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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo 2010
ARTIGOS
Patologias atuais ou psicanálise atual?1
¿Patologías Actuales o Psicoanálisis Actual?
Current Diseases or Current Psychoanalysis?
Zelig Libermann2, Porto Alegre
RESUMO
Iniciando por uma sistematização em três áreas (sintomática, metapsicológica e sociológica) do conceito de patologias atuais, o texto questiona: as denominadas patologias atuais seriam prerrogativas da contemporaneidade? Mostrando que esses mesmos quadros nosológicos estiveram presentes em outras épocas da história da humanidade, o autor propõe que a atualidade pode ser atribuída à psicanálise que, ao longo de sua existência, passou por acréscimos teóricos e técnicos que permitiram o acesso às áreas de não representação da mente humana. Procura mostrar ainda que, embora se esteja habituado a pensar esses desenvolvimentos da psicanálise ligados predominantemente a autores pósfreudianos tais como Melanie Klein, Bion e Winnicott, para citar os mais conhecidos, considera que podemos encontrar também na obra de Freud delineamentos dessas zonas psíquicas "aquém" da representação. Assim, neste trabalho, antes de abordar algumas transformações da psicanálise que a colocam em uma sintonia maior com a atualidade, o autor procurará evidenciar alguns pressupostos teóricos e técnicos da obra freudiana, que, em sua opinião, contribuíram para o estágio atual da psicanálise.
Palavras-chave: patologias atuais; compulsão à repetição; teoria estrutural de Freud; identificações primárias; desmentida; cisão do ego.
RESUMEN
Comenzando por una sistematización en tres áreas (sintomática, metapsicológica y sociológica) del concepto de patologías actuales, el texto cuestiona: ¿las denominadas patologías actuales serían prerrogativas de la contemporaneidad? Mostrando que esos mismos cuadros nosológicos estuvieron presentes en otras épocas de la historia de la humanidad, el autor propone que la actualidad podría atribuirse al psicoanálisis que, a lo largo de su existencia, ha pasado por incrementos teóricos y técnicos que han permitido el acceso a áreas de no representación de la mente humana. Y aunque estemos acostumbrados a pensar acerca de esos desarrollos del psicoanálisis vinculados predominantemente a autores post freudianos tales como Melanie Klein, Bion y Winnicott, para atenernos a los más conocidos, el autor considera que podemos encontrar también en la obra de Freud delineamientos de esas zonas psíquicas por "debajo" de la representación. Así, en este trabajo, antes de enfocar algunas transformaciones del psicoanálisis que lo sitúan en mayor sintonía con la actualidad, el autor tratará de mostrar algunos supuestos teóricos y técnicos de la obra freudiana, que, en su opinión, han contribuido para el actual estadio del psicoanálisis.
Palabras clave: patologías actuales; compulsión a la repetición; teoría estructural de Freud; identificaciones primarias; desmentida; escisión del ego.
ABSTRACT
The text questions whether the so-called "current diseases" are a prerogative of contemporaneity, beginning by systemizing the concept of current diseases in three areas (symptomatic, metapsychological and sociological). Showing that the same nosologic sets of symptoms have been present at other times in the history of humankind, the author proposes that contemporaneity could be attributed to psychoanalysis, which, throughout its existence, has undergone theoretical and technical additions that allowed access to areas of non-representation in the human mind. The author also shows that, although we are used to thinking of such developments in psychoanalysis as mostly being connected to post-Freudian authors, such as Melanie Klein, Bion and Winnicott, to mention only the most distinct, the author believes that we may also find, in Freud's work, sketches of those psychic zones which are short of representation. Therefore, in this paper, before approaching some transformations of psychoanalysis which make it more attuned with current times, the author will try to demonstrate some theoretical and technical assumptions from Freud's work which, in his opinion, contributed to the current stage of psychoanalysis.
Keywords: current diseases; repetition compulsion; Freud's structural theory; primary identification; disavowal, splitting of the ego.
O conceito "patologias atuais", que passou a ser citado com mais ênfase em artigos, livros e debates psicanalíticos há, aproximadamente, uma década, não se refere a uma patologia específica, mas a um conjunto de distúrbios psíquicos com características psicodinâmicas semelhantes. Na busca de uma descrição mais generalizada, podemos situar as patologias atuais em três eixos: fenomenológico, metapsicológico e sociológico.
Do ponto de vista das características sintomáticas, as patologias atuais compreendem quadros de depressão, organizações psicossomáticas, uso de drogas, transtornos alimentares, personalidades fronteiriças e/ou narcisistas.
No que se refere aos aspectos metapsicológicos, o reforço às defesas narcisistas e a dificuldade em manter laços afetivos acarretam uma insuficiência de representações na mente do indivíduo, gerando uma angústia intensa que pode levar à substituição da atividade simbólica, essencial à construção do psiquismo, por manifestações voltadas ao corpo ou ao ato. O pensamento perde lugar para a ação.
Com relação ao que denominei de eixo sociológico, o avanço científico e tecnológico e os costumes mais flexíveis propiciaram uma vida mais longa e com melhor qualidade. No entanto, essa evolução teve como contrapartida a possibilidade de negação do poder do outro, uma vez que a tecnologia acena com a ilusão de satisfação imediata dos ideais narcisistas. Além disso, o espaço para o questionamento, necessário à evolução da sociedade, está tomado, muitas vezes, por um relativismo extremado em que se perdem os limites, as responsabilidades e as funções atribuídas a determinados papéis sociais. Em ambos os casos, a consequência é uma angústia intensa frente a um vazio de representações (internas e externas).
Tendo feito essa delimitação do campo de estudo, gostaria, então, de propor uma questão: seriam as patologias atuais prerrogativas contemporâneas?
Depressão, anorexia nervosa e uso de drogas, entre outros, acompanham a humanidade há centenas de anos. Além disso, na trajetória da humanidade, encontramos inúmeros momentos de transformações sociais, políticas e econômicas, nos quais fenômenos amplamente citados na atualidade, como ausência de sentido, sensação de vazio, egoísmo, gratificação ilimitada, relatividade da autoridade, estiveram presentes nas relações humanas.
Sendo assim, caberia questionar porque enfatizamos a atualidade de patologias que, há muito tempo, acompanham o homem.
Sem negar as especificidades da sociedade contemporânea e o esforço, nas várias disciplinas do conhecimento, para compreendermos os fenômenos de nosso tempo, minha hipótese é que a atualidade poderia ser atribuída à psicanálise e não à patologia. Penso que, ao longo de sua história, nossa disciplina passou por acréscimos teóricos que permitiram a compreensão mais ampla da mente e por desenvolvimentos técnicos que possibilitaram acesso a áreas do psiquismo que funcionam "aquém" da representação.
A evolução da teoria psicanalítica ampliou o entendimento sobre os períodos iniciais da vida psíquica. Tal fato proporcionou não apenas o atendimento de pacientes com estruturas não neuróticas, em que um ego frágil e fronteiras lábeis demandam uma grande parte da energia para enfrentar os limites entre o externo (objeto) e o interno (pulsão), como também o acesso a áreas mais primitivas do psiquismo de pessoas com estruturas neuróticas.
E embora estejamos habituados a pensar esses desenvolvimentos da psicanálise ligados predominantemente a autores pós-freudianos, tais como Melanie Klein, Bion e Winnicott, para citar os mais conhecidos, considero que podemos encontrar também na obra de Freud delineamentos dessas zonas psíquicas "aquém" da representação. Assim, neste trabalho, antes de abordar algumas transformações da psicanálise que a colocam em uma sintonia maior com a atualidade, procurarei mostrar alguns pressupostos teóricos e técnicos da obra freudiana, que, em minha opinião, contribuíram para o estágio atual da psicanálise.
Um primeiro elemento que cabe destacar é a redefinição da etiologia da compulsão à repetição, descrita em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1976). Nesse texto, considerado um turnning point da obra freudiana, as pulsões continuam a ser definidas como um conceito entre o psíquico e o somático, como uma medida de exigência imposta à mente em consequência de sua relação com o corpo (Freud, 1915/1976). No entanto, a compulsão à repetição não é mais definida somente pelas moções libidinais não satisfeitas, regidas pelo princípio do prazer. Agora, entramos em contato com um ser humano que, desde o nascimento, contém forças primitivas que o impelem a descarregar seus impulsos de modo automático. São pulsões que pressionam continuadamente, e que muitas vezes estarão em desacordo com a realidade, evidenciando uma compulsão à repetição que é independente e mais originária do que o princípio do prazer. Dessa forma, Freud procura entender a reedição daquelas vivências que não contêm nenhum tipo de prazer e aparecem na história do indivíduo como um destino, como uma sina inescapável, um "viés demoníaco" (Freud, 1920/1976, p. 21).
Alguns anos depois, em "O ego e o id" (1923/1976), Freud, sem abandonar as ideias metapsicológicas de 1915, delineia a teoria estrutural, na qual a mente é composta por id, ego e superego. Ao formular esse modelo, ele faz outra mudança fundamental: coloca as pulsões definitivamente dentro do aparelho psíquico (Green, 2003a, 2003b). E qual a importância desse fato?
Na primeira formulação do aparelho psíquico, a denominada primeira tópica, Freud ressalta que as pulsões nunca podem chegar a ser conscientes e que mesmo no inconsciente a pulsão não está, ela é representada por uma representação. Ora, quando nos referimos aos representantes da pulsão, estamos tratando de estados mentais nos quais houve ligações que deram um destino às moções pulsionais. O predomínio de energias ligadas é fundamental para a manutenção da estabilidade psíquica. E as representações são unidades que permitem a formação do pensamento, que, por sua vez, abre o caminho para a autonomia do indivíduo frente ao mundo interno e à realidade externa. Temos aqui um modelo eminentemente ligado à representação.
Em 1923, ao lado do ego e do superego, Freud descreve o id, território que contém as pulsões. Com a introdução dessa instância, ele faz um esboço diferente da mente. Nesse novo "desenho", não somente as pulsões primárias estão dentro do aparelho psíquico, como são os elementos constituintes da porção primeira desse psiquismo:
Me refiro a Georg Groddeck, que insiste, uma e outra vez, que aquilo que chamamos de nosso ego se comporta na vida de maneira essencialmente passiva, e - segundo sua expressão - somos vividos por poderes ignotos (unbekannt), ingovernáveis. Todos recebemos (engendrado) essas mesmas impressões, ainda que não nos tenham avassalado a ponto de excluir todas as outras. Proponho dar razão chamando de ego a essência que parte do sistema P e que é primeiro prcc, e id, segundo o uso de Groddeck, ao outro psíquico, em que aquele se continua, que se comporta como icc. (p. 25)
O aparelho psíquico passa a conter uma parte inconsciente que nunca chegou e nunca chegará a ser consciente. Devido à falta de relação direta com a realidade, o id não sofre alterações internas. A pressão pela descarga e a falta de transformação de seus conteúdos relacionam-se com o automatismo e a compulsão à repetição, modos de funcionamento mental presentes na normalidade e nos quadros patológicos.
Em "Luto e melancolia" (1917/1976), "Psicologia das massas e análise do ego" (1921/1976) e "O ego e o id" (1923/1976), encontramos outra ideia de Freud que podemos considerar importante para a compreensão das áreas de não representação da mente: as identificações primárias:
[…] as primeiras identificações, as produzidas na idade mais primitiva (…) [que] não parece o resultado nem o desenlace de uma investidura de objeto: é uma identificação direta imediata (não mediada), e mais primitiva que qualquer investidura de objeto. (1923/1976, p. 33)
De acordo com Freud, as primeiras identificações ocorrem na fase oral do desenvolvimento, período em que o objeto, ao ser incorporado, sofre uma aniquilação e, portanto, "é por completo impossível distinguir entre investidura de objeto e identificação" (p. 31).
Segundo Marucco (1998),
[…] essa identificação constitutiva do rudimento do ego, que é prévia a toda carga de objeto, a todo enlace libidinal. Quase poderíamos dizer: é o próprio desejo da mãe que se constitui de alguma maneira em representação no sujeito. Esse considera como própria uma parte do ego que é alheia às suas próprias pulsões; portanto, é um inconsciente que não é reprimido. (pp. 22-23)
Nesse processo primitivo forma-se o que Marucco denomina "estrutura narcisista" (p. 46), a qual contém o ego ideal, "mito fantasmático de caráter narcisista, sem dúvida diferente do ideal de ego, cuja estrutura já contém identificações secundárias" (p. 49).
A importância desse conceito vincula-se ao período da vida em que, muitas vezes, as vivências se armazenam no indivíduo sem haver passado pela consciência e, por isso mesmo, não chegaram a ser reprimidas. E também porque o próprio desenvolvimento, com a potencialidade traumática que acarreta, desencadeia feridas narcísicas, menores ou maiores, que contribuem para as repetições compulsivas do indivíduo.
A vantagem da repetição é que sua atualização, ainda que dolorosa, oferece a perspectiva de um futuro, mas não de qualquer um, se não aquele – eterno – dos velhos "propósitos", "promessas". (Marucco, 1998, p. 53)
As identificações primárias, a busca do restabelecimento da completude narcisista, nos levam ao conceito de desmentida, outro ponto da obra de Freud que relaciono com a psicanálise contemporânea.
A descrição pormenorizada dos efeitos do mecanismo da desmentida (1927/1976, 1938[1940]/1976) levou-o a concluir que, frente às ameaças da realidade externa, o ego pode conviver com duas correntes psíquicas contraditórias simultâneas: uma que reconhece a realidade e outra que a desmente. Em um grau intermediário, a desmentida foi associada ao fetichismo (deslocamento de investidura para um objeto inanimado ou parte do corpo de outra pessoa que desminta a castração, sem o comprometimento da totalidade da mente). Em uma intensidade maior, essa defesa foi relacionada à psicose (rompimento da relação do ego com o mundo externo e criação de uma nova realidade em acordo com os impulsos do id). A observação desse fenômeno acrescentou um elemento novo na estruturação do ego, isto é, a cisão.
Inicialmente vinculada à perversão e à psicose, a cisão do ego foi considerada por Freud, em 1938, um fenômeno universal da mente. Assim, o ego passou a ser descrito com uma parte reprimida (e que, portanto, é formada por conteúdos que, um dia, foram conscientes) e outra cindida (que contém elementos frutos da desmentida, maior ou menor, da realidade e que, por isso mesmo, são muitas vezes inacessíveis).
Considerando-se que no início da vida, o ego ainda não completamente estruturado pode ter mais ou menos dificuldades para enfrentar o mundo externo e seus estímulos e o mundo interno e suas excitações, as experiências têm um potencial traumático. A intensidade dessas vivências e a capacidade do ego para lidar com elas determinam a extensão de cada uma de suas porções: a reprimida e a cindida. A parte cindida contém elementos que, por sua intensidade ou pela fragilidade do ego, não puderam ser ligados, isto é, são inscrições psíquicas não representadas e, portanto, inacessíveis.
Embora Freud não tenha usado explicitamente o termo áreas de não representação, podemos considerar que os elementos descritos acima remetem a esses espaços psíquicos em que predominam fronteiras (entre mundo interno e mundo externo e entre as instâncias intrapsíquicas) muito lábeis. Há um temor à loucura, e a impossibilidade de pensar é uma forma de refúgio para uma identidade vazia, mas que é uma identidade. O sujeito não se sente em condições de enfrentar os conteúdos que vêm do mundo interno com um potencial de angústias de desestruturação.
Psicanálise atual
Como é uma constante na obra de Freud, o funcionamento da mente é explicado a partir da observação de fenômenos da psicopatologia. Saúde ou doença mental são frutos da intensidade de cada um dos mecanismos de funcionamento psíquico. Pulsões, identificações primárias, desmentida e cisão do ego são conceitos relevantes para a normalidade e para a patologia.
A vida se define pela força de ação das pulsões do id, fusionadas de um modo mais perene que caracteriza o funcionamento geral de um indivíduo, mas que também pode apresentar quantidades variáveis em momentos diferentes.
E como não pensar em um grau de identificação primária na situação do auge do amor, quando ocorre o desejo pelo retorno a um estado anterior de fusão e a fronteira entre ego e objeto está temporariamente ameaçada de desaparecer?
E quanto à desmentida? Fortemente associado à patologia, frequentemente esquecemo- nos que esse mecanismo de defesa pode ter uma função de preservação do psiquismo. A fórmula "sei que existe, mas…" da desmentida que, por um lado, pode levar ao fetichismo e outras perversões ou, em grau maior à psicose, por outro, permite não somente uma elasticidade que contribui para evitar o rompimento do ego como também é um fator de manutenção da fantasia que auxilia o sujeito a enfrentar a realidade cotidiana. Como, por exemplo, a moça que "sabe que sua mãe morreu, mas…" que, em alguns momentos, assolada pela saudade, desvia-se de seu caminho para passar em frente ao prédio onde morara sua mãe, recentemente falecida, na esperança de vê-la passear com o cachorro como fazia todos os dias.
O que se procura salientar nesse trabalho é que esses elementos, tanto na normalidade quanto na patologia, não são prerrogativas atuais. Evidentemente que as mudanças sociais se refletiram na incidência de certos tipos de patologia em que se observam o predomínio da expressão de pulsões desenfreadas, identificações primárias e desmentida que empobrecem o funcionamento mental. E como consequência, também a prática psicanalítica passou por transformações. Verifica-se, já há algum tempo, a necessidade de expansão de nosso campo de conhecimento para dar conta daquelas organizações que estão além da neurose, de aparelhos psíquicos que estão além (ou será aquém?) da representação. E também, ampliar a possibilidade de ajuda a pacientes neuróticos que, embora em intensidade menor, nos mostram aspectos relacionados às experiências primitivas de seu desenvolvimento. Afinal, como destaca Marucco (1998), "em toda neurose transferencial coexiste uma neurose narcisista" (p. 44).
Assim, podemos identificar a presença do id nas descargas impulsivas (as passagens ao ato) ou nas manifestações corporais (sintomas somáticos) que revelam a impossibilidade da mente de encontrar um destino psíquico para pulsões desenfreadas. Tanto em um indivíduo fronteiriço que reage intensamente a qualquer frustração quanto em outro com um ego mais integrado que, enfrentando as vicissitudes de seus conflitos edípicos, desenvolve a mesma e intensa alergia cutânea que seu pai.
Ou a busca infindável do objeto idealizado por meio de relações tão intensas quanto lábeis, marcadas pela fantasia de reencontro com o ego ideal. Ou, ainda, dificuldade em estabelecer ligações simbólicas para os conteúdos cindidos do ego.
Pois bem, os conceitos de áreas de não representação e de ego cindido acarretaram um acréscimo aos objetivos da psicanálise. Não se trata apenas de relembrar conteúdos ou de revivê-los na transferência. O paciente necessitará viver pela primeira vez aquelas experiências que, por sua potencialidade traumática, não puderam ser abarcadas pelas representações. A respeito de viver pela primeira vez, Green (2000) utiliza o interessante termo heterocronia, derivado da biologia, e que significa geração de partes do corpo em época diferente daquela em que nascem normalmente. Esse termo, como um amálgama desses acréscimos à relação analítica, implica também a transformação do papel do analista em seu contato com os pacientes.
A constatação de que existem áreas da mente que não estão respaldadas nas representações teve reflexos na técnica. E, novamente, a meu ver, Freud abriu o caminho para mudanças posteriores com seu artigo "Construções em análise" (1937/1976).
No texto, o trabalho do analista é visto sob os ângulos da interpretação (que está ligada ao material do paciente) e a da construção (que consiste em o analista oferecer, a partir conteúdos comunicados pelo paciente, elementos ausentes da história). Para defender esse pensamento, Freud lança mão da comparação com a arqueologia. Segundo ele, os arqueólogos, a partir de indícios históricos encontrados, podem inferir certas características da vida em determinado local, em épocas passadas. Também o analista teria essa possibilidade: tendo como base as manifestações do paciente, poderia supor conteúdos de sua história.
Penso que essa ideia de Freud poderia ser relacionada a uma das grandes transformações da psicanálise contemporânea: a importância do trabalho da mente do analista na relação com seu paciente (que poderíamos considerar implícita nas ideias de Bion [1970] sobre a mente em desenvolvimento; no conceito de espaço potencial de Winnicott [1953]; na concepção de Green sobre o trabalho do negativo [1990], na teoria do campo analítico do casal Baranger [1961] e no recurso à figurabilidade do analista descrito por César e Sara Botella [2002]).
A necessidade de o paciente vivenciar pela primeira vez os conteúdos cindidos significa uma participação diferente do analista. Seu funcionamento mental torna-se importante. É preciso ajudar o paciente a encontrar algo novo, um objeto analítico que não é de um e não é de outro, que promova ligaduras com potencial transformador da realidade.
No entanto, esse recurso tem seus riscos: como saber se nos significados que estão na mente do analista não predominam suas problemáticas próprias? Contar com o funcionamento mental do analista não implicaria o risco de se repetir, em análise, a situação que levou ao estabelecimento da organização narcisista primária no paciente?
O próprio Freud adverte, no texto "Construções em análise" (1937/1976), que o direito de o analista oferecer hipóteses não implica o descuido com os indícios originados na reação do paciente a essas formulações. E entre esses indicadores (sonhos, atos falhos ou associações que se relacionem com a construção), considera de especial valor a convicção de verdade que surge no paciente frente ao que lhe comunica o analista. Levando-se em conta que, em muitas situações, não será possível trazer certos conteúdos à consciência, a convicção "no [âmbito] terapêutico rende o mesmo que uma recordação recuperada" (p. 267).
A insuficiência de simbolização, que implica o predomínio de manifestações por meio do corpo ou do ato, frequentemente confronta o enquadre analítico e seus recursos: a clássica posição de neutralidade, o silêncio e a inatividade do analista, as regras do setting etc.
E como definir que posturas devem ser mudadas? Quais as regras do setting que precisamos tornar flexíveis? E, principalmente, como mudar sem cair em um relativismo extremado que nos faça perder a especificidade que nos define?
Penso que André Green (2001) esboça uma ideia de integração que nos auxilia a percorrer esse difícil caminho:
De modo algum sou partidário, durante essas fases difíceis, de abandonar a atividade interpretativa que continua sendo, para mim, a essência do trabalho analítico. Sustento, ao contrário, que as modificações técnicas eventuais (passagem da posição deitada para a sentada, aumento da frequência de sessões e de sua duração – nunca de seu encurtamento –, resposta a chamadas telefônicas ou a cartas do analisando) têm um só propósito: manter o poder da palavra libertadora por meio da interpretação. Esta é a prova de que a relação de transferência continua, ainda nas condições mais difíceis, o que não significa que as interpretações devam ser sempre "de transferência" nem necessariamente profundas. (p. 89)
Considerações Finais
Há aproximadamente três décadas, em psicanálise se considerava que existia uma ampla variedade de pessoas para quem não estava indicado o tratamento psicanalítico. Nesse grupo certamente se incluíam indivíduos que, hoje em dia, consideramos portadores das, assim denominadas, patologias atuais. Por essa razão, e pelo contato com alguns textos (Dostoiésvski, 1879/2002, Freud, 1908/1976) que descrevem sociedades de épocas pregressas com características iguais às do tempo atual, é que propus a questão inicial sobre a que devemos atribuir atualidade: às patologias ou à psicanálise.
Podemos enumerar uma série de fatores que condicionaram essa mudança em nossa clínica. Desde as transformações da sociedade e da cultura à evolução da teoria psicanalítica, passando pela questão, muitas vezes referida, da diminuição da demanda por psicanálise, que teria levado os psicanalistas a buscar uma ampliação do mercado de trabalho. Embora não desconsidere todas essas possíveis variantes, particularmente, centro minha atenção na evolução da teoria psicanalítica, que, como descrevi acima, permitiu a ampliação do entendimento da mente humana.
Levando-se em consideração a neurose clássica (conforme a denominação de Green, 2001), podemos considerar a lógica unitária: pulsão, representantes da pulsão, repressão, superego, bloqueios etc. Porém, no campo da não representação, não encontramos mais a lógica da unicidade. Precisamos pensar em termos de campo analítico, do encontro de duas pessoas distintas, com situações distintas que estão interagindo.
E como parte desse desenvolvimento, uma transformação importante ocorreu em relação ao papel desempenhado pelo enquadre e pelo analista na relação com seus pacientes.
O enquadre analítico passou a ter uma flexibilidade, sem, no entanto, perder sua especificidade. E é importante que mantenha seu arcabouço para o estabelecimento de um juízo que, entre outros fatores, proteja o analista das loucuras privadas (Green, 1988) do paciente, mas, também proteja o paciente das loucuras privadas do analista. O enquadre deve ser mantido como um espaço potencial de criatividade entre paciente e analista.
A partir do desenvolvimento dos conceitos de contratransferência, de campo analítico e das teorias sobre o psiquismo do início da vida, a mente do analista passou a ter outra dimensão na relação analítica. Ao entendimento de conflitos e à formulação de interpretações adicionou-se a função prioritária da contenção. Nossa tarefa como analistas é procurar, em primeiro lugar, ajudar o paciente a afrouxar os laços que o prendem a um modo de vida em que a repetição predomina mais que a transformação.
E esses objetivos devem ser buscados sem que tenhamos que abrir mão de nossas especificidades: a compreensão da dimensão humana em seus aspectos inconscientes; o método centrado no encontro entre dois seres humanos que se propõem a interagir em um tempo que não é o do cotidiano acelerado; a busca de um autoconhecimento que não procura o alívio imediato; enfim, o pensamento antes que o ato.
Referências
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Endereço para correspondência
Zelig Libermann
[Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA]
Av. Taquara, 110/302
90460-210 Porto Alegre, RS
e-mail zliber@terra.com.br
[Recebido em 06/10/2009, aceito em 14/01/2010]
1Versão modificada do trabalho "Patologias atuais ou psicanálise atual?" apresentado na mesa-redonda Compulsões e patologias atuais: contribuição da psicanálise, realizada durante o XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 29 abril a 2 de maio de 2009.
2Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, SPPA.