana recente, traz, juntamente com outras, um posicionamento novo (referente a uma nova realidade interna): a questão refere-se a que o atual namorado um apreciador de música popular deseja ir a um show bastante concorrido que haveria na cidade naquela noite, tendo solicitado a ela providenciar os ingressos. Cândida, em uma reação não habitual sua, diz que não quer ir a esse show. “Estará muito cheio, é dia de semana, eu nem gosto muito desses shows e comprar os ingressos hoje representará um esforço que não estou a fim de fazer”. Ao longo desta sessão, apenas sublinho, utilizando-me de uma outra associação dela, que está com menos receio do estrago que seu próprios desejos possam provocar, com o que concorda, mostrando-se satisfeita e de certa forma orgulhosa de poder fazê-lo (por alguns instantes fico receoso que esta intervenção possa ser tomada como um “desejo meu” de que ela conheça e “assuma” seus desejos e isso se transforme numa espécie de exigência superegoica intransponível , porém suas associações não vão integralmente nesta direção. Algo desta dinâmica é ainda inevitável com Cândida). Ela fala em ter pensado como o namorado reagiria, mas que isso não se tornou um obstáculo, chegando a dizer algo também surpreendente: “Não é motivo para ele ficar muito contrariado. Afinal, deixou esse assunto para a última hora e se quisesse muito teria pensado antes. E se ficar contrariado demais é porque não serve para mim” (fiquei momentaneamente impactado com essa afirmação, tão comum a outras pessoas, mas tão escassa em seu mundo interno. Pensar que alguém que a desejasse pudesse “não ser para ela” era até então aparentemente impensável). Encerrei essa sessão com uma sensação de satisfação e com a ideia de que depois de todos esses anos de árduo trabalho começava a surgir uma pessoa com uma semente de individuação.
No dia seguinte, chega falando de uma situação ligada ao seu trabalho, na qual teve também que ser um pouco mais decidida com sua opinião e que estava satisfeita com o fato de ter dito exatamente o que pensava, sem ter ficado apavorada com a desaprovação dos outros, que já sabia ser inevitável. Na sequência comenta, de modo quase casual, que tinha gostado do show no dia anterior e que o namorado ficara preocupado com o horário de término, com a distância do local e pelo fato de ser um dia de semana, mas que ela não havia se incomodado com sua apreensão, acrescentando que mesmo vendo-o um pouco contrariado não ligou isso imediatamente à sua pessoa, tendo podido aproveitar a noite. Disse que sentira-se apenas um pouco triste porque ele não estava aproveitando como ela.
Fiquei um tanto surpreso com a ausência de comentários em relação ao seu posicionamento na sessão anterior, e perguntei. “E para ti, como foi essa mudança?”. Respondeume: “Era um show muito bom, eu não conhecia os músicos, mas achei muito bom. O João me disse que o show era imperdível e até conseguiu os ingressos”.
Senti-me confuso. Havia algo muito sutil no tom de voz que tornava esse comunicado pouco natural e a não explicitação do que havia passado em seu interior me trazia desconforto. Fiquei por momentos sem saber o que dizer. Minha vontade era perguntar o que tinha feito com seus desejos expressos ontem, mas pensei também que estaria manifestando minha frustração, depois de ter me sentido gratificado com o seu progresso. Optei por permanecer mais um tempo em silêncio e aguardar mais associações. Voltou a falar no trabalho e na situação de como ficaram as coisas depois que teve de se posicionar de modo mais firme no dia anterior. Disse que pela manhã havia ficado preocupada com alguma reação tardia de seus parceiros, inclusive com a ideia (comum em Cândida) que pudessem, depois, ter se reunido sem ela, para puni-la.
Disse-lhe que “talvez estejamos diante de uma situação semelhante aqui. Talvez tenhas medo de que eu tenha me reunido durante a noite com tua vontade de manter teus desejos, para te punir por teres mudado de opinião e isso tenha feito não falares no que se passa dentro de ti”.
Ela fez um breve silêncio e disse: “Mas eu não mudei de opinião. Em relação ao que tu te referes?”
Digo: “Ao teu desejo de não ir ao show”.
Cândida: “Mas eu não disse que não queria ir”.
(Fiquei perplexo. Permaneci em silêncio. Por alguns instantes cheguei a duvidar do que eu havia dito. Nos minutos seguintes senti desde um abatimento até uma desesperança, que logo tentei me livrar com a reorganização de meu pensamento e minha vontade de confrontá-la. Ela continuava a falar sobre como havia podido aproveitar o show e como se sentia satisfeita com a relação com João. Senti uma certa irritação (incomum com Cândida) e um aumento do desejo de confrontá-la e até de explicar-lhe o que fazia com sua mente ao se violentar daquele jeito. Ao mesmo tempo, permanecia em mim a perplexidade e a sensação de que algo grave estava se passando. Nesse momento, veio à minha mente a ideia de que ela poderia estar produzindo uma alucinação negativa e que de fato era insuportável a ela, naquele momento, manter seu desejo ameaçando seu vínculo com João. Ela diz:
Cândida: “Fiquei um pouco sem jeito de tu teres pensado que eu disse que não queria ir…”
Analista: “Como é ‘sem jeito’?”
Cândida: “Acho que é igual a quando eu quero alguma coisa e a outra pessoa pode não gostar ou não querer …”
Analista: “Como às vezes te defines, ‘desajeitada’?”
Cândida: “Minha mãe dizia que eu era ‘goffa’ [seguidamente lembra-se desta alcunha que é uma palavra em italiano para desajeitada] chora silenciosamente … tu achas que eu me sinto ‘desajeitada’ quando eu quero alguma coisa, quando tenho vontade? Nunca tinha pensado assim… eu não sei bem o que acontece… eu senti que tu achaste estranho eu ter dito que eu não disse ontem que eu não queria ir… quando senti tua reação, fiquei pensando: será que eu disse que não queria? Não é uma mentira… eu não lembro direito de ter dito. Lembro que eu saí bem daqui, me senti forte… mas lembro que eu te disse que não queria comprar os ingressos…
Analista: (nesse momento meu sentimento havia mudado, estava com pena dela e da luta dela para encontrar algo que fizesse sentido para ela ou para mim. Tive vontade de dizer algo que a aliviasse. Novamente, mantive-me em silêncio até que disse:) “Estás lutando para encontrar algo que faça sentido para mim ou para ti”.
Paciente: “Tu sabes que me chamou atenção que tu disseste antes ‘mudar de opinião’. Eu acho que é muito pior do que isso. Eu não mudei de opinião, acho que eu não pude manter uma opinião. Eu não sei como é que eu esqueci desse jeito. Eu sei que eu saí daqui contente e liguei para o João. Disse a ele que eu não queria comprar os ingressos. Ele estava muito entusiasmado e me disse que o show era imperdível. Ele insistiu que eu tentasse comprar, mas lá pelas tantas ele disse que se esse era o problema ele daria um jeito e compraria … eu já te disse que já me dei conta que se ele fica entusiasmado eu me abandono”.
Nessa breve sequência é possível observar o analista tendo que “recusar” seus desejos, oriundos da circunstâncias próprias da interação com Cândida e de sua própria personalidade, permitindo assim que emerja o “oco” em ambos. Dentro do referencial aqui estudado é o movimento mental do analista para suportar e traduzir seu próprio “oco” que ‘convoca’ a paciente a ir em busca de seu próprio, procurando novas traduções para sua mensagem enigmática. Com relação a essas, a hipótese que surgiu ao longo dos anos é que Cândida tem uma mensagem sexual que lhe diz que o objeto (o outro) deve sempre ser mantido excitado (“entusiasmado”) e que a pressão de tradução feita por essa mensagem exige seu abandono como pessoa individual desejante.
Considerações finais
Segundo os desenvolvimentos apresentados por Laplanche, na situação de análise, o analista é o provocador da transferência e o responsável pela propulsão de possíveis traduções de mensagens enigmáticas.
As concepções de recusamento e de neutralidade benevolente têm um caráter ativo do analista em criar condições para o desenvolvimento da transferência. É uma atitude de continência e de não intrusividade. Não é fuga, nem afastamento, mas sim um vínculo mais profundo com o desconhecido, inquietante e, às vezes, perverso.
O conceito de transferência em oco traz uma abertura para a maior permeabilidade do analista em se deixar tocar por seu enigma e pelo enigma do outro, mobilizando aspectos enigmáticos próprios. Assim, o trabalho do analista implica uma complexidade maior, já que lida com seu próprio inconsciente originário e com o jogo entre suas próprias mensagens traduzidas e não traduzidas que interferem no seu trabalho.
Uma velha/nova questão se apresenta evidenciando uma tensão dinâmica entre a pessoa do analista, como instrumento do trabalho analítico e também seu limite. E, ao chegarmos neste ponto, deparamo-nos com outro ângulo deste novo/velho incômodo. Como ir adiante em seu estudo? Até onde é possível a compreensão detalhada e a revelação dos aspectos não traduzidos da mensagem na mente do analista em um trabalho a ser tornado público? E com que finalidades últimas o seriam?
Compreendemos que na tarefa da comunicação, compartilhamento e transmissão da psicanálise, o detalhamento tem sido de grande valor, mas talvez, com o aprofundamento da compreensão da relação analista-analisando, considerados na dimensão radical do enigma pessoal do analista, tenhamos chegado a um limite, inclusive ético. O mesmo princípio ético que transcende os códigos que deveria reger a não exposição da intimidade de nossos pacientes. Aquele que remete aos limites entre os espaços públicos e privados. A este respeito, talvez tenhamos que nos contentar com a construção de modelos imaginários, inspiracionais, que tangenciem a essência, mas não a torne pornográfica, invasiva e danosa. Suportemos o novo oco.
Referências
Calich, J. C. (2006) Pour “Faire Travailler” la topique laplanchienne. Psychiatrie Française, 37, março 2006.
Laplanche, J. (1992). La prioridad del otro en psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. [ Links ]
_____ (1987). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [ Links ]
_____ (1987). Problemáticas V: A tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1993. [ Links ]
_____ (2003). Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da sedução generalizada. Rev. Psicanálise da SPPA, v. 10, n. 3 p. 403-418.
_____ (2006). Réponse de Jean Laplanche à José Carlos Calich. Psychiatrie Française, 37, março. [ Links ]
Endereço para correspondência
José Carlos Calich
Rua 24 de Outubro, 838/603
90510-000 Porto Alegre, RS
E-mail: jccalich@sppa.org.br
Recebido em: 4.5.2009
Aceito em: 11.5.2009
1 Artigo “Tema Livre” do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2009. Prêmio Mario Martins para membro associados.
2 Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre: José Carlos Calich membro associado, Alice Becker Lewkowicz membro associado, Carmem Emília Keidann membro associado, Heloísa Cunha Tonetto membro associado, Magali Fischer membro aspirante, Regina Pereira Klarmann membro associado.
3 O termo recusa ou recusamento, inicialmente traduzido por frustração, percorreu um longo caminho até se impor conforme Laplanche pensa para a tradução do alemão da palavra Versagen-Recusamento, uma vez que alguém que recusa, faz mais que um simples frustrar. Aquilo que na ordem do sexual, a supre e a suplanta, ou seja, o jogo intersubjetivo que furta ao outro o que espera obter e, antes de mais nada, saber.” (Laplanche, 1987, p. 240)