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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
ARTIGOS
Sobre migrações e transferências
On migrations and transferences
Acerca de migraciones y transferencias
Marcio de Freitas Giovannetti
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
O artigo se propõe a pensar a clínica psicanalítica da perspectiva da contemporaneidade, isto é, enfatizando que é somente no aqui e agora histórico que ela se dá. Uma análise que vem sendo feita há três anos, na maioria das vezes via Skype, serve de ancoragem para questionamentos a respeito do que é o aqui e agora transferencial. Dela também emerge aquilo que o autor vem a denominar de função testemunho do analista.
Palavras-chave: contemporâneo; aqui e agora; conceitos migratórios; função testemunho.
ABSTRACT
By emphasizing that the psychoanalytical clinic occurs always in the historical here and now, this paper approaches it from a contemporary perspective. An experience of a three-year analysis, mainly via Skype, is used to bring about the questioning of what is the transferential here and now. This experience is also the starting point of an elaboration of the concept of witness function.
Keywords: contemporary; here and now; migratory concepts; witness function.
RESUMEN
El artículo se propone considerar la clínica psicoanalítica desde la perspectiva contemporánea, es decir, haciendo hincapié en que es sólo en el aquí y ahora que la historia tiene lugar. Un análisis que se ha venido realizando durante tres años, la mayoría de las veces a través de Skype, sirve como base para que interrogantes acerca de lo que es el aquí y ahora de transferencia. Del mismo también emerge aquello que el autor denomina la función de testimonio del analista.
Palabras clave: contemporáneo; acá y ahora; conceptos migrantes; función testimonio.
É verdade que o homem como espécie completou sua evolução há milhares de anos atrás; mas a humanidade como espécie está apenas começando a sua. (Benjamin, 1997)
1. Num instigante artigo intitulado "O que é o contemporâneo?", Giorgio Agamben (2009, pp. 5-18) coloca duas questões centrais para todo psicanalista: "De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?". Centrais para todo psicanalista, digo eu, pois nossa práxis só pode se dar no escopo do contemporâneo, naquilo que classicamente chamamos de "aqui e agora". Em Passagens, Benjamin escreveu que
Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora da cognoscibilidade. Nele a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir ... Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. (2006, p. 505)
E é justamente na esteira do pensamento de Benjamin que Agamben (2009, pp. 6364) vem propor sua reflexão sobre a contemporaneidade. Sugerindo que "contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro" e que, sabendo enxergar essa obscuridade, "é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente"; e dizendo que "contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo.", ele vai mostrar que "o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo." "Quem pode dizer - o meu tempo - divide o tempo, inscrevendo neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa cesura, dessa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo coloca uma relação especial entre os tempos..., fazendo dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações" (Agamben, 2009, p. 71).
2. Quando escreveu os "Fragmentos da análise de um caso de histeria", Freud (1905/1972) se mostrou um homem contemporâneo, dentro da perspectiva colocada por Agamben: não é o caso Dora justamente aquele que introduziu uma fratura no tempo linear, possibilitando a criação do conceito central da clínica psicanalítica - o de transferência? Conceito esse que só pôde ser articulado num "só depois", quando os encontros entre Freud e Dora já haviam sido intempestivamente interrompidos e que, denunciando a complexidade do tempo e do espaço para o sujeito, inserido que ele sempre está em sua contemporaneidade, estabeleceu as bases da clínica psicanalítica.
Viena, 1900, passagem de um século para outro, foram o lugar e o momento histórico em que se deu aquele "primeiro" encontro psicanalítico. Momento e lugar estes, magnífica e precisamente traduzidos nos dois sonhos de Dora, através das metáforas "uma casa ardendo em chamas" e "um caminhar a esmo por uma cidade desconhecida". Imagens essas que adquirem todo seu potencial representacional de um estado de emergência ao lembrarmos que da casa ela precisava sair - mas só depois de resgatar sua caixa de jóias - e que, na cidade desconhecida, ela se dirigia a cada passante anônimo que encontrava perguntando "Onde fica a estação?", obtendo sempre como resposta "A cinco minutos daqui".
Um estado de trânsito urgente por um lugar em vias de extinção que se transforma, num segundo momento, num novo lugar desconhecido do qual também é necessário sair: representações emblemáticas do aqui e agora da transferência por um lado, e, por outro, do momento histórico em que se dava aquela análise.
3. Num momento histórico em que se intensificavam as migrações, fossem do campo à cidade, fossem do Velho para o Novo Mundo, foi justamente numa metrópole - Viena era então a sexta ou sétima cidade do mundo - que surgiu a psicanálise como que a marcar que o sujeito psicanalítico é aquele que está sempre em migração, em transferências, sob o signo de uma casa em chamas, tentando resgatar em regime de urgência seus objetos preciosos ameaçados ou perdidos; em trânsito no anonimato de uma cidade desconhecida e sempre cinco minutos aquém de onde deveria ou desejaria estar. Pois sendo sempre "in-fans", sem fala, ou melhor, sempre falado por sua "in-fância" num lugar e num tempo que já não são aqueles de seu passado, ele está sempre em atraso e em estado de urgência... Daí a saída intempestiva de Dora e o atraso, o anacronismo de Freud em apreender a transferência. Mesmo ele, o primeiro a dar voz e fala para o que chamou de inconsciente, era "in-fans", sem fala, diante da velocidade atemporal dos movimentos de um sujeito em um mundo que não para de migrar, seja ele interno ou externo. Pois pulsional é o movimento que arrasta, inexoravelmente, a cidadela humana.
4. Como desconsiderar o fato de que tanto Freud como Dora eram, os dois, emigrantes de pequenas cidades no campo, vivendo naquele momento na metrópole? Campo e cidade, natureza e cultura. É justamente esta alternância entre um lócus para sempre perdido e um novo e desconhecido lócus existencial que vem dar origem à cifra do sujeito psicanalítico. Cifra esta já presente naquela que veio a ser uma das pedras de toque do pensamento freudiano, a tragédia edípica: um lugar que não era nem campo nem cidade -porque "às portas de Tebas" - assinala desde há mais de dois mil anos o lugar da esfinge e, portanto, do enigma humano. Em 1900, como nos míticos tempos de Édipo, o sujeito continuava a sua migração com seus inevitáveis acidentes de percurso.
5. Se em 1900, às portas de Tebas, estavam os sonhos - as imagens - singulares e próprios de uma jovem do interior da Áustria que se mudara para a metrópole, sendo sua decifração o coração da clínica psicanalítica, cem anos depois o sonho - a imagem - que veio ocupar este mesmo lócus foi apenas um. Não por coincidência, também mostrava uma casa em chamas, uma enorme caixa de jóias. Pois não deixam de ser valores aquilo que estava guardado nas Torres Gêmeas, centro mundial do comércio globalizado, situado não mais numa metrópole, mas na megalópole símbolo de todas as migrações do século XX, New York City, uma cidade de alguma forma conhecida e desconhecida por todos nós.
As imagens reiteradas pelo ciberespaço que convocaram todos nós habitantes deste planeta, psicanalistas ou não, não haviam sido produzidas por um sujeito singular e único nem foram frutos de um relato ou de uma narrativa feitos na privacidade de um encontro com um outro sujeito singular. Não se tratava mais de decifrar o sonho. Não sendo mais o sonho de cada um, era a representação midiática de um "excesso de mundo" que, ultrapassando todo espaço subjetivo, veio exigir testemunho e hospedagem urgentes por parte da massa humana em um mundo globalizado e perplexo, enfatizando que subjetividade e cidade, sujeito e cultura por assim dizer, são um amálgama único. Fato este que, para nós psicanalistas praticantes, recolocou na ordem do dia os assim chamados textos culturais de Freud: "O mal-estar na civilização" (1939/1974b), "O futuro de uma ilusão" (1927/1974a), "Psicologia de grupo e a análise do ego" (1921/1976b) e "Totem e tabu" (1913/1974c). Confirmando também o aforisma benjaminiano que "Há sempre um momento particular no qual se pode verdadeiramente entender um texto", pois se seu entendimento vai sempre depender do momento histórico em que foi produzido e do momento e das condições em que é lido, seu real significado só se revela, na maioria das vezes, no escopo de uma contemporaneidade, a partir de um acontecimento que o torna, por assim dizer, legível.
6. Não há como deixar de reler os sonhos de Dora à luz ou, parafraseando Agamben, à escuridão neles lançada pelo percurso que a humanidade tomou nestes pouco mais de cem anos que deles nos separam. Nem como deixar de reler dessa mesma perspectiva a obra freudiana, observando que ela se inicia com um conceito de sujeito singular e doméstico e caminha em direção a uma expansão deste conceito para um sujeito amalgamado com a massa, fruto também de seu tempo. Não teria sido grupal a primeira subjetividade conforme ele a pensa em "Totem e tabu" (1913/1974c)? Ideia esta que vai marcar também seu último trabalho, "Moisés e o monoteísmo" (1939/1975), de algum modo um testamento e um alerta para que seus seguidores não se transformassem em mais um grupo religioso. Não subestimar as forças totêmicas, a despeito de todo o trabalho civilizatório (e de toda psicanálise), eram suas últimas palavras. Pois a "in-fância" de cada um e de toda a humanidade nunca deixa de existir. O que significa que as forças transferenciais existentes em cada um de nós e em nosso grupo de inserção sobrevivem a toda palavra e a todo pensamento. Daí a impossibilidade de educar, governar e psicanalisar. Nossa casa ainda está em chamas e nossas cidades ainda são desconhecidas e, a despeito de todos nossos monumentos, o nomadismo atávico se atualiza agora num nomadismo globalizado. E a estação, continua a cinco minutos daqui.
7. Quase que a meio caminho de Dora e do 11 de setembro de 2001, o grupo psicanalítico foi assolado por dois acontecimentos traumáticos, de ordem e magnitudes diferentes sem dúvida, mas que deixaram marcas significativas na clínica e na teorização subsequente.
No final da década de trinta, numa sincronia altamente significativa, o grupo como um todo fica órfão do fundador e vive os acontecimentos da II Grande Guerra. Era "a meia-noite do século" na precisa expressão de Victor Serge. Grande parte de seus componentes é lançada para o exílio involuntário. Com Viena ocupada pelo nazismo, a casa estava novamente em chamas. E a cidade mais desconhecida que nunca. Um novo campo, o de concentração, era então criado pela paranoia humana em seu mais alto grau e dele exalava uma fumaça que, impregnando todo o continente europeu, deixou marcas indeléveis em todo o século XX. E, como não poderia deixar de ser, no pensamento e na prática psicanalíticos. Perda do Pai, da pátria, da família foram fatores que influíram seja na escuta seja nas conceituações teóricas dos psicanalistas naquele momento. E a compreensão de setting e de transferência se enrigeceu, cristalizando-se de forma reativa e melancólica. Terrível e assustador demais o mundo externo, fosse ele o do Velho ou do Novo Mundo, é compreensível que as análises se encolhessem para um "aqui e agora" estreito e protegido, com uma ênfase excessiva para o "mundo interno", distanciando-se de seu lugar originário, o de trânsito entre um e outro. Édipo ficou sem Tebas. Destituído de sua cidade, o sujeito psicanalítico como que migrou para uma clausura na qual sua pátria e a história estavam impedidas de entrar. A cultura era então, por suas emanações traumáticas, o não dizível, o irrepresentável por excelência. E o analisando, por assim dizer, mal estava na cultura, pois os restos diurnos eram por demais carregados para a escuta do psicanalista de então, órfão, expatriado que se encontrava.
8. Foi apenas num "só depois", que a caixa de jóias legada por Freud pode ir sendo, pouco a pouco, reaberta e recolocada em uso franco pelo nosso grupo. As contribuições de Winnicott e Lacan nos anos cinquenta e sessenta vieram de algum modo arejar seja o setting seja a escuta do psicanalista. Não sem provocar muito ruído e excomunhões dentro da comunidade. Mas os conceitos de espaço e objeto transicionais por parte de um, e de Simbólico, Imaginário, Real e tempo lógico, por parte do outro, foram reabrindo o percurso freudiano, e re-problematizando a ideia de aqui e agora. Também por essa época, o conceito de rêverie de Bion, apesar de centrado no modelo mãe-bebê, vem reintroduzir o modelo do sonho com todos seus restos diurnos na prática clínica. Em nosso continente, o casal Baranger conceitua "campo psicanalítico", ampliando também o entendimento do que seria uma interpretação transferencial. E, logo a seguir, nos inícios dos anos de 1980, Fabio Herrmann vem a formular seus conceitos de campo transferencial e ruptura de campo que tornam possíveis suas considerações sobre a clínica extensa, praticamente ao mesmo tempo em que Marcelo Viñar vem, com seus trabalhos, mostrar uma clínica compromissada com o contemporâneo e com a história. São passados sessenta anos desde a morte de Freud e, o mundo já na era cibernética, nossa clínica resgata, em maior ou menor grau, a cidade.
9. O que é o aqui num contexto de desterritorialização do planeta e de reinvenção do nomadismo? O que é o agora quando fica evidente que a aceleração do tempo se dá em sincronia com um prolongamento da vida humana decorrente do desenvolvimento tecnológico? O que é o comigo quando o espaço cibernético tende a substituir aquilo que tradicionalmente entendíamos como espaço, possibilitando novos tipos de encontros? Se as bases de nosso ofício foram edificadas no início do século XX, como fazê-lo caminhar no início do século XXI? O problema se torna mais amplo se atentarmos para o fato de que a palavra latina seculum significava, em sua origem, o tempo de duração da vida de um ser humano. Somente mais tarde, veio a adquirir o sentido de cem anos.
10. Em 1786, aos 37 anos de idade e já um homem famoso, Goethe inicia sua viagem que duraria dois anos à Itália. Três meses depois de partir de Weimar, já em Roma, ele escreve "Sigo sendo sempre a mesma pessoa mas creio ter mudado até os ossos" e alguns meses depois, em Nápoles, "Pareço a mim mesmo uma pessoa totalmente diferente. Ontem pensei comigo: ou você era louco antes ou tornou-se agora". Palavras altamente significativas para se pensar o impacto que a ultrapassagem de fronteiras e o contato com uma outra cultura provocam em cada um de nós. Se há pouco mais de dois séculos atrás, a fronteira em questão era a que separava a Prússia da Itália, necessitaríamos de um novo Goethe para articular o impacto vivido por cada um de nós quando todas as fronteiras parecem ter sido ultrapassadas e a cultura ocidental se questiona ao se confrontar com a oriental.
11. Em 16 de janeiro de 1787, Goethe escreve que todos os artistas de Roma estão de luto, pois o rei de Nápoles, legítimo herdeiro dos Farnese, vai levar para seu palácio o Hercules Farnese, cópia romana em bronze de um original grego do século VI a.c., encontrada no século XVI nas escavações das Termas de Caracalla. Mas, ajunta Goethe, "a ocasião nos permitirá ver algo que nossos antepassados jamais puderam ver". Quando a escultura havia sido encontrada em terreno de propriedade dos Farnese, dela faltavam as pernas, dos joelhos até o tornozelo, existindo porém os pés e o pedestal sobre o qual ela estava assentada. Para refazer as partes faltantes, havia sido convocado Guglielmo della Porta, repousando a estátua sobre as partes restauradas até então. Entretanto, as pernas antigas e verdadeiras foram encontradas, algum tempo depois, em terreno dos Borghese, estando até aquele momento expostas na Villa Borghese. E só naquele momento, no final do século xviii, o príncipe Borghese abria mão daquelas pernas e, doando-as ao rei de Nápoles, a estátua podia enfim ser restaurada.
Original grego em mármore do século VI a.c., cópia romana em bronze do início da era cristã, possivelmente saqueada e perdida nas invasões bárbaras, ressurgimento e restauração parciais no século XVI, restauração final no século XVIII, quando de sua transferência de Roma para o reino de Nápoles: numa estátua, estão condensados e documentados os fatos que fizeram a história da cultura ocidental, ou por assim dizer, as pernas de nossa cultura, de nosso pensamento. Em Psicanálise não lidamos com estátuas todos sabemos. Mas o que não parece ser de conhecimento de todos os analistas é que nosso acervo teórico mais do que definir o que seja um ser humano não é mais do que um documento, extremamente importante sem dúvida, dos fatos históricos ocorridos desde a criação do documento primeiro, o original. Da mesma forma que o Hercules Farnese aponta para a reprodução do ser humano dentro de sua historicidade é necessário olharmos nosso corpo teórico e prático dessa mesma perspectiva. Ou como teorizou Fabio Herrmann, a partir dos campos transferenciais em que cada teoria foi criada. É para isso também que aponta o livro de Green (2008), Orientações para uma psicanálise contemporânea: desconhecimento e reconhecimento do inconsciente, ao mostrar que o movimento psicanalítico é feito por pessoas comuns, sujeitas a todas as vicissitudes da inserção político-grupal. E é para essa reflexão que a clínica contemporânea nos convoca.
12. Se em 1900, a ênfase da clínica freudiana era colocada na decifração e na interpretação do sentido recalcado - aquilo que Freud chamou de infantil - a partir dos anos vinte ela vai sendo transformada em decorrência de suas próprias teorizações e já em 1919, a partir das considerações de "Além do princípio de prazer" (Freud, 1919/1976a), a tarefa do analista, a interpretação, assim como o sonho, passa a ter uma função reparadora do próprio tecido psíquico, do próprio ego, traumatizado e lacerado que se encontravam pelos restos diurnos. O aqui e agora se aproximavam portanto mais de uma busca pela representação possível de um sujeito em ruínas a partir de suas próprias ruínas do que da decifração de um passado histórico localizado em um tempo linear e homogêneo. Logo a seguir, seu conceito de Verleugnung, denegação, vem denunciar um sujeito reificado e fetichizado. Não são justamente essas as questões essenciais da clínica contemporânea?
Não são as ruínas das Torres Gêmeas a melhor alegoria para o sujeito que habita hoje nossos consultórios, como que a marcar num mesmo aqui e agora a presença sincrônica de cultura e barbárie, de tecnologia e "arché"? As chamas civilizatórias sempre criaram as imagens de nosso acervo representacional.
13. "Tenho duas certidões de nascimento, a primeira só com o nome de minha mãe, a segunda, tirada anos depois, também com o nome de meu pai". Foi assim que um jovem rapaz apresentou-se a mim naquela primeira entrevista, três anos atrás. Embora, estivesse apenas de passagem por São Paulo, pois em dois dias voltaria ao continente em que trabalhava, estava buscando um analista porque não suportava mais aquilo que chamava de "seus muitos momentos de depressão". Seu trabalho o obrigava a deslocar-se por países diferentes no período de uma mesma semana, o que o impedia de encontrar-se com um analista pessoalmente numa frequência determinada. Assim começaram nossos encontros, na maioria das vezes por Skype, e, quando de passagem pelo Brasil, da maneira tradicional, em meu consultório. "Não saia daí" foi o que me respondeu ele quando questionei a validade e a eficácia dessas sessões, mais ou menos um mês depois da entrevista inicial, deixando claro para mim que eu significava a existência de um lugar de referência para quem vivia em migração constante. Cabia a mim sustentar a existência desse lugar. Para quem vivia em aeroportos e quartos de hotéis, o lugar da transferência não era o "lugar outro" mas sim "o lugar estável", um "aí" específico que possibilitava uma existência não anônima. "Dr. Mar-cio, acabei de completar hoje minha 87ª viagem internacional desses últimos dez meses". O desconforto que eu vivia pelo fato de estar atendendo via Skype, experiência absolutamente nova e transgressora para mim, só se atenuava ao pensar o quão desconfortável deveria ser para ele atravessar tantas fronteiras em tão pouco tempo; e pelo fato de ele estar "presente" sempre, nos horários marcados a despeito de todas as diferenças de fuso horário existentes entre nós. E das interrupções ocasionais da rede durante nossas conversas.
14. Pouco a pouco, fui me dando conta de que eu não o interpretava, do ponto de vista daquilo que tradicionalmente eu fazia com meus outros pacientes, mas sim que enfatizava alguns pontos de sua fala, pedia esclarecimentos sobre outros, fazia associações próprias a partir de alguns de seus relatos, pedia descrições da cidade onde ele se encontrava naquele momento, configurando-se para mim que minha fala tinha basicamente por função favorecer e ancorar a potencial narrativa de uma experiência de vida tão diferente da minha. Se de meu lado, eu tinha uma casa com endereço fixo, um consultório feito a meu modo para atender meus pacientes, trabalhava em minha língua pátria, do lado dele, tudo era diverso, muito próximo daquilo que Marc Augé conceituou como "não-lugares". Numa de nossas conversas sugeri-lhe que o lesse. Alguns dias depois, ele exclama: "Dr. Marcio, eu sou um não-lugar". E continua associando que entendeu agora o porque colecionava as chaves de todos os quartos de hotel por onde se hospedava e todos os cartões de embarque dos aeroportos pelos quais passava. "É um jeito de ter alguma coisa minha, alguma coisa que me dê a sensação de que tudo existiu de fato", ele conclui.
15. Sonhava frequentemente com seus amigos brasileiros: "Nada demais, apenas que estamos sempre em turma, conversando, fazendo churrasco, coisas assim". O "nada" que era "demais", eu lhe disse, era nunca se sentir reconhecido, sentir-se sempre anônimo. Sua resposta foi rápida e certeira: "É por isso que fico sempre mal quando, ao passar na alfândega, cumprimento todo sorridente o funcionário pois já o vi ali inúmeras vezes e ele me olha como quem não está nem aí?"
"Não estar nem aí", "não saia daí": a reiteração do advérbio de lugar vai me assegurando que um percurso histórico-existencial vai sendo traçado. E com um novo sonho, um ano depois de nosso primeiro encontro, aparece uma bela representação de nosso trabalho conjunto. "Tive um sonho tão engraçado esta noite. Eu estava aí em São Paulo e ia comer capelletti". O "aí" é definido, São Paulo, possibilitando e denunciando a existência de cabeças, a dele e a minha, que, rimando num "etti" - reconstrução de trás para frente do nome transferencial do pai, Giovannetti, tornam-se capazes de ancorar um segredo. "Nunca falei para ninguém, nem para o senhor, mas agora preciso dizer. Na maioria dos fins de semana, o sentimento é insuportável e tenho que desligar de tudo. Me abasteço de fumo e passo três dias fechado, fumando um após o outro. Quero mudar isso, e preciso de sua ajuda".
16. Ao dizer estas palavras, ele me convoca a testemunhar o inarrável, o seu não-lugar, aquilo que até então não tinha representação outra que "uma certidão de nascimento sem o nome do pai" e o "nem aí". Um ano depois: "Estou puto com ele, pois me disse que em vez de ficar na casa dele em Paris, ele reservou um hotel cinco estrelas, dizendo que assim eu ficaria melhor acomodado. Será que ele não entende que só estou indo para lá para ficar com ele?" No lugar daquele nome faltante, o do pai, havia colocado por um bom tempo o nome de uma multinacional conhecida por todos, dando-lhe suporte para o "reconhecimento" necessário para a existência de toda e qualquer subjetividade. Daí a importância de seu emprego a despeito de todas as vicissitudes nele vividas.
17. Em "O que resta de Auschwitz", Agambem fala das duas palavras latinas que deram origem à palavra testemunha. Testis com o sentido daquele que se põe como terceiro em um litígio ou um processo. E superstes como aquele que viveu algo, que atravessou até o final um acontecimento e por isso pode dar testemunho disso. E é justamente neste último sentido que penso aquilo que chamo de "função testemunho" do psicanalista.
Diferentemente da função interpretante e da função continência, a função testemunho é aquela que se dá sem que o analista tenha estado dela consciente, embora não signifique de forma alguma que seja uma função passiva, isto é, algo que venha dado em toda e qualquer análise. Sendo ao mesmo tempo causa e consequência tanto da função interpretante quanto da função continência, ela ocupa, por assim dizer, um terceiro espaço, um espaço fronteiriço entre uma e outra, o espaço da travessia do acontecimento experimentado no aqui e agora transferencial. Por isso ela possibilita o conhecimento e também o re-conhecimento de todos os tempos que estão presentes na fala viva e contemporânea do acontecer psicanalítico. Sendo suspensão da interpretação, ela age justamente no ponto de cruzamento entre a ruína, os restos do passado e a potencial construção do futuro, num agora que não é nem subjetivo nem objetivo, nem intrapsíquico nem extrapsíquico mas que, por isso mesmo, um agora, simultaneamente, histórico e revolucionário. Tanto para o analisando quanto para o analista pois re-significando tanto o lugar de um quanto o do outro aponta para existência das "duas certidões de nascimento" de cada um, uma que se fez no passado e outra que se faz no contemporâneo, no momento mesmo de cada sessão.
Foi só após algum tempo de travessia conjunta com este meu analisando que pude ir me dando conta dessa função testemunho, essencial a meu ver em toda análise. Uma boa forma de expressá-la me foi dada por ele: "Estar aí", neste lócus fronteiriço, aquém de toda interpretação e além da continência, lócus originário daquilo que ainda virá a ser transferência, lócus da transferência ainda em estado potencial. Um lugar e um tempo, por assim dizer, nos quais todos nós analistas posteriores a Freud estamos ainda libertos de toda a transferência que temos para com sua obra e com a de seus seguidores.
18. Nós todos psicanalistas temos uma certidão de nascimento originária do encontro de Freud e Dora. E outras que fomos adotando ao longo de nosso percurso profissional, nos encontros com nossos analisandos, com nossos mestres, incluídos aí os chefes de escolas psicanalíticas. Mas é essencial que nenhuma delas seja tomada como a definitiva pois isso impediria a escuta da palavra viva daquele que chega hoje até cada um de nós. Pois só ela é portadora de uma contemporaneidade que escapa a nós analistas, acostumados que temos estado a um setting construído ao longo de um século e por isso mesmo, como o Hercules Farnese, carregado e sombreado por todo esse percurso histórico... O que nosso jovem analisando nos diz hoje, seja pelos novos códigos digitalizados, seja pelas novas figuras clínicas apresentadas, se bem escutada, é a palavra que pode nos libertar do ranço de uma excessiva patologização do psiquismo humano, colocando em questão muitos de nossos precipitados conceituais que tem muito mais a ver com a forma de pensar de nossos mestres em um determinado momento histórico do que com uma apreensão acurada e atemporal daquilo que caracteriza o humano. É fato que não podemos prescindir de nossos conceitos mas considerá-los como fixos e estáveis é, no mínimo, desprezar o mais básico dos ensinamentos de Freud que, ao longo de sua obra, nunca deixou de marcar o caráter transitório e migratório de sua teoria.
19. Quando falamos do mundo achatado e líquido do sujeito contemporâneo, estamos incorrendo no mesmo achatamento e estreitamento que pretendemos denunciar. Um jovem paciente, alguns anos atrás, me deu uma descrição paradigmática do parto deste novo sujeito nascente. Estudante de medicina, ele passava pela obstetrícia, quando foi chamado para um parto. "Separar o que era a cabeça do feto daquilo que era o imenso condi-loma vaginal da mãe foi muito difícil". O que nós precisamos encarar enquanto analistas é que ainda não sabemos com clareza o que é a cabeça humana e o quanto dela é separável do corpo e do condiloma maternos. Esta é a difícil e imensa tarefa a que somos convocados.
20. Pensar qual é o sujeito, ou qual é a subjetividade de nossos novos pacientes, aqueles nascidos pós revolução cibernética, para os quais "os acontecimentos desfilam como num travelling, o tempo de reflexão sofre um curto-circuito e a tela quebrou a distância entre o acontecimento, a imagem e a percepção. (onde) a proliferação de imagens é tamanha que já ultrapassamos um limiar crítico que impede uma decodificação real", (Baudrillard, 2003) é nossa tarefa contemporânea. E ainda, como estabelecer um processo analítico quando o tempo se torna tão exíguo e a permanência, um conceito absolutamente alheio à velocidade das transformações do mundo?
21. Não sei se conseguiremos responder a essas perguntas. Mas seguramente não conseguiremos sequer fazê-las se nos aferrarmos de forma melancólica a muitas de nossas cristalizações práticas e teóricas. Receber em nosso rosto o facho de escuridão lançado pelo contemporâneo, sabendo também que estamos situados na fratura de dois séculos, é aquilo para a qual a clínica contemporânea nos convoca. Pois, como no sonho de Dora, a casa continua em chamas, a cidade continua desconhecida e a estação está ainda a algum tempo daqui.
Referências
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Correspondência:
Marcio de Freitas Giovannetti
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Recebido em 7/4/2011
Aceito em 3/5/2011