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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS

 

O que está em jogo no trabalho analítico? As contribuições de André Green para a metapsicologia da situação analítica

 

¿Qué está en juego en el trabajo analítico? Las contribuciones de André Green para la metapsicología de la situción analítica

 

What is at stake in psychoanalytical work? The contributions of André Green to the metapsychology of analytical situation

 

 

Talya Saadia Candi1, São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo comenta trechos do relatório que André Green apresentou em 1975 no XXIX Congresso da IPA, e traz as contribuições desse psicanalista francês para a metapsicologia da situação analítica. Para Green, a sessão de análise deve ser pensada a partir das descobertas freudianas sobre o trabalho do sonho. Tal como acontece com o sono e o sonho, a finalidade do dispositivo acionado pelo enquadre analítico é implantar as condições necessárias e suficientes para estruturar um processo de simbolização. Ressurgidos do inconsciente ou produzidos pelo encontro analítico, esses símbolos devem poder gerar significados que possam ser traduzidos em pensamentos, palavras e interpretações abrindo espaço para a elaboração das experiências afetivas. O autor introduz a noção de paciente-limite como sendo os pacientes que apresentam uma intolerância ao dispositivo convencional e acrescenta que as variações no dispositivo promovem uma elasticidade técnica, tendo como objetivo único preservar na sessão de análise as condições mínimas de simbolização, sem as quais o processo analítico estaria imobilizado.

Palavras-chave: André Green; simbolização; ausência; paciente-limite; enquadre psicanalítico.


RESUMEN

Este articulo comenta el trabajo que André Green presenta en el ano de 1975 en el congreso da IPA titulado "El analista, la simbolización y la ausencia en el encuadre psicoanalítico" y las contribuciones de este psicoanalista para la metapsicología de la situación analítica. Para André Green la sesión de análisis exige ser pensada a partir da invención freudiana en relación al trabajo del sueño. En este contexto, el propósito del dispositivo analítico es implantar las condiciones necesarias para que suceda en la sesión de análisis un proceso de simbolización. Resurgidos del inconsciente o producidos en el encuentro analítico, estos símbolos deben poder producir significados que puedan ser traducidos en pensamientos, palabras e interpretaciones, dando lugar para la elaboración de las experiencias afectivas. El autor destaca la noción de pacientes-límites como correspondientes a los pacientes que no toleran el encuadre clásico y propone la idea de que todas las variaciones del análisis clásico tienen como objetivo preservar la condiciones mínimas para que suceda, en el encuentro analítico, un proceso de simbolización, sin el cual el proceso analítico estaría inmovilizado.

Palabras clave: André Green; simbolización; ausencia; paciente-limite; encuadre psicoanalítico.


ABSTRACT

This paper comments on excerpts of André Greens' report, submitted in the year of 1975, for the 29th International Psychoanalytical Congress in London, entitled "The Analyst, Symbolization and Absence in the Analytic Setting", and brings the contributions of this French psychoanalyst to the metapsychology of analytical situation. According to Green, the therapeutic situation should be conceptualized based on the Freudian discovery of the workings of dreams. As is the case with sleeping and dreaming, the function of the device triggered by the analytical frame is to implant the necessary and sufficient conditions needed to structure a process of symbolization. Resurging from the unconscious, or produced by the analytical session, these symbols should be able to generate meanings which can be translated into thoughts, words and interpretations, making way for the elaboration of emotional experiences. The author introduces the notion of borderline-patients as being those who show certain intolerance towards the conventional device, adding that the variations in device promote a technical elasticity, having as its only aim the preservation of minimum conditions for symbolization in the therapy session, without which the analytical process would be immobilized.

Keywords: André Green; analytic setting; symbolization; mental functioning; variants of classical analysis.


 

 

1) Introdução

O psicanalista francês André Green se empenhou nos últimos 40 anos em pesquisar a essência do trabalho do psicanalista. Assim, a pergunta feita pelo editor desta revista (o que estaria em jogo no trabalho psicanalítico?) foi discutida por ele em Londres no ano de 1975 num relatório, dedicado à memória de D. W. Winnicott, apresentado por ocasião do XXIX Congresso da IPA. Trabalhar esta questão permitiu uma reflexão sobre os objetivos do dispositivo acionado pelo enquadre analítico e sobre os casos refratários ao dispositivo analítico clássico. A noção de pacientes-limite, na obra de André Green, surge estreitamente ligada às questões relativas à configuração do enquadre, pois por definição o próprio enquadre é questionado por esses pacientes, pondo em xeque o trabalho do analista. Neste artigo dedicar-nos-emos, num primeiro momento, a refletir com Green sobre a questão do limite do analisável para, num segundo momento, comentar o texto do relatório do congresso intitulado: "O analista, a simbolização e a ausência no enquadre psicanalítico". Acreditamos que esse relatório se mantém até o dia de hoje como uma leitura muito valiosa para refletir sobre a situação analítica clássica, possibilitando propor uma sustentação metapsicológica às eventuais modificações no dispositivo, exigidas pelos pacientes não neuróticos.

 

2) André Green e os limites do analisável

Freud descobriu o método psicanalítico a partir das dificuldades encontradas com as histéricas, após a sistematização dos fundamentos da teoria e da técnica psicanalítica continuaram sendo os desafios encontrados nas análises dos pacientes ditos difíceis, que provocaram um maior trabalho de pensamento por parte da comunidade psicanalítica. A noção de paciente-limite nasce na obra do psicanalista francês André Green a partir desta procura: Trabalhar os limites.2

Existiria o risco, abordando o problema nesta perspectiva, de se ater a um subjetivismo puro, pois cabe sem dúvida apontar que os limites do analisável diferem de analista para analista. Assim, podemos facilmente constatar que, quando uma análise não parece funcionar com tal analista, que encontra nela limites intransponíveis, pode muito bem "deslanchar" com um outro, sem que tenhamos que pôr em questão a própria extensão da experiência analítica, como um fator determinante.3 Cabe segundo ele, portanto, abordar a questão por uma outra via, menos dependente das singularidades individuais e mais da qualidade do encontro que proporciona o que foi chamado de situação analítica.4

Sabemos, no entanto, que foi necessário atravessar um longo percurso na história da psicanálise, criar um modelo "ficcional" de um aparelho psíquico, inventar um método terapêutico e definir os pacientes que podiam usufruir desta configuração, muito particular, inventada por Freud, para designar, na época, o termo "neurose" ou doença nervosa, diferenciando- a das neuroses atuais e das psicoses. Assim, na própria busca para determinar os limites da ação terapêutica, tudo parecia se encaixar: nosografia, teoria e técnica. Nessa altura, não se tratava de forçar os mais variados fenômenos para se ajustarem ao enquadre, mas sim criar o enquadre para constituir o próprio objeto analítico.

Essa procura de designar e definir tanto o objeto da psicanálise como sua possibilidade de ação encontra desde muito cedo na história da psicanálise sérios problemas, porque a prática e a teoria nunca pareciam se encaixar plenamente. De fato, nos diz Pontalis (1974), é porque existe uma não coincidência entre a prática e a teoria, um hiato que nem sempre foi possível preencher, que podemos falar legitimamente em um "movimento analítico". Assim, o "movimento analítico" deveria ser fruto de uma inegável distância entre o que a teoria diz e a prática propõe. É esta não coincidência que coloca o analista frente à própria angústia de ter que utilizar uma teoria inacabada para cuidar de seus pacientes.

A categoria limite – casos-limite, estados-limite, pacientes-limite, situações-limite – aloja-se nesta não coincidência. Foi esta categoria que permitiu a André Green explorar e ampliar o movimento constitutivo da obra freudiana, alargando consequentemente o poder de ação da terapia psicanalítica.

Delineia-se, assim, no interior da história da psicanálise, um movimento dialético entre as forças que organizam o campo e os limites da sua ação, de um lado, e as forças que constantemente desafiam esses limites, de outro. E, se existe evolução na teoria e na prática psicanalíticas, é porque estas duas forças coexistem exercendo pressões opostas e complementares, capazes de se organizar em uma articulação interna. É a possibilidade de articular estas tensões opostas e complementares que irá direcionar o próprio movimento. A nosso ver, a obra de Green (que por vezes parece estar, pelo seu caráter combativo, do lado da oposição), encontra-se no coração da articulação deste processo. Assim, seu pensamento profundamente dialético tentou sempre fazer dialogar as mais diversas vozes que se faziam ouvir no campo psicanalítico.

Green foi justamente um dos poucos pensadores que conseguiu sustentar seu espírito questionador e provocativo, sem romper, no entanto, com o núcleo forte do establishment psicanalítico (a IPA: International Psychoanalytical Association). Sua obra, que nunca se afastou das forças conservadoras, procura fazer um constante esforço para articular o que há de mais clássico com as forças que se preocupavam em ultrapassar os limites, promovendo entre elas um diálogo em sua essência interminável.

Visto que os estados-limite estão no limite do analisável, pois não se encaixam no enquadre clássico proposto pela técnica psicanalítica, uma vez que se encontram no limite entre a neurose e a psicose, eles por definição desafiam o analista e despertam o que foi chamado de angústia na contratransferência. Eles se tornam, portanto, o motor original de uma elaboração imaginativa que amplia o desenho ficcional do aparelho psíquico, e a partir daí procura aumentar o alcance da terapia analítica. Assim, ao nascer das situações no limite da possibilidade clínica de análise, as novas conceituações greenianas vinculam irredutivelmente o modelo do psiquismo à vitalidade da própria situação analítica.

Poderíamos, sem dúvida, dizer que desde o início de sua teorização, nos anos 1960, André Green vem se confrontando com os limites do analisável. Contudo, parece-nos que este projeto começa a adquirir corpo e consistência em 1974, na véspera de sua apresentação no Congresso de Londres em 1975.

O relatório do congresso, intitulado "L'analyste, la symbolisation et l'absence dans le cadre analytique" (1975), se impõe neste percurso como o texto no qual Green estrutura as bases do que ele define como um novo paradigma no campo psicanalítico, atribuindo à noção de limite um estatuto conceitual.

Dentro deste novo paradigma, André Green coloca o objeto analítico entre o mundo interno do paciente e o do analista, a ação analítica na fronteira da dialética criada pela dinâmica da interação analisando-analista e pela dinâmica pulsional intrapsíquica do paciente, e define a escuta analítica como abertura de um espaço psíquico que permite fazer comunicar as instâncias (consciente/inconsciente ou id/eu/supereu) e elaborar os excessos afetivos. As propriedades do enquadre (horário, frequência e duração constante da sessão, posição dos participantes), nesta nova perspectiva, integram-se à própria operatividade do método psicanalítico, que está ligado, por sua vez, à maneira específica de conceber a estrutura do funcionamento do aparelho psíquico.

O enquadre, como um dos representantes dos limites, torna-se um dos elementos que fornece coerência à trama do tecido e permite amarrar teoria e clínica, pois é dentro deste território (espaço, tempo) que será possível apreender o modo de funcionamento particular da dialética criada pelo campo intersubjetivo/intrapsíquico. Veremos, no entanto, que são essas fronteiras que serão questionadas pelo paciente-limite e que, ao questionar os limites do enquadre impostos pelo analista, ele estará questionando as condições de possibilidade de exercício do psicanalista e, no final das contas, do próprio método interpretativo – o tempo, o dinheiro, o número de sessões, as posições dos participantes do encontro, o respeito à regra fundamental e a escuta flutuante, isto é, a rotina que o analista se esforça em pôr para funcionar no sentido de poder, no melhor dos casos, esquecê-la e se concentrar nos conflitos inconscientes do paciente (como um corpo saudável, que pode ser esquecido), se tornará nesses casos-limite a problemática da análise. Este desafio atingirá o analista no seu narcisismo e exigirá um intenso trabalho de elaboração contratransferencial. O analista estará, a cada sessão, tendo que reencontrar a possibilidade da sua própria ação; neste sentido, podemos dizer que a categoria limite é um ente propriamente psicanalítico, nascido do método posto em xeque.

 

3) O relatório de Londres: O analista, a ausência e a simbolização

Nas análises dos ditos pacientes-limite o desafio se apresenta para o analista como uma intolerância ao enquadre clássico, intolerância que se manifesta por uma sensibilidade extrema à neutralidade e à postura interpretativa. São estas dificuldades que levaram Green a refletir no relatório de 1975 sobre o objetivo das condições de abstinência e de ausência inerentes ao método analítico.

Para Green a sessão de análise deve ser pensada a partir das descobertas freudianas sobre o trabalho do sonho. Tomando como modelo o sonho que exige como condição um estado de sono por parte do sonhador, a finalidade do dispositivo acionado pelo enquadre é implantar as condições necessárias para que aconteça na sessão de análise um quase-sonho, materializado na atividade da associação livre. Induzido pela inibição da descarga direta do impulso, este sonhar-acordado deve promover um trabalho de simbolização e revelar os conflitos inconscientes. Nas neuroses clássicas, a representação indesejável presa entre a força do desejo e o recalque estava oculta no inconsciente e precisava ser desvelada a partir da capacidade interpretativa do analista. A ausência de visão do analista, que o divã impõe, e a abstinência ligada à sua não resposta, permitem que o analista se torne o suporte de um investimento transferencial móvel, onde as representações transferidas poderão, ao longo do processo, se suceder. Aqui, a atividade do analista está voltada para a interpretação dos desejos recalcados e das resistências que, ao serem neutralizadas, permitem um importante incremento na dinâmica inconsciente do paciente.

Esta dinâmica não parecia corresponder ao que estava acontecendo com os pacientes resistentes ao enquadre, e levou Green a repensar, no contexto da sessão de análise, os princípios da transformação psíquica relativos à passagem da pulsão à representação aos quais retornaremos rapidamente.

A pulsão desperta uma excitação que procura a satisfação por meio do objeto externo pela via mais rápida, mas quando essa satisfação não é possível, por causa da inibição da meta imposta pelo enquadre, resta-lhe somente a elaboração por vias secundárias, isto é, pela via da produção de símbolos e da verbalização. Green nos diz que "a fala na situação analítica desenluta a linguagem", pois a postura e o interesse do analista parecem acordar a força pulsional adormecida na dobra da palavra do paciente e, concomitantemente, reavivar a excitação e o desejo, a impossibilidade e o luto por uma satisfação direta e rápida proporcionada pelo corpo-a-corpo com os objetos primordiais. Assim, paradoxalmente, ao acordar as urgências pulsionais inconscientes para desvelar os recalques, a situação analítica reeditará o luto pelo corpo-a-corpo; esse luto primordial que permitiu à criança aceder à fala, será irremediavelmente encenado dentro da relação com o analista.

Nos casos de neurose, a passagem da pulsão à representação parece ter aberto vias intermediárias de satisfação, o luto pela satisfação direta parece ter sido suficientemente elaborado. O analista estava então ocupando, por vias substitutivas, o lugar dos objetos perdidos. Esses desejos, ao não serem satisfeitos e respondidos, podiam aparecer abertamente e ser elaborados por vias representacionais.

A excitação pulsional despertada na situação analítica forma duas cadeias de transformação. No nível interno, forma-se um circuito inconsciente que transforma a pulsão em diferentes modalidades de representação e de afeto. A partir desse circuito, a força pura da pulsão terá que se converter em produtos secundários, que ao elaborar a perda da satisfação direta desenvolve o autoerotismo que permite uma realização alucinatória do desejo (sonhos, devaneios, atos falhos, fantasias) e instala, assim, uma comunicação entre as instâncias internas (inconsciente, consciente). No nível externo, forma-se uma cadeia feita de linguagem e de fala, constituída por sinais, códigos e mensagens. Esta segunda cadeia permite a comunicação com um outro externo mediante alguma forma de verbalização. A fala é herdeira dos primeiros objetos transicionais, sendo, portanto, um produto do espaço potencial; ela tem justamente como última finalidade a de transportar e comunicar um conteúdo de um espaço para o outro ou de uma pessoa para a outra, por meio da nomeação e das ligações que ela estabelece. As duas cadeias – cadeia sobre a palavra e cadeia sobre o objeto – possuem entre si um efeito de ressonância, pois qualquer excitação em uma delas acarreta uma excitação na outra. Para Green, essas duas cadeias constituirão o fundamento de uma estrutura psíquica autorreflexiva que tem como finalidade mediar um diálogo entre o corpo e o mundo externo, entre o dentro e o fora.

No funcionamento psíquico normal, as produções do aparelho psíquico trabalham formando vínculos de correspondência entre as diversas formações – todo o funcionamento psíquico é fundamentado em relações de correspondência, que ao mesmo tempo preservam alguma semelhança e proximidade, mas também permitem a distância e a diferença, possibilitando assim a transformação das formações psíquicas. "Todo o funcionamento psíquico", afirma Green (1974), "se fundamenta em uma série de vínculos de correspondência que permitem o trânsito" (p. 92). O exemplo mais fácil de entender é o da correspondência que existe entre o sonho noturno e a realização alucinatória do desejo. As relações entre as diferentes produções psíquicas não são unicamente de oposições, mas também relações de colaboração que permitem, por exemplo, a tradução de um conteúdo manifesto em um conteúdo latente. Para que esta tradução possa acontecer é preciso que exista uma possibilidade de trânsito (feita de semelhanças e diferenças, proximidade e distância) entre os diferentes espaços.

Nas estruturas-limite, percebe-se que existe uma grande dificuldade de estabelecer relações de correspondência internas e externas que movimentam o sentido e permitem uma comunicação entre os espaços. O luto, de uma possibilidade direta de comunicação dada pelo corpo-a-corpo que a situação analítica impõe, parece estar mal elaborado. A profunda sensibilidade às condições impostas pela abstinência e pela não resposta do analista provocam uma confusão na funcionalidade dos diversos tipos de materiais (excitação, símbolos, afetos...) que inviabiliza o efeito de ressonância entre as duas cadeias:

As palavras são utilizadas como coisas, os sonhos, longe de constituir um objeto da realidade psíquica interna vinculada ao corpo que delimita um espaço pessoal interno de elaboração, desempenham a função de eliminar os excessos de excitação. As fantasias, quando podem aparecer, surgem como uma atividade compulsiva destinada a preencher um vazio, ou são confundidas com a realidade. (Green, 1974, p. 94)

São esses fenômenos que dificultam ao paciente usufruir dos benefícios regressivos do enquadre e das interpretações que o analista coloca à sua disposição.

Entretanto, nos diz Green (1974), "É próprio da função do enquadre tolerar as tensões extremas e reduzi-las com a ajuda do funcionamento mental do analista, para ascender finalmente a objetos que possam ser pensados" (p. 87). Assim, caberá ao analista, através de manejos internos ou externos, criar uma dosagem de abstinência e de ausência, proporcionando algum grau de satisfação, e restaurar a capacidade de conter, de simbolizar e de se comunicar: "Parece-me", diz Green (1974), "que todas as variações da análise clássica têm como objetivo, ao promover uma elasticidade técnica, preservar as condições mínimas de simbolização" (p. 87).

Para criar algum sentido no encontro analítico, para que o analista possa entender o paciente e este possa escutar as intervenções do analista, condições mínimas de simbolização precisam ser instaladas e preservadas. Para Green, essas condições dependem das propriedades do espaço que separa a produção expressiva do paciente e a possibilidade de escuta do analista. O objeto analítico é definido neste contexto como estando no espaço que junta e separa os dois participantes do encontro. É a partir do conceito de espaço potencial winnicottiano que Green (1974) define o objeto analítico. Diz ele:

O verdadeiro objeto analítico não está nem do lado do paciente, nem do lado do analista, mas sim na possibilidade da junção destes dois discursos, no espaço potencial que se forma entre eles, delimitado por um enquadre que se quebra após cada separação e se reconstitui a cada reunião (...). Neste contexto, o que deve determinar nossa formulação interpretativa não é a apreciação do que sentimos ou entendemos da relação analítica; a formulação interpretativa ou a abstenção da mesma deve estar fundamentada na avaliação do hiato que existe entre o que o analista deseja comunicar e a apreciação hipotética do que o paciente pode acolher e receber para formar o objeto analítico. (p. 88)

A partir desta formulação, Green define as duas propriedades do espaço intersubjetivo que se forma espontaneamente entre o analista e o paciente: a distância e a diferença. São esses parâmetros que poderão tanto medir o grau de ausência e de abstinência que o paciente suporta (distância), como avaliar o que o paciente pode ou não pode projetar/ introjetar no nível simbólico e criar sentido (a diferença). O intervalo que separa analista e paciente deve instaurar a possibilidade de movimentar e transformar o sentido mantendo entre ambos uma distância eficaz. As duas propriedades do espaço analítico (distância e diferença) devem ser ajustadas dentro do enquadre analítico. Para isso, as noções de ausência/ presença, diferença/semelhança, proximidade/distanciamento devem ser levadas em consideração para pensar o processo analítico. Se a diferença e a distância entre a palavra do analista e a compreensão do paciente forem excessivas ou se a simples presença ou ausência do analista despertar uma quantidade excessiva de ansiedade, não haverá transformação possível. O desajuste desses parâmetros imobiliza o trabalho do analista, pois aumenta de maneira insuportável o nível de excitação e de angústia despertados pelo encontro analítico; a elaboração passa a ser pura evacuação de excesso e provoca processos de análise intermináveis, análises que não colocam em marcha um processo de criação de sentido.

Nos casos-limite, os instrumentos expressivos de comunicação são utilizados como descarga dos excessos pulsionais. Assim, instala-se intrusivamente no campo da situação analítica um excesso pulsional, impossível de ser verbalizado e elaborado; o analista responde utilizando suas qualidades psíquicas e empáticas, para diminuir os excessos e colocar em funcionamento um dispositivo de elaboração que mantenha a inibição direta da meta pulsional.

Parece, contudo, que o efeito da inibição da satisfação pulsional impede a retenção da experiência necessária para constituir um traço mnêmico que ativa a rememoração e a lembrança; isto é agravado pelo fato de que a descarga está infiltrada por elementos destrutivos que se opõem à constituição dos vínculos, que têm como objetivo atacar os processos de pensamento – tudo se passa como se fosse o analista que precisasse proceder para realizar a inscrição da experiência que não pode ter acontecido. A partir daí, surge a ideia de que estes pacientes se encontram presos a conflitos atuais. A resposta na contratransferência,é esta que deve ter acontecido do lado do objeto. (Green, 1974, p. 92)

Na continuação do relatório, Green se pergunta: "O que acontece quando esta elaboração por via comunicativa falha por parte do paciente e portanto deve ser suprida pelo analista?" É a partir da definição da palavra símbolo que ele responde a esta pergunta: "O símbolo é um objeto cortado em dois, que consiste em um signo de reconhecimento, pois permite que os que o carregam possam juntar os dois pedaços" (p. 87). Quando o paciente não consegue se comunicar através de palavras com o analista, este se vê chamado a trabalhar psiquicamente para preencher o vazio.

Neste caso, o analista se vê convocado a fazer um grande esforço que o leva a desenhar imagens que correspondem à vida mental do paciente. Assim, inconscientemente, ele está ajustando suas possibilidades psíquicas às do paciente, suprindo o vazio imaginativo deste último e a ausência simbólica de elaboração psíquica que não foi realizada pelo objeto primário. O funcionamento mental do analista deve elaborar psiquicamente as moções pulsionais despertadas na sessão.

Assim, o analista preenche a parte que falta entre a fonte de comunicação (da pulsão) e a formação expressiva desta última. O vínculo simbólico deve permitir que a falta do trabalho psíquico do paciente encontre um eco no trabalho imaginativo do analista provocando uma experiência de reconhecimento. O fundamento da esperança que traz, nestes casos, o paciente para a análise está na própria possibilidade de encontrar no analista tanto um reconhecimento homólogo do que não estava podendo ser expressado e comunicado, como uma resposta que não pode ter sido proporcionada pelos objetos primários. Nestes casos, o investimento libidinal do analista é, sem dúvida, essencial para fazer as ligações necessárias e criar fantasias que possam completar os buracos representativos.

O enquadre, espaço de simbolização, representa o holding e os cuidados maternos, mas por ser delimitado no tempo e no espaço, ele sempre inclui um terceiro ou o outro do outro. Nestes tipos de trabalho, os limites da relação serão dados unicamente pelos limites do enquadre analítico; o começo e o final das sessões serão, neste cenário, de extrema importância, pois neles se encontra a possibilidade de colocar em funcionamento um movimento no qual existam cortes e junções, separações e reencontros.

Para Green, o coração do processo analítico encontra-se ligado à possibilidade de separar e de reencontrar; assim, opondo-se a uma concepção idealizada de um desenvolvimento "natural" e linear do processo5 analítico, ele nos diz:

Farei a hipótese de que o procedimento psicanalítico deveria aproximar-se da descoberta do Outro (interno e externo), e abrir a possibilidade de amar, se separar e se reencontrar, sem riscos catastróficos, mas sempre incluindo a incontornável eventualidade de ter que enfrentar um luto. (Green, 2004, p. 1875)

 

Referências

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Candi, T. (2010). O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

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Freud, S. (1969b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vols. 4 e 5). São Paulo: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

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Pontalis, J.-B. (1974). Bornes ou confins. Aux limites de l'analysable. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 10, p. 7. Gallimard.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1971). Playing and Reality. Londres: Routledge, 2002.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Talya Saadia Candi
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Pedroso de Alvarenga 565, casa 9 – Itaim Bibi
04535-000 São Paulo, SP
e-mail: talyasc@uol.com.br

 

[Recebido 19.4.2010, aceito 21.5.2010]

 

 

1 Membro filiado do Instituto de Psicanálse da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Doutora em psicologia clínica pela PUC-SP.
2 Este foi o título de uma coletânea dirigida por Cesar Botella que reúne textos escritos em homenagem a André Green (Penser lês limites: Ed Delachaux et Niestlé, Paris, 2002)
3 A via subjetivista nos levaria a dizer que o analisável não conheceria outros limites a não ser os do analista, e que a resistência à análise seria sempre a do analista.
4 Cabe aqui a definição do conceito de situação clínica: "A situação clínica é o conjunto dos elementos envolvidos na relação analítica, onde um processo se desenvolve no tempo em que se constitui pelos nódulos, provocados pela transferência e contratransferência, graças ao estabelecimento e delimitação do enquadre" (Green. L'analyste, la symbolisation et L'absence [1974]. In: La folie privée. Paris: Gallimard, 1990, p. 83).
5 Green, neste texto, nos lembra que a etimologia da palavra processo alude a um movimento bi-direcional: "pró" = ir para frente e "ceder" = retirar-se.