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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo 2010
RESENHAS
Neurose e não-neurose
Autor: Marion Minerbo
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2009, 470 p
Resenhado por: Daniel Kupermann,1 São Paulo
Da escuta diagnóstica à sensibilidade clínica
Um gênio malicioso que se apossa, vez ou outra, de almas da comunidade pensante cunhou a máxima: "A psicanálise é ótima para diagnosticar, péssima para tratar". Como toda malícia, essa também preserva conexões com algum princípio de realidade explorando, de acordo com os seus interesses, duas tendências recorrentes no campo psicanalítico. A cisão estabelecida, e frequentemente ressuscitada, entre psicanalistas "teóricos" e "clínicos" – subentendendo-se que bons teóricos são maus clínicos e bons clínicos não sabem o que fazem –, e a exclusão do setting analítico dos quadros de sofrimento psíquico mais complexo, ou dos chamados pacientes difíceis.
A primeira dessas tendências encontra suas raízes, muito possivelmente, no fato de a psicanálise ter sido desprezada, nos seus primórdios, pelos saberes estabelecidos, constituindo- se e desenvolvendo-se à margem da academia, em agremiações independentes da comunidade científico-universitária. Porém, o mesmo movimento isolacionista que possibilitou a liberdade necessária para o avanço da disciplina nascente, cristalizando-se defensivamente, arrisca produzir uma rigidez do pensamento de tonalidade paranóica, na qual a psicanálise permaneceria imune à crítica, ao diálogo com outros saberes e às questões impostas pela atualidade.
Já o estigma merecido pelos pacientes considerados intratáveis foi cedo questionado pelos psicanalistas que resistiram a submeter-se à hegemonia da razão diagnóstica e aos imperativos da técnica padronizada, privilegiando a experiência do cuidado que constitui a clínica psicanalítica. Foi o caso de Sándor Ferenczi, na década de 1920, instigado pelas demandas atípicas de seus pacientes severamente traumatizados e comprometidos em seu processo de simbolização e em sua capacidade de elaboração da dor. A percepção, bastante afinada, de que as dificuldades encontradas nesses tratamentos sugeriam diferenças significativas em sua constituição subjetiva – não podendo ser consideradas meras "resistências à análise" – originou a ideia de que a clínica psicanalítica precisaria adaptar-se, no sentido de acolher o seu sofrimento, assim como um ambiente empático adapta-se às necessidades e demandas do infans desejado. Essa é a inspiração maior de toda uma família de analistas – com destaque para Melanie Klein, Winnicott, Bion e André Green, entre outros – cuja atitude teoricoclínica revelou-se crucial para a atualização da psicanálise.
Neurose e não-neurose, de Marion Minerbo, embala-se nesse mesmo espírito, e se impõe, entre nós, como uma obra necessária e esclarecedora. Ao enfrentar, com precisão, os desafios da clínica contemporânea, Minerbo rompe com o incômodo círculo vicioso que opõe teoria e práxis, explicitando seu parentesco entre os que pensam e praticam uma psicanálise sintonizada com o seu tempo. Originalmente preparado como um curso de psicopatologia para a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, onde a autora leciona, o argumento mantém-se fiel ao princípio de que não há escuta psicanalítica transformadora sem iluminação metapsicológica, sendo que a teoria, em momento algum, se sobrepõe às surpresas dos fatos clínicos ou tiraniza, por meio de injunções superegoicas, o ato analítico. E, lemos logo nas palavras introdutórias, é justamente a "noção de psicopatologia que faria a mediação necessária entre clínica e metapsicologia" (p. 14). Mas de que maneira isso seria possível, se foi a mesma psicopatologia que, muitas vezes ao longo da história da psicanálise, se ofereceu como saber segregador dos "intratáveis" e como anteparo defensivo ao encontro clínico?
A primeira parte de Neurose e não-neurose, que dá título à edição, indica a resposta. Nela, encontra-se uma discussão crítica acerca do diagnóstico na psicanálise, e uma interlocução com duas importantes obras de referência: Manuel de Psychopathologie psychanalytique, de Juignet (Presses Universitaires de Grenoble), e Manuel de Psychologie et de psychopathologie clinique générale, organizado por Roussillon (Elsevier-Masson). Além disso, encontra-se, ao final, uma exposição esquemática acerca do processo de constituição do narcisismo e do objeto do desejo, bem como das principais distinções metapsicológicas entre as subjetividades neuróticas e não neuróticas, bastante útil à função didática à qual o livro se propõe. No entanto, à medida que se prossegue na leitura, constata-se, com prazer crescente, que a obra pouco se assemelha com o que se poderia esperar de um "manual" de psicopatologia. O estilo fluente empregado pela autora, mesclando a simplicidade da linguagem coloquial com a complexidade do objeto tratado, encontra seu clímax nas várias ilustrações clínicas apresentadas – que compõem a parte mais saborosa do texto. Marion Minerbo não hesita em colocar a mão na massa, expondo as sutilezas do seu ofício; e não permite que, em sua apresentação da psicopatologia, as formulações teóricas predominem sobre o que a vivência encarnada da clínica pôde lhe apresentar. O leitor percebe, assim, que está diante de um modo recriado de transmissão da experiência psicanalítica, no qual as formulações metapsicológicas preservam o aroma do cenário afetivo que as originou: uma psicopatologia "artesanal", tecida pelo fio das elaborações singulares de sua autora dos sofrimentos aos quais oferece sua escuta.
Marion Minerbo privilegia na escuta diagnóstica sob transferência, menos o esquematismo das grandes estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – que os modos de funcionamento psíquico, que podem ser neuróticos ou não neuróticos, de acordo com a qualidade das angústias e das defesas das quais o sujeito lança mão. "O psiquismo", escreve Minerbo, inspirada, nesse momento, em Melanie Klein, "é formado por 'camadas geológicas' bastante heterogêneas entre si, cujas características podem se manifestar em momentos distintos, dependendo das solicitações do objeto. A ideia de estrutura fica, assim, relativizada" (p. 73).
Dessa maneira, ao resgatar a íntima conexão – característica do método de produção de saber na psicanálise – entre fato clínico e elaboração teórica, a autora desnaturaliza, de um só golpe, a concepção de que bons clínicos seriam intuitivos e poderiam prescindir de uma compreensão profunda da metapsicologia, bem como de que a psicanálise é um tratamento restrito ao sofrimento neurótico, sendo impotente frente à intensidade dos quadros mais regredidos. Isso porque, para além da pureza das formalizações diagnósticas, a matéria heterogênea da qual a clínica é tecida frequentemente embaralha os códigos semiológicos estabelecidos, e amplia os limites do encontro com a alteridade. O saber assim produzido é, efetivamente, fronteiriço, e passa a acolher aqueles que não se enquadram nos padrões exigidos pelos critérios tradicionais de analisabilidade, os chamados borderlines (Winnicott, Kernberg etc.).
De fato, a noção de não-neurose, sugerida por André Green, e aprofundada na segunda parte do livro, "Não-neurose: prospecções", abarca uma ampla gama do sofrimento psíquico que escapa às questões edípicas que estiveram na origem da constituição do campo freudiano. Nela estão representadas as clivagens narcísicas descritas por Ferenczi, as angústias primitivas kleinianas e as ansiedades impensáveis winnicottianas, bem como o fracasso da função alfa bioniana. A "subjetividade predominantemente não-neurótica" – como a concebe Minerbo, para sublinhar que na maior parte das vezes núcleos não-neuróticos convivem com dimensões neuróticas – sugere fragilidade nas identificações primárias e na constituição narcísica (self e ego, segundo Juignet) e, portanto, comprometimento dos processos de simbolização e das possibilidades de continência dos excessos pulsionais. Trata-se de analisandos para os quais a separação eu-outro não se completou adequadamente, e que necessitam, para sobreviver ao desamparo radical traumático, da manutenção de objetos idealizados e onipotentes, ainda que, na maior parte das vezes, persecutórios e ameaçadores.
Como seria de se esperar, o manejo clínico das subjetividades predominantemente não-neuróticas exige do psicanalista uma enorme disponibilidade afetiva. Proporcionalmente à intensidade das angústias circulantes, as atuações e as manifestações de ódio passam a predominar no espaço analítico. Para esses analisandos, é crucial que o trabalho analítico possa contribuir para a destruição dos objetos cindidos, bem como para "criar novas identificações" (p. 123). No entanto, a condição sine qua non para que o processo terapêutico possa transcorrer favoravelmente é que o analista sobreviva aos ataques sofridos e, sobretudo, não os retalie na forma de interpretações incompatíveis com a capacidade elaborativa do analisando. A clínica da não-neurose é, assim, marcada decisivamente pela ética do cuidado, que tem como princípios irredutíveis o acolhimento dos movimentos pulsionais do paciente, a empatia com o seu sofrimento e a disponibilidade sensível do psicanalista.
Marion Minerbo dedica-se, ao longo de todo o argumento, a ilustrar os meandros do manejo clínico segundo o cuidado exigido pelas subjetividades predominantemente não-neuróticas. Relatos de casos mesclam-se com exemplos inspirados no cinema para oferecer ao leitor um amplo panorama da psicanálise contemporânea. Os filmes Flores partidas, de Jim Jarmusch, e O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, evidenciam a função do objeto na depressão e na compulsão; O alucinado, de Buñuel, ilustra o ódio paranóico; enquanto O que terá acontecido a Baby Jane?, de Robert Aldrich, retrata o ódio na inveja.
Dentre os vários exemplos clínicos trabalhados pela autora (e são muitos, aos quais remeto o leitor para fazer justiça à riqueza da obra), acompanharemos apenas dois fragmentos, que explicitam a função heterodoxa de suporte (holding) necessário dos movimentos regressivos na clínica da não-neurose, seja através do silêncio empático, seja por meio da interpretação facilitadora dos processos de simbolização.
João (…) espera tudo de seu objeto. Se ele o faz, é porque o vê como onipotente (…). Ele não o vê assim porque o quer, mas porque precisa: em seu desamparo absoluto, ele não poderia sobreviver sem tal objeto (…). Nesse sentido, não adianta contestar a defesa (…). É preciso criar, no campo transferencial, condições para elaborar as angústias que estão exigindo essa defesa. (p. 84)
Já Márcia, uma analisanda que desde muito cedo precisou exercer a função do "bebê sábio" (Ferenczi), socorrendo psiquicamente os adultos da sua família, sofre uma clivagem que resulta, de um lado, em uma hiper-adaptação às demandas ambientais, ilustrada por um notável desempenho profissional, e de outro em uma imaturidade emocional evidente em suas relações pessoais. Sua experiência afetiva, nomeada de depressão, se assemelha mais aos sentimentos de irrealidade e de inutilidade descritos por Winnicott. Em um determinado momento da sua análise, Márcia se isola dos amigos e dos parentes – para que estes não se preocupem com o estado dela –, passa a ter muitas crises de choro e relata:
Só estou me aguentando porque conto com Deus. Com ele posso chorar como um bebê, e acho que estou fazendo isso pela primeira vez em minha vida. Sei que ele não vai me abandonar. (p. 254)
A interpretação oferecida por Marion Minerbo para uma analisanda habituada ao fato de seus objetos se desorganizarem diante da sua fragilidade é estritamente transferencial (não é difícil compreender, no caso em questão, que Deus é uma representação da analista):
Não adiantava pedir ajuda para alguém que iria desmilinguir com você. Deus certamente não desmilinguirá se você precisar de um colinho para chorar. Que bom poder contar com a ajuda Dele! (p. 255)
O que chama a atenção nesses relatos é a evidência de que, na lida com subjetividades predominantemente não-neuróticas, a idealização é, muitas vezes, necessária, e o analista terá que evitar a tentação de diagnosticar um masoquismo secundário combatendo-o por meio de interpretações que, certamente, carregarão uma tonalidade superegoica persecutória e desestruturante. Afinal, como indica a autora em seu estilo afiado e bem humorado, se "o superego edipiano é um chato", o superego "pré-edipiano é sádico e louco" (p. 145).
Na terceira e última parte do livro, "A não-neurose e o contemporâneo", Minerbo estabelece um diálogo entre a psicanálise e alguns fenômenos característicos das formações culturais, buscando investigar as determinações socioculturais para o fato de a não-neurose se apresentar como a organização psicopatológica privilegiada na contemporaneidade. A tese principal da autora é a de que assistimos, na atualidade, a um comprometimento da função simbolizante (a "depleção simbólica") responsável pela precariedade de mediações representacionais para conter a intensidade pulsional e pela consequente eleição, por parte dos sujeitos, de patologias do ato: sejam as atuações que se oferecem como meio descarga para o transbordamento pulsional (violência adolescente, práticas de modificação corporal, reality games), seja o próprio desinvestimento erótico (depressões), sejam as variadas modalidades de adições.
Essa é, decerto, a parte mais "experimental" da obra, e revela o esforço teórico de uma psicanalista que, assumindo sua perplexidade frente às surpresas e aos sofrimentos da sua época, busca realizar a principal vocação da psicanálise em sua vertente crítica da cultura: oferecer-se como uma ferramenta – das mais versáteis, como se pode constatar – para a interlocução com outros saberes e para a busca de horizontes para as questões impostas pela atualidade.
Ao fim da travessia de Neurose e não-neurose, o leitor se sente menos vulnerável frente à maledicência do gênio debochado, e pode lhe devolver um sorriso benevolente, convicto de que, se o psicanalista não é, efetivamente, um Deus, a psicanálise será ótima para tratar, se puder exercer uma escuta sensível e diferenciada no ato de diagnosticar.
1 Professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), psicanalista membro da Formação Freudiana do Rio de Janeiro e autor dos livros Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (Editora Revan), Ousar rir: humor, criação e psicanálise e Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, ambos publicados pela Editora Civilização Brasileira.