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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo ene./abr. 2014
RESENHAS
Envelhescência: um fenômeno da modernidade à luz da psicanálise
Miriam Altman
Mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autora: Sylvia Salles Godoy de Souza Soares
Editora: Escuta, 2012, 213p.
Resenhado por: Miriam Altman
Sylvia, psicanalista com muitos anos de experiência clínica, autora do seu primeiro livro sobre envelhecimento (resultado de sua tese de doutorado) - tema que já vem estudando, pesquisando e publicando há longo tempo; assunto fundamental para o nosso mundo contemporâneo.
A autora mostra como o envelhecer e, consequentemente, a finitude fazem parte da vida; por isso, ela enfatiza o período que vai dos quarenta e cinco aos sessenta e cinco anos como "envelhescência". Por ser uma fase de mudanças corporais, em que surgem as rugas, os cabelos brancos etc, a pessoa já não se sente tão jovem, embora também não se identifique como velha; fase em que aparecem oscilações hormonais e de humor, em que os filhos saem de casa (conhecida síndrome do ninho vazio) e o casal/o sujeito se vê a sós, tendo que reavaliar-se; período que também pode coincidir com a aposentadoria. Em função de tantas transformações e perdas, ressaltam-se os questionamentos acerca dos papéis de cada um, gerando uma grande crise identitária. Portanto, é um momento de turbulência, conflito, reavaliação dos valores, mas sem dúvida nenhuma, como Sylvia nos mostra, muitos ganhos também podem surgir. Nesse sentido, a autora o equipara a uma fase parecida com a da adolescência, um período de transição para o ser idoso.
Do meu ponto de vista, é com muita originalidade e sensibilidade que a autora capta esse período da vida que produz sofrimento psíquico, ao mesmo tempo em que favorece a maturidade. Ela aponta como a psicanálise, como teoria e método, pode ajudar as pessoas em idades mais avançadas a encontrar novos sentidos para suas vidas.
O livro é composto de duas partes: na primeira, Sylvia nos ajuda a compreender o processo de envelhecimento no mundo ocidental contemporâneo, cujo foco revela os desdobramentos que atingiram mais as mulheres; na segunda parte, descreve o processo do trabalho clínico.
No primeiro capítulo, a autora faz um levantamento da noção de tempo, seguindo Levinson (1978): parte do tempo ecológico - regulado pelos ritmos do mundo natural -, passa pelo tempo regido pelas leis astronômicas, e chega ao tempo atual, que é o social, significado pela multiplicidade dos papéis desempenhados pela agenda social.
Essa noção de tempo cronológico sofre uma subversão quando Freud nos apresenta o inconsciente com um modo próprio de funcionar (1915/1974), revelando uma temporalidade própria - como nos lembra Sylvia, o desejo não tem idade. Desta forma, continua a autora, a "'construção do tempo', que envolve a ideia de atemporalidade, vai além da cronologia: é preciso ser considerada como um dado de uma consciência que se desdobra: passado e futuro que são forjados pela subjetividade" (p. 29). Esse esclarecimento da temporalidade se relaciona com o contexto e a identidade.
A seguir a autora nos brinda com uma retrospectiva histórica, trazendo a visão que se tinha do envelhecer desde os primórdios de civilizações milenares, passando por Grécia e Roma e detendo-se na obra-prima de Cícero, De senectute, autor que no ano 44 a.C. faz uma belíssima defesa da velhice - ele ressalta que todas as vilezas não têm outra origem senão nos atrativos do prazer, enquanto a natureza, ou a divindade, tenha dado nada mais belo ao homem do que o pensamento
Se na Antiguidade a velhice ocupava um lugar de honra, com o tempo a gerontocracia enfraquece: o ancião, por razões sociais, políticas e de poder, começa a ser diminuído e ridicularizado. Passando pela Revolução Industrial e depois pela política de aposentadoria, a autora chega ao tempo contemporâneo, em que o idoso passa a ser mais estudado e valorizado, conforme os vários contextos.
No capítulo 3, após essa viagem pelos séculos, a autora chega ao século XX, citando Bertrand Russell, Secco, Simone de Beauvoir, Debrert e outros, e nos dá uma visão bastante reflexiva de como os autores contemporâneos têm tratado o tema e a forma como as pessoas vêm envelhecendo atualmente, abordando aspectos biológicos, psicológicos, socioculturais, econômicos e políticos.
No capítulo 5, Sylvia baseia-se na psicanálise e discorre sobre os fantasmas da velhice que assombraram Freud - valendo-se para isso de trechos de cartas dirigidas a Ferenczi e Thomas Mann -, transmitindo-nos as inquietações que ele viveu dos sessenta e cinco anos em diante. Partindo do mestre, e passando por Ferenczi, traz a contribuição de vários autores atuais que falam especificamente sobre o envelhecer em uma perspectiva psicanalítica. Cita entre outros Messy (1992/1993) e Bianchi (1989), com os quais ela vai fazendo uma interlocução ao abordar, do ponto de vista metapsicológico, ou seja, econômico, genético e tópico, se haveria alguma influência do fator cronológico no modo do funcionamento psíquico. Sylvia analisa o conflito e o drama do homem contemporâneo, que não pode aceitar um envelhecimento natural do corpo e declínio de suas funções por estar submetido a um padrão de beleza. Com o advento da mídia, institui-se um padrão, um ideal a ser perseguido. Isso, porém, não evita o confronto com a própria morte. A autora discorre sobre o quanto essas questões influem na constituição da identidade e os conflitos e sofrimentos que daí advém.
Também recorre à psicanálise para explicar como se dá a primeira relação do bebê com a mãe, pela amamentação, e com o seu próprio corpo, que no início é autoerótica. Segue com os conceitos freudianos, falando das primeiras relações de objeto, distribuição da libido, abrindo o campo da sexualidade e do desejo. Levanta questões interessantes como "o lugar do desejo no corpo que envelhece" (p. 73).
Sobre a importante representação que o corpo toma nesse momento da vida, a autora levanta a hipótese de que, dependendo das circunstâncias e das experiências de vida de cada um, o corpo pode ficar hiper valorizado, obscurecendo os processos psíquicos e desequilibrando um estado anteriormente conquistado. Coloca a análise como possibilidade de um caminho de reconstrução deste equilíbrio mente/corpo.
O livro faz um apanhado de como se constitui a identidade do sujeito humano desde sua infância até a idade adulta, evidenciando os aspectos das identificações. Mostra como essa busca de identidade impulsiona o sujeito a traçar um projeto de vida, a buscar um status, um espaço profissional. E a identidade vai sofrendo modificações: com a aposentadoria, o sujeito se vê com menos atividades, dependendo das influências do contexto, socioculturais, da vida profissional e do estado civil.
Até há pouco tempo, a vida identificada com o profissional só servia ao mundo masculino; hoje em dia, as mulheres são igualmente atingidas tanto pelos benefícios quanto pelas vicissitudes do sistema. A autora segue levantando questões e nos fazendo pensar a respeito da confusão que se faz entre identidade pessoal e profissional, o que "leva a crises agudas de identidade, abalo nas estruturas e inevitável tumulto no intrincado de suas representações" (p. 81).
Chama a atenção para a situação das mulheres que se dedicaram somente à família, viúvas ou separadas, que se veem, às vezes, invadidas e angustiadas por questões de solidão, vazio e tempo ocioso; sentindo-se "'soltas no espaço' ou pior, muitas vezes não sabem o que querem ou mesmo quem são" (p. 82).
A autora argumenta que, para esses "envelhescentes", não existem novos referenciais identificatórios com os quais possam se reconhecer, na medida em que a mídia contemporânea está mergulhada na apologia da juventude. Ela continua de maneira muito interessante, fazendo uma retrospectiva histórico-psicanalítica da mulher contemporânea, suas heranças e mitos - não deixando de fora os aspectos referentes ao narcisismo, especialmente nas mulheres que possam ter sofrido perdas significativas no campo amoroso, ficando expostas a inúmeras ofensas ao eu. Nesse momento da existência, o descompasso entre o desejo narcísico de atingir o eu ideal e o que é possível para eu real torna-se maior e, para alguns, é muito difícil de tolerar. Sylvia aponta a psicanálise como caminho em que a relação com o analista serve como possibilidade de se viver a alteridade.
Outro ponto fundamental que a autora aborda de uma perspectiva crítica são os aspectos ligados aos lutos na contemporaneidade. A dificuldade de se tolerar sofrimento e dor pelas perdas e a exigência pela rapidez e eficiência dificultam as elaborações de lutos, "tanto as perdas concretas quanto as que se processam pelas 'perdas de si mesmo'" (p. 96). Os impedimentos que a sociedade moderna e a cultura impõem aos mais velhos - um moralismo ligado à sexualidade, idealização do modelo juvenil - empurram o sujeito para uma segregação.
Na segunda parte do livro, Sylvia ilustra a exposição que fez da teoria por meio de três casos clínicos. São mulheres em períodos de vida diferentes, mas que expressam conflitos inerentes ao processo do envelhecer. Apresenta trechos de sessões das suas pacientes sob diversos ângulos de suas personalidades - sua história de vida, vivências, lembranças e emoções -, para que o leitor possa acompanhá-las no que diz respeito aos aspectos ligados ao envelhecer. Dessa maneira, aparecem suas inquietações quanto ao futuro, seus conflitos conjugais, questionamentos com relação ao casamento, seus processos de luto, sofrimentos, questões ligadas à sexualidade, ao prazer, e outras tantas ligadas ao processo de envelhecimento feminino. A autora intercala comentários e faz indagações a respeito da passagem do tempo, do corpo que envelhece, das perdas e da identidade. Nesses comentários, está contida a abordagem psicanalítica, a forma como a autora usa seu cabedal teórico-clínico, fazendo sua metapsicologia do envelhecimento! Realiza isso de forma viva, demonstrando sua experiência clínica, despertando no leitor um interesse crescente.
No capítulo 11, Sylvia observa, a partir do material clínico - que inclui o caso de uma senhora mais idosa que as outras -, que o surgimento de sentimentos de perda, seja da juventude, de ilusões ou de entes queridos, desencadeia processos de luto como em outros momentos da vida; mas, sendo este um momento de crise, Sylvia nos diz:
O sentimento que se nota em comum é o medo acentuado em face do desconhecido e que se revela no emergir de fantasias atemorizantes: do ocaso, da sombra do que se foi, e do espectro que ronda o futuro - catástrofes, velhice e, por fim, a ideia da proximidade da morte (p. 133).
A autora detém-se nos processos de luto que surgem nesse período de crise, tais como o declínio das funções corporais, que inclui a sexualidade; a constatação da perda de certas funções maternas e o esvaziamento dos papéis familiares; o tempo da memória; e o luto - por vezes, a melancolia das perdas reais ou simbólicas.
Sylvia vai descrevendo seu trabalho clínico a partir do surgimento dessas questões: com sua paciente Sofia, toma como ponto de partida questões referentes à passagem do tempo; com Maria Isabel, reflete sobre conceitos de identidade; com Eva, que é a mais velha e já sofreu perdas significativas, centra sua atenção sobre o luto da alma e de funções básicas do corpo.
No último capítulo, Sylvia inspira-se no método da psicanálise - ruptura de campo (Hermann, 2001) -, entendido em seu sentido investigativo, como um caminho que leva ao conhecimento. É um capítulo em que aborda com delicadeza e sensibilidade as questões do conteúdo psíquico de suas pacientes, fazendo uso de metáforas que podem nos tocar profundamente por também nos identificarmos com elas.
Em suma, recomendo esse livro por trazer uma visão abrangente, penetrante e contextualizada historicamente dentro do nosso mundo atual de um tema que entre nós, psicanalistas, ainda é pouco estudado. A expectativa de vida cresce a cada ano; Sylvia levanta questões instigantes e nos dá muitos elementos para pensar.
Referências
Bianchi, H. (1989). Avant-propos. In H. Bianchi et al., La question du vieillissement: perspectives psychanalytiques. Paris: Dunod. [ Links ]
Freud, S. (1974). O inconsciente. In S Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 185-245). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). [ Links ]
Herrmann, F. (2001). Introdução à teoria dos campos. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Levinson, D. J. (1978). ne seasons of a mans life. New York: Knopf. [ Links ]
Messy, J. (1993). A pessoa idosa não existe (J. S. M. Werneck, trad.). São Paulo: Aleph. (Trabalho original publicado em 1992). [ Links ]
Correspondência:
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