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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641Xversión On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo sep. 2009
ARTIGOS
Deep Fritz versus Sigmund Freud: a luta do século
Deep Fritz versus Sigmund Freud: la luta del siglo
Deep Fritz v Sigmund Freud: the fight of century
Juarez Guedes Cruz1
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - Porto Alegre
RESUMO
O autor examina alguns dos desafios feitos à psicanálise na atualidade. Parte da premissa de que, apesar das enormes diferenças entre a cultura da Viena do início do século XX e a sociedade tecnológica dos dias de hoje, é fundamental que o psicanalista mantenha-se atento às invariâncias do mundo interno, seu único e privilegiado foco no trabalho clínico. Detalha tal postura, caracterizada pela preservação do setting e pela atenção centrada no campo intersubjetivo criado pela relação com seu paciente.
Palavras-chave: Psicanálise e cultura; Pós-modernidade; Psicanálise e tecnologia.
RESUMEN
El autor examina algunos de los desafíos hechos al psicoanálisis en la actualidad. Tiene una premisa: a pesar de las diferencias entre la cultura vienense del inicio del siglo XX y la sociedad tecnológica de hoy, es fundamental que el psicoanalista se mantenga muy atento a la invariancia del mundo interno, su único e privilegiado foco de trabajo clínico. Detalla tal postura, caracterizada por la preservación del setting y la atención en el campo originado por la relación del analista con su paciente.
Palabras clave: Psicoanálisis y cultura; Pos-modernidad; Psicoanálisis y tecnología.
ABSTRACT
The author develops an examination about some challenges to psychoanalysis in present days.
There are a premise: even though the dissimilarity between the Vienna in the beginning of the XX century and the modern technological society, it is fundamental that the psychoanalyst keep himself attentive to the invariance of internal world, his unique and privileged focal point in his clinical work. This posture - characterized by preservation of the setting and by attention to the intersubjective field - is examined.
Keywords: Psychoanalysis and culture; Pos-modernity; Psychoanalysis and technology.
Afrouxando o nó da gravata
Um homem de meia-idade, executivo de uma empresa multinacional, depois de encerrar uma decisiva reunião de negócios, dirige-se ao consultório de seu analista para mais uma sessão de um processo psicanalítico que conta com aproximadamente quatro anos de desenvolvimento. Tira o paletó, deita-se no divã, afrouxa o nó da gravata e começa a falar sobre sua difícil relação com a família de origem. Detalha uma discussão que teve com a mãe e passa a lamentar-se, de um modo exaltado e quase infantil, a respeito das constantes intromissões dos genitores nos assuntos de sua própria casa. Além disso, comenta que a mãe está sempre protegendo a filha mais jovem, em detrimento dos outros dois filhos, e até dos netos. Está no auge das reclamações quando se interrompe e exclama, num tom de quem se surpreende: “Pareço uma criança! Se os meus gerentes me vissem agora, depois de ter coordenado uma reunião com os representantes da empresa de Miami, não acreditariam que é a mesma pessoa!”
Ao referir esse fato clínico - o importante executivo, afrouxando o nó da gravata e voltando a ser o menino frustrado pela mãe -, adianto minha concepção a respeito do tema que será discutido no presente texto: em que pesem as transformações acontecidas na cultura e na psicanálise ao longo de sua história, minha atividade clínica é norteada, de modo predominante, pela visão da invariância. Sustentarei que, mesmo considerando a mudança catastrófica operada pela pós-modernidade e pelas conquistas tecnológicas, os homens e as mulheres que deitam em nossos divãs nos dias de hoje são, em sua essência, os mesmos homens e mulheres, meninos e meninas, que deitaram no divã da Viena do início do século passado, que deitariam em um divã que fosse colocado nos sombrios desvãos do castelo de Elsinore ou na encruzilhada entre Tebas e Corinto.
Confesso que tive alguma preocupação em adiantar, já nas primeiras linhas, meu posicionamento com relação aos desafios enfrentados pela psicanálise nos tempos atuais. Mas também pensei que, afinal, este texto não é um conto de suspense, não há mordomos nem culpados, e ninguém morre no fim. É, tão somente, um ensaio psicanalítico. Confio que o leitor, mesmo informado a respeito da minha predileção teórica e técnica, não se desinteresse pelo que segue. Espero que esteja suficientemente cativado para me acompanhar nas próximas páginas, solidário com o colega que precisará adotar uma postura de proposital estranhamento frente a algo tão familiar e ao qual se dedica todo o santo dia: a prática da psicanálise. Tal distanciamento será necessário para observá-la com certa ingenuidade, em suas relações com o meio cultural que a cerca e naquilo que a diferencia de outras abordagens dos problemas emocionais. Essa disposição mental para o espanto virá ao encontro do propósito de desvestir meu hábito psicanalítico e permitirá uma aproximação mais isenta do tema “tal como o percebo, não como o conheço” (Lodge, 2009, p. 62).
Na primeira parte do trabalho apresentarei três das vertentes de desafios à psicanálise: 1) o das conquistas tecnológicas das últimas décadas e suas consequências sobre a vida das pessoas; 2) o desafio representado pela pós-modernidade e seu impacto sobre os valores éticos dos indivíduos; 3) a aparente competição com os psicofármacos e com as demais modalidades de tratamento dos problemas psíquicos. Numa segunda parte do texto, discutirei a resposta humana e psicanalítica a tais desafios e, num terceiro momento, tentarei descrever a postura que me parece ideal para o analista no enfrentamento dessas indagações: o respeito pelo setting e a atenção centrada no campo intersubjetivo criado pela relação que estabelece com seu paciente ao longo de todo o processo psicanalítico.
I. Os três desafios
As conquistas tecnológicas: um admirável mundo novo
E, sorrindo como para si mesmo, ele diz simplesmente: Vou construir um cérebro.
Janna Levin, em Um louco sonha a máquina universal
Em suas “Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I”, de 1913, Freud se dispõe a enunciar algumas regras para o início do tratamento psicanalítico. Adverte de que são apenas recomendações, pois o que se segue ao contrato inicial estabelecido entre o analista e o paciente é imprevisível. Utiliza, então, a conhecida metáfora do jogo de xadrez:
Todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. (p. 164)
Basta lermos essa metáfora inaugural do artigo para lembrar do texto de Borges a respeito do Quixote, de Pierre Menard, e parafraseá-lo: “Empregar essa metáfora do xadrez em princípios do século XX, ao estabelecer os fundamentos da técnica psicanalítica, era, para Freud, um empreendimento razoável, necessário, quem sabe fatal; em princípios do século XXI, é quase impossível. Não transcorreram em vão cem anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar um apenas: a evolução do próprio jogo de xadrez”.2
Isto porque, em menos de um século, o panorama com relação ao jogo utilizado na metáfora freudiana modificou-se totalmente: em maio de 1997, o supercomputador Deeper Blue, da IBM, derrotava Garry Kasparov, campeão mundial, em um match de seis partidas disputadas na cidade de Nova Iorque. O resultado do encontro foi apertado - três empates, uma vitória de Kasparov e duas vitórias do Deeper -, mas suficiente para convencer a comunidade dos enxadristas de que, mais cedo ou mais tarde, a máquina de jogar superaria o talento humano. E não precisou passar muito tempo para que isso acontecesse: hoje em dia, programas como o Deep Fritz derrotam com folga os grandes mestres e o máximo que um jogador de alto nível pode conseguir contra a máquina, se não cometer nenhum erro, é um empate. Prova disso é o desempenho do supercomputador Deep Fritz, em Bonn, ao derrotar, no final de 2006, o Grande Mestre Kramnik - na época detentor do título de campeão mundial de xadrez - sem perder uma única partida. E para piorar para o lado humano: o Hydra, sistema de processadores de dados com sede em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, em sua versão 2009, é capaz de analisar, por segundo, duzentos milhões de posições possíveis em um jogo de xadrez e escolher, a cada jogada, a melhor alternativa. Frente a essa realidade, a metáfora freudiana aparentemente enfraqueceria: pois “a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura” já pode ser esgotada pela máquina.
A realidade tecnológica desse brave new world, não nos impacta apenas no que se passa no interior ‘das negras noites e dos brancos dias’ das 64 casas dos tabuleiros de xadrez: no mesmo ano em que Kasparov perdia o match para o Deeper Blue, Aki Maita, uma japonesa de trinta anos, criava o Tamagotchi, um brinquedo eletrônico que pode ser adotado como ‘companhia humana virtual’, um ‘animalzinho virtual de estimação’. Funcionando na base de uma tecnologia de raios infravermelhos, o Tamagotchi precisa ser ‘alimentado’ para não morrer, pode encontrar amigos semelhantes, brincar com eles, dar presentes e ter tamababies. Produzido e comercializado pela Bandai, uma companhia japonesa fabricante de brinquedos, vendeu, em 2008, setenta milhões de cópias. A máquina é muito melhor do que um animal de verdade: ela não suja, pode ser carregada no bolso e, por mais que corra o risco de ‘morrer’, ainda está longe, caso isso aconteça, de provocar a comoção produzida pela perda de um companheiro animal ou humano.
Mas 1997, ano do Deeper Blue e do Tamagotchi, foi ainda mais pródigo em feridas ao narcisismo humano: no dia 5 de julho nascia, no Instituto Roslin, em Edimburgo, a ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado a partir de uma célula somática adulta, pelo processo de transferência do núcleo celular. A célula utilizada como doadora foi retirada da glândula mamária de uma ovelha e a produção de um clone sadio provou que uma parte específica do corpo pode recriar um indivíduo inteiro. As perspectivas abertas por essa experiência dão origem às fantasias mais ousadas, iniciando pela de recriar um Tyranossaurus rex utilizando tecido fossilizado ou, quem sabe, de uma réplica de Ramsés II, a partir da múmia que repousa no museu do Cairo.
Como se já não bastassem esses dados para ilustrar a cultura que nos cerca e suas diferenças abissais com a Viena do início do século XX, ainda temos, hoje em dia, os avanços no terreno da chamada biologia sintética que prevê a possibilidade de criar, em laboratório, um organismo dotado de um genoma artificial, demonstrando que “(…) entre o pó da terra e o homem acabado não existe nenhuma quebra de continuidade” (Dupuy, 2008, p. 26) e que criar um golem, implica a ideia, muito lógica, de que não foi necessário nenhum deus que tenha “soprado a alma da vida no homem” (p. 26). Como declara Dupuy, estamos cada vez mais próximos de realizar o terrível e maravilhoso oxímoro de uma natureza artificial. A etapa seguinte, de acordo com ele, consiste em “(…) substituir a natureza (…) [colocando] em curto-circuito toda essa errática darwiniana (…) em direção ao sucesso do design” (p. 35).
Se lembrarmos da carta de 15 de outubro de 1897 - ou seja, precisamente um século antes desse 1997 alucinante -, na qual Sigmund Freud (1897/1976) dizia a Wilhelm Fliess que a força avassaladora do Oedipus Rex provinha do fato de a lenda grega fazer com que cada pessoa da plateia se reconhecesse, por ter sido “(…) um dia, em ponto menor ou em fantasia, exatamente um Édipo” (p. 356-359), não poderemos deixar de nos indagar a respeito dos destinos que o portentoso complexo nuclear das neuroses tomará no próximo milênio, quando homem e máquina estiverem fusionados como prometem os arautos da biologia sintética.
E o que dizer, então, das transformações operadas na mente dos seres humanos pelo que se convencionou chamar de ‘pós-modernidade’?
Não pensar como um modo de vida
O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso.
Fernando Pessoa, em Há metafísica bastante em não pensar em nada.
É evidente que as transformações sociais têm influído na maneira como a psicanálise e os psicanalistas são vistos e considerados. A psicanálise surgiu como um ‘pensamento em busca de um pensador’, em uma época propícia - chamada ‘moderna’ - norteada pela concepção de que existiria uma verdade que corresponderia a uma realidade em termos quase matemáticos e comprováveis pelas ciências experimentais. N esse contexto, era possível imaginar a existência de um sujeito que contemplaria os fatos de modo imparcial e de um objeto da realidade que seria observado com isenção por esse sujeito. Tais premissas deram origem às metanarrativas, extensos sistemas de ideias filosóficas, históricas, políticas, econômicas ou científicas (a psicanálise entre elas) que descreviam essas ‘verdades’ - tidas como preexistentes - buscando estabelecer uma compreensão global do mundo, da sociedade e da vida. A razão, de acordo com essa perspectiva, tornava-se soberana.
Sabemos o quanto, nos dias de hoje, tal panorama evoluiu para o que se convencionou chamar de ‘pós-modernidade’. A principal característica destes tempos pós-modernos é a crise do conceito de verdade, no sentido de que não existe mais uma verdade, mas ‘verdades’, dependendo do ponto de vista que se adote para observar e argumentar. O corolário lógico dessa crise é o apagamento da clássica diferença entre sujeito e objeto e a quebra da fantasia de uma observação isenta, à medida que o sujeito influi no que é observado. Além disso, as características do objeto, especialmente na prática da psicanálise, reverberam em direção ao sujeito e o modificam. Com isso, diluem-se as diferenças entre realidades factuais e realidades criadas pela imaginação. Tal relativização da verdade contribui para uma crise no que se refere à compreensão abrangente que seria proporcionada pelas metanarrativas, pois o mundo e as pessoas são mais complexos do que se imaginava e não cabem em modelos simples e reducionistas.
Essa desilusão com o poder explicativo das metanarrativas e a relativização dos conceitos de verdade e realidade, deram origem a dois importantes movimentos. O primeiro foi o surgimento de reivindicações do direito de ser diferente, da politização da sexualidade e dos diversos modos de viver a vida.3 Uma segunda vertente refere-se à ética, com o surgimento de uma tendência a que se aceitem todas as posições, o estabelecimento de uma relação pragmática com a realidade e o afastamento de tudo aquilo que é alheio à utilidade prática imediata. A conjunção desses fatores na cultura atinge tal ponto que Lipovetzky (1983) chega a conceituar uma ‘era do vazio’, caracterizada pela:
(…) pressão por uma aceitação não crítica de todos os modos de vida, individuação narcisista, hedonismo, equalização de todo o conhecimento com a consequente erradicação das diferenças entre as gerações, experiências de vida, experiência educacional, treino, talento e sensibilidade. (Lipovetzky, citado por Rocha Barros e Rocha Barros, 2003, p. 8)
Esse panorama, que Roa (1965, p. 43) descreve como o predomínio da ética dos direitos sobre a ética dos deveres, tende a provocar um afastamento com relação à subjetividade e estimula a busca do prazer e da satisfação imediata dos desejos. Tudo isso leva a uma percepção superficial da realidade e perda de preocupação com o correto. A aquisição do conhecimento deixa de ser um objetivo, ganha força uma tendência ao culto da imagem e, o que é mais preocupante, as decisões a tomar na vida tornam-se questão de mero agrado: “(…) só importa o que é mais cômodo [e] poder-se-ia falar em uma ‘ética de bolso’, destinada a resolver somente um dado caso individual” (p. 42).
Vários autores, a partir de outras disciplinas, além da psicanalítica, têm se manifestado com relação aos efeitos da cultura pós-moderna sobre o funcionamento mental do indivíduo. Susan Sontag, por exemplo, em um texto de 1996, alerta para o fato de que “(…) a sensibilidade moderna está mais comprometida com o prazer do que nunca esteve” (p. 19). Nessa mesma linha de avaliação, Malumián (2008) destaca “(…) o consumo, em particular, e o mercado em geral como outra linha para a valorização da cultura: o que não é consumido não tem valor” (p. 24).
Tal estado de coisas não passou despercebido por autores psicanalíticos sensíveis aos impactos da cultura na prática da psicanálise. Eizirik, no texto “A psicanálise hoje: desafios na cultura”, de 1997, alerta para o quanto esta época de promoção da imagem e de satisfação imediata de desejos, opõe-se aos objetivos da psicanálise. Refere o risco de que a psicanálise, como um sistema de pensamento, possa tornar-se irrelevante para, ou incompatível com, as necessidades atuais de nossa cultura. Recorda que, frente a esta situação, a tendência, muitas vezes, é buscar uma adaptação rápida a esse ritmo de praticidade, embarcando “em uma atitude apocalíptica ou melancólica” (p. 16, citando Pereda).
Vários outros trabalhos, a partir da vertente psicanalítica, abordam esse tema. Destaco, entre os textos que revisei, o artigo apresentado ao Congresso da IPA, em 2003, por Elias Mallet da Rocha Barros e Elizabeth Lima da Rocha Barros. Esses autores revisaram as pressões dos fatores socioculturais característicos da pós-modernidade, e das ideologias que lhe correspondem, na compreensão do que seja psicanálise e nas pré-concepções a respeito do papel e da função do analista. Tais pressões se exercem no sentido de negar a importância dos vetores psicodinâmicos na estruturação das psicopatologias e num desafio ao setting psicanalítico, considerado como não adaptado às condições da vida moderna. Comentam o quanto existe atualmente, no ambiente social, uma tendência a descaracterizar o que seja patológico, e lembram Meltzer (1989) quando diz que
(…) o pêndulo oscilou da hipocrisia da duplicidade vitoriana para a hipocrisia da decadência. O ambiente que, antes, favorecia a formação de sintomas na esfera do conflito sexual, hoje favorece o fortalecimento da perversão como traço de caráter. (p. 23)
Desafinando no coro dos contentes
Cure-a disso. Não pode ministrar mentes doentes, matar lembranças de tristeza antiga, apagar males escritos no cérebro e, com um doce antídoto, limpar do peito opresso a carga perigosa que pesa ao coração?
Shakespeare, em Macbeth.
O terceiro desafio refere-se à expectativa por uma eficácia da psicanálise na resolução dos sintomas, de modo a poder competir com a velocidade do alívio proporcionado pelos psicofármacos, pensando a psicanálise com objetivos que não constituem a essência de seu método. N a abordagem medicamentosa, a tendência é intervir independentemente de ser a dor psíquica, muitas vezes, fator de crescimento. Elias e Elizabeth da Rocha Barros comentam que, atualmente, a relação com os psicofármacos tornou-se patológica, pois baseia-se em uma crença de que a dor mental deve ser eliminada imediatamente e apontam para o apagamento dos limites entre sentimentos de tristeza e depressão.
Tal comentário é confirmado pelos achados epidemiológicos: no ano de 2005, por exemplo, nos Estados Unidos, cerca de um milhão e meio de crianças e adolescentes recebeu tratamento medicamentoso com antidepressivos. Esses dados, publicados no New York Times, em uma reportagem que tinha por título “Hipermedicação de crianças alarma os EUA”, chamava a atenção para o abuso na utilização de medicamentos psicotrópicos em crianças rotuladas como hiperativas ou depressivas. Essa reportagem foi comentada por Maria Rita Kehl (2008), num texto em que também aborda o exagero, em crianças e adolescentes, do diagnóstico de ‘transtorno bipolar’. A autora enumera dois fatores que contribuem para esse estado de coisas: a tendência defensiva de alguns pais de “(…) enquadrarem o comportamento explosivo de seus filhos em uma definição clínica” (p. 308) e a pressão das indústrias farmacêuticas.
A questão, hoje em dia, é de que não estamos apenas lidando com o problema de tratamentos combinados e com o conhecido assunto da associação entre psicanálise e tratamentos farmacoterápicos, pois os benefícios de tal associação em alguns casos já foram comprovados. Estou falando de uma outra questão: o quanto nossa ‘era do placebo’ e da eficiência, insiste em soluções rápidas e substitutivas. O conflito não é visto como algo que pode contribuir para o crescimento mental, mas como um artefato a ser eliminado juntamente com os sintomas. Kehl destaca o quanto as sociedades avançadas, sob o ponto de vista tecnológico, tornaram-se progressivamente “(…) incapazes de refletir sobre a dor de viver”, de “(…) usufruir da lentidão e vislumbrar o saber contido na tristeza” (p. 295). Os tristes e os deprimidos, segundo a autora
(…) constituem em seu silêncio e seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX (…) [pois ameaçam (…) afundar a nau dos bem adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt à porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado (…) [Nesse sentido, os tristes são vistos como] doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber. (p. 308)
Um dos maiores reptos feitos aos analistas, na atualidade, é o de não sucumbirem a tais pressões, descaracterizando a essência da psicanálise para adaptar-se às exigências de praticidade e manter-se no mercado de trabalho, contribuindo, assim, para um movimento centrífugo em relação ao que o método psicanalítico originalmente se propõe: viver mais integralmente a experiência emocional e estabelecer relacionamentos profundos e íntegros com seus próprios objetos internos e com o mundo que o cerca.
Os desafios apresentados por essa hipertrofia medicamentosa são potencializados pelo enfrentamento com as demais abordagens terapêuticas, pois, muitas vezes, se observa uma inclinação ao afrouxamento dos critérios do que seja um processo psicanalítico e uma tendência a denominar ‘psicanálise’ uma série de procedimentos que não fazem jus ao nome. A não compreensão das diferenças entre psicoterapia e psicanálise faz com que, na pressa de uma falsa competição, psicanalistas transijam nos rigores da técnica para acomodar-se às exigências do mercado. Isso contribui, também, para que pessoas que não possuem qualificação em termos de formação psicanalítica se achem fazendo algo que julgam muito parecido com o que pensam ser psicanálise. A crise, já referida, no conceito de verdade, a não distinção entre realidades factuais e virtuais e, especialmente, a falência no que se refere à ética, levam a esses posicionamentos de maneira mais ou menos intencional.
II. A resposta humana
Conquistas tecnológicas: a indiferença dos relógios
Enquanto o supercomputador Deep Fritz processa uma extensa busca entre todas as possibilidades para escolher o melhor movimento - o que, afinal, não é tão problemático, pois ele tem competência para avaliar milhões de alternativas por segundo -, um grandemestre humano pode determinar sua próxima jogada através de uma busca seletiva entre as posições possíveis, eliminando, de saída, as alternativas evidentemente perdedoras. Por outro lado, o computador, embora incapaz de sentimentos ou de intuição, é compensado com as possibilidades de não esquecer, de não se distrair ou intimidar-se frente a forças externas, enquanto um jogador humano é um competidor formidável, mas, ainda assim, é suscetível ao cansaço, ao tédio e à perda de concentração. É evidente a superioridade da máquina em termos de aptidão para conduzir o jogo da abertura até o seu final. No entanto, a eficiência não torna o computador capaz de se emocionar ante a iminência de uma brilhante combinação ou de um sacrifício posicional. Ou seja, apesar dos embates da conquista tecnológica, somente os seres humanos conservam e desenvolvem a natural dotação para uma experiência emocional que precisa ser significada e metaforizada pela mente. Kasparov, nos dias que cercaram seu encontro com o Deeper Blue, e quando ainda duvidava da possibilidade de vitória da máquina, apoiando seu argumento a favor da supremacia do homem, teria comentado:
Se um computador pode vencer o campeão do mundo, então um computador pode ler os melhores livros do mundo, escrever os melhores textos e conhecer tudo a respeito da História e da literatura e das pessoas. (Kasparov, citado por King, 1997, p. 5)
Ora, o que estamos vendo é que os supercomputadores nos vencem com facilidade. Do mesmo modo, podem armazenar os dados dos melhores livros, escrever poemas juntando palavras ao acaso e conseguem estocar uma quantidade praticamente infinita de informações a respeito da História, das pessoas e da cultura. Assim sendo, se atualizarmos e estendermos a metáfora freudiana, podemos chegar a uma conclusão evidente: terminado o confronto, quem sai para comemorar a vitória ou amargar a derrota são os humanos envolvidos no match. O computador não está feliz nem infeliz. Permanece indiferente como os velhos relógios das casas de nossos avós a baterem horas intermináveis enquanto sonhávamos nossos sonhos de crianças. Impassível como os despertadores que não chegam a angustiar-se com a espera por gritar seu alarme e acordar as pessoas no início de cada dia. Os relógios, os despertadores e as máquinas de jogar xadrez são - antes, durante e depois de sua tarefa - engrenagens insensíveis governadas por mãos humanas. A psicanálise, portanto, ainda é um bem para os frágeis programadores das máquinas, para esses seres humanos que não se contentam com amiguinhos virtuais e sabem que a essência do amor não se confunde com o apego a uma lista de características. Esses débeis seres que sofrem por suas dificuldades com relação à presença ou ausência do objeto amado ou se abismam ante os obstáculos para significar a experiência emocional.
Sendo assim, apesar das ameaças da biologia sintética e da eficiência da máquina, existe uma invariância: o ser humano que deita no divã do psicanalista é, em sua essência, alguém que busca dar um significado às experiências emocionais que o impactam. Parafraseando Freud, me animo a reafirmar que, tendo como dote comum uma mente criadora de significados, há muito mais continuidade entre os humanos que deitaram nos divãs da Viena do início do século XX e os homens e mulheres que deitam em nossos divãs do século XXI, do que a impressionante cesura das conquistas tecnológicas permitiria supor. Não é, pois, por causa da tecnologia que a psicanálise estará ameaçada em sua essência.
Não pensar como um modo de vida: um ‘não’ à ética de bolso
Elias e Elizabeth Rocha Barros (2003), no trabalho citado anteriormente, comentam o quanto, na atual cultura de resultados rápidos, onde “(…) tempo é dinheiro e dinheiro é a medida do sucesso” (p. 6), a psicanálise é, muitas vezes, sentida na contramão. Tais condições clamam, segundo eles, por uma atitude ativa dos analistas, ou seja, que, além do trabalho do dia a dia com cada paciente, assumam uma postura ideológica de resistir ao sedutor convite do “(…) não-pensar como um modo de vida” (p. 8).
Estimo ser fundamental - na sustentação dessa ideologia e na manutenção de uma atitude ativa dirigida à proteção do pensar - que o analista esteja vinculado e atento, durante seu trabalho, à premissa de continuidade e invariância do mundo interno, compreendendo que o conceito ‘cultura pós-moderna’, refere-se a uma conjunção constante de fatores que apenas estimulam, não causam, determinadas tendências de pensamento e comportamento nos indivíduos. Do mesmo modo que, como mostra Bion em Uma memória do futuro (1979), identificamos no sujeito adulto desde partes mentais ainda não nascidas até aspectos maduros, funcionando em um grau altamente sofisticado de abstração, também encontramos, em todas as épocas da história, manifestações psicopatológicas que não ficam circunscritas a um determinado período da cultura. Não fosse assim, teríamos que classificar o comportamento de Lady Macbeth - estimulando o marido a não pensar e buscar o poder utilizando a ética de bolso sugerida pelas circunstâncias, no caso a tomada do poder a qualquer preço -, como típicos de uma personalidade pós-moderna e não como exteriorizações de traços perversos de caráter que se manifestam nos seres humanos desde que existem pessoas na face da Terra.
Nesse mesmo sentido, Meltzer (1989) enfatiza que os conflitos e resistências não são mais intensos hoje do que foram na Viena de Freud. Apenas a forma da resistência alterou- se. Comento essas evidências porque penso ser fundamental para o analista tê-las em mente no trabalho do dia a dia, no momento em que seu paciente deita no divã, enquanto a pós-modernidade estende seus tentáculos nas proximidades do consultório.
Desafinando no coro dos contentes: livre da responsabilidade de ‘curar’
A resposta humana à proliferação medicamentosa e de tratamentos biológicos, precisa expressar-se na revalorização dos propósitos essenciais da psicanálise. Apesar do objetivo comum de lidar com o sofrimento psíquico, a psicanálise distingue-se das demais abordagens psicológicas ou biológicas por ser um procedimento focado no sujeito, em seu modo de viver e se relacionar com os objetos internos e externos. Donald Meltzer (1971), comentando essa questão fundamental em seu livro O processo psicanalítico, lembra que foi
(…) natural o desenvolvimento que ligou (…) a psicanálise ao campo médico e à especialidade da neuro-psiquiatria; (…) Mas, à medida que a psiquiatria progrediu, através de drogas, psicoterapia, tratamentos em grupo e abordagens sociológicas, a pressão sobre o psicanalista no sentido de que “curasse” a doença diminuiu, e sua posição no mundo começou a se clarificar. (…) Livre da responsabilidade de “curar”, a psicanálise voltou-se claramente para o desenvolvimento do caráter, atraindo um tipo diferente de paciente com diferentes objetivos. (p. ix-x)
Ou seja, a essência da psicanálise não é a simples ‘cura’ dos sintomas e, neste sentido, ela não compete com as psicoterapias voltadas para a resolução das manifestações sintomáticas ou com os tratamentos medicamentosos. Lembro, aqui, as palavras de André Green (1995):
(…) minha esperança, ao fim da análise, será (…) que meu analisando esteja apto para aproveitar um pouco mais a vida do que podia antes de procurar tratamento, ou, como diz Winnicott, que esteja mais vivo, mesmo que os sintomas não tenham desaparecido de todo. (p. 226)
Renato Mezan (1993), refletindo sobre esse mesmo problema, assim define os limites e as relações entre psicanálise e ciências biológicas:
(…) a psicanálise não tem como finalidade “remover sintomas neuróticos” (…) dito de outra forma, o que é sintoma para a psicanálise e para a medicina não é o mesmo, e por este (…) motivo, a “competição” entre psicanálise e neurociências simplesmente não existe. [A noção errônea de competição origina-se no] (…) pesado tributo à origem [da psicanálise] como método de tratamento das doenças nervosas. [A psicanálise] é um procedimento (…) que opera segundo princípios próprios e tem por finalidade a transformação da personalidade do paciente. (…) não a transformação dele em outra pessoa, supostamente melhor e mais feliz do que a que era antes; [mas] transformação (…) naquilo que pode vir a ser, se conseguir livrar-se de algumas das mutilações emocionais que sua história lhe impôs. (p. 5)
Penso que tais depoimentos são definitivos e suficientes para colocar a questão no devido lugar e resolver essa aparente competição da psicanálise com as demais abordagens dos problemas psíquicos.
III. Protegendo o setting
Uma das mais frequentes indagações feitas aos psicanalistas refere-se ao tópico do paciente que nos procura necessitando uma rápida solução de seus problemas. A resposta me parece óbvia: se um paciente estiver com pressa, a psicanálise não está indicada para ele. E, se um dia, em função das necessidades desses tempos pós-modernos, todos estiverem com pressa, não haverá mais lugar para a psicanálise e teremos que fazer outra coisa. Mas não nos enganemos chamando essa outra coisa de ‘psicanálise’: se não houver tempo para ela é pena, mas não é justo travesti-la para nos acomodarmos à urgência e às leis do mercado. Talvez um dia, numa era pós-pressa, pós-pós-moderna, ela venha a ser reinventada e alguém lendo nossos trabalhos até lembre da sentença de que toda a novidade não é mais que esquecimento.
Depois de milênios de evolução social, não há dúvidas de que temos características que nos distinguem de nossos antepassados pré-históricos. Porém, entre os hominídeos e o homem atual, existem alguns aspectos essenciais inalterados. Basta abrir os jornais de hoje para ter notícias dos Laios, das Jocastas e Édipos que perambulam por nossas pósmodernas cidades ou habitam nossos medievais presídios por não terem podido manter a trama no terreno da fantasia. Quaisquer que sejam, portanto, as pressões sociais, o analista precisa ter uma noção clara de que seu campo de trabalho é o mundo interno, que a realidade à qual precisa dirigir sua atenção e atividade é a realidade interna. O campo da realidade externa é propriedade dos sociólogos, dos economistas, dos cientistas políticos.
Se o mundo interno é o foco privilegiado, torna-se fundamental a preservação do cenário em que se desenrola o nosso trabalho. Já foi dito que o analista é o ‘guardião do setting’. E acrescento: precisa ser o guardião agradecido do setting, porque é o rigor na manutenção do enquadre que permitirá desempenharmos a função analítica, a cada dia, com a competência de um maratonista. Compreendo o setting como um objeto estético inviolável em sua intimidade. Ali dentro, o resto do mundo não entra.
Muitos apontam, como obstáculo sediados nas próprias instituições psicanalíticas, a diversidade de teorias que se apresentam, hoje em dia, em uma proliferação babélica. Porém, uma observação cuidadosa das reuniões clínicas desenvolvidas nos congressos e nas sociedades psicanalíticas aponta para um fato evidente: desde que as diversas teorias sejam encaradas sem dogmatismo, elas podem servir como modelos que, “(…) não se excluem mutuamente, mas relacionam-se como raízes, tronco e galhos com aquilo que são os frutos e flores do consultório” (Meltzer, 1989, p. 16). Isso reforça, apesar das transformações que nos cercam, o vértice da invariância.
Sei que, ao relembrar tais conceitos de Bion (1991), não estive, ao longo de todo o texto, mais do que repetindo velhas questões já levantadas pela filosofia quando confronta Heráclito com Parmênides, existência com essência, mudança com permanência. Mas parece-me que, na prática clínica e na tarefa de criar significados, a ênfase deve ser colocada na invariância e na adesão ao método. É essa postura que permitirá, em meio a toda a parafernália tecnológica pós-moderna, que um homem de meia-idade, executivo de uma multinacional, depois de encerrar uma importante reunião de negócios, dirija-se ao consultório de seu analista, tire o paletó, deite-se no divã, afrouxe o nó da gravata e consiga preservar um espaço e um tempo no qual entrará em contato com o menino dependente, capaz de amar, que reside no interior do adulto.
Tudo que ele não precisa é encontrar um Deep Fritz com sua fria capacidade de examinar milhões de possibilidades de ação por segundo. N a luta do século, pelo menos por enquanto, o dr. Sigmund Freud leva nítida vantagem.
Referências
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Endereço para correspondência
Juarez Guedes Cruz
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Rua César Lombroso, 41 Bairro Rio Branco
90420-130 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3331-1341
E-mail: jgcruz@pro.via-rs.com.br
Recebido em 5.8.2009
aceito em 12.8.2009
1 Médico. Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.
2 O texto original de Borges é: “Compor o Quixote em princípios do século XVII era um empreendimento razoável, necessário, quem sabe fatal; em princípios do século XX, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar um apenas: o próprio Quixote” (Borges, 1999, p. 495).
3 Tal conjuntura foi ilustrada, recentemente, no filme Milk (2008), de Gus Van Sant, sobre a trajetória de Harvey Milk, político e ativista americano pelos direitos gays.