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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo 2010
DEBATE
O futuro mutante da psicanálise
El futuro mutante del psicoanálisis
The ever-changing future of psychoanalysis
Anna-Maria de Lemos Bittencourt1, Rio de Janeiro
RESUMO
A autora examina algumas transformações e revisões ocorridas na teoria e na técnica psicanalítica, na obra de Freud e na de seus sucessores, desde 1910. Considera decisivas as mudanças da última teoria freudiana, assim como as contribuições de Ferenczi e Winnicott e examina seus desdobramentos na clínica contemporânea. Verifica possíveis mudanças dos princípios e fins do método analítico. O histórico de transformações mostra a fecundidade do pensamento psicanalítico, levando a autora a considerar que as perspectivas futuras da terapia analítica serão alvissareiras, desde que um vigor mutante seja mantido, o que exige dos analistas e de suas instituições, a análise permanente de mecanismos que possam levar a estéreis repetições.
Palavras-chave: psicanálise "clássica"; manejo; integração do eu; transformações teóricas e técnicas.
RESUMEN
El autor examina algunas transformaciones y revisiones en la teoría y en la técnica psicoanalítica, en la obra de Freud y en la de sus sucesores desde 1910. Considera decisivos los cambios de la última teoría freudiana, así como las contribuciones de Ferenczi y Winnicott examinando sus desdoblamientos en la clínica contemporánea. Verifica posibles cambios de los principios y fines del método analítico. El historial de transformaciones demuestra la fecundidad del pensamiento psicoanalítico, llevando el autor a considerar que las perspectivas futuras de la terapia analítica serán prometedoras, siempre que el vigor mutante sea mantenido, lo que exige de los analistas y de sus instituciones el análisis permanente de mecanismos que puedan conducir a repeticiones estériles. Palabras clave: psicoanálisis "clásica"; manejo; integración del yo; transformaciones teóricas y técnicas.
Palabras clave: psicoanálisis "clásica"; manejo; integración del yo; transformaciones teóricas y técnicas.
ABSTRACT
The author examines some transformations and revisions in the psychoanalytic theory and techniques of Freud and his followers since 1910 – which gave the psychoanalytic method an unforeseen scope. She deems decisive the changes in the last Freudian theory, as well as Ferenczi and Winnicott’s contributions to the concept of object and examines their unfoldings within contemporary clinic. She reflects upon possible changes of principles and goals of the analytic method. The history of transformations reveals the fecundity of psychoanalytical thinking, leading the author to believe that the future prospects of analytic therapy are promising, insofar a mutant vigor is maintained – which demands from analysts and their institutions a permanent analysis of possible mechanisms that can lead to sterile repetitions.
Keywords: "classical" psychoanalysis; management; ego integration; theoretical and technical transformations.
As "Perspectivas futuras da terapia psicanalítica" foi a o nome dado à conferência proferida por Freud, em 1910 durante o II Congresso Internacional de Psicanálise, ocasião em que foi fundada a Associação Internacional de Psicanálise. A psicanálise já possuía então significativo passado: há 10 anos fora publicada a obra genial de Freud, A interpretação dos sonhos, que ao desvelar processos inconscientes causou uma revolução no campo do conhecimento; Freud ganhara renome internacional e os anos de isolamento profissional haviam ficado para trás; a prática clínica acumulada, assim como os êxitos terapêuticos alcançados, deixavam-no confiante na eficácia do método psicanalítico e ainda que considerasse que quase tudo aguardava ainda comprovação definitiva, apostava nos novos aportes que adviriam do progresso interno teórico e técnico, da psicanálise, assim como do progresso externo, vinculado ao aumento da autoridade do analista no meio médico e cultural e do efeito universal do trabalho psicanalítico.
A RBP homenageia neste número o centenário da IPA e sugere uma complexa pergunta- eixo para os comentários do texto de 1910: quais componentes que você considera necessários em uma terapia hoje, para abrigar os princípios e os fins do trabalho psicanalítico?
Freud inventaria neste trabalho conquistas teóricas e técnicas da psicanálise, desde a cura hipnótica e catártica, salientando as mudanças de princípios e inovações já ocorridas. A nova meta era proporcionar ao enfermo a representação-expectativa consciente, a partir da qual ele poderia descobrir em si mesmo a representação inconsciente reprimida, estando aí implícito o modelo da interpretação dos sonhos. Isso tornou-se possível pela exploração e análise da transferência à qual juntou-se a recém-descrita contratransferência, que caberia ser ultrapassada pela autoanálise do analista. O psicanalista abandonara a desapiedada e esgotante técnica de fazer pressão para o paciente tudo dizer, preferindo agora escutar suas associações livres. Freud (1910) propõe-se escrever uma Metodologia Geral da Psicanálise, série de artigos sobre técnica sendo o texto ora comentado candidato a primeiro da lista. Tal tarefa jamais foi concluída, seus trabalhos sobre técnica foram parcos, talvez pelo temor de Freud vê-los transformados em um conjunto de regras, dissociados da reflexão de cada analista sobre sua prática clínica. De todo modo publicará alguns no período de 1910 a 1915, reunidos em seus Escritos sobre Técnica.
Frequentador assíduo das sendas já familiares da histeria e da boa resposta por ela oferecida ao tratamento analítico, Freud percebe, ao enfrentar os percalços das neuroses fóbicas e obsessivas, que, para vencer as defesas ali encontradas, torna-se necessário introduzir variações na técnica de acordo com a forma de enfermidade e as pulsões que predominem no paciente. Ele ainda tateava nas lides com os obsessivos e já percebera com os fóbicos, a necessidade de prolongar o tempo inicial de análise até poder instá-los a abandonar o sintoma protetor.
Novas perspectivas abriram-se à terapia analítica com a transformação da tópica freudiana e com a última dualidade pulsional. As moções pulsionais 2, oriundas não mais do inconsciente, mas do Id, quando sob o domínio da pulsão de morte não são sequer capazes de se fazer representar no inconsciente, gerando um excesso de excitação. O conceito de trauma é reconsiderado, sendo visto como produto desta força pulsional não representada, nem elaborada, que ganha aqui maior pertinência que a representação; diante disto o eu desamparado defende-se, por meio do mecanismo da clivagem, e deforma-se para proteger-se do despedaçamento e da angústia, às custas, porém, do distanciamento da realidade. Os limites entre o eu e a realidade sofrem severos prejuízos.
A compreensão do funcionamento mental dos psicóticos foi alargada com o conhecimento desses novos mecanismos mentais, mas aos novos aportes teóricos de Freud não se seguiram os técnicos, sendo tal jejum rompido apenas muitos anos depois, com as publicações de "Análise terminável e interminável" (1937a), "Construções em Psicanálise" (1937b) e "Esboços de Psicanálise" (1940). Mesmo ali encontraremos um Freud reticente ao tratamento de psicóticos, propondo uma renúncia definitiva ou temporária a esta empreitada até que um plano mais idôneo possa ser encontrado. Coube aos seus sucessores estender a eles o uso do método, tarefa apenas vislumbrada por Freud e para tanto, tiveram que lidar com outro tipo de conflito, não mais entre inconsciente e consciente, mas entre o eu e a realidade.
Pressionado por uma clínica de pacientes graves Ferenczi rapidamente percebeu que a análise do recalcado e das resistências não os atendia. Tornavam-se imprescindíveis variações técnicas. Partindo deste pressuposto crê caber ao analista toda sorte de recursos imaginativos para encontrar a abordagem adequada à cada caso, devendo abandonar a posição de fria neutralidade a favor da participação ativa, de uma técnica elástica e de um acolhimento empático ao paciente. Vê-se que o papel do objeto se avoluma, sua condição de externalidade e seu potencial traumatogênico são valorizados, diferentemente da teoria freudiana construída em cima do interjogo pulsional, examinando o objeto principalmente em sua relação com o mundo interno. O analista em sua pessoalidade é aqui levado em consideração. Tal ponto de vista fez de Ferenczi um pioneiro e, independente dos seus desacertos na aplicação das técnicas propostas, seu ponto de vista deixou indubitavelmente marcas na psicanálise contemporânea.
Winnicott, na mesma esteira ferencziana, dará grande destaque à função do objeto e o examinará sob uma condição bastante singular, como transicional entre o objeto subjetivo- fruto da fusão sujeito/objeto própria ao narcisismo primário – e o objeto objetivamente percebido. Por sua condição de unir ao separar, ele possui valor simbólico que, para ser mantido carece da presença de um objeto que alimente o estado de indecisão criativa do eu, não o obrigando a definir seus limites com a realidade.
O tratamento-tipo próprio às neuroses, cujos princípios e fins Freud delineou em 1910, baseia-se na interpretação do recalcado. A palavra em sua função simbólica, fruto do espaço potencial da análise, carreia a função transicional de separar e ligar o mundo interno e a realidade. Ocorre que as interpretações não se mostram eficazes com os pacientes não neuróticos; estando seus eus severamente clivados e suas funções simbólicas prejudicadas, carecem exatamente da capacidade de estabelecer ligações com as palavras.
Winnicott acredita que o sucesso terapêutico nestes casos só se tornará possível se variações técnicas no método forem introduzidas. A precariedade egoica e as falhas na diferenciação sujeito/objeto demandam para seu tratamento um processo de regressão à fase de dependência infantil ao objeto, cabendo ao analista dar ao enquadre a função de sustentação (holding), para que uma experiência de integração do eu clivado possa ser experimentada. Winnicott (1954) chamou isso de técnica do manejo que deveria ocupar, nesses casos, a maior parte da cena ficando o trabalho analítico normal ao largo por longo período de tempo. Uma bela imagem de Green (1988, p. 85) referindo-se aos fronteiriços, ilustra esse trabalho; ele diz que o discurso do paciente é um colar de pérolas sem fio, cabendo ao psicanalista, por meio do seu próprio trabalho psíquico, juntá-las. Somente cumpridas essas condições poder-se-á pensar na transicionalização do processo analítico, no trabalho em mão dupla, na associação de idéias/atenção flutuante, na análise dos desejos inconscientes, dos sonhos e do Édipo.
O progresso da psicanálise é fruto do trabalho de pesquisa de muitos, e as ideias que sucintamente expus, ainda que correspondendo, apenas, a uma fatia das transformações teóricas e técnicas do método tiveram desdobramentos significativos na forma de trabalharmos atualmente. O primeiro deles refere-se à consideração do trabalho analítico como fruto da interação analista/paciente, como um produto terceiro criado no e pelo encontro analítico. Tais ideias foram muito especialmente desenvolvidas por Green (2006) e por Ogden (1996) por meio do conceito do terceiro analítico. Um outro desdobramento, intimamente relacionado a este refere-se à relevância adquirida pela contratransferência; ao oferecer-se como um objeto constante, contínuo, integrador, ativamente participante no enquadre, os referenciais teóricos e técnicos do analista, suas características pessoais, seus possíveis conflitos inconscientes e, portanto, sua própria análise são postos em questão e devem ser levados em conta na avaliação dos progressos de uma análise, pois eles agirão sobre a dinâmica inconsciente do analisando. Esse ponto de vista foi destacado por Roussillon (1995) no conceito de situações-limite que exigem do analista um superinvestimento contratransferencial, único modo de comunicação com o paciente.
O campo da psicanálise foi definido a partir de determinados pilares que lhe são próprios: os conceitos de inconsciente, de sexualidade, Édipo, recalque, resistência. Ao trabalhar com pacientes não neuróticos, o analista desloca-se da posição de intérprete para a de um objeto que deverá dar no enquadre analítico sustentação aos estados desorganizados do eu. Tal modelo não se enquadra na chamada psicanálise clássica, seus princípios e fins dela se diferenciam. Haveria aí uma ameaça aos paradigmas fundantes da psicanálise? Não considero que tal método possa se excluído do campo psicanalítico, desde que não se perca de vista o componente fundamental que dá à prática analítica sua especificidade, a de permitir, a de buscar acesso aos processos inconscientes. Winnicott costumava dizer que fazia psicanálise quando possível, quando não, ele fazia outra coisa, mas sempre do seu lugar de psicanalista. Faço coro a essa posição, sem a certeza de que ao fazê-lo não possa estar contaminado o ouro puro da psicanálise.
Essa discussão não é simples, como se pode ver no alentado volume de quase mil páginas editado por Green (2006), uma coletânea de artigos de uns 30 autores de diversas correntes teóricas que se debruçam no estudo dos limites dentro/fora não só do eu, mas da própria psicanálise tentando definir a especificidade do seu campo.
Os aportes que Freud esperou não se restringiam apenas aos decorrentes dos progressos internos ao método, mas igualmente aos externos, que dependeriam da credibilidade dada à análise pelo meio médico e pela sociedade em geral. Ele acreditava que a longo prazo as verdades lançadas pela psicanálise acabariam por vencer as resistências que a ela se opunham. O método terapêutico foi amplamente reconhecido (ressalva seja feita a um grupo conservador dentro do meio médico) e a psicanálise como saber marcou toda a cultura do século XX e foi irreversivelmente marcada por ela, nos movimentos sociais, na literatura, nas artes plásticas. O caminho inverso foi percorrido, a psicanálise foi fruto do seu tempo, o pensamento freudiano deixou-se impregnar pelo conhecimento das ciências da literatura, da linguística, da mitologia.
A fecundidade da psicanálise como fenômeno terapêutico é indissociável do campo mais amplo onde ela se insere, das trocas, da interação com as várias áreas do conhecimento. É preciso que se tenha isto em mente para nos analisarmos e às nossas instituições, quando adoecemos nos aferrando a posições autoritárias e dogmáticas fechadas, substituindo nossa criatividade por mecanismos defensivos estéreis. As maiores resistências à psicanálise vem muitas vezes de dentro de nós mesmos e das nossas instituições.
Ao parabenizarmos a IPA em seu centenário, pela sua função disseminadora do conhecimento, pelos projetos progressistas que ela ora encampa, cabe aquele lembrete, para que não se repitam as experiências de isolamento vividas no passado.
Antes de terminar, uma questão: nós analistas contemporâneos que somos o Freud amanhã, o que podemos esperar das perspectivas futuras da psicanálise? De onde advirão novos aportes? Ao observarmos historicamente as transformações constantes que sofreu o pensamento psicanalítico, podemos afirmar que é de sua condição mutante, de obra em aberto que eles advirão. É isto que garante o vigor do método que só pode ser eficaz, se singular, se construído em cima de um trabalho clínico novo a cada vez.
Referências
Green, A. (1988) O conceito de fronteiriço. In Sobre a Loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Green, A. (2006). De la psychanalyse comme psychotérapie aux psychoterapies pratiquées par les psychanalystes. In Les voies nouvelles de La thérapeutique psychanalytique: Le dedans et le dehors. Paris: P.U.F. [ Links ]
Freud, S. (1991a). Las perspectivas futuras de la terapia psicoanalítica. InS. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Freud. (Vol. 11, p. 129). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original de 1910) [ Links ]
Freud, S. (1991b). Análisis terminable y interminable. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Freud. (Vol. 23, p. 211). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original de 1937a) [ Links ]
Freud, S. (1991c). Construcciones en el análisis. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Freud. (Vol. 23, p. 255). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original de 1937b) [ Links ]
Freud, S. (1991d). Esquema del psicoanálisis. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Freud. (Vol. 23, p. 133). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original de 1940) [ Links ]
Ogden, T. (1996). Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Ogden, T. (2006). Maintenir et Contenir, Être et Rêver. In Les voies nouvelles de La thérapeutique psychanalytique: Le dedans et le dehors. Paris: P.U.F. [ Links ]
Roussillon, R. (1995). Paradoxes et situations limites de la psychanalyse. Paris: P.U.F. [ Links ]
__________ (2009). Conferências proferidas na SBPRJ. [ Links ]
Winnicott, D.W. (1954). Metapsychological aspects of regression within the psychoanalytical set-up. In Through paediatrics to psychoanalysis. London: Karnac [ Links ]
Endereço para correspondência
Anna-Maria de Lemos Bittencourt
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Rua Miguel Pereira, 34 ap. 302
22261-090 Rio de Janeiro, RJ
e-mail: anna.bittencourt@terra.com.br
[Recebido em 26/2/2010 , aceito em 26/3/2010]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.
2 Ver com mais detalhes em Green (2006) a diferenciação entre pulsão e moção pulsional em Green, A. 2006